Semiótica e mapas digitais colaborativos1 Daniel Paz de Araújo2 Introdução São inúmeras as possibilidades interativas oferecidas pelos mapas digitais. A evolução digital que revolucionou inúmeras condições da vida cotidiana também potencializou os mapas de maneira geral, criando ferramentas colaborativas interativas que permitem novas experimentações, transbordando seus meios digitais até a fisicalidade. Desde a simples marcação de pontos geolocalizados até a interação remota em tempo real podem utilizar mapas digitais online sem custos financeiros. Ferramentas agregadas aos mapas digitais, tais como mídias locativas, criação rotas, percepção de fluxos, perspectivas visuais além da criação colaborativa permitem diversas aplicações em aspectos culturais políticos, econômicos, sociais, históricos, artísticos e esportivos. Além disso, um desafio a ser encarado cotidianamente na maioria das grandes cidades é a mobilidade. Em muitos casos um simples dispositivo de geolocalização – GPS, pode não ser o suficiente para facilitar o deslocamento, já que existem outras questões relacionadas com todo o fluxo em movimento que não são consideradas por tais equipamentos. Neste sentido, é cada vez maior a aplicação de mapas digitais colaborativos voltados para a cartografia dinâmica de fluxos, identificando gargalos, bloqueios, rotas alternativas com maior fluidez em diferentes horários, agregando assim informações valiosas sobrepostas aos mapas cartográficos comuns. Considerando as novas dimensões dos mapas digitais possibilitadas pelas tecnologias emergentes, este artigo busca realizar uma análise de uma perspectiva semiótica aplicada nestas interfaces. Serão discutidas as possibilidades criadas a partir de ferramentas interativas de geolocalização que proporcionam soluções mais específicas sob a luz da semiótica peirciana a respeito da relação entre o homem e seus espaços em relação à mobilidade por meio de mapas digitais colaborativos. Neste sentido, as principais características analisadas serão as mídias locativas, a visualização de fluxos e a colaboratividade. As mídias locativas são mídias que possuem informações geolocalizadas sobre o local em que foram capturadas ou disponibilizadas. A visualização de fluxos são representam possibilidades de caminhos físicos realizados por pessoas com ou sem veículos, bem como a quantidade de elementos envolvidos nas rotas e a qualidade da fluidez. A colaboratividade é o ponto chave para enriquecimento dos mapas, pois possibilita a interação dos usuários com mapas pré-existentes, incluindo, conectando ou alterando pontos, por sua vez servindo de base para outros usuários.
Semiótica e objetos técnicos Semiótica é a ciência que busca investigar todas as linguagens possíveis. De acordo com Santaella (1983), “o nome Semiotica vem da raiz grega semeion, que quer dizer signo. Assim, Semiótica é a ciência dos signos”. Um signo busca representar, pelo menos em parte, um objeto que é, em certo sentido, a causa ou determinante do signo, mesmo se o signo representar seu objeto falsamente. Segundo Peirce (apud SANTAELLA, 1983), fenomenologia é a descrição e análise das experiências que estão em aberto para todo homem a todo momento. Sua tarefa é destacar elementos ou características que pertencem a todos os fenômenos e participam de todas as experiências. O elemento fundamental da semiótica peirciana é o objeto, ou seja, aquilo que se pretende representar e que assume uma forma através de um representamen, ou veículo sígnico, que no 1
Ensaio produzido para a disciplina Semiótica ministrada pelo Prof. Dr. Edson Pfutzenreuter, oferecida pelo Instituto de Artes da Unicamp no 2º semestre de 2014 para pós-graduação em Artes Visuais. 2 Doutorando em Artes Visuais. RA: 151632. E-mail: contato@danielpaz.net
caso da cartografia é o próprio símbolo cartográfico. Outro elemento fundamental é o interpretante, que constitui os efeitos causados pelo signo no receptor. O interprentante é um processo relacional criado na mente do intérprete. Para Peirce (1999), o signo é representado como a relação entre três elementos: o representante, o objeto e o interpretante. O representante não é o objeto, mas a representação do objeto. Pierce (1999) categorizou elementos comuns a todo e qualquer fenômeno, denominando-os de categorias universais presentes em todo pensamento e toda natureza, pois são elementos que ocorrem em toda experiência humana:
Primeiridade: qualidade ou consciência imediata, indivisível, não analisável. A relação entre o respresentamen e o objeto ocorre através do ícone, constituído pela indução de semelhanças entre o objeto e seu representamen. Segundidade: fenômenos externos, ação de um sentimento sobre nós e nossa reação específica. A relação entre o representamen e o objeto ocorre pelo índice, resultado da leitura de um fenômeno pelos seus atributos mais periféricos. Terceiridade: mediação, aproximação do primeiro com o segundo, um signo produzido como mediação entre nós e o fenômeno. A relação entre o representamen e o objeto ocorre pelo símbolo, elaborado por convenções sociais e culturais, resultados de uma conexão compartilhada do representamen com seu objeto.
Considerando o conceito de semiose ilimitada, a mente é um processo de geração infinita de significações: aquilo que é um terceiro torna-se primeiro em outra relação. As comparações entre signos e representações individualizadas podem ser consideras através dos seguintes conceitos (PFUTZENREUTER, 2004):
Contiguidade: refere-se a ideias que tendemos a associar por estarem próximas em nossa mente, normalmente formada a partir da repetição da mesma associação até o momento em que ela se torna um hábito. Semelhança: similaridade de 2 ideias consistindo no fato de que a mente naturalmente as une no pensamento num certo sentido.
Considerando a geração de significado pelo homem e sua relação informacional com as máquinas, ou mapas digitais especificamente no escopo deste artigo, é possível identificar padrões de relacionamentos entre indivíduos e seus equipamentos, em uma troca baseada em elementos comunicacionais rica em signos. Do ponto de vista tecnológico, a ubiquidade das redes de telecomunicações, as baterias recarregáveis e a contínua redução do tamanho físico dos componentes eletrônicos possibilitaram que dispositivos computacionais, até então ancorados a cabos, possam operar em movimento incluindo inúmeros recursos convergidos em um só equipamento. De acordo com Santaella (2010) “a ubiquidade destaca a coincidência entre deslocamento e comunicação, pois o usuário comunica-se durante o deslocamento”. Assim, a ubiquidade permite ao usuário um certo nível de telepresença, pois ele pode estar em dois lugares ao mesmo tempo, interagindo local e remotamente. São estes os objetos técnicos que permitem que sejam criadas inúmeras soluções para as mais diferentes finalidades, inclusive para utilização móvel de mapas digitais colaborativos. Simondon (2007) afirma que o objeto técnico evolui por convergência e por adaptação a si mesmo, indo do modo abstrato ao concreto e se unificando interiormente segundo um princípio de ressonância interna, gerando assim um sistema inteiramente unificado, coerente consigo mesmo. De acordo com Simondon (2007) o homem transforma a informação em formas orientado pela recepção de informação a interpretar. A máquina foi construída segundo certos padrões e funciona de maneira determinada. O indivíduo humano aparece como aquele que tem que converter a informação das formas depositadas nas máquinas. A operação das máquinas não fazem nascer uma informação,
apenas possibilitam a reunião e modificação das formas. O funcionamento de uma máquina não tem sentido, não pode dar lugar a verdadeiros sinais de informações para outra máquina. Faz falta um ser vivente como mediador para interpretar um funcionamento em termos de informação e convertê-la para outra máquina. É o homem quem descobre as significações: a significação é o sentido que toma um acontecimento em relação com formas que existem previamente. A significação é o que faz um acontecimento ter valor de informação. O homem, interprete das maquinas, é também aquele que, a partir de esquemas, criou formas rígidas que remitem à máquina funcionar. A máquina é um gesto humano fixado, convertido em estereótipos (SIMONDON, 2007).
A semiótica nos mapas colaborativos Um mapa representa uma situação de identificação de pontos e fluxos em um espaço físico, ou seja, um conjunto de elementos que normalmente exige a representação pela quase impossibilidade de ser identificado pelas suas dimensões físicas. Assim, geralmente um mapa possui uma relação de contiguidade com o objeto que se refere. Semioticamente o mapa sempre é algum tipo de índice de seu objeto, em virtude da conexão intrínseca entre a representação e sua georeferência. Ao especificarmos os signos dentro dos mapas, outras relações passam a ser identificadas, como ícones que se assemelham com questões reais, símbolos que denotam elementos formais e cores que pode nos remeter a situações pré-concebidas. Desta forma a informação transforma-se em compreensão, seu objetivo final (WURMAN, 1991). Como exemplo prático destes conceitos podemos o aplicativo Waze3, que é uma ferramenta que funciona como dispositivo de geolocalização, agregando um mapa colaborativo em que seus usuários publicam a situação física dos pontos em que têm contato. O usuário utiliza mídias locativas, tais como texto, fotos e imagens para sinalizar a respeito de sobrecarga ou perigo em vias, além de acidentes e desvios, colaborando com os demais usuários por meio da aplicação. Neste caso ocorre uma comunicação partindo do usuário que informa o sistema. Este por sua vez utiliza as informações dos usuários para calcular as possíveis e melhores rotas para toda a comunidade, que pode agradecer ao usuário inicial pela informação enviada. A convergência e tratamento dos dados dos usuários permite que toda a comunidade tenha acesso a um mapa dinâmico e atualizado, rico em informações relevantes naquele contexto.
1 Colaborar
2 Atualizar
4 Informar
Usuário
3 Agradecer
Waze
Comunidade
Figura 1: comunicação pelo mapa interativo através do aplicativo Waze
3
Waze social GPS Maps & Traffic para Android. Versão de 23 de dezembro de 2014 disponível em <https://play.google.com/store/apps/details?id=com.waze>
Figura 2: visualização de rotas
Figura 4: visualização de fluxo
Figura 3: enviar alerta
Figura 5: agradecimento de alertas
Durante a comunicação usuário-aplicação é realizado um processo de semiose transformando informações físicas em signos dentro da aplicação que posteriormente na comunicação aplicação-usuário deverão ser disponibilizadas e entendias pela comunidade, o que poderá influenciar diretamente no deslocamento físico dos usuários. Pela perspectiva semiótica, a comunicação representada na Figura 1 ocorre da seguinte maneira: 1. Colaborar: o usuário identifica alguma questão que pode ter significado para a comunidade no contexto específico (Figura 4). Assim, cabe ao homem identificar e significar a questão para o padrão da aplicação, utilizando os elementos visuais disponíveis na solução. A questão pode ser um veículo parado na via, acidente, engarrafamento, chuva, bloqueio, radares, polícia, e assim por diante. Utilizando o aplicativo, o usuário comunica a questão utilizando signos na forma icônica/ primeiridade através de imagens, diagramas ou metáforas, podendo incluir uma mídia locativa como foto ou texto na posição relacionada. 2. Atualizar: ao ser comunicado pelo usuário, a aplicação converge a mensagem recebida para uma base de dados onde estão todas as informações dos fluxos no momento. A nova informação passa a fazer parte dos cálculos de rota para os usuários que estão ou irão utilizar a solução para consultar rotas (Figuras 2 e 3). Ao calcular as novas rotas, a comunidade recebe, através de signos icônicos/primeiridade e indices/segundidade, através de imagens, diagramas ou metáforas, a informação do usuário de maneira combinada com as demais informações. Neste momento, cabe ao homem reconhecer o significado passado pela aplicação e buscar, se cabível, novas ações para sua atual situação física em relação ao deslocamento no espaço. 3. Agradecer: ao comunicar a comunidade sobre alguma questão física através do mapa colaborativo, pode ser enviado ao usuário original um agradecimento pela informação. Nestas situações em que algum usuário da comunidade identifica uma mensagem que traz consigo um importante significado para sua situação, ele tem a opção de agradecer ao usuário inicial utilizando um símbolo icônico/primeiridade, através de imagens, diagramas ou metáforas disponibilizadas pela aplicação. 4. Informar: ao receber algum agradecimento pela colaboração, o usuário original é notificado sobre a ação, valorizando a colaboratividade no mapa (Figura 5).
Considerações finais Considerando que todo signo é um momento da representação que, como signo e pelo processo de semiose está em constante movimento, o mapa é um momento da representação, podendo se tornar processo na constante modificação que sofre o signo quando passa pelo processo de interpretação. No caso de mapas digitais colaborativos, a transferência de signos durante o processo de comunicação ocorre de forma peculiar, induzindo o grupo técnico homem-máquina a atuar integralmente voltados para a comunidade. A dinâmica produzida é capaz de alterar fluxos físicos, levando usuários a buscarem rotas alternativas na busca por facilitar seu deslocamento. Um problema encontrado por determinado usuário pode ser poupado para outro em mesmas condições, desde que estejam utilizando a mesma solução na troca de significados sobre suas experiências. Como intermediador na comunicação coletiva, a aplicação de mapas colaborativos cria camadas de significado capaz de traduzir e induzir questões físicas para digitais e vice-versa, como uma percepção ampliada da coletividade.
Referências Bibliográficas MANOVICH, L. The Language of New Media. Cambridge: The MIT Press, 2001. PFUTZENREUTER, Edson do Prado. Criando com novas mídias - uma reflexão sobre o processo criativo. Relatório de Pesquisa Doutor. São Paulo, 2004. PIERCE, C. S. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1999 SANTAELLA, L. Semiótica aplicada. São Paulo: Thomson, 2004. ___________. Linguagens liquidas da era da mobilidade. São Paulo: Paulus, 2007. ___________. A ecologia pluralista da comunicação. Conectividade, mobilidade, ubiquidade. São Paulo: Paulus, 2010. ___________. O que é Semiótica. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983. SALTAELLA, L. NOTH, W. Imagem: cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Editora Iluminuras, 1998. SIMONDON, G. El modo de existência de los objetos técnicos. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2007. WURMAN, R. S. Ansiedade de informação: como transformar informação em compreensão. São Paulo: Cultura Editores Associados, 1991.