Rio de Janeiro do Brasil. Separata 1/2018

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“QUANTOS MAIS VÃO PRECISAR MORRER PARA QUE ESSA GUERRA ACABE?” (Marielle Franco, 1979-2018)

RIO DE JANEIRO

do Brasil Chico Alencar Deputado Federal | PSOL-RJ


Marcha para Marielle e Anderson, MarĂŠ, RJ. 19/03/18. Foto: MĂ­dia Ninja


A PÁSCOA DE MARIELLE “Um pranto se ouviu em Ramá, de choro sentido e lamentação: era Raquel a chorar seus filhos, e sem querer consolo, pois eles não mais existem”. Citado em Mt, 2, 18 O lamento de Jeremias, profetizando a passagem bíblica da matança dos inocentes, não me saiu da mente desde que recebi, atônito, a notícia do trucidamento de Marielle e de Anderson. A ruptura drástica que todo assassinato sinaliza é sempre chocante e inconsolável. É preciso viver esse luto, essa perda imensa. E ainda temos que suportar um segundo atentado: os estúpidos que “justificam” o crime, disseminando o ódio contra quem luta contra preconceitos e exclusão. Nossas vidas, tão efêmeras, são um intervalo entre chegar e partir. Há aqueles que fazem dessa viagem um facho de luz: semeiam justiça, igualdade, solidariedade. Assim foram Anderson e Marielle. Nossa irmã tão generosa e batalhadora tinha exata noção da igualdade radical entre todos os seres humanos. Foi eliminada porque nunca deixou de clamar contra a bárbara eliminação de tantos cuja dor não sai nos jornais. Foi voz dos que não têm voz, por isso a silenciaram. Marielle foi vítima de morte tão precoce por amar demais a vida, sua gente, sua terra, nosso mundo. Mia Couto disse, com espanto, que “morto amado nunca mais para de morrer”. Cecília Meirelles foi ainda mais sábia: “Pousa sobre esses espetáculos infatigáveis/ uma sonora ou silenciosa canção:/ flor do espírito, desinteressada e efêmera./ Por ela, os homens te conhecerão./ Por ela, os tempos versáteis saberão/ que o mundo ficou mais belo, ainda que inutilmente,/ quando por ele andou teu coração”. Marielle e Anderson vivem! Junto com eles, enxugando as lágrimas, continuaremos a clamar: Quem? Por quê? Para quê? A resposta será a senda para a superação das trevas, caminho para uma nação justa e fraterna. Marielle e Anderson são páscoa, passagem da cruz para a luz. Travessia.

Leia a íntegra deste texto em: bit.ly/PascoaMarielle


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ÍNDICE I. UMA REFLEXÃO SOBRE A INTERVENÇÃO MILITAR NO RIO DE JANEIRO PAG. 7 II. UM ESTADO AINDA EM FORMAÇÃO PAG. 19 III. A CRISE DO RIO É A CRISE DO BRASIL PAG. 32 IV. INICIATIVAS LEGISLATIVAS PAG. 40

Tiragem: 4.280 exemplares Cota: 119.000 Capa: Thiago Vilela Arte e diagramação: Thiago Vilela


A TAREFA PARLAMENTAR É FISCALIZAR A intervenção está decretada e em curso. Cabe à sociedade fiscalizar. Compete também aos parlamentares acompanhar de perto. Por mais que o conceito de militarização se oponha, por tradição, à transparência e ao controle social, estes são princípios republicanos dos quais não podemos abrir mão. Temer consulta dia sim dia não institutos de pesquisa, para ver se seus índices de popularidade subiram. Até cogita se candidatar à presidência... “A vela está sendo esticada e começou a bater um ventinho. Se der certo, até o vampirão da Tuiuti pode virar um atributo positivo”, delira seu marqueteiro, Elsinho Mouco - que parece não ouvir o clamor das ruas. Com o discurso do combate ao crime organizado, o governo espera que as investigações dos crimes dos quais seus integrantes são acusados – a começar por Temer – sejam esquecidas. O Planalto está muito mais preocupado com votos do que com vidas. A intervenção mais duradoura e efetiva para o nosso maltratado Rio de Janeiro é a da população consciente. Só ela consegue quebrar o poder do crime, inclusive o oficial. A plataforma participativa “Se o Estado do Rio fosse nosso” é um chamamento a você, em qualquer lugar do nosso Rio de Janeiro. Traga suas ideias, sugira e construa conosco novos rumos! Em memória da nossa amada Marielle e de tanta(o)s cujo direito de viver foi roubado covardemente. Acesse agora mesmo: www.seoestadodoriofossenosso.com.br


1. UMA REFLEXÃO SOBRE A

INTERVENÇÃO MILITAR NO RIO DE JANEIRO

SENTIMENTO DE MEDO: é compreensível que muitas pessoas acreditem na intervenção militar para solucionar os problemas da Segurança Pública do Rio de Janeiro. Afinal, predomina o sentimento de que “como está não dá mais” e de que “é preciso fazer alguma coisa”. O discurso do pavor e de medidas extremadas ecoa na população desamparada. MEDIDA ELEITOREIRA: é, de fato, necessário “fazer algo forte”. Mas isso não passa pelo que Michel Temer decretou. Sua medida é político-eleitoral e tem um viés publicitário. As Forças Armadas aceitaram como “missão a ser cumprida”. O teatro de guerra visa criar a “sensação de segurança”, que vai embora junto com os blindados. Nada de estrutural, de profundo, de substantivo – que é o realmente necessário. PACTO DE DEGENERADOS: o Rio de Janeiro foi escolhido como laboratório da medida mais extremada por razões que vão além da inegável falência da política de segurança. Tudo aqui reverbera muito mais do que em qualquer outro estado com indicadores até mais letais. É bom lembrar que Moreira Franco, um dos principais artífices da intervenção no Rio e investigado pela Lava Jato, é também o articulador da “renovação” do combalido MDB no estado, que está com toda sua cúpula presa. Moreira foi eleito governador do Rio em 1986 com a promessa de “acabar com a violência em seis meses”. Teve, em seu mandato, aumento de 51% nos homicídios. Sair da impopular pauta da Previdência e redirecionar o debate nacional para a questão da insegurança, magnificando o discurso do medo, foi uma jogada ardilosa. E de risco, claro.

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Velรณrio de Marielle e Anderson. RJ. Foto: Ricardo Borges/FolhaPress


MOLDURA DA HIPOCRISIA: decretou-se, também, intervenção do MDB federal no MDB estadual, em acerto de bastidores para que toda a lama do conluio produzida há anos seja esquecida. Afinal, o MDB, que afundou e faliu o Rio de Janeiro, deixando de pagar servidores, corrompendo o Tribunal de Contas, vai ser o redentor do que destruiu? Como escreveu o cidadão Otávio de Queiroz, no Painel do Leitor da FSP (18.2.18), fomos obrigados a ouvir “o discurso sobre o crime organizado e as quadrilhas que tomaram conta do Rio vindo de um presidente investigado exatamente por suspeita de formação de quadrilha e corrupção”. A mão que rouba é a mesma que se outorga o direito de colocar algemas... Pezão, cria de Cabral, não governa mais, pois já não tem mais qualquer condição de administrar. Seu parceiro Temer, com sua junta de suspeitos, tem? MILITARES RETICENTES: em sincera avaliação da presença militar no conjunto de favelas da Maré, o comandante do Exército, general Villas Bôas, em Comissão do Senado, afirmou que “esse modelo de emprego é desgastante, perigoso e inócuo”. O próprio general interventor, Braga Netto, lacônico, só declarou que “ainda vai iniciar a etapa de planejamento” e minimizou a situação da violência no Rio como fruto de “muita mídia”. O novo “governador” militar do RJ sabe que, no trágico ranking dos homicídios no país, o estado agora sob sua responsabilidade ocupa a 12ª posição... DESPREPARO: a intervenção é questionada por vários comandantes militares, visto que as FFAA não têm preparo para este tipo de atuação. Isso é tão flagrante que as chefias demandaram um inaceitável “foro privilegiado” para seus eventuais crimes. Tal privilégio já está garantido em lei, com tribunais militares julgando membros das FFAA que forem acusados de crimes contra civis. JÁ VIMOS ESSE FILME: há um ciclo vicioso na presença militar: de início, os grupos armados do banditismo recuam, se retraem um pouco para avaliar a nova situação. Isso cria uma sensação de apaziguamento – que o governo, na sua demagogia eleitoreira, 10


espera que dure até outubro. Depois, com a banalização do patrulhamento bélico, e os ataques apenas ao varejo da droga, e não aos grandes traficantes, é retomado o mercado da propina, do “arrego”, ainda que com mais discrição. Por fim, a intervenção acaba e tudo volta ao que era antes. MILITARIZAÇÃO X MODERNIZAÇÃO: talvez intuitivamente, ou no aprendizado prático, os oficiais tenham percebido o que muitos estudiosos do tema Segurança vêm dizendo há tempos, a partir da realidade brasileira e mundial: “a militarização da Segurança vai no sentido contrário da modernização desejada para o sistema de Justiça Criminal, que compreende polícias, Ministério Público, Judiciário e sistema penitenciário” (Michel Misse, sociólogo, coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da UFRJ – FSP, 18.2.2018) Sobra sempre para os mais pobres: o governo considerou mandados de busca e apreensão COLETIVOS. É o aval para o pé na porta dos moradores das comunidades onde o Poder Público chega sobretudo como repressão. É o estado de exceção nas favelas. Na Vila Kennedy, a Secretaria de Ordem Pública da Prefeitura, na esteira da presença militar, destruiu mais de 30 quioques de trabalhadores. Ação criminosa a céu aberto! SEM PREVISÃO ORÇAMENTÁRIA: ninguém sabe ao certo quanto custará: três, quatro bilhões? O governo da “austeridade fiscal” (para os de baixo) não tem ideia do total de recursos necessários e de onde virão. Apenas na Maré, a intervenção custou aos cofres públicos R$ 372 milhões e não alterou em absolutamente nada a situação nas favelas. O domínio de facções criminosas e do tráfico armado permaneceu. Tão logo as patrulhas do Exército saíram, todos voltaram aos seus postos de mando. Curioso que o governo que bloqueou investimentos sociais por 20 anos vai liberar recursos... não para as estruturantes áreas sociais, e sim para o equipamento bélico. A manchete do diário popular Meia Hora (próxima página), é emblemática. 11


Capa do Jornal Meia Hora, 17/02/2018

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NÃO HÁ BALANÇO DO JÁ FEITO: além da falta de qualquer preparo e planejamento, a intervenção dispensa outro elemento essencial: o balanço das ações anteriores, a publicização de seus relatórios de eficiência e efetividade – se é que existem. Desde a Rio-92 as FFAA, sobretudo o Exército, têm sido empregadas na Segurança do RJ. As ações de GLO no Brasil foram 29, de 2010 até aqui. Nada foi avaliado, ao menos que seja do conhecimento da sociedade, a cuja proteção essa presença supostamente se destina. Mais: como disse o jornalista Kennedy Alencar, “não há nada que uma intervenção federal possa fazer que seja diferente do que poderia ser realizado por um gabinete de crise integrado entre o governo federal e o estado do Rio, com trabalho combinado entre polícias, Força Nacional e Forças Armadas”. BANDAS PODRES: em novembro do ano passado, o esvaziado Ministro Torquato Jardim fez uma declaração bombástica: “o governo do estado do RJ não combate a corrupção na PM”. Foi um Deus nos acuda. Sabe-se que nas forças policiais do estado há uma chamada “banda podre”. O general, no esperado enquadramento da tropa, vai confrontá-la? Sua antípoda será agora “o correto policial durão, que mata sem perdão”? A imprescindível mudança na formação e cultura dos policiais não acontece da noite para o dia, nem obedece ao calendário eleitoral. Também não será obra de um líder único, “homem de aço”, em um “sebastianismo salvacionista” que dispensa o concurso de outros órgãos. Precisamos de uma polícia democrática, de proximidade, comunitária. CRIME ORGANIZADO POR DENTRO DO ESTADO: como disse Jaqueline Muniz, socióloga e ex-integrante do Instituto de Segurança Pública, em contundente entrevista à Globonews, sábado, 17/08, “não há crime organizado sem chancela, conivência e conveniência de setores do Estado”. São esses setores que “se acertam” com os barões da droga, com os milicianos, com todo o chamado “poder paralelo”, que de paralelo tem muito pouco. Ele ocupa palácios do Executivo e do Legislativo, busca influir no Judiciário, 13


financia campanhas, voa em helicópteros e jatos de poderosos. O PCC é uma organização centralizada, “racional”, com unidade de comando, que amplia sua atuação nacional. No Rio, as franquias do tráfico de drogas ilícitas e armas são territorializadas, divididas e, portanto, mais frágeis. Quem sairá ganhando depois da nova “guerra” que se anuncia? INICIATIVAS JOGADAS FORA: o que o natimorto Plano Integrado de Segurança Pública do RJ e os PNSP dizem a respeito? O que será feito com os resultados de um seminário realizado em janeiro, na FIRJAN, com as bênçãos do Viva Rio, a participação da PM, do Ministro da Defesa e outras altas autoridades, que nem suspeitavam da intervenção (ou cinicamente a escondiam)? Para que lata do lixo irá o TAC do MPE que cobra, há quase dois anos, junto com a Defensoria Pública, uma reestruturação total das polícias? TERCEIRIZAÇÃO DA SEGURANÇA: as “alternativas” privatizantes, tipo Lapa Presente ou Aterro Presente, são uma perigosa terceirização da Segurança, dever do estado e direito da população. Como são financiadas por empresários, não prestam contas, exceto a eles. Campo propício a exorbitâncias. Leia a íntegra deste texto em: bit.ly/IntervencaoRio

“A corrupção policial é, em regra, desdobramento da corrupção política. Se a intervenção é para enfrentar o crime organizado, crime organizado no Rio é o MDB. Favela nunca teve crime organizado. Ao contrário, é anárquico. A única chance desses garotos passarem dos 24 anos é serem presos. Se não morrem. Em conflitos com outros criminosos, na mão da polícia. Quer saber quem manda na favela? Vê quem tem voto ali.” - Delegado Vinicius George, programa Faixa Livre, AM, citado em artigo de Marco Canônico, Folha de São Paulo, 01/03/18.

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PROPOSTAS DE IMPLANTAÇÃO IMEDIATA O NÃO à essa intervenção perigosa, sobretudo para os moradores das comunidades pobres, exige também um SIM às alternativas de políticas públicas que governos democráticos e legítimos, comprometidos com o povo, deveriam implementar: 1. Metas para o imediato desarmamento de grupos armados, como milicianos e traficantes, com forte e integrado combate ao contrabando e desvio de armas e munições, e sua recaptura; 2. Novo modelo de gestão das polícias, com reestruturação, unificação e combate à corrupção interna, com prioridade para inteligência e prevenção; 3. Melhoria da sua formação, qualificando a investigação criminal e aperfeiçoando a polícia técnica, além da óbvia remuneração decente e paga em dia; 4. Criação de ouvidorias independentes, inclusive na Polícia Federal; 5. Plano progressivo de redução de homicídios, a partir de dados e estudos do ISP e Fórum Brasileiro de Segurança Pública; 6. Constituição de Forças-Tarefa para ações em áreas mais violentas, sempre com a participação do MP e DP; 7. Reformulação total da política prisional, com o início de um programa para penitenciárias menores, com efetiva estratégia de ressocialização pelo estudo e pelo trabalho; e seu desafogo com mutirões das Varas de Execuções Penais (mais de 30% dos internos já cumpriu a pena); 8. Debate nacional por uma nova política de drogas, constatado o fiasco mundial da “guerra”, do enfrentamento bélico; 9. Revitalização de programas sociais, culturais e de postos de trabalhos, especialmente junto à juventude mais abandonada e vulnerável (CF PL9762/18, da bancada do PSOL). 10. Relatórios públicos e trimestrais das ações realizadas, expondo com números fidedignos o que foi atingido e o que não foi alcançado. 15



Operação militar na Vila Keneddy, RJ. Foto: Alan Lima/El País


Castigo de escravo. Jean-Baptiste Debret (1768-1848)

Enseada de Botafogo, RJ. Johann Moritz Rugendas (1802-1858)

Centro do Rio. Jean-Baptiste Debret (1768-1848)


II. UM ESTADO AINDA EM FORMAÇÃO

O Estado do Rio de Janeiro, como tal, foi criado em 1/3/1975. Somos uma jovem unidade da Federação de 43 anos, resultante da fusão do antigo Estado do Rio com a finada Guanabara, imposta pelo regime autoritário oriundo do golpe civil-militar. Só temos área maior que Distrito Federal, Sergipe e Alagoas. Demograficamente, porém, é o inverso: com 16.718.956 habitantes (IBGE, 2017), temos a terceira maior população dentre os estados brasileiros, só superados por São Paulo e Minas Gerais. POVO X ELITES A política no Rio de Janeiro é um quebra-cabeça de peças desencontradas. O cerne do mistério é o descompasso (quase divórcio) entre a maneira como o povo participa do fato político e, do outro lado, a bitola estreita onde as classes dominantes insistem em conservar as instituições formais do poder político. Povo rebelde e instituições conservadoras: em face dessa combinação tumultuária, os donos do poder estão sempre ocupados em reconstruir uma “muralha chinesa” para separar, de um lado, a turbulência cidadã e, do outro, a “sereníssima república”. O resultado é o descompasso, sempre recolocado, entre a lógica que anima o tecido societário e a que governa a renovação do domínio político conservador. No limite, os de cima não conseguem governar e os de baixo, revoltados, não conseguem revolucionar... A política convencional nunca consegue acertar o passo com a cidadania fluminense. Daí a sequência de mudanças bruscas em nossa estrutura jurídico-política, sempre de cima para baixo, no atropelo, sem aviso prévio, desatenta aos anseios do povo. 19


Nascemos colônia de um estado burocrático que, pela distribuição de punições e privilégios, busca ordenar a seu serviço uma sociedade ainda embrionária. Os nutrientes da placenta colonial impregnaram a formação do patronato político. Quase todos os estudiosos mais importantes da nossa “formação” - Caio Prado, Florestan Fernandes, Sérgio Buarque, Raymundo Faoro, Celso Furtado, entre outros - chamaram atenção para a presença incômoda deste fato primordial. Imaginem o transtorno que foi, em 1808, a chegada da família real no cais da Praça XV. Estavam fugindo de Napoleão Bonaparte e transformaram a pequena vila de São Sebastião do Rio de Janeiro em capital do imenso “Reino Unido Brasil-Portugal”. O “PR”, de poder real, escrito nas casas a serem ocupadas pelos nobres, foi lido pelo sarcasmo popular como “ponha-se na rua”. A Corte aqui estabelecida fundiu o público e o privado. D. João VI distribuiu centenas de títulos de nobreza, em troca de sustentação da realeza. Sede da corte e do baronato no Império e, depois, Capital Federal de uma República que ainda não conseguiu fazer jus ao nome, o Rio até hoje carrega na sua política algumas destas marcas de nascença. OS INSUBORDINADOS Grandes acontecimentos da história do Brasil, no período imperial e no republicano, se desenrolaram em nosso território. No final do século XIX, o Rio, capital do Império, tinha cerca de 235 mil habitantes, dos quais 50 mil eram pessoas escravizadas e outros tantos muito pobres, na linha da miséria. Milhares de brancos, mestiços e negros livres – estima-se em 100 mil seres humanos – trabalhavam 12, 14 horas diárias. E em troca de salários que mal davam para a sobrevivência. Quase toda essa massa morava em habitações coletivas, os cortiços ou casas de cômodo. Com esse cenário humano explosivo, o governo do Império deu um “presente de ano novo”, no primeiro dia de 1880, para a população: aumentou as passagens dos bondes em 20 réis. A reação 20


popular foi imediata: quatro mil pessoas foram até a Quinta da Boa Vista protestar, levando um “Manifesto ao Imperador”. A cavalaria atacou os manifestantes no Campo de São Cristóvão, e o povo reagiu com pedras, arrancando trilhos e quebrando bondes. A Revolta do Vintém durou quatro dias e só terminou quando o Exército ocupou a cidade-capital. O saldo macabro: dez populares mortos. Pedro II, do palácio, distante do sofrimento da praça, lamentou-se: “há quase quarenta anos presido esse governo, sem que houvesse necessidade de atirar no povo. Mas que remédio? A lei tem que ser respeitada”. Sua Majestade esqueceu das rebeliões populares que reprimiu, como a Praieira, em Pernambuco, a Sabinada, na Bahia, a Balaiada, no Maranhão... Em 1904, já na República, de novo o Rio rebelou-se, contra a vacinação obrigatória da política sanitária de Oswaldo Cruz. A situação de miséria de muitos foi o caldo de cultura para a agitação, que juntou operários, estudantes, militares e líderes anarquistas em comícios no centro da cidade. De novo a cavalaria reprimiu com rigor, provocando um quebra-quebra jamais visto na cidade, estendendo-se para as zonas norte e sul, atingindo bondes, barcas, prédios do governo, delegacias e postos sanitários. Barricadas foram erguidas. A Revolta da Vacina ou do Quebra-Lampiões resultou em 23 mortos e 67 feridos. Foram presas 945 pessoas, muitas deportadas e submetidas a trabalhos forçados no Acre. Aqui também aconteceram episódios marcantes da história das classes vencedoras: na Praça XV, a abolição da escravatura e, nas proximidades da Praça XI, no Campo de Santana, a proclamação da República. “Há muito tempo nas águas da Guanabara/ o Dragão do Mar reapareceu...”. O maravilhoso samba de Aldir Blanc e João Bosco, imortalizado na voz de Elis Regina, também fala de outro levante popular potente: a Revolta da Chibata. Em novembro de 1910, dois mil marinheiros dos encouraçados Minas Gerais e São Paulo, liderados por João Cândido, o Almirante Negro, amotinaram-se contra as torturas que sofriam quase que diariamente: “o governo tem que acabar com os castigos corporais, melhorar nossa comida 21


e dar anistia a todos os revoltosos. Se não a gente bombardeia a cidade, dentro de 12 horas”. O governo, pego de surpresa, aceitou as exigências. Quando a marujada depôs armas, veio a traição, a prisão dos rebeldes, a violenta repressão. Levados para a ilha das Cobras, 15 líderes morreram asfixiados. VITRINE QUEBRADA Com a mudança da capital da República para Brasília, apareceu a Guanabara, uma cidade-estado, capital de si mesma. Depois, nos tempos da ditadura, para punir a teimosia oposicionista dos cariocas e fluminenses, os militares de 64 impuseram, com a fusão, a recomposição forçada do Estado do Rio. Mais uma vez, o estatuto jurídico da nossa institucionalidade fora alterado por decreto, expressão nova da crise crônica da nossa “ordem”. A cidade do Rio não era mais Estado, nem capital da República, nem sede da Corte, mas capital do novo estado incorporado. Com a ditadura civil-militar o descompasso se ampliou. O Rio de Janeiro foi submetido a um tratamento de choque continuado pelo regime autoritário. A violência repressiva se abateu de maneira meticulosa sobre os setores da esquerda e dos movimentos populares. Essa situação, associada ao processo de esvaziamento econômico, provocou o refluxo momentâneo dos movimentos sociais e abastardamento ainda maior da vida política. O vazio provocado pela repressão sistemática aos lutadores da resistência democrática abriu espaços para que os papéis principais da política institucional fossem ocupados por atores secundários, fazendo emergir para o primeiro plano o chamado “intestino grosso da pequena política”. A ditadura, no entanto, nunca conseguiu ganhar eleições no Rio de Janeiro. A ARENA, partido do poder, minguava de votos a cada eleição; e o MDB, única oposição institucional, combinava a condição de depositário do voto popular e linha auxiliar do autoritarismo. Com essa situação, a cidadania fluminense foi se transportando, aos poucos, para o imediatamente social. Assim, o Rio conheceu, 22


neste período, a emergência de importantíssimos movimentos sociais urbanos: de moradores (a FAFERJ e a FAMERJ foram uma extraordinária novidade política), feministas (o Centro da Mulher Brasileira foi seminal na luta das mulheres), sindicais e associativos profissionais (Associações de Docentes nas Universidades), ecológicos e culturais. A luta de rua contra o regime militar realizou no solo fluminense as suas mais importantes manifestações de massa: a Passeata dos Cem Mil, a Campanha pela Anistia, os Comícios das Diretas Já. A mobilização social crescente nas lutas pela reconquista das liberdades democráticas, ao mesmo tempo em que propiciou o surgimento de uma miríade de novos agentes políticos transformadores, alargou o descompasso com os aparelhos da política convencional, partidos e poderes que continuaram empenhados na manutenção do compromisso conservador. Com o esgotamento do regime militar e o retorno da democracia formal, o fantasma desencarnado da cidadania continuou pregando peças. Brizola voltou do exílio falando em socialismo moreno, resgatou a identidade da aliança socialistatrabalhista, que polarizara a política do Rio no pré-64, e ganhou nos debates a primeira eleição direta do novo ciclo. Governou duas vezes (o intervalo Moreira Franco nem conta, não conseguiu sobreviver à sua própria duração), nomeou e depois elegeu os dois primeiros prefeitos, na capital, por via direta. O brizolismo, por um certo período, conquistou enorme simpatia popular, mas frustrou anseios de mudança nele depositados. No exercício do governo, não conseguiu romper com a lógica convencional. Fez aliança com os remanescentes reciclados do chaguismo e com o esquema Nader no segundo governo, ao mesmo tempo em que operou para cooptar os movimentos sociais, com especial empenho na área do originalíssimo movimento de moradores. Este carregava, na época, enorme potencial de renovação política. Foi uma transição intransitiva: saímos da ditadura, mas o protagonismo popular, capaz de fechar o circuito de uma mudança radical na política, não veio. 23


O declínio da hegemonia pedetista coincide com a emergência avassaladora do pensamento único neoliberal e com a “onganização” despolitizada dos movimentos sociais. Assim, seus herdeiros (César Maia, Marcelo Alencar, Garotinho) passam a disputar a condição de líderes do conservadorismo. Abre-se um período marcado pelo embaralhamento contínuo das cartas na política. Um troca-troca infernal, onde é raro o candidato majoritário disputar duas eleições pelo mesmo partido. A fragmentação permanente inviabiliza a construção de lealdades políticas capazes de sobreviver ao evento do voto. O abastardamento da representação política, somado ao refluxo dos movimentos sociais, arrasta a política para o beco sem saída, onde o desespero do povo alimenta as formas pré-políticas da violência social. CENÁRIO SOMBRIO A velha direita, que amargara no período pós-ditadura uma fase de relativa desarticulação, se recompõe em amálgama com uma “nova direita”, formada por quadros que se fizeram na esquerda e se converteram em aguerridos defensores do novo ideário dominante. A crise e a desarticulação dos movimentos sociais, ao enfraquecer o impulso renovador vindo da sociedade, trouxe como contrapartida a retomada da ofensiva de um novo autoritarismo. A ideia da autoridade forte que, a partir do aparelho repressivo e distribuidor de migalhas, ordena e disciplina o funcionamento do organismo social, recuperou condições de se manifestar na superfície da política. Ganhou parcelas consideráveis da classe média e arrebanhou os setores populares aprisionados nos currais compensatórios. O pressuposto neoliberal do estado mínimo, o desmantelamento dos direitos e dos serviços públicos essenciais, a aceitação tácita da “apartação social” e seu tratamento como um caso de polícia, que criminaliza a pobreza, são elementos centrais do discurso da nova direita. As grandes máquinas eleitorais que avassalaram a política institucional no período em pauta (o esquema Maia, o esquema 24


Garotinho, o esquema Cabral) estão todas metidas neste pântano. No Executivo se governa para intermediar negócios. Há denúncias no Judiciário de quem venda sentenças e o Legislativo é o viveiro da pequena política. Uma simples olhadela na galeria de retratos dos presidentes da ALERJ, do chaguismo até agora (Jorge Leite, Gilberto Rodrigues, Nader, Cabral, Picciani) fala mais alto do que qualquer sociologia. O PT, que por muito tempo abrigou as esperanças de mudança na política, embarcou no bonde do poder e sentou na janelinha. Aqui no Rio o partido já se atolara no lodo do governo Garotinho, fechando um ciclo como promessa não cumprida, prisioneiro da subalternidade aos ditames da ordem estabelecida. 25


Como espinho cravado na ferida, o descompasso construído ao longo da história segue governando os desacertos da política do Rio de Janeiro. Estamos vivendo mais uma página infeliz da nossa história. A intervenção político-militar promovida pelo governo ilegítimo do presidente postiço é a mais nova expressão da crise crônica das nossas instituições. PARA DAR A VOLTA POR CIMA Como nos tempos mais terríveis da ditadura, a cidadania fluminense começa a se aperceber que só a reativação de suas próprias forças pode nos retirar do pântano que desmoraliza instituições e apequena a política. O anseio de mudança precisa voltar a agitar a superfície dos acontecimentos, e para isso o caminho é a retomada do protagonismo popular. Essa é a única maneira de conjurar a crise política, mãe de todas as demais crises (econômica, social, moral, de destino). O sindicalismo combativo precisa voltar a fazer assembleias massivas e, embaixo da crosta cristalizada dos sindicatos acomodados, projetar novas lideranças. As manifestações unitárias contra o modelo econômico excludente e o padrão corrompido de política precisam voltar a fechar largas avenidas. Conselhos populares, ainda pequenos e embrionários, precisam agitar e se reunir nos bairros e favelas, contra a violência e pelo respeito aos direitos. As juventudes dos mais variados territórios precisam reafirmar sua condição de futuro do mundo. São como pequenos motores de arranque, que sempre antecedem ao motor grande que muda o jogo da política. 26

Construir vínculos e unificar estas manifestações é a tarefa política que se coloca para o PSOL e para todos os que aspiram mudar a política no Rio de Janeiro. Esta tarefa, pela magnitude, não pode ser obra de um único partido político, nem só de partidos.


Precisamos estreitar a unidade de ação com os partidos de luta que já estiveram conosco em outras disputas. Estimular a vinda para o campo da luta popular de segmentos combativos ainda desgarrados dele. Conclamar as novas lideranças que surgem nos movimentos sociais para a busca comum de novas alternativas. A construção da alternativa popular só terá êxito se conseguir envolver, desde a sua elaboração, um amplo leque de agentes políticos, partidários e não partidários, interessados na luta comum para barrar a tragédia social que emana da presente investida conservadora. Isto implica, portanto, uma concepção ampla da política de alianças. Aliança montada na nitidez de projeto, que não se reduza a uma questão de tática eleitoral, nem se limite a uma composição entre partidos políticos. Trata-se de afirmar uma coalizão de forças políticas e sociais voltada para um objetivo estratégico: a construção de um movimento político plural, capaz de operar sintonizado com a luta por mudanças profundas em nossa vida social. Partidos políticos, frações que se desgarrem de partidos políticos, organizações não-governamentais de luta, movimentos sociais e culturais de diferentes natureza e procedência, personalidades de projeção na vida cultural, intelectuais identificados com a forte cultura popular carioca e fluminense, entre outros, devem ser envolvidos neste processo. O nascente PSOL reúne condições para ser um dos catalisadores deste processo de construção coletiva. Pela presença de seus militantes nos movimentos sociais, pela influência junto a setores da intelectualidade técnica e cultural do nosso Estado, pela organicidade de suas instâncias de base, pela capacidade política dos seus quadros dirigentes e de suas aguerridas bancadas parlamentares, o partido, desde que consiga elaborar uma proposta adequada, pode ser um pólo ativo na construção da alternativa popular capaz de mudar a política do Rio de Janeiro.

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Prestação de contas semanal no Buraco do Lume, centro do Rio de Janeiro. (23/03/2018) Foto: Arquivo do Mandato

Mônica, companheira de Marielle, à esquerda; e Anielle, irmã, à direita. Sessão solene em homenagem ao Dia Internacional da Verdade. (22/03/2018) Foto: Thiago Vilela (Equipe)

Chico (com seu neto, Bento), no ato por Anderson e Marielle. (16/03/2018) Foto: Arquivo do Mandato

Marielle no lançamento da biografia do Chico, em 2017. Foto: Arquivo do Mandato. Nossa querida e luminosa vereadora teve, como tanta(o)s, o seu direito à vida biográfica brutalmente ceifado.


Para elaborar tal proposta, o partido precisa ter clareza em duas questões fundamentais. A primazia agora é para o esforço de politização e reativação dos movimentos sociais. Em segundo lugar: a nossa proposta não é um ponto de chegada, mas um ponto de partida.

Com ele, vamos interpelar os diferentes e os indiferentes, outros agentes ativos da política renovadora, partidários e não partidários, num movimento amplo, capaz de reunir força e substância política para estancar e derrotar a investida conservadora.

Só a construção preliminar de um amplo movimento de cidadania abre espaços para a participação popular. Na construção autônoma de seus movimentos e na disputa do poder institucional, colocando tais espaços na bitola larga do protagonismo popular. Este é o caminho para decifrar o enigma e mudar os rumos da política no Rio de Janeiro: repolitizar o conjunto dos movimentos sociais na luta contra o desmonte dos direitos sociais e dos serviços públicos essenciais, na saúde, educação e segurança, patrocinado pela tragédia neoliberal. Superar o descompasso e recompor o ímpeto de mudança que lateja nos movimentos e na cultura do nosso povo. Achar saídas e, sintonizado com as melhores tradições da massa popular do Rio de Janeiro, colocar as estruturas do poder político a serviço de uma nova alternativa, onde as maiorias sociais possam se constituir como maiorias políticas. Leia a íntegra deste texto em: bit.ly/EstadoEmFormacao

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PARA UMA NOVA ORDEM ECONÔMICA Frente à crise, propomos os seguintes eixos, no campo estritamente econômico: - crescimento associado e impulsionado à distribuição de renda e riqueza e à criação de empregos estáveis; - reformas nos planos tributário e fiscal, com o objetivo de arrecadar intensivamente dos mais ricos e dirigir gastos diretos e indiretos – através de serviços públicos universais, de alta qualidade e intensivos em mão de obra – à maioria da população; - redefinição do pacto federativo, com uma nova distribuição de recursos entre as esferas da União, dos estados e dos municípios, de acordo com as responsabilidades desses entes frente às suas obrigações constitucionais; - Reindustrialização do país, com base em novas tecnologias, respeito ao meio ambiente e redefinição do papel das multinacionais e grupos econômicos oligopolistas, em relação ao processo produtivo de interesse da maioria dos trabalhadores; - reforma administrativa do Estado, fortalecendo a profissionalização e especialização de trabalhadores públicos em carreiras estáveis e permanentes e a definição de mecanismos de controle popular em relação à gestão de empresas estatais e na prestação de serviços públicos;


- ampla reforma financeira, buscando adequar o país a um novo ambiente macroeconômico, favorável à produção, ao emprego e de desestímulo à especulação financeira; - redefinição de um plano para a infraestrutura do país – energia, transportes e telecomunicações – buscando recuperar o pleno controle nacional sobre esses setores; - redefinição de um plano de ampla reforma agrária e agrícola no país, em conjunto com os movimentos sociais de luta pela terra e a partir da realidade imposta pelo agronegócio no país, voltado à exportação e de base tecnológica agressiva ao meio-ambiente, aos solos e à saúde humana; - implantação de um massivo plano de reforma urbana, com o objetivo de superar o drama da carência de moradias dignas e de qualidade para seis milhões de famílias, hoje carentes do direito elementar da habitação, com condições sanitárias. Todas essas iniciativas implicarão revogar o conjunto de medidas de Temer aprovadas recentemente pelo Congresso Nacional. Exigirão, igualmente, a superação do modelo macroeconômico baseado na liberalização financeira dos anos 1990.


III. A CRISE DO RIO É A CRISE DO BRASIL

Desde 2014 enfrentamos uma grave crise econômica, de dimensão inédita em nossa história. Entre os anos de 2015 e 2016 sofremos uma queda do PIB de 7,5% (retração de 3,8%, em 2015, e 3,6%, em 2016). Para uma comparação histórica, nos anos de 1930/1931, como consequência da famosa crise de 1929, o recuo da economia brasileira foi de apenas 5,5%. O que nos levou a isso? Uma resposta, possível mas limitada, atribui a responsabilidade desse quadro aos erros de condução da política econômica dos governos de Dilma, tanto no seu primeiro mandato, como especialmente às decisões assumidas logo após a sua reeleição em 2014. De fato, as medidas tomadas após as eleições daquele ano empurraram o país para a recessão e o desemprego em massa. Contudo, as deformações em curso na economia brasileira apenas têm se agravado, particularmente a partir de um quadro macroeconômico que desde os anos 1990 nos condena ao aprofundamento do subdesenvolvimento e da dependência econômica. Como resposta à crise gerada pelo modelo conduzido pela ditadura 1964/1985, as classes dominantes brasileiras acabaram por assumir, especialmente a partir da eleição de Collor de Melo, em 1989, o programa de “reformas” preconizado pelo Departamento de Estado dos EUA e difundido no nosso subcontinente por instituições como o Banco Mundial, o FMI e o BID. Eram as chamadas “reformas neoliberais”: um conjunto de medidas - constitucionais, infraconstitucionais, administrativas e de orientação macroeconômica - dirigido à liberalização financeira, às privatizações e à flexibilização dos mecanismos de controle do Estado em relação ao mercado. Ao mesmo tempo, e em consonância com essas “reformas”, experimentamos uma reestruturação produtiva

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predatória, com uma onda acentuada de desemprego, terceirizações e fusões corporativas, produzindo fortes impactos sociais negativos e desafios à organização política e sindical dos trabalhadores. Por que é importante resgatar essa história? Pelo fato de uma combinação dessa natureza – moeda sobrevalorizada (“dólar barato”) e taxa real de juros elevada – levar a consequências extremamente graves, a principal delas sendo a chamada desindustrialização do parque produtivo: o “dólar barato” estimula importações e altas taxas de juros encarecem o investimento local, abrindo oportunidade assim para um processo de substituição da produção nacional de bens por importados, não somente em termos de produtos finais, mas na aquisição também de peças, componentes e insumos utilizados nas cadeias de produção dos diversos setores da economia. A expectativa criada com o “fim da inflação” – principal mote e cacife em defesa das “reformas liberalizantes” – era a criação de melhores condições de vida para a sofrida população brasileira, maltratada pelo desemprego, pela precariedade dos serviços públicos, pela desigualdade e falta de oportunidades. A história econômica contemporânea indica que os países que lograram processos de desenvolvimento capazes de assegurar bem estar às suas populações e relativa autonomia para a definição dos seus destinos, procuraram atender a quatro requisitos, em termos estritamente econômicos:

1) forte e acelerado processo de industrialização; 2) fortalecimento de empresas nacionais; 3) resgate do papel indutor ou promotor Estado; 4) sistema financeiro controlado por instituições nacionais.

Essa é uma lição amparada pela história de países sob a condução de regimes conservadores ou revolucionários. Envolve exemplos que podem ser dados pelos EUA ou pela Rússia, pela Alemanha ou pela China, pela França ou pelo Japão. 33


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No Brasil, nos últimos 30 anos, tem sido implementado justamente o inverso: desindustrialização; desnacionalização; fragilização e enfraquecimento do Estado; internacionalização do sistema financeiro; devastação ambiental. No plano econômico, portanto, o que temos de enfrentar é esse desafio: construir uma estratégia de desenvolvimento soberano, baseado na reindustrialização e na inovação tecnológica, sob o comando de empresas nacionais, induzidas e/ou impulsionadas pelo Estado, e com um sistema financeiro sob controle nacional. Sempre considerando o cuidado ambiental. Essas premissas, contudo, exigem algumas outras definições essenciais: qual o tipo de industrialização nos interessa? Como constituir empresas nacionais subordinadas ao interesse social e sob controle público? Que tipo de Estado seria esse, capaz de induzir o desenvolvimento econômico voltado ao interesse dos trabalhadores, a maioria do país, ao mesmo tempo em que pudéssemos estabelecer um sistema financeiro não vulnerável a variáveis externas? DILEMAS IMEDIATOS O programa de ajuste abraçado pelos setores hegemônicos da burguesia nacional, despida de qualquer estratégia de superação dos dilemas que nos condena ao subdesenvolvimento, consiste em ampliar ainda mais o controle do Orçamento Geral da União. Tudo em prol das despesas de caráter financeiro (daí a importância dada à aprovação da Emenda Constitucional 95, congelando por 20 anos as chamadas despesas primárias da União); de reduzir o custo do trabalho (impondo graves mudanças na legislação trabalhista e procurando alterar mais uma vez as regras do sistema previdenciário); e abrindo novos negócios para grupos financeiros empresariais, principalmente estrangeiros. Através da concessão de serviços, venda de estatais (onde se destaca a Eletrobrás), 35


liberação de venda de terras a estrangeiros, e a licitação de campos de petróleo, principalmente na área do Pré-sal. Sob o ponto de vista da maioria da população, a falta de emprego e a degradação dos serviços públicos são as expressões mais dramáticas da crise em curso. São problemas que se manifestam de forma aguda no plano local, nas cidades e regiões onde a população vive. E sob o ponto de vista político, comprometem demais os governos estaduais e municipais. Apesar da injusta carga tributária brasileira – não pelo seu tamanho, mas pela a sua característica regressiva, onde assalariados e pobres acabam, proporcionalmente aos seus rendimentos, pagando mais impostos que ricos – ter se elevado de forma substantiva nos últimos 25 anos, isto não se reverteu a favor dos estados e municípios. Ao contrário, foi a União que se apropriou de cerca de 8% do PIB do crescimento da carga tributária, desde os anos 1990. Mais que isso, estados e municípios sofrem as fortes pressões decorrentes da Lei de Responsabilidade Fiscal e dos encargos financeiros pelo pagamento relativo às suas dívidas “reestruturadas”, ainda também nos anos 1990, embora as suas obrigações constitucionais tenham sido acrescidas a partir de 1988, especialmente nas suas responsabilidades nas esferas da educação e da saúde. A partir, portanto, desse quadro macroeconômico que precisa ser alterado substantivamente, questões relativas ao chamado pacto federativo deverão ser redefinidas, com uma nova repartição de recursos entre a União, os estados e os municípios. Além, evidentemente, de uma nova ordem tributária, que nos faça superar por completo as injustas características de uma das estruturas tributárias mais regressivas do mundo, com claro privilégio àqueles que vivem das rendas do capital. OS DESAFIOS DO RIO DE JANEIRO É dentro desse complexo quadro de crise nacional e estrutural que a atual situação do Rio de Janeiro – que ainda representa 11% do PIB nacional, o segundo maior do país – deve ser analisada. 36


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A acentuada queda nos preços internacionais do petróleo, as decisões do governo Dilma em relação às empreiteiras envolvidas no escândalo da Lava Jato, a drástica redução do plano de investimentos da própria Petrobras e os efeitos da recessão econômica nacional jogaram o estado do Rio de Janeiro na pior crise de sua história. Com a vertiginosa queda de arrecadação provocada por esse conjunto de problemas, todo o otimismo difundido pelos governos federal, estadual e municipal, em consonância com a mídia dominante, esvaiu-se. Entre 2015 e 2017 o Rio de Janeiro perdeu meio milhão de empregos, quase 200 mil no setor de serviços. Na década de 2006 a 2016, entretanto, a recente corrente líquida do Estado cresceu 6,4% (no Brasil, 37,4%). O peso do petróleo é significativo nisso: em 2015 os royalties renderam R$ 12 bilhões, caindo no ano seguinte para R$ 4 bilhões.

Detalhe importante: o Rio de Janeiro e o Espírito Santo são os estados que menos gastam com servidores ativos do Executivo, tendo uma queda de 0,5% no seu total, desde 2006. Não houve, portanto, um “inchaço” do setor público, exceto em funções comissionadas da oligarquia fisiológica (p)emedebista.

A solução para a atual situação requer alterações substantivas na política do governo federal e na redefinição do pacto federativo. O chamado programa de austeridade fiscal, acelerado após o golpe parlamentar que levou Temer à presidência, apenas agrava os dilemas em curso. O objetivo é implementar um programa de privatizações, com o intuito de produzir receitas para o pagamento de despesas correntes, dentro de uma visão imediatista e irresponsável com o interesse público, mas amparado no sentimento de urgência e desespero da população. Enfrentar esse quadro de crise deve implicar, portanto, mudanças no modelo econômico. Contudo, a manipulação permanente das regras eleitorais em prol do poder econômico 38


e do interesse dos partidos dominantes, a desfavorável correlação de forças produzida no país com o transformismo político do PT e o impeachment de Dilma, recolocam novos desafios aos setores da esquerda comprometidos com a transformação estrutural do país. O desequilíbrio tributário, que faz do Brasil uma contraditória Federação centralizada e meramente nominal, precisa ser enfrentado com uma Reforma Tributária radical.

Só o Rio (capital) manda para a União R$ 120 bilhões por ano (de IR, IPI, PIS/Cofins e outros impostos). Retornam pouco mais de R$ 4 bilhões.

O Estado como um todo recebe, como retorno, 18% do que rende para a União. Essa distorção é particularmente perversa com o Rio de Janeiro. Minas Gerais, por exemplo, envia R$ 42 bilhões e recebe de volta R$ 31 bilhões. Leia a íntegra deste texto em: bit.ly/CriseRioBrasil


IV. INICIATIVAS LEGISLATIVAS Tem uma ideia de Projeto de Lei (PL)? Envie-a para a gente via plsdochico@chicoalencar.com.br. A seguir, destacamos algumas iniciativas. Para ver todas as proposições, acesse: bit.ly/plsdochico

PL-9762/2018: Aguardando despacho do Presidente da Câmara Ementa: Determina a implementação de Programa Social de Intervenção Social para Prevenção à Violência, pela União, em parceria com as demais Unidades da Federação, nos territórios que registrarem altos índices de violência ou que sejam objeto de operações de segurança resultantes de intervenção federal ou de operações voltadas para a Garantia de Lei e Ordem. REQ-1/2018 PL-6814/2017: Aguardando despacho da Câmara Ementa: Requer Audiência Pública na Comissão Especial para debater o PL 6814, de 2017, que “Institui normas para licitações e contratos da Administração Pública”, sendo convidados representante da Comissão Interministerial de Sustentabilidade na Administração Pública e representante dos Governos Locais. REQ-2/2018 PL-6814/2017: Aguardando despacho da Câmara Ementa: Requer seja realizada Audiência Pública na Comissão Especial para debater o PL 6814, de 2017, que “Institui normas para licitações e contratos da Administração Pública”, sendo convidados representante do Programa Olho Vivo no Dinheiro Público da Controladoria-Geral da União, atual Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União; da Organização Não Governamental Observatório Social do Brasil; e da Organização Não Governamental Transparência Brasil. RIC-3389/2018: Aguardando resposta Ementa: Solicita ao Ministro-Chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha,


informações acerca dos gastos do Governo com propaganda sobre mudanças na Previdência. RIC-3406/2018: Aguardando envio ao Executivo Ementa: Solicita ao Ministro-Chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, informações acerca do uso de aviões da FAB por Ministros de Estado. RIC-3421/2018 Ementa: Solicita ao Ministro do Trabalho informações acerca da contratação e alocação de Mikael Tavares Medeiros no Ministério, além de seus atos funcionais no exercício do cargo. PL-7565/2017: Tramitando em conjunto com outra lei Ementa: Acrescenta artigo à Lei nº 12.232 para estabelecer a obrigatoriedade de divulgação de informações acerca dos custos de campanhas publicitárias oficiais. PL-7566/2017: Aguardando Apensação Ementa: Altera a Lei n. 12.813 para incluir o Poder Legislativo na Lei de conflito de interesses no exercício de cargo ou emprego. PL-7567/2017: Tramitando em conjunto com outra lei Ementa: Dispõe sobre o financiamento das campanhas eleitorais, e sobre a forma de subscrição de eleitores a proposições legislativas de iniciativa popular, alterando a Lei nº 9.709. RIC-2979/2017: Aguardando Definição Encaminhamento Ementa: Requer, ao Ministro da Defesa, informações acerca das viagens feitas pelo jato Learjet PR-JBS, da JBS, nos últimos sete anos. RIC-3248/2017: Aguardando Parecer Ementa: Solicita ao Ministro da Justiça e Segurança Pública, Torquato Jardim, informações acerca do processo que corria contra o exreitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz C. Cancellier.


Não, nós nos negamos a acreditar que um corpo tombe vazio e se desfaça no espaço feito poeira ou fumaça adentrando-se no nada dos nadas nadificando-se. Por isso, na solidão desse banzo antigo rememorador de todas e de todos, os que de nós já se foram, é no espaço de nossa dor que desenhamos a sua luz-mulher - Marielle Franco. E as pontas de sua estrela enfeitarão os dias que ainda nos aguardam e cruzarão com as pontas das pontas de outras estrelas, habitantes que nos guiam, iluminando-nos e nos fortalecendo na constelação de nossas saudades.

Conceição Evaristo,

escritora, poetisa, romancista e ensaísta


Velório de Marielle e Anderson, Cinelândia, RJ. 15/03/18. Foto: Mídia Ninja


Entre 2012 e 2016, o Brasil teve mais assassinatos do que a Guerra Civil na Síria (Fonte: bit.ly/ateqndo)

Esta publicação do nosso mandato tem quatro partes. Na primeira analisamos a intervenção militar, através da qual o governo federal, mais interessado em votos do que em vidas, busca – a partir do drama real da insegurança da população – “mudar de assunto”, após o naufrágio de suas tentativas de alterar a Previdência Social. A segunda parte traz um histórico do nosso maltratado Rio de Janeiro, estado ainda em formação, com trajetória de avanços e mazelas, rebeldia e repressão. Um sonho: que cada um dos nossos 92 municípios tenha o registro da história de seu povo, uma biblioteca pública e um museu. A terceira parte tem uma análise aguda da nossa situação econômica. Os problemas do Rio de Janeiro são os do Brasil. Por fim, há um relatório das nossas recentes iniciativas legislativas. Sem reflexão cidadã e análise crítica da realidade não haverá transformação social na direção de mais democracia, justiça e paz. Boa leitura! Debata, compartilhe. Marielle Vive!

/chicoalencar

@chico.alencar

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chicoalencar.com.br


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