capa mariene de castro
Vivendo um momento especial da sua carreira, Mariene de Castro defende, com unhas e dentes, a valorização da cultura popular baiana
Filha de
oxum leGÍTima herdeira do samBa Baiano comparada a ediTh piaF na FranÇa e celeBrada pela crÍTica nacional, mariene de casTro é considerada uma das mais GraTas reVelaÇÕes dos ÚlTimos anos. a canTora Fala soBre carreira, FamÍlia e o amor pelo samBa Por Davi Carneiro Fotos Ivan Baldivieso
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Os ponteiros do relógio se aproximavam das 21 horas, quando São Jorge acendeu uma bela lua cheia por detrás das nuvens, clareando as arquibancadas lotadas da Concha Acústica do Teatro Castro Alves, em Salvador. Naquele exato momento, a expectativa do público - composto por estudantes do ensino médio das mais diversas escolas estaduais - era o maior possível. Esperavámos pela atração principal da noite, que em poucos minutos entraria em cena. No topo do altar, que é o palco da Concha, os músicos começavam a entoar os primeiros acordes sob o ritmo da orquestra de berimbaus, atabaques, pandeiros, reco-recos e agogôs. De repente, ainda atrás das cortinas, a cantora planta a sua poderosa voz no silêncio. Seu timbre forte, penetrável e privilegiado impõe silêncio no espaço: “Diga a mãe que eu cheguei/ Cheguei, tô chegada/ Esperei, bem esperado/ Nessa minha caminhada/ Sou água de cachoeira/ Ninguém pode me amarrar/ Piso firme na corrente/ que caminha para o mar...” Mariene entra e uma força misteriosa transforma o palco em um verdadeiro terreiro de luz. Deslumbrante, em um vestido longo dourado, cheia de pulseiras, cabelos soltos, a sambista abre o show cantando a música Abre Caminho, do seu grande amigo e compositor Roque Ferreira. Ela pede a benção ao pequeno altar improvisado e segue o show com sucessos, como Ilha de Maré, Vi Mamãe na Areia e Prece de Pescador. Sua interpretação é vigorosa e cheia de energia. O público dança ao som dos atabaques tocados pelos agdavis dos alabês e bate palmas no ritmo da percussão. Os versos são respondidos, um por um, em coro pelos estudantes.
Eu, que havia tirado a sorte grande e estava posicionado no espaço reservado à imprensa, pude acompanhar tudo de pertinho em frente à diva. O arrepio de assistir um show ao vivo da cantora pela primeira vez, assim como aquele sorriso bobo que acompanhava a minha satisfação, foram inevitáveis. SantO De CaSa “E o samba mandou me chamar/ Eu ando onde o samba andar/ Com a força da minha fé/ Eu ando em qualquer lugar”
Foi na quinta-feira, dia anterior ao show da Concha, que a cantora recebeu a nossa equipe para a entrevista exclusiva. Mariene nos recepcionou em sua casa de maneira acolhedora com um doce sorriso e uma surpreendente serenidade, que contrasta com a energia hipnótica e o vozeirão do palco. Enquanto a cantora trocava as roupas, tivemos Pedro, dois anos, filho do meio da cantora, como anfitrião. Ele fez questão de entreter os convidados cantando, acompanhado de um violão de brinquedo: “Vi mamãe na areia/ Vi mamãe nas conchinhas do mar ...” De repente, ela surge com o seu mais novo rebento, Bento, de apenas um mês e dez dias: “Vida de cantora-mãe é assim mesmo. Tem de amamentar um, dar carinho no outro e ainda dar entrevista. Tudo ao mesmo tempo”, disse, com uma risada gostosa. “Meus filhos, João Francisco, o mais velho, Pedro Antônio e, agora, o pequeno Bento, são as minhas maiores inspirações e meus maiores incentivos. Cantar e ser mãe são as coisas que me fazem mais feliz no mundo”, disse, ao aconchegar carinho-
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A cantora interpreta samba de roda, ijexá, marujada e outros ritmos
A cantora se prepara para fazer uma turnê nacional
Foto: Divulgação
samente o mais novo membro da família em seu peito. Começamos a conversar, e bastou falar de samba para a cantora - que serenamente se desdobrava para atender a todos - se empolgar. “Canto samba porque vivo intensamente a cultura das minhas raízes e sou apaixonada pela cultura popular. Mas quando comecei, ninguém da minha geração cantava samba. Não queriam que eu cantasse, preferiam o pop, mais fácil e comercial. Fui fazendo shows e vi chegar um público jovem e não apenas pesquisadores, intelectuais e artistas. Quero trazer a música de raiz para as novas gerações. Essa é a minha bandeira”, afirma com orgulho. Seguindo o lado oposto de uma corrente musical dedicada ao trio elétrico, Mariene interpreta desde o samba de roda, tocado com um prato e uma faca, herança cultural de Dona Edith do Prato, a dama do samba do recôncavo baiano, até ijexá dos Filhos de Gandhy, passando por ritmos, como marujada, samba-canção, maracatu, entre outros. Comparada a Edith Piaf na França, citada por Daniela Mercury como a nova Clara Nunes, celebrada pela crítica e por artistas renomados (de Pedro Miranda a Diogo Nogueira, de Beth Carvalho a Maria Bethânia) como uma das mais gratas revelações musicais dos últimos tempos - pode-se dizer que ela atravessa atualmente o período mais favorável da sua carreira. Aos que questionavam o motivo da cantora ainda não ter estourado nacionalmente, Mariene responde com calma e tranquilidade. “Costumo brincar dizendo que Deus ri das pessoas que traçam planos. Eu não tive a sorte que muitos artistas têm de se projetar estrategicamente gravando um disco, fazendo turnê, colocando música em uma trilha de novela para se tornar conhecido. Tudo na minha carreira aconteceu naturalmente. O Tempo é um dos orixás mais lindos e precisa ser respeitado.” A filosofia da cantora tem as mesmas raízes de sua música - o interior da Bahia, de tradições com sabor ancestral. É justamente por essa reverência ao popular que Mariene é reconhecida atualmente como uma das principais porta-vozes da cultura de raiz baiana fora do estado. “Ela talvez seja a mais radical dessas cantoras em termos de afirmação de identidade”, afirma Lauro Lisboa Garcia, crítico musical do jornal O Estado de S. Paulo. O comprometimento com a valorização da cultura popular está explícito em seu mais novo álbum Santo de Casa – Ao Vivo, o primeiro dela com lançamento nacional. O CD explora a fundo os ritmos de raiz e conta com participações especiais de expoentes da cultura popular, como Dona Nicinha de Santo Amaro, Rita da Barquinha, as Ganhadeiras de Itapuã e as Vozes da Purificação. “A Bahia que canto é uma Bahia da qual não se ouve falar desde Carybé, Caymmi e Pierre Verger. A música Vi Mamãe na Areia fala disso, do tempo em que o Rio Vermelho tinha peixe mariquita, o terreiro da Casa Branca batia na Barroquinha, e no Largo dos Aflitos tinha samba de verdade. Uma Bahia mais elegante, sem vícios, na qual as mulheres sambavam descalças e de saia comprida. Uma Bahia que dialoga com a nossa ancestralidade e com a força da cultura popular de raiz.”
O que é que a baiana tem “Baiana é aquela que entra no samba de qualquer maneira/ Que mexe, remexe, dá nó nas cadeiras/ Deixando a moçada com água na boca”
Mariene conta que desde pequena queria ser cantora e bailarina. Nascida em família musical, ela convivia com os discos de Dalva de Oliveira, Pixinguinha, Noel Rosa, Luiz Gonzaga e Dorival Caymmi, enquanto tomava contato com o samba de roda, marujada e ciranda. “Cantar foi natural, uma extensão do ambiente doméstico. Como uma boa filha de Oxum, eu era vaidosa desde pequena. Já me embonecava toda, fazia perfume de microfone e sambava em frente do espelho vestida de baiana e cheia de pulseiras. Já era uma sambista e não me dava conta disso”, lembra. Aos 12 anos, ela quis aprender a tocar violão e pediu à sua mãe que a levasse a uma escola de música. Quando chegou lá, pela primeira vez, viu-se interessada nas aulas de canto.. Foi então que descobriu que possui um timbre de voz muito especial: o contralto. Sua mãe não tinha dinheiro o suficiente para pagar os dois cursos, o de violão e o de canto, e o professor de canto acabou convencendo-a para que ela fizesse apenas o de canto. Mariene começou a sua carreira profissional como vocal de apoio para Timbalada, Carlinhos Brown e Márcia Freire. Porém, foi no ano de 1996, enquanto apresentava seu primeiro show solo no Pelourinho, que o seu talento começou a ser reconhecido. Dois produtores franceses, que estavam na plateia, a convidaram para fazer uma turnê na França. “Eles me acharam a cara da verdadeira Bahia. Queriam um artista que ti-
vesse uma relação cultural com o local e não comercial. Aquilo para mim foi uma surpresa muito grande, porque eu ainda não tinha CD, não tinha fotografia, não tinha nada! Não falava nada em francês. Só bonjour, merci beaucoup e olhe lá”, recorda, soltando uma sonora gargalhada. Depois de se apresentar em mais de 20 cidades francesas, onde foi aclamada pela crítica especializada e comparada a Edith Piaf, uma das maiores cantoras de todos os tempos, Mariene começou a descobrir a força e o potencial daquela intérprete que estava nascendo. “Diziam que eu era uma cantora que emocionava o público. E realmente vinham pessoas chorando para me cumprimentar, falar comigo. Fiquei impressionada ao ver que estava emocionando os franceses, mesmo cantando as coisas de raiz da minha terra. Quando voltei, foi como iniciar do zero, com a Bahia respirando o axé e o pagode, sem espaço para alguém com o meu trabalho. Ouvi: “Você tem que sair da Bahia, ninguém vai consumir isso aqui. Mas, resolvi provar que o samba de roda tem o seu lugar, sim”, afirma. No meio das dificuldades, ela escolheu encarar a tormenta. Manteve-se fiel à ideia de trabalhar com compositores do interior da Bahia, incorporando referências religiosas e tradições do samba e dos ritmos populares baianos. Somente em 2004, a insistência começou a dar frutos no Brasil. Foi nesse ano que a cantora ganhou o Prêmio Braskem, permitindo que lançasse o seu primeiro CD, Abre caminho. No ano seguinte, o disco lhe rendeu a ela o Prêmio Tim de música na categoria Melhor Disco Regional e o Prêmio Rumos do Itaú Cultural. “Um trabalho de formiguinha”,
Foto: Tiago Lima
A artista no último mês de gravidez do terceiro filho, Bento
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Tudo na minha carreira aconteceu naturalmente. O Tempo é um dos orixás mais lindos e precisa ser respeitado. Tudo aconteceu no momento certo”
define. “Tive que correr atrás, ralar muito.” Em 2006, a sambista Beth Carvalho a convidou para participar da gravação do CD/DVD Beth Carvalho Canta o Samba da Bahia, quando foi considerada uma das mais gratas revelações da música brasileira. Em 2008, a cantora fez uma turnê pela Espanha e cantou na trilha do longa metragem Mujeres Del Mundo, com a música Elas Contam, e na trilha sonora do filme Ó Pai, Ó. Como atriz, está no longa-metragem Jardim das Folhas Sagradas, de Póla Ribeiro, e no curta Ensolarado, de Ricardo Targino, lançado no Festival de Paulínia. O mesmo diretor convidou-a para protagonizar o filme Quase Samba. O longa - no qual a baiana irá interpretar a sambista “Tereza”, numa trama que fala de encontros e desencontros de um grande amor - deve estrear em 2011. Amor pelO SAMBA “Quem não gosta de samba bom sujeito não é / É ruim da cabeça ou doente do pé”
Mariene abre o CD Santo de Casa com versos de Roque Ferreira: “No meio do temporal/ Ninguém é rei, meu senhor/ Mas, eu sou.” Eles não estão ali por acaso. A cantora conta que quis, já nos primeiros segundos do disco, afirmar a personalidade de sua trajetória. “Esses versos descrevem, poeticamente, as dificuldades que tive para fazer a minha música em meio a esse universo da axé music e do pagode. Sobreviver e ter o reconhecimento na Bahia foi uma vitória muito grande. É a prova de que Santo de Casa faz, sim, milagre e de que há espaço para todos.” A artista hoje diz que se vê muito mais madura. “Canto apenas aquilo que me influencia e me emociona. O que eu faço está atrelado à mi30 LET'S GO BAHIA
nha verdade, a minha vida. Antes, eu ficava encucada, tentando saber por que o samba me emocionava tanto. Hoje, sei que é porque ele está na minha alma, na minha ancestralidade. O samba é o sentimento que carregamos nas veias e que, quando transformado em música, transborda nessa emoção que dá nó na garganta, que faz a gente se sentir nobre e que me faz chorar, muitas vezes, com saudade de coisas que eu não presenciei, mas que está na história da minha raiz.” Amor pelo candomblé “Que luz é essa/ que vem lá do mar?/ É a Senhora das Candeias/ Mãe dos Orixás”
Outro aspecto importante na carreira da cantora é a religiosidade. Adepta do candomblé, filha do Terreiro do Gantois, um dos mais tradicionais da Bahia, Mariene é enfática em comentar a importância da religião em sua vida. “O candomblé representa algo muito forte, muito grande e sagrado em minha vida. Eu já nasci com as bênçãos de minha mãe Oxum que cuida de mim desde antes de eu nascer. O candomblé me ensina muito, a respeitar o tempo das coisas e a ter a consciência de que tudo tem o tempo certo de acontecer. Hoje, sou uma artista, uma mulher, uma mãe mais inteira.” Era hora de partir. Estendi-lhe a mão e agradeci a entrevista. O brilho nos seus olhos evidenciava o poder de sua mãe Oxum. A sensatez que percebi em suas palavras, no entanto, pertencia a outro rei. Era de Oxalá, o orixá branco, sinônimo da sabedoria, da paz e de que a cantora está mais madura e mais completa nessa sua nova fase. Um bom prenúncio de que depois do temporal enfrentado, Mariene vive agora uma doce calmaria e a previsão de safras promissoras.
Foto: Divulgação
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