Irmã Dulce - O anjo bom da Bahia

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A vida e obra de Irmã Dulce foram uma das mais intesas traduções vivas das máximas “fazer o bem sem olhar para quem” e “amai o vosso próximo como a vós mesmos”. Nas fotos ao redor, a freira encontra-se em seu “ambiente natural”, onde ela se sentia mais à vontade: em meio às crianças carentes e dos mais necessitados

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O anjO bOm da Bahia Com uma trajetória marcada pelo amor e pela máxima dedicação aos mais necessitados, Irmã Dulce, o Anjo Bom da Bahia, construiu – a partir de quase nada – uma das maiores entidades filantrópicas do mundo

Por Davi Carneiro

“O pequeno jornaleiro não tinha jornais para vender. Não usava uniforme, nem tinha sapatos nos pés. Tinha só 12 anos e seu rosto de menino deixava perceber os males comuns de todo menor abandonado, quase “capitão de areia” que andava pelas ruas de Salvador. Era 1939, o mundo fervilhava notícias de guerra iminente, a testa do menino ardia em febre e ele tremia de frio. Transpirando muito, levava nas mãos uma cuia suja e vazia. Debaixo do braço, uma esteira, onde procurava dormir ao abrigo de portas fechadas. Era quase de noitinha quando virou a esquina da rua Lélis Piedade e se encaminhou para o único lugar que – tinha ouvido – poderia dar um jeito naquele enjoo e naquela dor de cabeça constante. De vez em quando sentia um calafrio pelo corpo e uma dor nos ossos esquisita. Trêmulo e com fome, ele queria apenas uma comida quente que parasse no seu estômago, um remédio que o deixasse dormir em paz, longe dos mosquitos que atormentavam até o seu sono. “Irmã, não me deixe morrer na rua”. A frase saiu arrastada e presa na garganta. “Não me deixe morrer na rua, ele implorou mais uma vez àquela freira pequenina e frágil, que estava ali, em pé, diante dele”. Mas, o menino sabia que talvez nada adiantasse socorrê-lo, porque sua malária já estava nem estágio muito avançado. Mas, certamente, algo poderia ser feito. Contra fome, contra febre, contra o desespero que tremulava nos lábios do menino. “Venha comigo meu filho”. De repente, diante dos olhos dele, a pequena freira cresceu, tomou outra dimensão. Com uma energia hercúlea, caminhando pelas ruas, levando o pequenino pela mão, puxando-o como uma leoa a carregar o filhote, ela chegou à Ilha dos Ratos. As portas das casas vazias estavam fechadas. Mas LET’S GO BAHIA 153


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As Obras Sociais Irmã Dulce (Osid), um dos maiores legados da freira, é a instituição que abriga o maior complexo de atendimento totalmente gratuito em saúde do Brasil

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o obstáculo não era intransponível. “Moço, arrombe esta porta, por favor”. O banhista que ia passando, de volta da praia, a caminho do seu jantar, quase não acreditou. “O que é isso, irmã, a senhora ficou doida? Isso tem dono”. “Moço”, achegou-se ela falando mais manso ainda, “este menino esta morrendo. Ele bateu à minha porta, na esperança de ser atendido. Deus não atende a todos nós? Ele recusa alguma coisa quando pedimos com fé, com esperança? Como vamos recusar um pedido de nosso semelhante, do nosso próximo?” Com a porta arrombada, a freira acomodou o menino com uma emocionante sensação de que havia feito o possível por uma pequena vida, que definhava”. Esse ato que assustaria muita gente por ali - descrito com maestria nos parágrafos acima por Maria Rita Pontes, sobrinha da freira, no livro Irmã Dulce dos Pobres - foi o marco inicial de uma longa estrada de amor e doação ao próximo. Outras portas cairiam diante dessa pequenina freira, nascida em 26 de maio de 1914 na cidade de Salvador. Nenhuma porta - seja ela do egoísmo, avareza ou do comodismo – resistiu à persistência daquela mulher de um metro e meio, corpo franzino, pouco mais de 40 quilos, voz quase inaudível e olhar benevolente que irradiava uma enorme força espiritual e um total desprendimento pelas coisas materiais. “Irmã Dulce procurava saciar a fome de todos os que batiam em sua porta. Ela própria, mal se alimentava. Por três vezes na semana fazia jejum. Nos outros dias comia feito um passarinho. Muitas vezes, no almoço, ela tomava apenas uma xícara de café com leite. Quase não dormia. Quase não respirava. Sua capacidade respiratória era de 35 por cento. Dormia no máximo quatro horas por noite, sentada em uma espreguiçadeira. Ela sempre dizia que era Deus quem dava tanta vitalidade e força para realizar o seu imenso trabalho”, relata em seu livro Maria Rita Pontes, diretora-superintendente das Obras Sociais Irmã Dulce. O ritmo de trabalho de Irmã Dulce era intenso e incessante. Sua primeira missão como freira foi ensinar em um colégio mantido pela sua congregação na Cidade Baixa, em Salvador, região onde também dava assistência às comunidades pobres e onde viria a concentrar as principais atividades das Obras Sociais Irmã Dulce. Em 1936, por necessidade, Irmã Dulce invadiu cinco casas na Ilha dos Ratos para abrigar doentes que recolhia nas ruas. Mas foi expulsa do lugar e teve que peregrinar durante uma década, instalando os doentes em vários lugares, até transformar em albergue o galinhei-


20 de outubro de 1991, na segunda visita do Papa ao Brasil, quando João Paulo 2 fez questão de ir ao Convento Santo Antônio visitar Irmã Dulce, já bastante enferma. Maior legado Instituição que abriga o maior complexo de atendimento totalmente gratuito em saúde no Brasil, as Obras Sociais Irmã Dulce (Osid) são responsáveis pelo maior volume de atendimentos em toda a estrutura do setor na Bahia. Apenas o Hospital Santo Antônio, localizado na sede da Osid em Salvador, responde hoje por 26% das internações e 31% dos atendimentos ambulatoriais no município. Entidade filantrópica de fins não-econômicos fundada em 26 de maio 1959, por Irmã Dulce, é reconhecida como instituição de utilidade pública nos âmbitos municipal, estadual e federal e cadastrada no Conselho Nacional de Assistência Social. Com perfil de serviços únicos no país, a Osid é formada por 17 núcleos que prestam assistência à população de baixa renda nas áreas de saúde, assistência social e educação, dedicando-se ainda à pesquisa científica, ensino médico e preservação e difusão da história de Irmã Dulce. Em 2009, a Osid superou a marca dos cinco milhões de atendimentos ambulatoriais, realizando 5.111.232 procedimentos a usuários do SUS, idosos, portadores de deficiências e de deformidades craniofaciais, pacientes sociais e crianças e adolescentes em situação de risco social. O número dá a dimensão do que, 18 anos após o falecimento de Irmã Dulce, a instituição representa para a população da Bahia,

ro do Convento Santo Antônio. Em 1949, a freira ocupa definitivamente o galinheiro, com os primeiros 70 doentes. A iniciativa deu origem a tradição propagada há décadas pelo povo baiano de que a Serva de Deus construiu o maior hospital da Bahia a partir de um simples galinheiro. Considerada um “anjo bom” pelo povo baiano, recebeu também o apoio de pessoas de outros estados brasileiros e de personalidades internacionais. Mesmo com a saúde frágil, ela construiu e manteve uma das maiores e mais respeitadas instituições filantrópicas do país. Em 1988, irmã Dulce foi indicada pelo então presidente José Sarney, com o apoio da rainha Silvia da Suécia, para o Prêmio Nobel da Paz. Oito anos antes, no dia 7 de julho de 1980, Irmã Dulce ouviu do Papa João Paulo II, na sua primeira visita ao país, o incentivo para prosseguir com a sua obra. Os dois voltariam a se encontrar em LET’S GO BAHIA 155


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que hoje é estimada pelo IBGE em 15 milhões de habitantes. Os núcleos de Saúde do Complexo Roma contam com 1.009 leitos para o atendimento de patologias clínicas e cirúrgicas. O núcleo de Educação Fundamental e Profissionalizante e o Centro Educacional Santo Antônio (Cesa) oferecem formação em ensino fundamental e profissionalizante a mais de 800 alunos. Trabalham nas Obras mais de 3.800 profissionais. Cerca de 90% dos recursos da organização são provenientes da prestação de serviços ao Sistema Único de Saúde (SUS) e/ou venda de produtos. O restante se divide entre doações (6%) e convênios com organismos estatais. Fiel à missão herdada de Irmã Dulce, “Amar e Servir”, a instituição ampliou seu alcance e se profissionalizou sem abrir mão de seus valores. Sua gestão é estruturada com base no Planejamento Estratégico e acumula prêmios e certificações, como a ISO 9001:2000, Bem Eficiente, Top Social e Rainha Sofia. Atua ainda no fomento à educação, cidadania, inserção social, geração de emprego e renda e promoção de políticas sociais inclusivas através da transferência de tecnologia social e de saúde. 156 LET'S GO BAHIA

O Primeiro milagre atribuido à religiosa já está sobre análise do vaticano. tratase de uma mulher que teve hemorragia no parto, foi dada como caso perdido pelos médicos e, após orações à irmã dulce, melhorou sem explicações científicas Reconhecimento do Vaticano Iniciada em janeiro de 2000, a causa para a beatificação de Irmã Dulce venceu em abril de 2009 sua penúltima etapa. O Papa Bento XVI reconheceu as virtudes heróicas da Serva de Deus Dulce Lopes Pontes, autorizando oficialmente a concessão do título de Venerável à freira baiana. O reconhecimento foi comunicado pelo próprio Papa ao prefeito da Congregação para a Causa dos Santos, o arcebispo Ângelo Amato, em audiência realizada no Vaticano. O anúncio pegou de surpresa os fiéis da religiosa, que aguardavam apenas para junho a oficialização do decreto pelo Pontífice. Com a medida, a freira passa a ser chamada agora de “Venerável Dulce”. O título é o reconhecimento de que Irmã Dulce viveu, em grau heroico, as virtudes cristãs da fé, esperança e caridade, e permite que a causa da beatificação da religiosa cumpra agora sua última etapa: a confirmação do milagre que deve passar pela última análise até o final deste ano.


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