Cartilha Vidas Negras Importam

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DIA 21 DE MARÇO - DIA INTERNACIONAL DE LUTA PELA ELIMINAÇÃO DA DISCRIMINAÇÃO RACIAL

VIDAS NEGRAS IMPORTAM. EM CAMPINAS, TAMBÉM.



Texto piloto da cartilha: Professora Mestra Tayná Victória de Lima Mesquita Socióloga (IFCH/UNICAMP), Mestre em Educação (FE/UNICAMP), Doutoranda em Ciências Sociais (PAGU/UNICAMP)

APRESENTAÇÃO

O dia 21 de Março é considerado dia internacional de luta pela eliminação da discriminação racial. A data, proposta pela Organização das Nações Unidas (ONU), faz referencia ao “massacre de Shaperville”, ocorrido em 1960, na África do Sul, onde durante o regime do apartheid, um protesto pacífico de negros, que reuniu cerca de 20.000 pessoas, foi reprimido pelas forças policiais, culminando na morte de 69 pessoas desarmadas. Para além desse triste episódio, o dia 21 de março marca o reconhecimento da necessidade de enfrentamento ao racismo em nível mundial, compromisso do qual o Brasil como um todo também não deve se esquivar. É sabido que o Brasil foi o país que recebeu o maior contingente de africanos traficados, e que escravizou por mais tempo, sendo o último país do mundo a abolir a escravidão negra, em 13 de Maio de 1888. A proporcionalidade, duração e distribuição geográfica da escravidão negra diferencia a sociedade brasileira de todas as outras da América Latina. Diferentemente de outros países latinoamericanos e até mesmo os Estados Unidos da América, onde a presença do escravizado negro era geograficamente concentrada, regionalizada, e nunca superou numericamente a população branca, no Brasil, a distribuição da população escravizada percorreu todo o território. Nesse sentido, conforme afirmou o sociólogo negro Clóvis Moura (1993), o trabalho dos escravizados estabeleceu as relações de produção de riqueza fundamentais da sociedade brasileira. É importante rememorar também que a cidade de Campinas – SP foi uma das últimas cidades do mundo a abolir a escravidão. As relações com a escravidão em Campinas foram dinamizadas pela consolidação da economia, inicialmente açucareira e posteriormente cafeeira, ao longo dos séculos XVIII e segunda metade do século XIX. Se faz relevante lembrar que a cidade de Campinas - SP era considerada, no período escravocrata, a “bastilha negra”, na medida em que era o município paulista com maior número de escravizados. Segundo o historiador Robert Slenes (2001), no ano de 1872 a população do município de Campinas era composta por cerca de 44% de escravizados, numericamente, 14 mil escravizados e 18 mil pessoas livres. Esse contingente representava cerca de 5% da população total da província de São Paulo, fazendo de Campinas o maior mercado comprador e exportador de escravizados.


Reconhecendo a importância deste marco histórico para compreensão das dinâmicas estabelecidas acerca das relações étnico-raciais nesta cidade, e as experiências de racismo cotidiano que se expressam ainda na contemporaneidade em todo o país, apresentamos a presente cartilha. Esse documento foi desenvolvido com o intuito de se fazer instrumento de acesso a informação sobre conceitos e direitos fundamentais relacionados a população negra e ao combate ao racismo no país. Sobretudo, trata-se de uma ação educativa, que visa demarcar o comprometimento da cidade de Campinas com a promoção da igualdade racial. Nesse sentido, nos inspirando no mote internacional Black Lives Matter, afirmamos:

Em Campinas e em todo lugar: "VIDAS NEGRAS IMPORTAM!"


RAÇA

As descobertas mais recentes da ciência indicam que a África é o berço da humanidade. As primeiras populações humanas modernas teriam surgido em solo africano há cerca de 300 mil anos, espalhando-se posteriormente pelo mundo. Além disso, o processo de sequenciamento do DNA humano revelou que a informação genética que compartilhamos é 99,9% idêntica, negando de uma vez por todas o argumento de que existiriam diferentes raças biológicas humanas. Nesse sentido, compreendemos na atualidade que somos todos pertencentes a uma mesma espécie. Compreendidas as contribuições das ciências biológicas, por que motivo então ainda falamos em Raça? Em relações étnico-raciais, em racismo?

É importante elucidar que falamos em raça como um conceito socialmente construído, e que é colocado em funcionamento o tempo todo na vida cotidiana. A invenção da ideia de raça, como percebemos hoje, remonta a escravização e colonização. Conforme afirma o jurista Silvio de Almeida, autor da obra “O que é racismo estrutural” (2019), a ideia de raça surge então como um instrumento de poder e de justificação da violação, dominação e opressão sistematizada pelo colonizador europeu, com relação aos povos não-brancos colonizados, fundamentando relações de desigualdade que persistem em nossa sociedade até os dias de hoje. Nesse sentido, se é certo dizer que não existem raças humanas, importa dizer também que na nossa sociedade todas as pessoas são racializadas, com base em características fenotípicas e culturais. A operacionalidade social da ideia de raça se revela de forma contundente quando observamos as estatísticas sociais. Um dos trágicos exemplos que temos, se refere ao genocídio da população negra.


Desigualdades raciais e negação de direitos fundamentais Genocídio A palavra genocídio serve para definir um processo deliberado de aniquilamento de um grupo étnico, racial ou religioso. No Brasil, o mapeamento das estatísticas de violência letal corroboram a denúncia de um processo de genocídio da população negra, em especial, de sua juventude. Como exemplo, segundo dados do Atlas da Violência, produzido pelo IPEA (2020), homens negros morrem em média 2,7 vezes mais que não negros, representando 75,7% das vítimas de homicídios.

Mulheres Negras “Quando a mulher negra se movimenta, toda estrutura da sociedade se movimenta com ela”, afirmou a filósofa afroamericana Angela Davis, em uma de suas recentes visitas ao Brasil. Davis faz esse comentário em referência a uma realidade que se faz presente no mundo todo: o posicionamento das mulheres negras na base da pirâmide social. Em nosso contexto, essa condição se revela, por exemplo, nas estatísticas relativas ao feminicídio, ocupações profissionais e renda, indicadores educacionais, bem como o acesso à saúde. No que se refere ao feminicídio, (tipificado criminalmente pela Lei no 13.104/2015 como o homicídio contra mulheres em decorrência do menosprezo à condição de mulher, ocorrido muitas vezes em ambiente doméstico ou familiar) conforme relatado pelo Atlas da Violência, desenvolvido pelo IPEA (2020),


mulheres negras “representaram 68% do total das mulheres assassinadas no Brasil, com uma taxa de mortalidade por 100 mil habitantes de 5,2, quase o dobro quando comparada à das mulheres não negras.” (IPEA, 2020, p. 47). No que se refere as estimativas de renda e ocupação, segundo dados coletados pelo IBGE (2019) e divulgados na pesquisa “Desigualdades sociais por cor ou raça”, mulheres negras recebem, em média, metade do salário dos homens brancos, possuindo rendimentos inferiores também aos das mulheres brancas e homens negros. Além disso, segundo a pesquisa do IPEA, “Os Desafios do Passado no Trabalho Doméstico do Século XXI” divulgada em 2018, mulheres negras são sobrerepresentadas no campo do trabalho doméstico, (63% da categoria), recebendo os mais baixos rendimentos. Já no que se refere à escolaridade, apesar das mulheres de forma geral estudarem por mais tempo que os homens de mesma cor ou raça, com relação as mulheres negras, a taxa de conclusão do ensino médio entre homens brancos é mais elevada em quase 5% (IBGE, 2019). Além disso, apenas 10% das mulheres negras completam o ensino superior (IBGE, 2018). O campo da saúde também é revelador de desigualdades. Com relação a violência obstetrícia, segundo dados da pesquisa “Nascer no Brasil: Pesquisa Nacional sobre o Parto e o Nascimento”, coordenado pela pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz, Maria do Carmo Leal, mulheres negras são mais submetidas a pré-natais inadequados, recebem menos anestesia local para episiotomia, migram com maior frequência entre maternidades durante o parto e mais frequentemente encontram-se sem acompanhantes no momento do parto.


Interseccionalidade

A reflexão sobre a experiência das mulheres negras serviu para cunhar um conceito sociológico importante para analisar as desigualdades sociais e propor políticas públicas: o conceito de interseccionalidade, que segundo Tayná Mesquita, na obra “Exclusão Escolar Racializada” (2019), serve para compreender os modos como diferentes dimensões que constituem as identidades e experiências sociais dos sujeitos, como gênero, raça, classe, origem territorial, religião, entre outras, se articulam entre si, produzindo situações de vulnerabilidade específicas. Ainda, em reconhecimento da realidade de violação de direitos vivenciada por mulheres negras, o dia 25 de Julho marca em toda América Latina e Caribe o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. No Brasil, a data homenageia a referência quilombola Tereza de Benguela, que chefiou ao longo do século XVIII o Quilombo do Quariterê, em Mato Grosso.


Infâncias Negras Crianças negras também ocupam as principais estimativas de vulnerabilidade social. Seja pelas já mencionadas estatísticas relacionadas à violência obstetrícia, seja pelas mais altas taxas de mortalidade no primeiro ano de vida, a experiência do racismo impacta a vida de crianças negras desde o parto e percorre toda a infância. Segundo levantamento da fundação Abrinq, entre os homicídios de crianças e adolescentes em 2017, aproximadamente 80% das vítimas eram negras. Ainda, conforme revela o Mapa do Trabalho Infantil, produzido pela Rede Peteca (2020), crianças negras representam 62,7% das vítimas de trabalho precoce no país. Esses índices aumentam com relação ao trabalho doméstico (73,5%) e em especial entre as meninas negras, que representam mais de 94% dos casos entre vítimas do trabalho doméstico infantil no país. Para além desses e outros indicadores importantes, destacamos os efeitos negativos da experiência do racismo para a construção da estrutura emocional e subjetividade das crianças negras. Nesse sentido, um marco legislativo importante é a Lei 10.639/2003 e a Lei 11.645/2008, que tornam obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileiras e indígenas na educação nacional. Essas leis representam políticas indutoras de uma mudança estrutural em termos ideológicos e curriculares no que diz respeito a promoção de pedagogias antirracistas e pautadas na valorização da diversidade que nos produz como o povo com maior população negra fora da África. Conforme afirmou Nilma Lino Gomes (2018), trata-se, portanto, de política que se vincula “à garantia do direito à educação”, requalificando-a, "incluindo nesse o direito à diferença”.


Além dos dados acima mencionados, com relação a epidemia da COVID-19, no Brasil e no mundo a taxa de mortalidade por contaminação do vírus entre pessoas negras supera o de pessoas brancas, conforme exemplificam estudos desenvolvidos pela Boston Consulting Group, que revelou um número de mortes até seis vezes maior entre negros nos EUA, e dados do boletim epidemiológico de abril de 2020, divulgado pela Prefeitura de São Paulo, que revelou um risco de morte por coronavírus 62% maior entre negros. Esses dados e muitos outros são elucidativos da contemporaneidade do racismo no Brasil e do funcionamento da ideia de raça no país, enquanto um marcador de diferença e relações de desigualdade.

RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS A expressão relações étnico-raciais (RER) tem sido comumente usada para denotar um campo de estudos e promoção de políticas públicas relacionados à população afro-brasileira e a promoção do antirracismo. Contudo, ao compreendemos que todas as pessoas são racializadas, percebemos também que ao contrário do que frequentemente se pensa, as RER não são “um problema de negro”. Trata-se de um debate de interesse de toda a sociedade. A ideia de relação significa que existem vários lados implicados.


Assim, quem é o outro nas RER? Essa reflexão é um convite para desnaturalizarmos o negro como o único corpo racializado da sociedade. Ser branco também é ser racializado, o que implica na tomada de uma posição diante do fenômeno do racismo. Discutir RER passa então não apenas sobre discutir os sentidos de ser uma pessoa negra no Brasil e os diferentes desafios impostos a esta população no país, mas também diz respeito a visibilizar os sentidos e privilégios históricos envolvidos em ser racializado como branco. A reflexão sobre o lugar particular ocupado pelas pessoas brancas em sociedades de origem colonial, como a brasileira, serviu para criação de um conceito e campo de estudos ainda emergente no contexto brasileiro: os estudos críticos da branquitude.

BRANQUITUDE Segundo a especialista Lia Vainer Schucman (2012, p. 23), o conceito de branquitude serve para descrever uma condição estrutural de privilégios e acesso a recursos materiais e simbólicos usufruídos por pessoas racializadas como brancas, privilégios esses que foram gerados no colonialismo, no imperialismo e que permanecem na contemporaneidade. Realçar a dimensão da branquitude não significa dizer que pessoas brancas são necessariamente felizes ou favoráveis a sua condição de privilégio. Significa compreender que todas as pessoas racializadas como brancas, ainda que não queiram e não gostem, acabam por serem beneficiadas pelas dinâmicas sociais do racismo, ao passo que pessoas negras são levadas a ocuparem uma posição de desvantagem.


RACISMO O racismo é um sistema de poder que produz relações sociais de desigualdade, onde indivíduos sofrem desvantagens ou privilégios com base em seus pertencimentos raciais. No caso brasileiro, e em outros países de raiz escravocrata, a população negra e as populações indígenas são as grandes vítimas das desvantagens do racismo.

RACISMO, PRECONCEITO, DISCRIMINAÇÃO: QUAL A DIFERENÇA? Embora os três termos sejam frequentemente associados a ideia de raça, seus significados são diferentes. Racismo, conforme afirmamos anteriormente, diz respeito a um sistema de poder que distribui desvantagens e privilégios sociais com base na ideia de raça. Já o preconceito, diz respeito a opiniões generalizadas, infundamentadas com relação a um determinado grupo racial, podendo gerar estereótipos positivos ou negativos. A afirmação difundida no senso comum, de que nordestinos são “naturalmente” preguiçosos e asiáticos são “naturalmente” trabalhadores, são exemplos de preconceitos presentes no imaginário popular. No caso dos nordestinos, um preconceito negativo. No dos asiáticos, um preconceito positivo. A discriminação, por sua vez, diz respeito ao ato de discriminar, de atribuir tratamento desigual a sujeitos com base em seu pertencimento racial.


RACISMO ESTRUTURAL

Conforme salientou o jurista Silvio de Almeida (2019), o racismo, enquanto um sistema de poder, é sempre estrutural, na medida em que fundamenta a organização política e econômica da sociedade. Nesse sentido, conforme já foi declarado pela Organização das Nações Unidas – ONU, o racismo é um elemento estrutural e também estruturante da sociedade brasileira, e as expressões cotidianas do racismo (em nível individual, simbólico, religioso, institucional) são manifestações de um mecanismo de poder mais profundo, que está na base da organização da sociedade como um todo. Em termos de metáfora, imagine a construção de um muro: cada tijolo, representa para nós uma dimensão da vida social: a economia, a política, a educação, a mídia, o mundo do trabalho, etc. O racismo, não é apenas mais um tijolo. Na verdade é parte do cimento que articula o muro, garantindo a reprodução das condições de desigualdade e vulnerabilidade que desfavorecem sistematicamente as populações não-brancas no país.

RACISMO INDIVIDUAL

Essa forma de racismo se manifesta nas relações interpessoais, por meio de comportamentos individuais de discriminação direta. A atitude individual do sujeito que atravessa a rua ao ver uma pessoa negra, por considera-la naturalmente perigosa, do segurança que persegue o cliente negro no supermercado, da atendente de loja do shopping que ignora e destrata a cliente negra por pressupor que ela não possui dinheiro para pagar por sua compra, ou do indivíduo que violenta verbalmente uma pessoa negra chamando-a de "macaco", são alguns exemplos de manifestações do racismo individual no cotidiano. A educação e a conscientização são os principais meios de enfrentamento dessa forma de racismo.


RACISMO INSTITUCIONAL Uma das manifestações do racismo na sociedade se dá na dimensão institucional. O racismo institucional diz respeito as maneiras pelas quais as instituições acabam por funcionar de modo a produzir condições de desvantagem no acesso a direitos e recursos oferecidos pelo Estado e instituições públicas ou privadas. Segundo o Programa de Combate ao Racismo Institucional (PCRI), estabelecido em uma parceria entre a Agência de Cooperação Técnica do Ministério Britânico para o Desenvolvimento Internacional e Redução da Pobreza (DFID), o Ministério da Saúde (MS), a Secretaria Especial de Políticas para Promoção da Igualdade Racial (Seppir), o Ministério Público Federal (MPF), a Organização Panamericana de Saúde (Opas) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o racismo institucional é definido como “o fracasso das instituições e organizações em prover um serviço profissional e adequado às pessoas em virtude de sua cor, cultura, origem racial ou étnica. Ele se manifesta em normas, práticas e comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano do trabalho, os quais são resultantes do preconceito racial, uma atitude que combina estereótipos racistas, falta de atenção e ignorância. Em qualquer caso, o racismo institucional sempre coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições e organizações”. (CRI, 2006, p.22).


RACISMO RELIGIOSO O racismo religioso diz respeito aos processos de preconceito e discriminação que inferiorizam, demonizam e desqualificam as religiosidades de matriz africana. O conceito de racismo religioso passa a ser incorporado no começo do século XXI, a partir do entendimento de que a expressão “intolerância religiosa” é insuficiente para descrever a violência particular que é direcionada as religiões afro-brasileiras (Candomblé, Umbanda, Quimbanda, Batuque, Xangô, Tambor de Mina, entre outras) e seus adeptos, já que se trata de uma forma de preconceito que tem como base a aversão as pessoas negras, sua cultura e especificamente, as formas de religiosidade negras trazidas pelos africanos escravizados ao Brasil, e reconfiguradas ao longo da diáspora no país. A história do racismo religioso no país remonta aos tempos do Brasil Colônia, quando africanos escravizados eram impedidos de cultuarem seus próprios deuses e forçadamente catequizados para aderirem a religião oficial da época, o catolicismo. Esse histórico de perseguição e negação do direito à própria religiosidade se estendeu mesmo após a abolição da escravatura. No período da Primeira República (1889-1930) e na Era Vargas (1930-1945) por exemplo, as religiões de matriz africana eram oficialmente criminalizadas, segundo o Código Penal de 1890, muito embora a Constituição já previsse, à época, a laicidade do Estado.


Muitos objetos sagrados das religiões de matriz africana foram confiscados pela polícia neste período, e alguns deles ainda se encontram perdidos. A título de exemplo, no dia 22 de Janeiro de 2021, em decisão histórica do governador em exercício do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, cerca de 519 objetos sagrados de religiões de matriz africana apreendidos pela polícia entre 1889 e 1945 foram tombados pelo IPHAN e oficialmente doados ao Museu da República, como parte das reivindicações de lideranças religiosas, através do movimento “Libertem Nosso Sagrado”. Cabe relembrar, o protagonismo de Mãe Aninha, Iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá - BA, juntamente a outras Iyalorixás de seu tempo, no processo de intervenção junto a Getúlio Vargas para pôr fim a proibição aos cultos afro-brasileiros. O dia 21 de Janeiro é considerado o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. Essa data foi escolhida em homenagem à Iyalorixá Gildásia dos Santos e Santos, conhecida como Mãe Gilda, e que acabou perdendo a vida devido a um episódio de racismo religioso. No ano de 1999, a Igreja Universal do Reino de Deus publicou um reportagem em seu jornal religioso, o Folha Universal, difamando as religiões de matriz africana e utilizando a foto de Mãe Gilda como exemplo. Desde então, seu terreiro de Candomblé, o Ilê Axé Abassá Ogum, e seus filhos e filhas de santo passaram a sofrer todo tipo de perseguições e violências físicas e simbólicas. A exposição, violências e estresses gerados por esses episódios culminaram na morte de Mãe Gilda, em 21 de Janeiro de 2000, vítima de um infarto fulminante. Na atualidade, segundo Sidnei Barreto Nogueira, autor da obra “Intolerância Religiosa” (2020), a cada 23 minutos é registrada uma denúncia de racismo religioso no país.


RACISMO LINGUÍSTICO

O campo da linguagem também pode contribuir para revelar perspectivas racistas, muitas vezes de forma velada. Alguns exemplos de termos de uso corrente que remetem a experiências da escravidão ou a posicionamentos racistas, e que precisam ser repensados e removidos do nosso vocabulário são: Denegrir: nos dicionários de língua portuguesa a palavra significa “tornar negro” ou “difamar”, remetendo a ideia de negritude a algo negativo. O mesmo acontece com relação as expressões mercado-negro, ovelha-negra, todas elas remetendo a ideia de negro como algo negativo. Criado-mudo: a palavra remete a uma das funções desempenhadas por escravizados no período colonial. Tratados de forma objetificada, eram obrigados a permanecer estáticos carregando objetos para seus senhores, sempre em silêncio. "Fazer nas coxas": a expressão remete ao processo de feitura de telhas de cerâmica no período escravocrata, onde eram modeladas nas coxas dos escravizados. Como o tamanho e formato variava de pessoa para pessoa, nem sempre as telhas se encaixavam. Na atualidade, a expressão serve para designar um trabalho mal feito.


Mulata (o): uma das palavras mais entranhadas na cultura brasileira, servindo geralmente para designar pessoas negras de pele clara. A palavra se origina da ideia de “mula”, animal híbrido fruto do cruzamento entre um cavalo e uma jumenta. "Mulata tipo exportação”: a origem racista da palavra mulata se aprofunda com essa expressão, que remete ao corpo da mulher negra como uma mercadoria. "Amanhã é dia de Branco”: a frase associa os dias de trabalho às pessoas brancas, como se apenas elas trabalhassem, remetendo por oposição ao negro como preguiçoso. "Serviço de preto”: mais uma expressão que se revela racista, ao desqualificar e relacionar o trabalho do negro a um trabalho mal feito. "Boçal”: Na atualidade, a palavra é frequentemente utilizada no sentido de “ignorante”, “tosco”, “sem cultura”. Em sua origem, o termo era utilizado no período escravocrata para designar os africanos recém chegados ao Brasil e que ainda não sabiam falar a língua portuguesa. Não sou tuas Negas”: essa expressão é profundamente agressiva com relação às mulheres negras, pois remete ao tempo em que elas eram tratadas como propriedade dos senhores de escravizados e como tal, relegadas a todo tipo de abuso e violência.


LEGISLAÇÃO Crime de Racismo "Lei Caó" (7.716/1989) A prática de racismo é crime inafiançável no brasil, através da chamada Lei Caó, assim nomeada em homenagem a Carlos Alberto Caó de Oliveira, parlamentar negro que esteve envolvido na elaboração da Constituição de 1988. A punição mínima para o crime de racismo é de um ano. Entre as diversas condutas punidas por crime de racismo estão: Impedir a ascensão funcional do empregado ou vedar o acesso a benefícios profissionais; impedir, com base na raça, o acesso a cargos do serviço público ou a empregos em empresas privadas; promover tratamento diferenciado no ambiente de trabalho, em especial com relação ao salário; impedir acesso a estabelecimentos comerciais, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador. impedir ou recusar a inscrição ou ingresso a instituições escolares públicas ou privadas em qualquer nível de ensino; impedir o acesso às entradas sociais em edifícios públicos ou residenciais e elevadores ou escada de acesso aos mesmos; impedir o acesso ou uso de transportes públicos, como aviões, navios barcas, barcos, ônibus, trens, metrô, etc.


Crime de Injúria Racial (Artigo 140, §3º, do Código Penal Brasileiro) O crime de Injúria Racial está Previsto no artigo 140, §3º, do Código Penal Brasileiro, sendo caracterizado pela ofensa a dignidade de alguém, por meio da atribuição de elementos negativos a sua raça, cor, etnia religião ou origem. O crime tem como punição mínima um ano de prisão.

Racismo Religioso (Lei 7.716/1989, e Artigo 5, Inciso VI da Constituição de 88 e Lei 17.157/2019) A Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso VI, estabelece a inviolabilidade da liberdade de consciência e crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e garantindo a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. Combinado ao que é postulado na Lei Caó, e na lei que tipifica a Injúria Racial, observamos que ofensas atribuídas a pessoas vinculadas às religiões de matriz africana, bem como a violência a seus locais de culto e símbolos religiosos, também podem ser tipificados como crime de racismo e injúria. Ainda, no Estado de São Paulo, desde 2019 vigora a Lei Nº. 17.157/2019, dispondo especificamente sobre penalidades administrativas a serem aplicadas pela prática de racismo religioso.


Crime de Tortura (Lei 9.455/1997) Episódios de discriminação racial diversos e de racismo religioso podem também ser tipificados como crime de tortura, conforme indica o Artigo 1º da Lei Nº 9.455/1997: “Art. 1º Constitui crime de tortura: I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religiosa;” (BRASIL, 1997).

Lei Contra Discriminação Racial – Governo de São Paulo - Lei 14. 187/2010 Complementando a Lei Caó, esta lei estadual dispõe sobre penalidades administrativas (ou seja, que não resultam em privação de liberdade) a serem aplicadas pela prática de atos de discriminação racial.


FUI VÍTIMA DE UMA SITUAÇÃO DE RACISMO: O QUE FAZER? No momento em que o crime está acontecendo: Acione imediatamente a polícia militar, ligando no número 190 a partir de qualquer telefone (fixo, celular, com ou sem crédito, a qualquer hora do dia). É muito importante identificar testemunhas do ocorrido!

Se o crime já aconteceu: I. Reúna o maior número possível de provas do ocorrido (fotografias, vídeos, gravações de áudio, nome, endereço, telefone do agressor, testemunhas, informações sobre o local, data, horário e a situação ocorrida). II. Busque atendimento na Delegacia de Polícia mais próxima. Caso esteja na cidade de São Paulo, busque atendimento na DECRADI - Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância. Leve consigo as Provas que conseguiu reunir e se possível, testemunhas. Guarde consigo toda a documentação gerada no atendimento.


III. Caso a autoridade policial se recuse a acolher a denúncia e efetivar o Boletim de Ocorrência, acione a Ouvidoria da Polícia do Estado no site: http://www.ssp.sp.gov.br/ouvidoria/ ou telefone: 0800-177070. IV. É importante informar ao policial responsável pelo registro da denúncia o desejo da abertura de inquérito policial e de que o agressor seja processado. Recuse a autuação de um TCO (Termo Circunstanciado de Ocorrência, utilizado para infrações de menor potencial ofensivo ou menor relevância). V. ·Após o registro da ocorrência, é possível também buscar atendimento no órgão da Defensoria Pública mais próximo, para obter orientação jurídica, acompanhamento diante da abertura de processos criminais e a busca por ações de indenização pelos danos morais e materiais causados pelo episódio de racismo. VI. Em Campinas, o CR - Centro de Referência em Direitos Humanos e Combate ao Racismo e a Discriminação Religiosa também pode ser acionado, como espaço de acolhimento e encaminhamento da denúncia. Tel: (19) 3232-6431 / (0800 771 7767) / 3231-1867 | Ramal 4 VII. O Disque Direitos Humanos (Disque 100) pode ser acionado para busca de informações e efetivação de denuncias concernentes a casos de violação de direitos humanos, entre eles, casos de racismo. O serviço funciona 24 horas por dia, sete dias por semana, incluindo feriados.


Pontos de apoio à comunidade negra em Campinas: Coordenadoria Setorial de Promoção da Igualdade Racial Coordena e desenvolve políticas públicas voltadas para a promoção da igualdade racial na garantia de direitos da população negra e outros grupos historicamente discriminados. Rua Visconde do Rio Branco, 468 - Centro (acesso pela Avenida Campos Sales, 427) Tel: (19) 3232-0058 E-mail: cepir@campinas.sp.gov.br

Centro de Referência em Direitos Humanos na Prevenção e Combate ao Racismo e à Discriminação Religiosa Previne e combate a discriminação racial e religiosa por meio de ações educativas, acolhimento, acompanhamento e encaminhamentos de denúncias sobre racismo. Avenida Francisco Gicério, nº 1269 – 4º andar - Centro Horário de Atendimento: das 9h às 17h (de segunda a sextafeira) Tel: (19) 3232-6431 / (0800 771 7767) / 3231-1867 | Ramal 4 E-mail: crcombateaoracismo@campinas.sp.gov.br


Conselho de Desenvolvimento e Participação da Comunidade Negra de Campinas O Conselho de Desenvolvimento e Participação da Comunidad Negra de Campinas – CDPCNC foi criado a partir da Lei Municipal Nº 10.813/2001. Sua composição se dá de membros do poder público e da sociedade civil, entre representantes das associações religiosas, educativas, esportivas, artísticas, sindicatos de trabalhadores entre outros setores. O objetivo do CDPCNC é servir como instrumento de participação, debate e promoção de políticas públicas do município relacionadas à promoção da igualdade racial na cidade.

Comitê Técnico de Saúde da População Negra Instituído pelo Decreto nº 18.160 de 19 de novembro de 2013, o Comitê Técnico de Saúde da População Negra tem como objetivo promover atividades de intervenção relacionadas a equidade racial na atenção em saúde, promovendo políticas públicas e , atividades educativas. Sua composição se dá entre representantes da sociedade civil, universidades e membros do poder público.


Documento Instrutor

Plano Municipal de Políticas de Promoção da Igualdade Racial

O documento oferece um arcabouço teórico e prático para desenvolvimento de programas e atividades de promoção da igualdade racial no município, integrando diversas áreas (educação, saúde, economia, segurança pública, políticas de moradia, cidadania e direitos humanos, cultura, economia, mídia, entre outras). O documento foi desenvolvido pelo poder público em conjunto com representantes da sociedade civil indicados pelo Conselho de Desenvolvimento e Participação da Comunidade Negra e diversas plenárias públicas. O documento está disponível para acesso público no link: <http://www.campinas.sp.gov.br/arquivos/direitosdeficiencia/plano%20igualdade%20racial_%20compl.pdf>. Acessado em: 15/02/2021.

Lei Orgânica do Município de Campinas A Lei Orgânica prevê, em especial no seu capítulo VIII, a implementação de diversas medidas com vistas a promoção da igualdade racial no município. Entre elas, está a política de cotas em concursos públicos (Art. 265-B.I), direito formalizado a partir da Lei Complementar 57/2019, que determina a reserva de 20% das vagas oferecidas em concursos e processos seletivos em empregos públicos a pessoas autodeclaradas negras.


Referências Bibliográficas AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. Pólen Produção Editorial LTDA, 2019. ALMEIDA, Silvio de. O que é Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen, 2019. CRI. Articulação para o Combate ao Racismo Institucional. Identificação e abordagem do racismo institucional. Brasília: CRI, 2006. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. GOMES, Nilma, Lino. O Movimento Negro Educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017. GONZÁLEZ, Lélia, HASENBALG, Carlos A. Lugar de Negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982. hooks, bell. Olhares Negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Desigualdades Sociais por Cor ou Raça. Estudos e Pesquisas. Informação Demográfica e Econômica. N. 41. Rio de Janeiro: IBGE, 2019. Disponível em https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, FORUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Atlas da Violência 2019. Brasilia: IPEA, 2019. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/190 605_atlas_da_violencia_2019.pdf. _____________________. Os Desafios do Passado no Trabalho Doméstico do Século XXI: reflexões para o caso brasileiro a partir dos dados da PNAD contínua. Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2528.pdf. Acessado em: 26/02/2021 ______________________. Atlas da violência 2020. Brasília: IPEA, 2020. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/24/atlas-daviolencia-2020. Acessado em: 26/02/2021. KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. São Paulo: Cobogó, 2019. LEAL, Maria do Carmo et al . A cor da dor: iniquidades raciais na atenção prénatal e ao parto no Brasil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro , v. 33, supl. 1, e00078816, 2017 . Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php? script=sci_arttext&pid=S0102-311X2017001305004&lng=en&nrm=iso>. Acessado em: 26/02/2021.



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