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especial américa latina
Percorremos dois mil quilômetros para conhecer a vida dos habitantes de diferentes regiões do país guarani após a ascenção de Fernando Lugo
VIVA O pOVO
PARAGUAIO
Contaminações com agrotóxicos na fronteira com o Brasil • A aceitação do governo Lugo • O início e o fim da reforma agrária • Conheça o Chaco E mais: A nova consTituição de Evo Morales • Entrevista com Eduardo Galeano • O desaparecimento de indígenas no Peru
Capa
Viagem ao
Paraguai as máquinas estão paradas Página 16
Mariscal Estigarribia De passagem pelo Chaco Página 20
Santa Rosa del Aguaray
Asunción
em meio ao perigo químico Página 8
Ciudad del Este
a esperança era Lugo Página 13
A série de reportagens das próximas páginas apresenta uma viagem de 40 dias que tem o propósito de mostrar aos nossos leitores quatro realidades de diferentes regiões do Paraguai. Fomos à fronteira com o Brasil para relatar o problema dos agrotóxicos; passamos pela capital política, Asunción, e compusemos um quadro de opiniões sobre o governo de Fernando Lugo; chegamos, de carona, ao norte, onde o coro pela reforma agrária é cada vez mais intenso; e, por fim, viajamos ao Chaco, para conhecer e descrever a região semi-árida e praticamente despovoada que ocupa a maior parte do país.
Texto Camila Brandalise Fotos Camila Brandalise, Bia Ferrari, Argeo Azmetoy Editoria de Arte Flávia Schiochet Trabalho realizado por Camila Brandalise para a conclusão do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina
Região Leste
eM MEIO AO PERIGO
QUÍMICO
a expansão daS LAVOURAS DE SOJA obriga pequenos agricultores a conviverEM com VENENOS e constantes intoxicações
Camila Brandalise
Quando a agricultora paraguaia as erupções foram desaparecendo. de 2009, surgiu a denúncia de Mérida Espinosa acorda, por vol- A possibilidade de a contamina- um grupo de 13 pessoas que se ta das 5h30, liga o televisor para ção ter sido causada pelo veneno queixavam de problemas comuns: assistir ao noticiário do seu país. – como os agricultores costumam dores de cabeça, náuseas e malApesar de as notícias estarem fo- chamar os agroquímicos - usado estar. Alguns dias antes dos sintocadas em acontecimentos da capi- pelo marido de Mérida, Augus- mas, o cheiro forte característico tal, Asunción, a moradora de San to Filizzolla, em seus sete hecta- do Roundup, nome comercial do Isidro, localizada a 30 quilômetros res de plantações, foi descartada. agroquímico glifosato comerciade Ciudad del Este, gosta de co- Para acabar com os yuyos, nome lizado pela empresa Monsanto e meçar o dia de frente para o apa- dado às ervas daninhas das plan- usado nas plantações de soja, deirelho. Após preparar seu mate, co- tações de laranja, mandioca, feijão xou os habitantes em alerta. De locando água quente na cuia com e milho, Filizzolla usa uma receita acordo com uma pesquisa da Direerva, senta-se em uma cadeira de caseira com fezes ou urina de vaca ção Nacional de Epidemiologia do plástico ao lado de sacas de gerge- misturada a um pó para matar for- Paraguai, em 2008 foram regislim colhidas pelo marido. A notícia migas. O inseticida, no entanto, é trados 333 casos de intoxicações que mais lhe chamou a atenção em considerado inofensivo. A causa causados por nove substâncias uma terça-feira do mês de abril foi seriam os agrotóxicos usados nas químicas diferentes. Desses, soa criação de uma assembléia para plantações de soja ao redor da co- mente seis por glifosato. “Acrediorganizar uma comissão de ajuda munidade onde mora Mérida, o tamos que esse número seja muito aos cidadãos contaminados com marido, os filhos, e aproximada- maior, mas o jogo de interesses e o pouco conhecimento sobre como agrotóxicos no país. “Diante da mente outras 100 famílias. magnitude da contaminação das Foi nessa comunidade, a pouco proceder em caso de intoxicação comunidades rurais e urbanas em mais de 20 quilômetros de Ciudad nos impedem de chegar a um rediversas regiões do do país pelo del Este que, no início de março sultado mais verossímil”, revela uso indiscriminado de agrotóxicos, se dá início a um processo de diálogo entre populações afetadas para construir uma Coordenação de Vítimas de Agrotóxicos”, anunciava a apresentadora do telejornal, ao ler o texto enviado pela organização do evento. Fazia duas semanas que Mérida fora, de carona na moto da filha, ao posto de saúde mais próximo da localidade onde vive. A pele de suas mãos e pés estava coberta de feridas que coçavam, doíam e impediam que ela ajudasse o marido na lavoura. O médico não fez exames. “Ele disse que não tinha dúvida, a causa foi contato direto com algum tipo de veneno”, relembra. Após o diagnóstico clínico, ele receitou um sabonete e uma pomada, e Filizzolla usa veneno caseiro, mas não fica livre dos agrotóxicos
Arnaldo Vera, diretor do Centro de Epidemiologia e responsável pelas pesquisas sobre intoxicações divulgadas pelo Ministério da Saúde. Estudos feitos na Argentina, nos Estados Unidos e no Brasil, os três maiores exportadores da oleaginosa no mundo, comprovam que o glifosato, apesar de apresentado no site da Monstanto como de “baixa toxicidade para o ser humano“, pode provocar lesões na pele, náuses, vômitos e intoxicações agudas mais graves. O Paraguai importou, no ano passado, aproximadamente 11,5 milhões de litros de herbicidas. O glifosato representa o maior volume, com a importação de quase sete milhões de litros. Calcula-se que seja usado aproximadamente 2,5 litros da substância por hectar. De acordo com a médica Graciela Gamarra, do Serviço de Vigilância de Intoxicação Aguda de Praguicidas, as áreas nas quais há maior número de suspeitas de contaminações coincidem com os territórios das maiores plantações de soja. “Ainda não temos um mapa que indique as regiões onde há mais contaminação, mas, com certeza, essa área é a mesma onde estão as maiores extensões de cultivo de soja”, analisa. As plantações de soja representam 71,2% das superfícies de cultivo do Paraguai. Nos lugares em que a monocultura está presente, pequenas propriedades familiares e comunidades de agricultores são rodeadas por grandes extensões de cultivo da oleaginosa. O departamento de Alto Paraná, na região da fronteira, tem a maior parte sua área cultivável voltada para o plantio da oleaginosa, e é responsável por 31% da produção nacional. A economia da região é baseada na produção rural, de acordo com a tendêndia nacional de geração de divisas a partir do modelo agropecuário, como descreve o informe do Ministério da Agricultura. A média de hectares das propriedades familiares é de 7 a 10, e das que se cultiva a monocultra, em torno de 100. Os donos das grandes extensões de cultivo são, em 80% dos casos, brasileiros ou filhos de brasileiros. Uma pesquisa realizada em
2006 pela organização não-governamental Base Investigações Sociais na comunidade de Lote 8, no município de Mingá Porá, também no departamento de Alto Paraná, constatou que, entre as 60 famílias moradoras, membros de 43 delas disseram que já sofreram intoxicação ou conhecem alguém que sentiu os sintomas da contaminação. A pesquisa ainda abrange uma consulta feita em outras oito comunidades - entre elas, San Isidro - em mais três departamentos. Das 188 famílias entrevistadas, 78% dizem sentir ou já ter
Em 2009, o Paraguai importou 11,5 milhões de litros de herbicidas sentido algum problema de saúde ocasionado por agrotóxicos. Entre os problemas, 57% são doresde-cabeça, 28% vômitos e 24% dores de estômago. Das pessoas que apresentaram essas queixas, porém, poucas procuram um centro de saúde. “Geralmente, o agricultor mora longe da área urbana e não tem muita informação. Já trabalhei com casos em que houve auto-contaminação, mas a pessoa nem percebeu que poderia ser por uso de agrotóxicos”, explica Graciela. O Ministério da Saúde pretende realizar um trabalho de conscientização para explicar aos agricultores sobre intoxicações e sobre como se deve proceder caso alguém seja contaminado. As atividades, porém, ainda não têm data de início definida. No Centro de Toxicologia do Hospital de Emergências Médicas de Asunción, o maior hospital público do país, o toxicologista Narciso Fleitas apresenta uma das maiores dificuldades para o controle das contaminações. Após explicar o procedimento para comprovar a intoxicação, pela realização de diagnósticos clínico e o laboratorial, Fleitas informa que não existe um laboratório de alta complexidade no Paraguai para
medir, gratuitamente, a quantidade desses produtos no sangue dos pacientes. O diagnóstico toxicológico fica, portanto, inconcluso. “Nós carecemos dessa tecnologia, estamos em falta com os camponeses para concluir um diagnóstico toxicológico”, lamenta Fleitas. Os laboratórios privados do país cobram aproximadamente dois milhões de guaranis, ou mil reais, para realizar uma análise toxicológica. “Para um campesino é impossível para essa quantia”. O toxicologista analisa a situação atual do país como alarmante. “Importa-se cada vez mais tecnologia para o campo mas, ao mesmo tempo, não temos tecnologia suficiente para o controle dos problemas gerados pela primeira”. Em Ciudad del Este, o médico Ruben Cardozo coordena o Centro de Toxicologia regional desde sua criação. Cardozo relata que, quando é feita uma notificação por alguém que se diz contaminado, manda-se uma amostra do sangue da pessoa para Asunción, mas o resultado sempre vem negativo. “Sigo enviando as amostras por uma questão de protocolo, mas sei que não adianta para nada”, avalia, enquanto franze a testa em sinal de desaprovação. Apesar de ser contactado por cinco vezes para informar sobre o número de notificações registrados no centro, o médico não pôde passar os dados pois estava muito ocupado mas, afirma, as queixas não são tantas quanto são os casos. Para o médico, há um fator cultural que inibe o aumento das notificações. “Somos um país de cultura oral, não temos o costume de escrever ou de oficializar o que dizemos. E isso ocorre também com as denúncias”, diz. Para a jovem Letícia Galeano, 20 anos, integrante do Movimento Campesino Paraguaio e realizadora de pesquisas sobre intoxicações em comunidades agrícolas, o problema maior não é o uso dos agrotóxicos, mas a negligência no controle do seu uso. “Se os fazendeiros usam veneno, não se pode questionar, a terra é deles. O problema é que o Estado libera, junto com a compra de agrotóxicos e de soja transgênica, a importação de um modelo
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agroexportador que não pode suportar”, critica.
Lei insuficiente
“Doutor Fleitas”, interrompe a secretária do Centro de Toxicologia, “Letícia da Silva, da Anvisa, está no telefone e quer falar com o senhor”. Ele se levanta, vai a outra sala e volta cinco minutos depois. “A senhora Letícia é uma fiscal brasileira que está em Asunción e vai nos auxiliar a reformular a lei dos agrotóxicos, na qual a participação da saúde é muito pequena”, explica. A lei 123, especifica que o controle de agroquímicos no país e está a cargo do Serviço Nacional de Qualidade e Sanidade Vegetal e de Sementes (Senave), criado em 2004, função até então desempenhada pelo Ministério da Agricultura. A lei se restringe a normativas que, em sua maior parte, não englobam os aspectos de saúde pública, citando-a brevemente em duas passagens. O artigo 4º do capítulo II da lei, item “i”, obriga as autoridades do Senave a “prevenir e combater a contaminação que possa ser derivada da aplicação de agrotóxicos e outros insumos agrícolas, para a preservação do meio ambiente e da saúde humana”. Mais adiante, no artigo 21 do título III, a lei estabelece que o Ministério da Saúde prestará assessoramente e colaboração quando for requerido. Em 2003 foi criada uma lei para controlar o uso de agrotóxicos considerados perigosos à saúde humana, e nesse ano se tornava pública a adesão do Paraguai ao convênio internacional de Rotterdam, de 1998. Outras leis estão no Código Sanitário e na Constituição Nacional, de 1992. Faz parte da segunda a lei de número 836/80, que estipula que os cultivos nos quais há manejo de agrotóxicos devem estar, no mínimo, a 100 metros de comunidades ou residências. Além dessa franja, deve haver uma barreira viva, como plantação de cana-de-açúcar, de 50 metros, para garantir que as as substâncias químicas não cheguem até grupos humanos próximos. “As leis do controle de agrotóxicos no Paraguai são falhas, pouco esmiuçadas, e algumas, como a relacio-
nada ao Convênio de Rotterdam, não são seguidas, já que os casos de intoxicação só aumentam”, adverte o engenheiro ambiental Ulises Lovera, da organização Alter Vida. No dia 28 de abril de 2009, criou-se o decreto 1937, que ratificou a lei sanitária já vigente e estabeleceu que, quando há escolas ou creches, a franja mínima deve ser de 200 metros. Estabeleceu-se ainda que deve-se evitar a aplicação das substâncias quando a temperatura for maior que 30 graus ou o vento estiver em uma velocidade maior que 10km/h. Para auxiliar na formulação de um projeto substitutivo que se adeque às necessidades de saúde
“A lei paraguaia é frágil e nela não está prevista a atuação da área da saúde”
Letícia da silva, fiscal da anvisa
pública, o Ministério da Saúde paraguaio contatou a ANVISA, no Brasil. A partir desse contato, a fiscal Letícia da Silva viajou para Asunción e fez reuniões com membros do ministério que estavam trabalhando em uma nova lei. Lá, conversou com membros da câmara sobre a necessidade de garantir participação do setor da saúde na legislação referente aos agroquímicos. Enquanto especialistas da área preparavam uma série de emendas, que iriam complementar as normas já existentes, alguns deputados, ligados a membros da Câmara Setorial de Agrotóxicos, criaram um projeto de lei, já aprovado em meia-sanção, que restringe ao Ministério da Agricultura as atividades de controle de importações de agrotóxicos. A proposta de lei vem gerando diversas críticas por parte de organizações sociais. O presidente Fernando Lugo se manifestou dizendo que o Ministério da Saúde levará adiante outro projeto de normas para o uso das substâncias químicas no campo, diferente
do proposto pelos deputados. De acordo com a Câmara Paraguaia de Exportadores de Cereais e Oleaginosas, se o novo decreto do ministério for aprovado e aplicado, a área de cultivo da soja teria uma diminuição de 30 por cento. Por isso, os produtores da oleaginosa declararam, recentemente, que organizariam um tratoraço contra as novas normas. Ainda seguindo a lei antiga, o diretor da escola de San Isidro, Elvio Bogado, denunciou, há aproximadamente dois meses, a fumigação em plantio de soja realizada a pouco mais de 50 metros do local, em dias que a temperatura beirava os 40 graus. Na época, as aulas tiveram que ser suspensas. As 160 crianças foram instruídas a ficarem em casa durante a aplicação de agrotóxicos nas proximidades. Depois da denúncia, agentes da Promotoria do Meio Ambiente e do Senave visitaram o local para alertar ao proprietário do cultivo que aumentasse a franja de separação e plantasse uma barreira viva. Mas o cheiro forte e o malestar causado pelas aplicações de veneno persistem. “Apesar da plantação ter se distanciando da escola depois da intervenção do Senave, as crianças e os professores continuam sentindo os problemas gerados pelas fumigações. Mas agora não tenho mais para quem reclamar, afinal o cultivo está de acordo com a lei”, queixase Bogado. No Senave de Ciudad del Este, formado por seis pessoas, o funcionário público Líder Benítex diz que o órgão só intervém nas localidades da região quando é requisitado pela Promotoria para averiguar alguma denúncia. Quando questionado sobre a necessidade de uma fiscalização constante, responde: “Não há fiscalização, apenas acompanhamos os promotores”, e volta a folhear o jornal do dia. “A lei paraguaia é bastante frágil, e nela não está prevista a atuação da área da saúde”, diz Letícia, por telefone. Segundo a fiscal da Anvisa, o país vizinho pediu a ajuda brasileira porque, aqui, o setor da saúde tem participação ativa no controle dos agrotóxicos, e o processo de registro de uma
Argeo Ameztoy
substância é bastante complexo. Ainda assim, segundo a pesquisa “O Brasil dos Agrocombustíveis”, da ONG Repórter Brasil, estados como Mato Grosso, Goiás, Rondônia e Maranhão apresentam problemas similares àqueles relatados pelos paraguaios. “Nesses casos, a Anvisa não tem respaldo para atuar, já que o controle do uso de agrotóxicos é competência dos municípios”, justifica. Para o engenheiro agrônomo Sebastião Pinheiro, autor de mais de 40 livros sobre o assunto, os agrotóxicos são um problema não só brasileiro ou paraguaio, mas mundial, e que existe há muito tempo. “Só é bom para quem vende”, afirma. Pinheiro é taxativo ao caracterizar o uso dos químicos: “É um genocídio consciente”. A Organização Mundial da Saúde (OMS) calcula que, em todo o mundo, aproximadamente um milhão de pessoas sofram de intoxicações agudas causadas por praguicidas, entre eles a substância. Tanto no Brasil quanto no Paraguai, o glifosato é considerado pouco nocivo à saúde humana pelas normas federais. Mas Andres Carrasco, do laboratório de embriologia molecular da Universidade de Buenos Aires, publicou, em maio de 2009, um estudo revelando que a substância pode ser extremamente nociva para fetos e embriões. A experiência foi feita com embriões de uma espécie de anfíbio que, segundo o estudo, apresenta características muito semelhantes as dos embriões humanos. A diluição do produto correspondia a uma dose entre 50 a 1540 vezes menor que a dose usada nas fumigações e 5000 vezes menor que a da solução comercial. Ao final do trabalho, Carrasco conclui que o efeito da substância “distorse e altera processos biológicos normais em tecidos específicos”. Outro estudo publicado por três professoras do curso de Medicina da Universidade Nacional de Asunción, que analisou 188 nascimentos no Hospital Regional de Encarnación, revelou, a partir dos casos analisados, que o risco de uma criança nascer com máformação congênita dobra se os pais vivem perto de áreas onde
Morte do menino Silvino gerou protestos indignados pelo país são feitas fumigações. Em San Isidro, a comunidade onde vive Mérida Espinosa, citada no início da reportagem, há pelo menos duas crianças com má formação. Mérida, porém, lista outros três nomes, e mostrando a mão aberta, diz: “Conheço outras cinco crianças com problemas.”
Casos polêmicos
No dia sete de janeiro de 2003, Silvino Talavera, de 11 anos, saiu de sua casa, em Itapua, às 10h para comprar o almoço. Levava duas sacolas com carne e macarrão quando, na volta, foi salpicado pelo produto Roundup que estava sendo despejado na plantação de soja localizada a 15 metros de sua casa. Receoso pelo banho de agrotóxico que havia tomado, o garoto voltou correndo, jogou a roupa no lixo, tomou uma ducha e deitou-se até a hora do almoço, que fora preparado com os produtos trazidos por ele. Por volta das 15h, Silvino chamou a mãe para mostrar a pele cheia de manchas roxas. Como alguns membros da família estavam se queixando de náuseas e a irmã também mostrou a pele repleta de marcas, a mãe decidiu levar as crianças ao centro de saúde mais próximo. Lá, o médico lhes disse que o problema era uma grave intoxicação e sugeriu que os dois fossem tratados na cidade de Encarnación, porque naquele centro “não se contava com o equipamen-
to mínimo para tratar esse tipo de caso”. Um dia depois, Silvino chegou às 14h ao Hospital Reginal de Encarnación, e morreu pouco depois, às 15h15. Segundo declaração do médico Raul Arce, o garoto teve duas paradas cardíacas e não resistiu à segunda. “Depois da morte, seus pais recorreram à justiça para condenar os culpados, o Centro de Toxicologia foi testemunha do caso. O exame, feito em um laboratório particular e bancado pelo Ministério da Saúde, comprovou a presença de glifosato no corpo do menino”, relembra o toxicologista Fleitas. Um ano depois, em 30 de março de 2004, iniciou-se um processo judicial para investigar a morte de Silvino. Oficialmente, era a primeira causada por agrotóxicos no país. Em abril do mesmo ano, Alfredo Lauro Laustenlagger e Hernan Schlender, dono da propriedade e executor da fumigação, respectivamente, foram declarados culpados e condenados, a dois anos de privação de liberdade ou ao pagamento de 25 milhões de guaranis cada um à família Talavera. Apesar da sentença ter sido reconhecida pela Corte Suprema de Justiça, em 2007 substitui-se da pena, decisão revogada somente em 2008, quando se anulou a substituição. Depois dessa decisão, o advogado dos réus pediu a suspensão do processo. O caso ainda não foi resolvido.
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nhos no qual transitam agricultores. Para contar, abre um caderno de capa preta, folheia as páginas onde estão anotadas as denúncias a lápis e a caneta e conta: “Foram quatro”. Para todas, confirmouse a ilegalidade das plantações de acordo com a resolução 485 do Senave, que estabelece a obrigatoriedade de franjas de segurança entre plantações e comunidades. Mas a nenhum dos proprietários imputou-se a multa prevista na lei 716/96 por delitos ambientais. Os membros da promotoria preferem estabelecer um acordo para que a propriedade se adeque à lei em um prazo de 30 dias.
Revolução verde
No Paraguai, 90% das sementes de soja cultivadas são transgênicas, segundo a Coordenadoria dos Direitos Humanos no Paraguai. A expansão do cultivo na safra dos anos 1999 e 2000 seguiu a tendência mundial da chamada Revolução Verde ao se implantarem as sementes geneticamente modificadas na época considera como o segundo “boom” agrícola da monocultura. O primeiro, ainda no governo do ex-ditador Alfredo Stroessner, contou com a mecanização para modernizar a produção agrícola, quando optou-se pelo plantio da oleaginosa depois do declínio das vendas do trigo e do algodão paraguaios no mercado internacional. “Mais tarde, em 1999, a engenharia genética entrou no país, com a importação Camila Brandalise
Enquanto seguia a polêmica sobre a morte de Silvino, surgiu a denúncia, em agosto de 2007, de que o menino Jesus Gimenez, de três anos, havia morrido vítima de agrotóxicos no departamento de Alto Paraná. Em dezembro daquele ano, os jornais paraguaios publicaram outro caso de contaminação em uma criança, que declarou sentir ânsia de vômito e mal-estar, mas o caso não foi levado adiante pelas autoridades. Em de fevereiro de 2008, o resultado da autópsia de Jesus Gimenez apontava não haver qualquer vestígio de agrotóxicos no corpo do bebê, mas a causa da morte não foi confirmada. Por toda a repercussão gerada pelos dois casos, o problema das intoxicações chegou ao Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, em novembro de 2007. Nas observações finais formuladas sobre o Paraguai, o Comitê avalia que “a expansão do cultivo trouxe aparelhagem e uso indiscriminado de agrotóxicos, provocando mortes e doenças em crianças e adultos, contaminação da água, desaparecimento de ecossistemas e afetação de recursos alimentares tradicionais das comunidades” . Na Promotoria do Meio Ambiente de Alto Paraná, foram registradas, de 2008 até março de 2009, 61 denúncias de crimes ambientais. O fiscal Fabio Aguilar não sabe ao certo o número específico de casos de propriedades muito próximas a comunidades e cami-
Em San Isidro, as fumigações podem gerar suspensão de aulas
de sementes de soja transgênicas vindas do Brasil e da Argentina e comercializadas pelas grandes corportações, como é o caso da Monsanto e da semente Roundup Ready”, explica Diego Segovia, professor de Sociologia e realizador de pesquisas sobre a situação dos campesinos no Paraguai. Desde então, calcula-se que a expansão tenha sido de aproximadamente 129 mil hectares por ano. “A sensação de incapacidade que os campesinos sentem frente à expansão da monocultura quando suas queixas são negligenciadas suscita a criação de símbolos contra os quais lutar, que nesse caso são a soja e os brasiguaios. Mas o problema está mais na estrutura da produção que em seus personagens”, avalia a jovem Letícia Galeano. De acordo com o decreto 1937, publicado em 28 de abril de 2009, todos os vizinhos devem ser comunicados que haverá uma fumigação próxima a suas casas. Na comunidade de San Isidro, não há registro de que isso tenha acontecido. Moradora da comunidade desde seu início, em 1989, Juana Vais foi duas vezes neste ano à Promotoria do Meio Ambiente pedir algum tipo de intervenção nas aplicações. Sempre que sente o cheiro do agrotóxico, ela sabe: vai ter dor-de-cabeça, mal-estar e diarréia. No começo do ano, amanheceu e encontrou suas 70 galinhas mortas no pátio de casa. A senhora tem no rosto as marcas de quem viveu na agricultura, trabalhando sob o sol, durante boa parte dos seus mais de 50 anos. Encostada no parede de cimento que contorna sua casa de madeira azul, ela aponta para o horizonte e afirma: “Não se pode ver a plantação de soja, mas sabe-se que, mais a frente, o cultivo está ali. Eu sei porque sinto o cheiro do veneno”. As fumigações são parte do cotidiano da mulher e do marido. Juana diz, com olhar resignado, que não sabe mais o que fazer. “Se você for à Promotoria, fale para eles sobre a minha situação, diga que espero por mais uma visita”, pede a mulher, enquanto se vira para entrar em sua casa e continuar a preparar o almoço.
Política
A ESPERANÇA ERA
Lugo
O que pensam os cidadãos paraguaios sobre o NOVO governo, que completará um ano em agosto de 2009 raguayo Independiente, que Fernando Lugo comemorou sua vitória com as milhares de pessoas que ouviram seu discurso ao vivo, em abril de 2008. Cinco meses depois, em agosto, o presidente era finalmente empossado. Com 93% de apoio da população paraguaia, segundo pesquisa divulgada pelo empresa First Analysis y Estudios, ele era a personificação da esperança, palavra essa que foi ouvida, lida e repetida quando o assunto era a mudança política. Um ano depois, seu nome em azul pintado na época da campanha ainda estampa paredes brancas do centro da cidade. “Eu votei nele porque queria que o governo do país mudasse de color, diz uma senhora de cabelos brancos no ponto de ônibus, apontando para uma propaganda de Lugo que ainda não fora
apagada e fazendo clara alusão às seis décadas de governo da Aliança Nacional Republicana, conhecida como Partido Colorado. “Depositamos muitas expectativas na figura do presidente, mas a história não é feita por um homem só, a estrutura é muito mais complexa, foram 60 anos de roubo. Do jeito que ele está, sem apoio, vai continuar sem fazer nada”, afirma Alejandro Vial, sociólogo chileno que vive há 11 anos no Paraguai. Ao falar sobre a corrupção no país e sobre o que representou os anos de governo do Partido Colorado, Vial comenta que, certa vez, leu uma declaração informal do Banco Mundial dizendo que “o Paraguai é um clube”. E ele concorda: “Aqui, quem consegue ser sócio faz o que quer”. Ele ainda lembra que o Paraguai tem uma democra-
Camila Brandalise
Asunción é uma cidade quente o suficiente a ponto de hotéis com diárias de R$ 9 disporem de ar condicionado nos quartos. A cada esquina, barraquinhas de refrigerantes ou crianças com várias garrafinhas de Coca-cola vendidas por 1.500 guaranis, ou R$ 0,75, irrompem com um vermelho publicitário no ambiente enfumaçado. Em algumas praças, mulheres montam quiosques para alugar de cuias com erva e jarros cheios de água com grandes pedras de gelo ao preço de cinco mil guaranis pelo tempo que se leva para beber toda a água, o que não costuma demorar muito. O calor de quase 40 graus no verão - que, aliás, costuma se estender em uma versão amena durante o inverno – parece tornar a cidade ainda mais cinza. Os ônibus que circulam pelas ruas, fabricados pela empresa brasileira Marcopolo, esguicham nuvens de fumaça para compor a matiz monocromática da capital. Somente mais perto da Baía de Asunción é que se vê o verde de extensos campos, cortados pelo rio Paraguai. Em frente à essa paisagem, vizinhos paradoxais compõem o cenário assuncenho: o Palácio del Gobierno, onde trabalha o presidente, e a favela da Chacarita, única da cidade e símbolo da expansão urbana desordenada. Foi entre essas duas imagens características da cidade, na rua El Pa-
Palácio del gobierno ocupado por presidente não colorado após 62 anos
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cia incipiente e ainda muito frágil. “Se pensarmos que as primeiras eleiçõs democráticas foram realizadas em 1993, pode-se dizer que somos novatos no assunto.” Para o cientista político Marcello Lachi, italiano residente em Asunción há quase 20 anos, a mudança política é apenas aparente. Para Lachi, o rótulo de “socialismo do século XXI” criado por Lugo é implausível. “Venezuela, Bolivia, e até Uruguai, são exemplos de mudança política, mas aqui ela não existiu. Na Venezuela desapareceram os partidos históricos, na Bolívia também. Aqui eles persistem e tem maioria absoluta no congresso, do qual dois terços são membros dos partidos tradicionais, Colorado e Liberal”, analisa o autor de pesquisas para o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) no Paraguai. Dos 45 senadores do congresso, 15 são do Partido Colorado e 14 do Liberal, e os outros 16 são de cinco partidos diferentes. Tanto colorados quanto liberais são considerados de forte oposição ao governo de Lugo. O cientista político compara o atual sentimento com o do governo anterior ao de Lugo. “Quando Nicanor Duarte Frutos foi eleito, em 2003, também se pensava em mudar o país. Quando há muita ilusão, também há muita desilusão.” Em abril de 2009, a eleição de Lugo completou um ano. Nesse mês, após um exame de DNA,
comprovou-se que ele era pai de uma criança e que havia tido um caso com a mãe quando ainda era bispo. “Junto com a polêmica dos
“Quando há muita ilusão, também há muita desilusão” Marcello Lachi
filhos, surgiu uma série de denúncias que vinculavam o presidente a casos de sequestro com testemunhas falsas, que depois desmentiam as versões”, relata a jornalista Natália Ruiz Diaz. “A situação está bastante complicada porque a oposição não dá trégua, estão desesperados para ter de novo os benefícios perdidos.” Natália é uma das pessoas que crê na perspectiva de mudança e assume seu apoio ao governo. Ela já trabalhou na Venezuela, na Bolívia, na Colômbia, no Chile e no Peru. Foram quase cinco anos viajando até que, em março de 2006, a jornalista decidiu retornar ao seu país. Naquele mês, ela ouviu a história de um novo personagem que surgira na política paraguaia. O homem era Fernando Lugo. Ao voltar, Natália trabalhou na Organização das Nações Unidas em Asunción, onde esteve até a eleição de 2008. “Na ONU, eu não podia ter a cara do
Paraguai, lá o trabalho devia ser independente da nacionalidade. Mas, naquele momento, o que eu mais queria era ser paraguaia, e, por isso, saí”, relembra. O nacionalismo despertado por Lugo na época de sua eleição, segundo Line Bareiro no artigo “Alternancia Político Democrática – Por fin”, estava calcado na necessidade de se recolocar o Paraguai no mapa subregional. Um dos pontos principais dessa proposta é a rediscussão do Tratado de Itaipu. Carlos Mateo Balmelli, diretor da Itaipu Binacional no Paraguai, defende a necessidade de se chegar a uma “integração energética que garanta benefícios para os dois países”. Em maio de 2009, Lugo esteve em Brasília para conversar com o presidente Lula sobre o assunto, mas nenhuma proposta foi oficializada. Balmelli acredita que a expansão dos serviços de energia elétrica é crucial para se resolver a “questão social” no Paraguai, e nesse projeto entra a mudança no acordo de criação da hidrelétrica. Sentado à mesa de reuniões de sua sala, com uma suntuosa imagem da barragem de Itaipu às costas, cita Lênin e a Revolução Russa para explicar sua premissa. “Quando perguntaram a Lênin, na Rússia revolucionária, o que deveria ser feito para solucionar a questão social do país, ele respondeu ‘eletrificando-o’, e é isso que vamos fazer aqui”. Enquanto dá goles no tererê em sua cuia de Camila Brandalise
Única favela da cidade, a Chacarita é margeada em sua extensão pelo orla da Baía de Asunción
Bia Ferrari
prata trabalhada, ele explica que ainda não se sabe exatamente quais as áreas do país não dispõem de serviços de energia elétrica, mas assegura que, para resolver esse problema, é preciso que se mude o famoso Tratado.
Voz do povo
Na época em que comprovou-se a paternidade de Lugo, a empresa Servicios Digitales realizou uma pesquisa de opinião e divulgou Ônibus antigos e com penduricalhos são uma poluição à parte na cidade que 53% dos paraguaios aprovam de Lugo, é apontada como sendo que Lugo se cale diante da violêna administração do presidente. o projeto de pior desempenho em cia contra os campesinos, já que Porém, quando questionados pon- todo o governo. “Realizar a refor- quando era bispo os defendia em tualmente sobre alguns dos pro- ma agrária é infinitamente mais passeatas. “Se ele se apoiasse no blemas do país, os paraguaios se difícil que rediscutir o Tratado de povo e escutasse sua voz poderia mostraram insatisfeitos. Sobre a Itaipu, e é o ponto mais importan- haver mudança.” redução da pobreza, 57% acrediPara Nildo Ouriques, professor ta que se fez “pouco” e 34% opida Universidade Federal de Sannam que não perceberam nenhum ta Catarina e diretor do Instituto esforço em relação a esse tipo de de Estudos Latino-Americanos mudança. As respostas são muito (IELA), a tendência de Fernansimilares para temas como saúde, do Lugo é “ser mais Lula do que educação e desemprego. Em nota Chávez”. “Antes de tudo, é preenviada à imprensa, o organizaciso que ele afirme um caráter dor da pesquisa, Roberto Emílio mais popular para o seu governo”, Etcheverry, afirma que a populaavalia Ouriques. Para o sociólogo ção em geral ainda tem esperança Ramón Fogel, por mais que Lugo na atual gestão. Para Etcheverry, te para desenvolver a economia tenha boas intenções, seus obstáa imagem de um governo perdido nacional, já que nossa base produ- culos nos poderes legislativo e jue sem rumo é apontada por uma tiva está na agricultura”, aponta o diciário são muito grandes. “Uma porcentagem mínima da popula- sociólogo Tomás Palau. aliança com setores do Partido ção. A maioria aposta em Lugo Martin Almada, militante dos Colorado é a saída mais saudável.” e acredita em um futuro melhor direitos humanos no Paraguai e Do escritório de Fogel, no centro para o país. figura bastante conhecida no país da capital paraguaia, é possível se De acordo com a pesquisa di- por suas constantes críticas ao avistar de longe a Baía de Asuncivulgada em abril, o fracasso do governo, caracteriza Lugo como ón e o Rio Paraguai. Olhando pela presidente está relacionado com “democrático e respeituoso, um janela, de frente para a paisagem, as poucas políticas públicas rea- sacerdote”. Porém, avalia o gover- Fogel termina a entrevista fazenlizadas no meio rural. Ao serem no como insuficiente. “Nós pensá- do suas próprias perguntas. “O questionados sobre o quanto ha- vamos que ia ser muito melhor”, que você esperava de mim? Que via melhorado a situação dos confessa, sentado na poltrona da lhe dissesse que está tudo bem?”, campesinos, 75% dos entrevista- sala de sua casa localizada no bair- fala, sorrindo, enquanto empurra dos responderam “pouco”, e 25% ro Sajonia, um dos mais elitizados a janela para contemplar a vista. optou pela alternativa “nada”. A de Asunción. “Durante 60 anos, “Se tem a impressão de que estacriação da Coordenação Executiva esse pais viveu à margem da lei, mos mal, não se preocupe. Sempre pela Reforma Agrária (Cepra), um e agora precisa de direção”, ava- estivemos mal, mas agora vamos dos pontos fortes da campanha lia. Para Almada, é inadmissível sair disso.”
O FRACASSO do presidente É ATRIBUÍDO Às poucas ações no campo
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Luta no campo
aS MÁQUINAS
ESTÃO PARADAS
FALTA DE RECURSOS PARALISA OBRAS DA REFORMA AGRÁRIA e ADIA SOLUÇÃO PARA QUESTÃO DA TERRA tado de San Pedro chegava a ter 52% da população abaixo da linha de pobreza. A pesquisa toma como base um critério adotado pelo Banco Mundial que caracteriza como pobre aqueles que vivem com uma renda de menos de um dólar por dia. “Eles não tem dinheiro mas não lhes falta comida, porque plantam. São o que chamamos de ‘pobre de barriga cheia’”, afirma o sociológo Tomás Palau, especialista na questão agrária. O objetivo da Coordenação Executiva para a Reforma Agrária (CEPRA), criada com o decreto nº 838 em 12 de novembro de 2008 e encabeçada por líderes de 16 áreas do governo, era levar a infra-estrutura que faltava a outros assentamentos do país. Em alguns, como em Felipe Osório, não há energia elétrica. “É incível que num país onde está a maior hidrelétrica do mundo os cidadãos careçam de energia”, brada um morador do assentamento. No Paraguai, 229.917 mil famílias, em uma média de três filhos por
mulher, vivem em assentamentos. O Brasil contabiliza 519.111 famílias assentadas, de acordo com dados do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Vale lembrar que a população paraguaia é menor que a da cidade de São Paulo. “Não há dúvidas de que houve a distribuição de terras, mas saneamento básico, escolas e postos de saúde, ou seja, a infra-estrutura básica, falta em praticamente todos os assentamentos”, explica Palau. Dada a largada do projeto do governo criado para resolver esse impasse, os trabalhos em Felipe Osório começaram ainda naquela tarde de sol. Em frente a casa da professora Ceci Jaime, foi levantada a primeira coluna para instalação da energia elétrica. Depois de os funcionários levantarem mais duas colunas e limparem a estrada de chão, as máquinas pararam. A parafernália foi entulhada no escritório mais próximo do Instituto de Desenvolvimento da Terra (Indert), a um quilômetro. “Eles disseram que acabou o combustível,
Camila Brandalise
Foi a primeira vez, nos quatro anos de existência do assentamento de Felipe Osório, a aproximados 300 quilômetros de Assunção, que autoridades do governo encararam as três horas de estrada de chão e as cinco pontes frouxas de madeira velha que ligam a cidade de Santa Rosa del Aguaray à comunidade de antigos sem-terra. Pelo caminho tortuoso não passa ninguém além de moradores do local. Talvez por isso, no dia 12 de janeiro de 2009, quando se reuniram sete autoridades do governo para oficializar o início da reforma agrária no Paraguai, a região de quase três mil hectares habitada por 246 famílias parecia ser menor pela amontoação de gente. Moradores de outras 25 comunidades do departamento de San Pedro estavam lá para conhecer a proposta de melhoria da vida no campo de Fernando Lugo, divulgada como plano de governo por ele durante sua campanha. Sob o sol forte de quase 45ºC, agricultores se amontoavam para ouvir o discurso de César Romero, representante do Ministério de Obras Públicas, e imaginar o que seria feito com os 11 milhões de dólares destinados ao projeto nacional. Segundo as palavras de Romero proferidas naquela tarde, seriam usados cinco caminhões, duas motoniveladoras, uma escavadeira e 500 litros de combustível diário para garantir, em 30 dias, uma melhoria na infra-estrutura nos três assentamentos da região, a começar por Felipe Osório. O local foi escolhido para o início das obras pois é considerado como mais pobre do país. De acordo com informe da Direção Geral de Pesquisas (Dgeec, na sigla em espanhol), em 2007 o es-
Das 229 mil famílias em assentamentos, 21% vivem em San Pedro
por isso não havia como continuar”, conta a professora, enquanto acende a vela para preparar a carne jantar. A casa de madeira tem uma pequena sala onde repousa uma galinha chocando três ovos, um quarto com uma cama de casal envolta por plástico transparente para não ficar vermelha como a terra, e uma cozinha. “Parcelamos a construção em 13 prestações e, no final deste ano, terminamos de pagar. Quando tiver mais dinheiro, quero viajar de moto para Machu Picchu, igual ao Che”, conta o marido de Ceci, Victor Sanguina, também professor do local. A escola na qual Victor leciona foi construída no meio do assentamento, que comprende uma área circular formado por cinco núcleos. Em Felipe Osório vivem 247 famílias em lotes de aproximadamente 10 hectares. Quem mora ali se conheceu algum tempo antes de 2005, ano em que o assentamento foi oficializado. No dia 29 de novembro de 2000, após uma articulação da Federação Nacional Campesina, aproximadamente 300 pessoas se juntaram para ocupar a fazenda San Vicente, na cidade de Crecencio González. A intervenção policial obrigou o grupo sem-terra a procurar outra lugar para se alojar. De carona, caminhando e tomando um e outro ônibus, eles chegaram a capital do estado, San Estanislao, e se amontoou por ali. Durante 26 dias caminharam pela cidade para chamar a atenção do governo. Não demorou muito, lhes foram entregues 2.721,96 hectares, área total de Felipe Osório. Mas, no começo, tudo era terra. Quem chegava à região naquela época encontrava um mar negro de barracões de lona. Em um deles vivia Matilde Duarte com seus dois filhos pequenos. Ela largara a vida de Testemunha de Jeová em Ciudad del Este depois de perder tudo o que tinha em três assaltos no mesmo ano e descobrir que o marido a traía. Um dia, o ex-companheiro foi procurá-la no recémcriado assentamento. Assustou-se com a situação de Matilde, vivendo em uma lona, e pediu que voltasse com ele para a cidade fronteiriça. Ela olhou para a filha de quatro
anos e respondeu negativamente. “Eu não tinha nada, a terra era o futuro para mim e, principlamente, para os meus filhos”, relembra, enquanto tira de uma pequena bolsa verde-musgo um punhado de fotografias antigas, nas quais ela aparece de vestido branco e cabelo preso com o antigo noivo no dia do casamento. Ao deixar a vida estampada nas imagens para trás, Matilde se tornou uma entre aproximadamente um milhão de pessoas que vivem em assentamentos no Paraguai.
“A terra era o futuro para mim e para os meus filhos”
Matilde Duarte
Terra perdida
Ao se entrar na estrada de chão para Felipe Osório, no caminho de aproximadamente 200 quilômetros, o desafio da redistribuição da terra se torna evidente. A cada trecho percorrido aparecem com mais frequência pequenas placas brancas afixadas em troncos finos de árvore com uma advertência: “Propriedade privada com amparo constitucional”. Surgem, vez ou outra, algumas plantações de soja que acompanham o veículo por alguns minutos, tamanha sua extensão. Mas o que mais se vê nesse caminho são o que os sem-terra chamam de “carpas”. Um metro quadrado de lona preta presa a galhos para formar uma habitação em forma de triângulo. Ali vivem famílias de, em média, cinco pessoas. Esperam por alguns hectares que acreditam lhes terem sido historicamente tomados. A história da terra no Paraguai começa a ser contada pela cultura dos índios guaranis, habitantes originários da região, cujas práticas são apontadas pela historiografia como exemplo de comunismo primitivo. A colonização espanhola - e também as missões jesuíticas - manteve, em certa medida, o modelo produtivo comuni-
tário indígena, e mais uma série de práticas culturais. Partiu do comandante espanhol Domingo Martínez de Irala a proposta de oferecer apoio militar aos guaranis em troca de suas filhas e alimentos. A forte depedência com a terra, e também a língua Guarani, falada atualmente por 86% da população, são traços traços da cultura indígena que permaneceram no cotidiano do povo. No governo de Gaspár Rodriguez de Francia (1815-1840), considerado capitalismo de Estado, os agricultores trabalhavam nas chamadas “Estancias de la Patria”. As terras paraguaias eram arrendadas aos cidadãos pelo governo, proprietário de 99% do território, mediante o pagamento de uma taxa anual pelo seu uso. Depois da chamada guerra do Paraguai, cujo final data de 1870, o Estado estava cheio de dívidas e o país vazio de população masculina, dizimada nas batalhas travadas ao longo de seis anos. A solução encontrada para aquecer a economia foi abrir as portas para o comércio internacional. Nesse mercado, a terra virou um importante produto. A constituição de 1870, elaborado sob os auspícios do então Império Brasileiro, declarava a propriedade um direito privado e inviolável. Em quatro de novembro de 1875, uma lei autorizava a venda de terras a ocupantes e a todos que se interessassem em troca de moedas em ouro e prata selada. No livro “Os sem-terra no Paraguai”, o historiador e sociólogo Quintin Riquelme considera essa sucessão de mudanças no tratamento da propriedade como o início do imbróglio da terra no país. O final do entrave envolvendo Paraguai, Uruguai, Argentina e Brasil lançou as sementes para o que hoje é uma das piores distribuições de terra da América Latina junto com a Bolívia. Segundo o último censo agropecuário de 2008, 2,5% dos proprietários concentram 85,5% das terras. “Se imaginamos o gráfico da distribuição de terras no Paraguai no qual a linha vertical é a quantidade de proprietários e a horizontal é o número médio de hectares de cada um, teremos algo parecido com
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A vida no assentamento
“Gilberto Rivas es mi nombre”, responde com um fôlego só o senhor de 68 anos, olhos azuis e tez avermelhada, um paraguaio que sempre viveu no campo e está acostumado com a falta de eletricidade. “O problema pra mim é não ter água para plantar verduras e ter que comprá-las na venda a um quilômetro daqui”, lamenta. Rivas vive em uma terra de 10 hectares com a esposa, dois filhos adultos e três crianças. Fuma três cigarros da marca Philip Morris por dia, mas, até um ano atrás, o fumo era o tabaco que plantava em sua terra. Apesar de ser o produto que “dava mais dinheiro”, desistiu do cultivo porque o trabalho não compensava a renda. Por meio de
Camila Brandalise
uma montanha-russa que sai de cima e cai bruscamente antes da metade do caminho e depois desce até quase chegar a zero, mostrando que muitos tem poucos hectares e que uma ínfima minoria tem as maiores propriedades”, explica Milda Rivarola, cientista política e autora de informes sócio-econômicos da Organização das Nações Unidas no Paraguai. Se a situação já estava ruim, Alfredo Stroessner conseguiu piorar. O ex-ditador, que bateu o recorde no continente latino-americano governando por 35 anos, usava do seu poder político para conceder terra ou facilitar a venda a seus aliados. Um amigo do regime que chegasse ao cargo de coronel sem ser dono de alguns hectares poderia ser considerado um bobo entre seus familiares, tamanha a facilidade para a concessão de propriedades. “Stroessner transfomou o Paraguai em um imenso latifúndio”, argumenta Ramon Fogel, sociólogo e autor de dezenas de livros sobre o tema. Calcula-se que, na época do ex-ditador, aproximadamente oito milhões de hectares foram cedidos ou vendidos a preços muito abaixo do valor de mercado. Desse número, cinco milhões de hectares foram vendidos a empresários e agricultores brasileiros, em uma tentativa de convocar o maior número possível de compradores estrangeiros para colonizar a região da fronteira.
Rivas repete há quatro anos a tarefa de buscar água no arroio uma iniciativa do governo, através do Serviço Nacional de Qualidade e Sanidade Vegetal e de Sementes (Senave), recebeu sementes de gergelim e começou a plantar a commoditie de maior rendimento para pequenas propriedades. O gergelim e o milho representam a maior fonte de renda dos assentados no norte do país, onde estão aproximadamente 21% das famílias de campesinos. Entre as exportações nacionais de 2008, o gergelim está em quarto com a venda de quase 15 toneladas, e as empresas japonesas são os compradores de 85% da produção. A oleaginosa foi superada pelas exportações de canola, girassol e soja, cultivados em propriedades de grande extensão. Aproximadamente 40 mil familias se dedicam ao cultivo do gergelim no pais, mas a contribuição da commoditie para a economia nacional é mínima, de acordo com informes do próprio Ministério da Agricultura. Com a baixa na demanda, por causa da crise, o preço passou de U$ 2 para U$ 0,75. A saca com 45 kg é vendida por 3.500 guaranis, ou R$ 1,56, e em 2008 o preço chegou a R$ 3,55. A plantações de milho e mandioca, alimentos que compõem a base da alimentação do povo paraguaio, também são fonte de renda além do gergelim. Mas há moradores que buscam outras alternativas além da venda da produção agrícola. É o caso da parteira Lucrécia
Acosta. Ela é procurada pelas grávidas do assentamento porque o posto de saúde mais próximo, além de ficar a mais de um quilômetro de distância, não abre em horários fixos. A senhora de 60 anos conta que nunca se deparou com complicações sérias, graças à oração de São Bartolomeu rezada antes de iniciar o parto. Sempre cumprindo o mesmo ritual, posicionando as duas mãos em torno do umbigo e pedindo ao santo que proteja mãe e filho, Lucrécia ajudou a trazer ao mundo mais de 300 crianças. Como outras senhoras do assentamento, é dona de uma vendinha de secos e molhados dentro da própria casa. Ali se pode comprar desde remédios trazidos por um “conhecido” de Ciudad del Este a pedaços de mortadela penduradas nas prateleiras. Pelos partos cobra 20 mil guaranis, cerca de dez reais, mas alega que realiza o trabalho menos pelo dinheiro que pelo prazer.
Lideranças campesinas
Nelci Rolon é o líder de Felipe Osório. Algum tempo depois do evento que marcou o início da reforma agrária, ele deixou a mulher e os seis filhos em casa e tomou um ônibus com outros 12 moradores do assentamento até a capital do departamento de San Pedro, San Estanislao. A cidade tem pouco mais de 20 mil habitantes e é o local de encontro de agricultores e sem-terra sanpe-
dranos que decidem organizar manifestações para pressionar o governo no cumprimento de alguma reivindicação. Na praça, localizada no centro da cidade, Rolon e os companheiros encontraram outros assentados para iniciar a manifestação. Assim que chegou, comprou uma chipa, especialidade paraguaia que lembra o nosso pão-de-queijo, e providenciou um tererê - água gelada tomada numa cuia com erva - para se refrescar. A estadia na praça de San Estanislao não tinha data para terminar. Os assentados ficariam ali até que alguma autoridade garantisse, pelo menos, a instalação da luz elétrica em Felipe Osório. “A maioria das nossas reivindicações são atendidas com as manifestações que realizamos”, declara, convicto, Marcial Gomes, secretário adjunto da Federação Nacional Campesina (FNC), entidade que existe desde 1986 e da qual fazem parte sete mil delegados regionais. Gomes nasceu e cresceu em uma ocupação de sem-terra e, junto com o pai, participava ainda criança de manifestações. No começo da década de 70, durante a ditadura de Stroessner, fez parte das Ligas Agrárias Camponesas. Em 1976, a organização foi perseguida por oficiais da ditadura e teve que ser desfeita. “Ou acabava o movimento ou seríamos mortos”, relata. Somente depois de 1986, a três anos do final do governo militar, o movimento camponês pôde se unificar novamente para formar a FNC. “Desse ano em diante iniciamos uma nova articulação com antigos membros”, observa Belarmino Balbuena, presidente da organização paraguaia. A sede da FNC é uma pequena construção no centro de Assunção. Balbuena, de camiseta e boné vermelhos, estampados com o logotipo da federação, apanha a cuia de tererê, dá os primeiros goles e inicia o relato sobre o início do movimento: “Em 1985, fizemos uma ocupação em Alto Paraná na qual dois companheiros foram assassinados e, a partir daí, o governo [de Stroessner] cedeu as primeiras terras, um total de 1.500 hectares”. De acordo com um informe de 2006 da ONG Via Cam-
pesina, desde que caiu a ditadura, em 1989, mais de 100 dirigentes foram assassinados em aproximadamente mil conflitos por terra em diferentes regiões do país. De 1990 até 2007, realizaram-se
“Reforma agrária no Paraguai é somente entrega de terras”
Tomás Palau
438 ocupações, 366 desalojamentos e 7.398 prisões temporárias, segundo pesquisa divulgada pelo jornal Última Hora, de Assunção. Para o engenheiro agrônomo Alfredo Plate, presidente da Comissão de Desenvolvimento Rural e Defesa da Propriedade Privada, “a anarquia das ocupações de terras” feitas por campesinos deveria ser controlada pelo governo. No governo do ex-presidente Nicanor Duarte Frutos, entre 2003 e 2008, foram entregues mais 28.840 hectares somente no departamento de San Pedro, a um custo que chegou a 58 bilhões de guaranis, ou 29 milhões de reais. “O que se chama de reforma agrária no Paraguai é somente entrega de parcelas de terras a campesinos, mas sem nenhum dos outros componentes que a efetivam”, alega o sociólogo Tomás Palau. Em San Estanislao, os manifestantes empunharam suas foices e repetiram frases como “Reforma agrária, urgente e necessária” por algumas horas, em frente à sede departamental da Administração Nacional de Eletricidade, a ANDE, para exigir a continuidade dos trabalhos e a instalação definitiva da energia elétrica em Felipe Osório. Foram embora uma semana depois com a promessa de autoridades do governo de que seria montada a estrutura necessária para garantir, pelo menos, o fornecimento de água para todo o assentamento a partir da central elétrica de abastecimento montada desde 2006. “Para nós, essa mobilização é um reclame justo”, enfatiza Felipe Aveiro, dirigente
departamental da FNC em San Pedro, que também citou a crise econômica e o baixo preço da produção agrícola no mercado mundial como temas do encontro.
Água abaixo
Um dia depois de chegar em casa, o líder Nelci Rolon estava sentado no pátio de terra em frente a sua casa, em Felipe Osório, quando um vizinho passou para cumprimentá-lo. Em tom de brincadeira, perguntou, em bom guarani, se ele havia trazido a energia. Rolon olhou para a ponta do seu sapato furado e respondeu com o sorriso amarelo de quem não sabia muito bem o que dizer. Desde a volta de San Estanislao, seguiram-se sete dias até a água ser canalizada e chegar às torneiras das casas. Porém, interruptores, lâmpadas e chuveiros ainda não funcionam. A FNC calcula que aproximadamente 40% dos assentamentos no país estejam em condições parecidas. Em San Estanislao, um representante departamental do Indert explicou aos camponeses que as obras não puderam continuar por falta de dinheiro, porque o Ministério da Fazenda, que também faz parte da Cepra, não repassou verba suficiente. Para Alberto Alderete, diretor do Indert, “a Cepra tem recursos para a reforma, só que, para isso, são necessários procedimentos administrativos como concursos e licitações, o que leva tempo, e isso não é compreensível para os campesinos, porque suas necessidades são para ontem”. Alderete afirma que o dinheiro disponível para comprar terras, sem contar os custos operacionais, é de Gs$140 bilhões, ou R$ 70 milhões. “Mas os resultados só poderão ser medidos daqui a seis meses”, pondera. Segundo um estudo publicado pela ONG Via Campesina, aproximadamente 300 mil famílias paraguaias esperam por terras. Já o Indert fala em 127 mil famílias. No Brasil, o dado é de que 225 mil estejam na mesma situação. Ainda segundo a Via Campesina, se os trabalhos no Paraguai continuarem no ritmo atual, a reforma agrária será concluída em aproximadamente 150 anos.
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Oeste
De passagem
pelo Chaco No coração da árida região ocidental do país, indígenas e religiosos esperam pela água e pela visita do presidente Às 10h da manhã de um dia atípico pelo leve frio, já que a temperatura média é de 45 graus, Severo Flores, antigo líder da maior comunidade guarani do Paraguai, entra em sua casa para fazer o desjejum. Na mesa, tortillas – uma espécie de panqueca de massa de milho frita - e pedaços de costela de porco são servidos a esse senhor de dente de ouro e botas acinzentadas pela poeira da terra. O cheiro da gordura quente infesta toda a casa de madeira. Atrás de Flores, pregado na parede, um quadro com o desenho de Jesus Cristo de mãos abertas esticadas para frente colore a cena. Pela janela, se vê a paisagem seca, o chão rachado e algumas árvores desfolhadas e tão cinzas quanto a terra. Bem-vindo ao Chaco. A inóspita região paraguaia representa 60% do território do país e compreende 2% da população
nacional. Dos 17 grupos étnicos indígenas no Paraguai, 13 vivem nessa imensa área, somando um total de 39 a 45 mil habitantes, de acordo com dados da organização não governamental “Desde el Chaco”. Cinco milhões de hectares pertenciam, antes da Guerra do Chaco (1932-35), a um só proprietário, Carlos Casado. Com o fim do embate, parte disso foi comprado pelo governo, outra, doada pelo próprio Casado às comunidades indígenas da região. Em 1941, quando Flores tinha três anos, sua família criou a comunidade guarani de Santa Teresita. “Minha mais antiga lembrança é de um carnaval guarani do qual participei, havia muita gente com os rostos pintados, cheios de plumas, dançando”, relembra Flores, olhando para o horizonte como se reconstruisse a cena na memória. Ele foi, por muitos anos, líder de
Santa Teresita. Apesar de não dar mais ordens, as decisões sempre passam por ele. Na região de sete mil hectares vivem 158 famílias. Enquanto aprecia sua refeição, Flores imagina o que falaria a Fernando Lugo se o encontrasse. “Pediria para ele nos ajudar a resolver o problema da água”, diz o indígena, taxativo. Ele soubera a pouco que Lugo visitaria os sacerdotes da casa paroquial de Mariscal Estigarribia. “Devíamos ter preparado uma carta para lhe entregar, agora é tarde.” Entre os pontos principais, a questão da água é prioridade. “Não fazemos dança da chuva, como todo mundo pensa, mas com freqüência rezamos para chover.” . A falta de precipitações garante à paisagem uma imediata associação com o sertão nordestino brasileiro. Nas quatro comunidades indígenas que fazem parte Camila Brandalise
Portas abertas, casas de tijolos e cadeiras vazias compõem cenário da maior parte da região
Camila Brandalise
do município, somente a guarani conta com um sistema de encanamento, mas que raramente funciona, porque não chove. Na comunidade indígena Nivaclé, as casas são de lona preta e os indígenas raramente têm o que comer ou beber. Quando chove, é costume todos abrirem a boca em direção ao céu e beber da chuva. Na cidade, a água subterrânea, que sai da torneira ou do chuveiro, é carregada de cloreto de sódio, e o gosto forte de sal a torna desaconselhável para o consumo.
Vida seca
Até onde alcança sua memória, Flores se lembra de uma época remota em que a temperatura era agradável e as chuvas, freqüentes. Batendo o pé no chão para mostrar a terra dura e seca, ele se entristece ao lembrar que já não se pode mais plantar as árvores frutíferas que fizeram parte de sua infância. Milho e mandioca sobreviveram, e esses cultivos são destinados à subsistência. “O Chaco não recebe muita atenção, e, para constatar isso, é só olhar para Falta de água condena a comunidade Nivaclé a esperar pela chuva o mapa e ver que em toda a região existe apenas uma e costuma responder a uma per- II, em 1988. Sentado na varanda estrada asfaltada”, critica Ricardo gunta com uma história. Quando de casa, ele aponta para a grande Morínigo, diretor da organização peço permissão para bater fo- cruz levantada em homenagem à não-governamental Tierra Viva, tografias enquanto ele está senta- visita. Na ocasião, o Papa ofereceu que presta auxílio jurídico a popdo à mesa, Flores levanta os olhos, uma missa à Santa Teresita, e o ulações indígenas para garantir o mantendo a cabeça abaixada, dá então líder se orgulha por ter sido registro de terras. “Muitas comucomo resposta um sorriso irônico o primeiro guarani a beijar sua nidades no Chaco simplesmente e começa uma história. “Uma vez mão. “Naquele dia todo mundo sadesaparecem. É uma pena porque chegaram uns yankees aqui, e bia onde ficava o Chaco, mas logo cada grupo que some é uma culassim que desceram do avião, já já nos esqueceram de novo, inclutura perdida que não pode ser recomeçaram a tirar fotos. Me per- sive o governo”. É por isso que um cuperada”, lamenta o antropólogo guntaram se vinham muitos es- encontro com o presidente seria Guillermo Sequera, que viveu em trangeiros para cá e se eles tira- tão importante para o guarani. diversas comunidades indígenas vam muitas fotos. Eu disse ‘sim, por mais de 20 anos. assim como vocês estão fazendo, Com a boca cheia “Eu sou filho da nação guarani, sem pedir permissão’.” É notória Mas Lugo estará ali somente de quando me chamam de índio, tensua impaciência com o deslumbra- passagem, para falar rapidamente ho orgulho”, brada Severo Flores, mento do homem branco no Cha- com seus antigos colegas de saccujo nome indígena ele nega em co. “Não somos alegorias”, irrita- erdócio. Antes de chegar, cumpriu revelar, alegando que “isso só inse. Um de seus maiores orgulhos agenda oficial em um evento que teressa à minha gente.” A cultura foi ter recebido o Papa João Paulo inaugura as obras de construção oral é marca forte em seu discurso,
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Camila Brandalise
juntos aqui no Chaco, ele sempre reclamava da água salgada. Depois foi para San Pedro e só saiu de lá para ser presidente”, relembra. Uma religiosa, de aparantemente 20 anos, usando saia e colete cinza, meia calça e um pano cobrindo os cabelos, confessa sua admiração por Lugo. “Ele sempre lutava com os campesinos, estava com eles nas manifestações e os apoiava nas brigas com o governo. Ficou bastante conhecido na Igreja Católica nacional pela ajuda prestada aos necessitados”, diz. Na sala de jantar, a mesa está quase pronta, repleta de pedaços de sopas A Textura rachada da terra seca lembra o nosso sertão nordestino paraguayas e chipá-guazu, de um aqueduto na cidade de Fi- guarani usada pela maioria dos ambas receitas tipicamente ladélfia, também localizada na paraguaios do país para se refer- paraguaias que têm o milho como região do Chaco. Para amenizar o ir a padres e sacerdotes, vive em ingrediente principal. impacto do clima seco, o Ministé- Mariscal Estigarribia há pouco Quando o presidente chegou, as rio de Obras Públicas e Comunica- mais de cinco anos. Costuma via- irmãs emocionadas correram para ções (MOPC) propôs a criação de jar para outras localidades próxi- abraçá-lo. Atrás dele, cinco policium aqueduto em agosto de 2008, mas para trabalhar com grupos ais militares. “Eu não disse que ele mas que, segundo a própria comis- indígenas isolados. “Já aconteceu era uma pessoa muito simples?” são de implantação da obra, é um mais de uma vez de chegarmos susurra Alfert, rindo baixinho. É resultado de 12 anos de estudos. em uma comunidade e o líder se ele quem direciona Lugo e outros Em fevereiro de 2009 o projeto ajoelhar pedindo ajuda comida e três padres a uma sala da casa foi oficializado com a presença de água”, relata. Na casa paroquial paroquial, enquanto as mulheres Lugo na cidade, principal colônia de Mariscal Estigarribia vivem continuam conversando no pátio. menonita do país. De acordo com Lopez, mais dois padres, o monse- No encontro íntimo, Lugo confesum informe da Comissão, o garan- ñor Lucio Alfert - suíço que vive sa que não faz parte do mundo da tirá o suprimento de água, vinda no Paraguai há quase 30 anos - e política, que não sabe muito bem do rio Paraguai, para os habitantes um missionário do Congo. Todos o que fazer diante dos ataques da da região central do Chaco. Mas, a os sacerdotes ali foram colegas do oposição e que seu coração ainda é princípio, a obra beneficiaria so- presidente durante seu tempo de de sacerdote. Como o encontro foi mente os moradores das cidade de trabalho na Igreja e naquele dia antes dos escândalos com filhos Filadélfia e Loma Plata, nas quais esperavam por sua visita. bastardos, nessa ocasião ele não O padre mais jovem avisa às 10 tocou no assunto. Ao ser indagado 60% da população é menonita descedentes de europeus com um sobre o Aqueduto, ele afirma que, estilo de vido ligado à religião segundo lhe foi dito, poderá haver protestante - que fundaram suas mudanças posteriores para garancolônias no Chaco paraguaio no tir que a água chegue às comunifinal da década de 1920. O desendades índigenas do Chaco central. volvimento econômico baseia-se “Mas sabemos que isso nunca vai na criação de gado, na exportação acontecer”, critica o padre López. de carne e na produção de leite, Ao final, com todos ao redor da mas a falta de água, também para mesa, o presidente se delicia com eles, é um problema. algumas sopas paraguayas, fala Carols Lopez “Dizem que querem ajudar os com a boca cheia e sorri para as indígenas, que são 80% da popufotos posadas com as irmãs. Dá lação do Chaco, mas a água vai pessoas que esperavam na varan- abraços e se despede ao entrar no para uma região onde a maioria é da que o presidente está quase carro preto da presidência que o menonita”, ressalta o padre Car- chegando. Enquanto aguardam, levará até o aeroporto da cidade – los Lopez. “Quando o presidente os religiosos sentam em torno de cuja construção, comenta-se, foi chegar, vamos conversar com ele Lúcio Alfert, que lhes conta al- financiada pelo governo estadunsobre isso. A água deve ser para gumas histórias de sua amizade idense na década de 60. A visita ao todos.” O pa’i, palavra de origem com Lugo. “Quando trabalhamos Chaco já terminou.
“A água vai para uma região onde a maioria da população é menonita”