"Mulheres em situação de rua - Trajetórias de invisibilidade e exclusão social" por Tácila Clímaco

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MULHERES em situação de rua

Trajetórias de invisibilidade e exclusão social por Tácila Clímaco

A cena é comum. Camas improvisadas no chão, nas calçadas, nas marquises e nos bancos das praças revelam a realidade de pessoas que fazem da rua a sua casa, o seu teto, o seu mundo e o seu sustento. A sociedade reage com medo, evita qualquer tipo de contato e esquece que cada morador de rua tem a sua história e os seus motivos para se encontrar nessa situação. 1


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Brasil não possui dados oficiais acerca da população de rua e isso acaba dificultando a implementação de políticas públicas voltadas para esse público, o que, consequentemente, acaba reproduzindo a exclusão e a invisibilidade social de quem mora nas ruas, do ambiente das políticas sociais, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), fundação pública vinculada ao Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, que estimou, numa pesquisa realizada com base em dados de 2015, que existiam mais de 100 mil pessoas em situação de rua no país. O Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua (Ciamp-Rua), instituído em conjunto com a Política Nacional para a População em Situação de Rua, via Decreto nº 7.053/2009, solicitou ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que incluísse a população de rua no Censo de 2020. O IBGE apontou diversas dificuldades em incluir este público no próximo censo e ressaltou, em particular, a dificuldade em realizar pesquisas com populações sem domicílio fixo, e que o estudo exige metodologias de amostragem, logística de campo e abordagem do entrevistado bastante distintas do padrão usualmente utilizado pela instituição. Dada a dificuldade, o Ministério do Desenvolvimento 2

Social (MDS) optou por adotar como estratégia a compilação dos conhecimentos municipais disponíveis no âmbito das secretarias de assistência social. Por meio do Censo do Sistema Único de Assistência Social (Censo Suas) 2015, instrumento eletrônico nacional de captação anual de informações institucionais de secretarias e conselhos estaduais e municipais de assistência social, bem como de equipamentos públicos, tais como os Centros de Referência da Assistência Social (Cras), Centros de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) e Centros de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centros POP), foram coletados dados sobre se o município possuía ou conhecia o número de pessoas em situação de rua no seu território; em caso afirmativo, o número de moradores nesta situação; e a forma como essa informação foi levantada. O Censo Suas 2015 apontou que a maioria dos municípios não possui estimativa de população de rua. Entretanto, os municípios que possuem são, não supreendentemente, aqueles que comportam o maior contingente populacional. Ou seja: os municípios maiores comportam proporcionalmente mais pessoas em situação de rua que os menores. O fato é que sobreviver nas ruas é uma árdua tarefa. A falta de teto ou de abrigo tira a cidadania de quem construiu sua história nesse mundo. Além de sofrerem com o preconceito

e com o desprezo das pessoas, os moradores estão sujeitos a todo tipo de violência, principalmente as mulheres, que mesmo sendo minoria, são mais vulneráveis às adversidades nesse contexto. Nas ruas, é possível encontrar personagens que sobrevivem em meio ao preconceito, que se atenua por causa do gênero, e lutam para se tornarem visíveis. Fabiana, Camila e Maricleide fazem parte da estatística de mulheres que sentem na pele, cotidianamente, as dificuldades relativas à vida de quem sobrevive nas ruas da cidade. Três histórias reais que revelam, a partir de suas trajetórias de invisibilidade e exclusão social, um olhar diferenciado para a mulher em situação de rua e nos aproxima do seu dia a dia. ENTREGUE À PRÓPRIA SORTE O sol escaldante, o céu sem nuvens, infinitamente azul; a vista panorâmica para o mar esverdeado da praia da Avenida, para o Porto e para grande parte da cidade trazem à tona a realidade de pessoas que pouco ou nada se importam com a visão que o Mirante de São Gonçalo, famoso ponto turístico da capital alagoana oferece. O lugar é simples e pouco cuidado. A pequena praça, no alto de Maceió, abriga a história de vida de mulheres, que por diversas razões, moram e sobrevivem nas ruas. Umas deitadas sobre papelões, outras sentadas na


DIOGO MAIA

Fabiana dos Santos sobrevive nas ruas de Maceió há 21 anos. calçada. Todas falam num tom alto, como se brigassem, e gesticulam o tempo todo. Cada uma com sua história individual. Tão diferentes, mas tão iguais. Incrível como cada uma delas carrega alguma coisa e não solta por nada. Parece que tudo que elas têm está ali, nas mãos ou dentro de uma sacola. Não importa. É como se a qualquer momento alguém pudesse chegar e pegar, sorrateiramente. E elas não querem correr o risco de perder as únicas e pequenas coisas que podem chamar de suas. A gente fica parado, observando, imaginando o quanto deve ser difícil morar na rua. Conviver com o calor insuportável de quase todos os dias; e com o frio de algumas noites. Com a fome e a sede, com os olhares que te marginalizam,

com o medo de ser assediada, estuprada ou morta, e com os infortúnios inerentes à situação de quem vive nessas condições. Mas presumir o quanto deve ser complicado, não chega nem perto do viver essa realidade. “Passei fome e a opção que tinha era pegar comida do lixo. Fui espancada por 3 homens ao mesmo tempo, perdi meus filhos, tive muitas dificuldades e já sofri demais por morar nas ruas.” Essa é a afirmação de Fabiana dos Santos, de 35 anos. Descalça, vestida com um short jeans que antes era uma calça e uma blusa surrada, ela não esconde no seu semblante, as marcas que os acontecimentos que fizeram parte da sua existência deixaram. A aparência sofrida, que a faz carregar vinte anos a mais

nas costas, evidencia uma história de perdas e de dor, ao longo dos vinte e um anos em que sobrevive nas ruas. Despenteada, com sua dentição incompleta, e com grande parte do corpo marcada por cicatrizes de queimadura, fruto de violência doméstica, ela conta que teve que aprender a se virar desde cedo. “Nasci em Palmeira dos Índios. Fui criada pela minha tia desde os 9 meses de idade. Ela foi minha mãe. Quando ela morreu eu não tinha com quem ficar. Então, aos treze, fui morar na rua. ” Fabiana, que teve sua inocência usurpada pela vida nas ruas, confessa que não é nada fácil sobreviver a determinadas situações e que, na tentativa de aliviar as dificuldades 3


que essa vida impõe, ela, assim como a maioria dos moradores de rua, se envolveu com drogas. “Usei vários tipos de drogas e já fiquei internada em inúmeras clínicas. Tem 6 anos que não uso crack. Ele tava acabando com o resto da minha vida. Agora só cheiro cola”. Inquieta, comunicativa e com um olhar expressivo, ela não apaga da memória as intempéries que viveu. Sua história de vida, infeliz, diga-se de passagem, cujo o enredo é marcado por comoção, sofrimento e aflição, é narrada por ela como se as revivesse. “Venho perdendo coisas a minha vida toda. Não sei como ainda estou aqui, viva. Mataram meus dois maridos. Eles se envolveram com coisas que não deviam e deu nisso. Mas é assim mesmo, né? Indaga. O fim de quem faz coisas erradas é a morte ou a prisão. Não existem muitas opções. Tive cinco filhos. O primeiro, levaram de mim, porque eu era de menor, e eu nunca tive notícias dele. O Arthur tá numa unidade para menores infratores, acusado de ter participado da morte de um homem, na clínica de reabilitação onde ele estava. Já fui lá visitá-lo. Queria tirar meu filho daquele lugar. Os outros três morreram. A Albiana foi espancada na rua, junto comigo. Na época eu tava envolvida no tráfico de drogas. Uns caras chegaram pra nos roubar e nos espancaram. Eu sobrevivi, ela não. E a Alice e o Robson eu perdi quando ainda eram muito pequenos. O uso da cola duran4

te a gravidez fez com que eles já nascessem com problemas”. A moradora de rua conta que apanhou várias vezes de seus companheiros e que sofreu abusos, inclusive sexuais, deles e de outros moradores de rua. “Os dois me batiam, mas eu precisava deles para me proteger. A gente acaba tendo que se tornar dependente de algum homem, como forma de proteção. Nem sei quantas vezes fui agredida por eles e por outras pessoas”. Depois de uma pequena pausa em suas palavras, cabisbaixa, ela revela com uma voz esmorecida: “Sou HIV Positivo”. “Descobri o HIV há alguns anos, durante uns exames que aquelas equipes de saúde fazem com a gente que vive nas ruas. Fizeram um teste rápido e foi aí que fiquei sabendo. Não sei como “peguei”, mas eles me explicaram que pode ter sido porque tive relações sexuais sem proteção ou injetando drogas na veia. Também me disseram que eu podia fazer um tratamento, mas não quero saber disso não”, declara ela, menosprezando os riscos do vírus. Aproxima-se do meio dia, quando a Fabiana lembra que já está quase na hora do almoço. “Agora tenho que ir. Se demorar mais perco a hora da comida”. Enquanto se despede, ela solta: “Queria viver uma outra vida, sabe? Nunca sonhei com isso. E quem é que sonha? Mas isso é o que tenho, o que sempre tive. A rua, essa praça.... Ainda bem que existem pessoas que nos ajudam de alguma maneira. Seja com um prato de

comida ou com uma roupa usada, como essa que tô. Mas meu sonho mesmo é ter minha casa, meu lar”, desabafa, à medida que atravessa a rua. SONHOS PERDIDOS NO CAOS A vista é para a orla da Ponta Verde, um dos cartões-postais de Maceió. A beleza paradisíaca do mar, dos coqueiros e da areia da praia contrastam com a vida de quem faz do calçadão a sua casa. “Meus pais morreram. A polícia matou meu irmão. Voltei a morar na rua há dois anos. Não é fácil ficar assim, jogada, mas a gente não tem condições de pagar um aluguel. Já roubaram as minhas coisas várias vezes e eu já perdi a conta de quantas vezes me bateram”, relata Camila Alves dos Santos, também moradora de rua. Nascida em Palmeira dos Índios, município localizado no Agreste alagoano, situado a cerca de 136 quilômetros da capital, Camila, que hoje tem 24 anos, revela que é descendente de uma tribo indígena. “Sou do povo Xucuru-Kariri. Depois que meus pais morreram eu saí de Palmeira com outras pessoas e pegamos carona até chegar aqui, em Maceió. Depois de um certo tempo morando nas ruas, conheci nas “quebradas”, lá na Chã do Bebedouro, a mulher que se tornou minha segunda mãe. Eu tava na rua e ela me levou pra morar com ela”, conta. A jovem diz que teve seu primeiro relacionamento muito nova. “Arrumei um ma-


rido quando tinha 14 anos, mas eu apanhava dele. Um dia ele ficou com ciúmes e meteu o facão aqui, aponta para o joelho, mostrando a cicatriz que carrega. Dois anos depois, conheci esse meu companheiro que tô hoje. Estamos juntos há oito anos. Ele é o pai dos meus dois filhos. Uma menina de cinco anos e um menino de um ano e sete meses. Eles não moram comigo, moram com a minha sogra. E antes que me pergunte, ela não quer a gente lá”. O corpo franzino não esconde o desleixo que a vida na rua impõe. Camila lembra, com um semblante de tristeza, que há pouco tempo a vida lhe pregou mais uma peça. “Minha mãe que me criou também mor-

reu. Lembra daquela barreira que caiu no Alto da Boa Vista, naquela chuva que teve no ano passado? Ela tava lá. Uma barreira deslizou e minha mãe foi soterrada. Chorei demais quando fiquei sabendo. Tanta coisa que ela fez por mim. Eu podia ser o que fosse, vagabunda, maloqueira, “drogueira”... mas se eu fosse pra casa dela, ela me aceitava, em qualquer hora que eu chegasse”. O deslizamento que vitimou a mãe de Camila aconteceu em maio do ano passado, quando foi registrado o maior volume de chuva, em Maceió, desde 2010. Foram registrados 46 deslizamentos de barreiras, 12 desabamentos de imóveis,16 pontos de inundação, 15 barrei-

ras e 29 casas com ameaça de deslizamento, segundo balanço feito pela Defesa Civil, na época. Com um olhar inquieto e sem perder seu companheiro de vista, a jovem moradora de rua revela, numa entonação mais baixa que o normal, que é usuária de crack e que se prostitui na intenção de alimentar seu vício. “Sou viciada. Todo mundo sabe. Esses dias saí com dois caras em troca deles liberarem um pouco da droga pra mim. Não foi a primeira vez que tive que fazer isso. O problema é que não usei camisinha. Já tive sífilis e tô achando que posso tá de novo com a doença. Tô com uma ferida lá embaixo TÁCILA CLÍMACO

A beleza paradisíaca do mar, dos coqueiros e da areia da praia contrastam com a vida de quem faz do calçadão a sua casa. 5


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SER DA RUA São quase dez horas da manhã de uma quarta-feira chuvosa quando a equipe de abordagem da população em situação de rua da Secretaria Municipal de Assistência Social (Semas) estaciona sua van, próximo ao viaduto da AL-101 Norte, em Jacarecica. O viaduto ainda não está concluído, mas sob ele, Maricleide da Silva já fez sua nova moradia. O lugar, que foi escolhido para servir de abrigo, acaba não cumprindo seu papel por causa da forte chuva com rajadas de vento. No local, um colchão velho, onde ela dorme com seu companheiro; mochilas, roupas, panelas, depósitos, talheres, restos de comida e vários outros objetos ocupam o chão. Natural de Maceió, Maricleide, de 35 anos, é alcoólatra e foi parar nas ruas quando ainda era uma adolescente. “Faz tempo que levo essa vida. Já morei em vários lugares dessa cidade.

A gente nunca fica muito tempo num só lugar, tem sempre que tá se mudando. O meu vício é a bebida mesmo. Lembro que o meu pai molhava a minha chupeta na cachaça, quando eu ainda era uma criança”, relata. A psicóloga da Semas tenta convencer o casal de que ali, naquele momento, principalmente por causa do mau tempo, não é o lugar adequado e seguro para eles ficarem. “A gente pode levar vocês para o abrigo. Ligamos para lá e perguntamos se tem vagas e, caso tenha, levamos vocês agora mesmo, na van. Lá vocês ficarão abrigados, pelo menos nesse período chuvoso. Depois vocês decidem se vão querer permanecer”, esclarece Nalva Matos. A moradora de rua reluta e tenta a todo custo fazer a equipe ir embora. “Vão ajudar outras pessoas. A gente tá bem por aqui, vamos ficar aqui mesmo. Ele não vai querer ir. Vamos ter que dormir separados e ele não vai gostar”, aponta para o companheiro que está sentado TÁCILA CLÍMACO

e vez ou outra sai um líquido transparente dela. Estou com medo do meu marido descobrir. Se ele souber que saí com esses caras, me mata. Mas eu não vou fazer isso mais não”. Apesar da pouca idade e de já levar consigo uma trajetória repleta de infortúnios, Camila, que frequentou a escola até a quarta série, tem esperança de algum dia sair das ruas e voltar a estudar. “Não aprendi nem a escrever meu nome, acredita? Não tenho nenhum documento. Quando eu era criança sonhava em ser policial, mas hoje em dia já não penso, porque quando vejo a polícia eu fico com medo. Se um dia voltar pra escola, vou estudar pra ser uma médica”, confessa com um leve sorriso no rosto. A jovem mãe, que leva consigo a culpa por viver nas ruas, também carrega o alívio de ter na sogra, alguém que não virou as costas para os seus filhos. “Fiz tudo de maneira torta nessa vida. Me envolvi com pessoas e situações erradas, mas se tem uma coisa boa que eu fiz, são os meus filhos. Dou graças a Deus que eles não estão aqui na rua comigo. Não quero que eles vivam as mesmas coisas que eu e o pai deles. De vez em quando vou lá na casa da minha sogra, vê-los. Eles estão bem, são bem tratados, a vó deles é uma boa mulher. Sei que ela não quer que eles vivam as mesmas coisas que o filho dela e eu vivemos. Um dia, quem sabe, quando eu me livrar desse vício e arrumar um emprego, pego eles”, afirma, emocionada.

Maricleide é alcoólatra e foi parar nas ruas ainda adolescente.


ao lado, segurando um guarda-chuva, com o qual tenta, a todo custo, proteger um cachorro da chuva. Enquanto a equipe tenta convencer o marido de Maricleide de que devem ir para o abrigo, ela caminha até o balde que deixou embaixo de uma goteira que cai do viaduto. “Tô esperando ele encher pra poder lavar algumas roupas. As pessoas têm receio de se aproximar da gente, né? Acham que vivemos sujos e fedidos. Acho que a pior parte de morar na rua é sentir o desprezo das pessoas. A gente é pior que um animal pra elas. Moro nas ruas, mas tento me manter limpa, mesmo em meio as dificuldades de tomar um banho e de lavar uma roupa, como você pode ver”, conta. Ela observa o companheiro ouvindo as técnicas da Semas e revela: “Ele não vai. Não gosta de dormir sem mim. Tá vendo aquele colchão? Se você passar aqui de madrugada vai ver a gente dormindo de conchinha (risos). A gente briga um bocado. Ele me bate, mas eu revido. Uma vez arrebentei a cabeça dele. Levou até ponto. A gente vive entre tapas e beijos, mas só temos um ao outro”. Aproximando-se de Maricleide é fácil notar a saliência da sua barriga. Ela acha que está grávida, mas a psicóloga da abordagem diz que ela já foi atendida por uma equipe de saúde, que confirmou que não há gravidez, mas sim indícios de uma cirrose. “Já solicitamos o atendimento de uma equipe da saú-

de para ela. Os exames iniciais já foram realizados e o que foi confirmado é que ela não está grávida. Ela acredita que sim, mas foi comprovado que não. Queríamos que ela acompanhasse a equipe para fazer uns exames mais detalhados, porque acreditamos, pelo seu histórico com as bebidas, que o que ela tem é cirrose, mas ela se recusa a ir e não podemos obrigá-la, infelizmente” Depois de quase quarenta minutos tentando levá-los ao abrigo, a equipe é vencida pelos vários nãos da moradora, que diz que não vai sair dali e pega, entre suas roupas, uma garrafa de cachaça e um copo improvisado, feito de garrafa pet e entorna, num só gole, toda a dose. “Gente, vocês podem ir! Vamos ficar por aqui mesmo. Tô até me esquentando agora. Vão! Têm outras pessoas precisando da ajuda de vocês. Ficar aqui não vai adiantar. Se eu mudar de ideia, procuro vocês”, fala, virando mais uma dose da bebida. ABORDAGEM SOCIAL OU POLÍTICA DE HIGIENIZAÇÃO? Visando prestar assistência social, por meio de uma rede de atendimento a pessoas em situação de rua, a Secretaria Municipal de Assistência Social (Semas) conta com o Serviço Especializado em Abordagem Social (Seas), que percorre os bairros da capital para encaminhar a população em situação de rua aos programas socioas-

sistenciais e serviços de acolhimento institucionais, disponíveis no município. Com base em informações disponibilizadas pela Semas, não há como levantar um número exato de pessoas que moram ou estão em situação de rua, em Maceió, pois, elas não ficam sempre num lugar específico. No entanto, segundo um levantamento feito pela Secretaria, foram realizados mais de 3.500 atendimentos, durante todo o ano de 2017. “Os moradores de rua são muito itinerantes. É muito difícil contabilizá-los. Tem os que moram na rua e os que estão em situação de rua por sobrevivência. O que a gente tem aqui, enquanto serviço de abordagem social, são os números de abordagem e atendimento. Não fazemos um trabalho específico para cada gênero. As equipes de abordagem têm uma ficha de atendimento onde preenchem o nome, a procedência, o perfil, se é usuário de drogas, se trabalha, escolaridade, etc. A partir disso, todo mês a gente tem um relatório”, destaca a coordenadora geral de abordagem à população em situação de rua da Semas, Priscila Guimarães. Maceió tem cinco unidades dos Centros de Referência Especializado da Assistência Social (Creas) e dentro deles existem alguns serviços que atendem o público. O Seas é o serviço que atende à população de rua e é formado por seis equipes, cinco que trabalham durante o dia e uma de plantão, durante a noite. Cada uma com7


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Semas encaminha a população em situação de rua aos programas socioassistenciais e serviços de acolhimento institucionais, disponíveis no município. posta por multiprofissionais, entre eles assistente social, psicólogo e educador social, que se dividem nas regiões do Benedito Bentes, Santa Lúcia, Jatiúca, Poço e Orla Lagunar. O trabalho das equipes é identificar a localização dessas pessoas, orientá-las e sensibilizá-las acerca dos riscos pessoais e sociais de morar na rua. Constatado o risco social, a pessoa que se encontra em situação de moradia nas ruas de Maceió conta com a disponibilidade de diferentes serviços. Entre eles, os relacionados ao acolhimento institucional, o retorno para a cidade de origem e a reinserção familiar. “O atendimento é para ser a porta de entrada para o restante dos serviços da rede e das 8

políticas públicas. A gente dá o suporte inicial e procura saber a necessidade do momento do usuário. Se é ser inserido na família, se ele quer algum tipo de internamento, encaminhamento para abrigos. Enfim, vamos às ruas para saber o motivo de estarem ali e se querem algum tipo de ajuda. Eles podem não querer na hora, mas como é um trabalho gradativo, vamos criando vínculos, até que surja algum interesse pelos serviços, da parte deles”, explica Priscila. As equipes também fazem o diagnóstico do perfil desses usuários e têm como meta a inserção dos mesmos em programas como o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) e Bolsa Família, por exemplo.

“Para ter acesso aos programas e benefícios sociais tem que ter documentação. A gente faz um cadastro e a partir daí pode ser feito um encaminhamento ao Centro de Atendimento dos Benefícios Eventuais: cesta básica, auxílio passagem para voltar a cidade de origem, auxílio moradia por três meses, podendo ser prolongado por mais três. As famílias que ficam com crianças nas ruas são muito mais para sobreviver da mendicância. A maioria tem residência, não própria, mas é contemplada com o bolsa família, pagam o aluguel com ele e acabam ficando sem dinheiro para comprar comida. Aí vão às ruas para conseguir dinheiro, cestas básicas, etc”, ressalta a coordenadora.


Baseado nos atendimentos realizados pela Semas, 18,54% da população de rua é de mulheres na faixa etária de 18 a 39 anos. “O perfil que a gente encontra é de mulheres que sofrem tudo que é tipo de violência. De espancamento a estupro. Geralmente essa violência vem da parte dos próprios companheiros, e elas continuam com eles. É muito difícil tu ver uma mulher sozinha na rua, a não ser que ela tenha algum transtorno e não consiga se relacionar com ninguém, mas de alguma forma essa mulher já foi violentada, até mesmo por ter o transtorno. Se a gente passa na rua e tá sujeita à violência, imagina alguém que tá em vulnerabilidade. Algumas já falaram que preferem tá com o companheiro e apanhar dele, do que apanhar de outros homens na rua, porque de alguma maneira elas sentem-se protegidas com eles”. No geral, ainda de acordo com o levantamento dos atendimentos feitos pela Secretaria, 42,07% das pessoas que estão nesta situação têm nos conflitos familiares o maior motivo de suas vivências nas ruas; 58,12% são usuárias de drogas ilícitas; 33,89% praticam mendicância como ocupação para produção de recursos e 54,09% tem o ensino fundamental incompleto, como nível de escolaridade. Em sua estrutura, a Semas tem o Albergue Municipal, para adultos dos dois sexos e os Centros de Referência Especializado para a População em Si-

tuação de Rua (Centros Pops), que oferecem alimentação e higienização, além do atendimento com os técnicos e das atividades com os educadores sociais. “Eles podem passar o dia nos Centros Pops. Podem lavar roupas, tomar banho, comer, participar das atividades. Só precisam obedecer às regras. A gente tem o apoio da guarda municipal para revistá-los, porque eles usam muito a faca, para se protegerem nas ruas, e não podem entrar lá com nenhum objeto perfurante. No Centro só não pode dormir. Dormir só no albergue municipal, onde chega muita demanda espontânea. A ideia é que seja um acolhimento provisório e por isso a gente mantém parceria com as Secretarias do Trabalho, Abastecimento e Economia Solidária (Semtabes) e a de Educação (Semed), e com o Sistema Nacional de Emprego (Sine) ”, salienta. A coordenadora geral de abordagem à população em situação de rua da Semas ainda evidencia as dificuldades que as pessoas têm em lidar com esse segmento. “Recebo várias ligações de pessoas pedindo para tirar morador de rua da frente do seu prédio, da sua casa, porque ela não é obrigada a vê-lo. A gente não pode obrigar ninguém a sair das ruas, mesmo sabendo que existe a parte política que quer “limpar” a cidade e que não quer ver nenhum morador na rua. Nós, enquanto serviço e profissionais técnicos, temos que respeitar se o morador quer ou não ficar na rua”, finaliza.

ENDEREÇO DA SOLIDARIEDADE São doze horas. O portão gradeado, vigiado por um homem, funcionário do local, separa a rua do refeitório. Ao entrar, o ambiente cercado de limpeza se opõe ao odor desagradável que exala dos moradores de rua que frequentam assiduamente o lugar. Com sede na ladeira da catedral, no Centro, a Associação Católica São Vicente de Paulo, com nome fantasia Fraternidade Casa de Ranquines é uma entidade sem fins lucrativos, que realiza um serviço assistencial à população em situação de rua. Ranquines é uma expressão francesa e significa coxo, manco, paralítico, e era o nome da casa de São Vicente de Paulo, que abrigava pessoas necessitadas, na França. “Eu era noivo. Tava tudo pronto para o casamento. Minha noiva e eu fazíamos um trabalho de assistência aos pobres num grupo chamado São Vicente de Paulo, que foi fundado na França e tinha como patrono São Vicente, que na época era o santo do auge da caridade lá. O grupo se espalhou pelo mundo e aqui em Maceió a gente ia às grotas ajudar as famílias. Íamos para evangelizar, mas víamos as necessidades e tentávamos resolver. Chegou um momento em que renunciamos ao casamento e decidimos viver essa entrega total. E fundamos a Casa de Ranquines”, conta Frei José, fundador da Fraternidade junto 9


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A Casa de Ranquines tem doze anos e o trabalho de assistência aos moradores de rua iniciou no bairro do Benedito Bentes. com a madre Rita. A entidade tem doze anos. O trabalho começou no bairro do Benedito Bentes e cinco anos depois, no Centro. “Fazíamos um trabalho de distribuição de sopa todas as noites e sentíamos a necessidade de estar no centro da cidade. E conseguimos. O nosso objetivo não é só alimentar, é dar dignidade. A comida é um meio para chegar neles e tentar convencê-los de que isso não é vida. Temos uma casa de acolhida feminina, no Benedito Bentes, onde acolhemos senhoras que moravam na rua e também temos um centro ocupacional, que atende crianças em situação de vulnerabilidade”, ressalta o frei. Apesar da “liberdade” e da falta de regras das ruas, os frequentadores da Casa parecem respeitar o ambiente que os acolhe. “Normalmente, sim, mas nem sempre é assim. Já 10

tivemos inúmeros problemas entre eles e com eles. É muito difícil inserir morador de rua na sociedade. Já fomos roubados várias vezes. Não tenho nem noção de quantas! A gente se irrita, humanamente falando, mas depois é perdoável, porque passamos a entender a situação. Então começamos a gerar punições para que eles começassem a se policiar e graças a Deus nunca fomos agredidos, mas já chegaram a jogar pedras aqui dentro”, enfatiza o fundador da instituição. Segundo o coordenador do refeitório e da cozinha, Anthony Teixeira, são servidas, por mês, em média, 3.200 refeições. “São duas refeições diárias: o café da manhã e o almoço. O refeitório fica aberto de 6h30 até às 18h e é um espaço onde eles podem passar o dia, tomar um banho, ver televisão, conversar. Além da alimenta-

ção, damos apoio espiritual, encaminhamos à clínicas de reabilitação, caso algum deles queira tratar sua dependência química, e também damos suporte com cesta básica, material de higiene pessoal e roupas àqueles que têm uma residência, mas usam a rua para retirar seu sustento.” A Fraternidade não possui um cadastro das pessoas que frequentam o lugar, pois a maioria deles não possui documentos ou tem receio de informar seus dados. “Já começamos um cadastro, mas não deu muito certo. Quase todos têm problemas com a documentação ou preferem não dá seus nomes. Precisamos de uma estratégia que facilite isso, mas acreditamos que 20% dos frequentadores são mulheres”, conta o coordenador. De acordo com o frei José, as doações são de pessoas físicas e eles não têm nenhum apoio governamental. “Procuramos apoio do governo, mas não tivemos retorno. Temos um cadastro de pessoas, que são chamadas de benfeitores da obra. Fazemos ligações e essas pessoas doam, mensalmente, uma quantia que ajuda a manter a Casa. Os doadores, inclusive, vêm ajudar a distribuir as refeições”, destaca. A ESPERANÇA E A LUTA POR DIAS MELHORES O poder público ainda enfrenta desafios e dificuldades na implementação de políticas que atendam aos moradores de rua. As ações direcionadas a


este segmento fazem parte de um processo recente e muito lento. O Grupo de Pesquisa Políticas Públicas e Processos Organizativos da Sociedade, da faculdade de serviço social da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e a Secretaria de Estado da Assistência e Desenvolvimento Social (Seades) estão buscando a aprovação de uma pesquisa que irá fazer um diagnóstico dos moradores de rua de Maceió. “Ainda vai para a terceira licitação, mas, caso seja aprovada, a pesquisa consistirá na caracterização da população em situação de rua da capital alagoana e será coordenada por mim e pela professora dra. Betânia Buarque”, evidencia a também

professora doutora da Ufal, Jeanne Rocha. Desde 2004, com a chacina de moradores de rua na Praça da Sé, em São Paulo, movimentos sociais e organizações da sociedade civil enxergaram a necessidade de se organizarem como movimento social e passaram a reivindicar a participação na política nacional para o segmento. Na liderança do Movimento da População de Rua em Alagoas há quatro anos, Rafael Machado conhece bem essa realidade e luta pela garantia de direitos humanos dos moradores de rua. “Fui morar nas ruas com treze anos. Passei muitos anos da minha vida me prostituindo e usando drogas e acabei sendo preso. Fui internado 27

vezes em comunidades terapêuticas e sofri sete tentativas de homicídio. Em 2014 eu comecei a lutar pela causa e pude me empoderar e conhecer meus direitos. A minha luta é para nos tornar visíveis à sociedade e, principalmente, ao poder público”, declarou. Rafael acredita que existem avanços, mas ainda faltam políticas públicas eficazes para o segmento. “Há muito o que ser feito. Nos últimos anos o Movimento ganhou mais espaço, vez e voz dentro dos ambientes públicos. Conquistamos o Conselho Estadual de Assistência Social e o de Segurança Alimentar e hoje temos uma história, mas ainda tem muito trabalho pela frente”, finalizou o coordenador. •

FICHA TÉCNICA Texto Tácila Clímaco Fotos Tácila Clímaco e Diogo Maia Diagramação Daniel Borges Orientação Profº Msc. Érico Abreu

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Este ĂŠ um trabalho experimental do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Alagoas

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