Lume 42

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lume Mato Grosso

Revista nº. 42 • Ano 6 • Maio/2020

Segredos da Floresta Pag. 42

PERSONALIDADE: SENADOR WELLINGTON FAGUNDES ENTREVISTA: LUIZ ANTONIO P. VALE ENTREVISTA ESPECIAL: CLAUDETE JAUDY MEMÓRIA: FILINTO MÜLLER LITERATURA: MERCEDES SOSA

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C A RTA D O E D I TO R

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JOÃO CARLOS VICENTE FERREIRA Editor Geral

esde o surgimento da revista impressa no Brasil em 1812, essa mídia tradicional sofreu diversas transformações ao longo do tempo. Com o advento da internet, as mudanças foram ainda mais drásticas: surgiu uma necessidade de se acessar as notícias de forma imediata, fazendo com que as revistas que permaneciam somente no meio impresso ficassem para trás. Para se adaptar aos moldes dos dias atuais, os veículos procuraram se reinventar ao criar setores para publicar conteúdo na internet, assim expandindo a marca para atingir mais pessoas. Questionados, alguns jornalistas se pronunciaram sobre esse assunto. Marcos Coronato, editor executivo da revista Época, relatou a preocupação do veículo em fazer com que as matérias do site tenham o maior “ciclo de vida” possível, exaltando a figura do editor que proporciona um olhar mais experiente e pode tornar a publicação mais interessante para dessa forma atrair mais leitores. Na Veja a situação é bem parecida. Daniel Bergamasco, editor online, revelou que há alguns anos o veículo investiu na plataforma online, e isso permitiu algumas mudanças na redação: intercâmbio entre editores e união dos jornalistas, deixaram de existir papéis definidos. Daniel acredita que a versão online ainda não conseguiu se igualar a edição impressa quando se trata de impacto, na medida em que as revistas causam um efeito nostálgico e forte ao se abrir, por exemplo, uma foto que ocupa uma página inteira. É algo que captura a atenção do leitor de uma maneira que os sites não conseguem fazer. A revista impressa é desenvolvida considerando que o leitor terá um tempo maior dedicado ao texto, desta forma a produção de conteúdo é mais aprofundada. En-

tretanto, as chamadas “pautas quentes” podem não resistir até o final de semana (quando a revista é veiculada), valorizando a necessidade do site. Já na Elle, segundo Pedro Camargo, repórter online da revista, o cenário é bem diferente: encontra-se uma clara divisão entre o impresso e digital, apesar de existir uma política de integração na editora Abril. Ainda assim, a equipe colabora com a produção de conteúdo mesmo não havendo uma responsabilidade dividida. Quanto às diferenças, Pedro afirma que independentemente da versão, existe um trabalho jornalístico adequado. A questão neste ponto são as demandas, a revista exige prazos, já que veicula uma vez por mês, no site a necessidade é de publicar as notícias em tempo real, “ter uma visão ampla do que está acontecendo”. A marca ganhou recentemente um site próprio (antigamente o M de Mulher representava a maioria das revistas da editora) e vem se destacando por abordar assuntos como diversidade e direitos humanos. Giovana Romani, editora sênior da revista Glamour, acredita na exclusividade da revista impressa, já que existe uma curadoria limitada para a veiculação. A principal diferença apontada por Giovana está na questão do título, o online exige “sujeito, predicado, ação e informação relevante”, em contrapartida a revista é mais fluida.Para mim não ocorrerá o fim da revista impressa, mas sim uma depuração daquilo que temos em nosso mercado, tanto no Estado, quanto no país afora. Os editores e jornalistas migrarão, em sua maioria, para sites. Ficarão os que tem proposta editorial que atinja os objetivos do leitor, especialmente daquele mais exigente e que busca qualidade. Estamos buscando encontrar o caminho certo para nossa LUME MATO GROSSO.


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EXPEDIENTE

lume Mato Grosso

PESCUMA MORAIS Diretor de Expansão e de Projetos Especiais ELEONOR CRISTINA FERREIRA Diretora Comercial JOÃO CARLOS VICENTE FERREIRA Editor Geral MARIA RITA UEMURA Jornalista Responsável JOÃO GUILHERME O. V. FERREIRA Revisão AFRÂNIO CORRÊA, AMANDA GAMA, ANDRÉIA KRUGER, ANNA MARIA RIBEIRO, CARLOS FERREIRA, CARLOS GOMES DE CARVALHO, DIEGO DA SILVA BARROS, EDNA LARA, EDUARDO MAHON, ENIEL GOCHETTE, EVELYN RIBEIRO, JOÃO CARLOS MANTEUFEL, JOYCE THAYS PEREIRA DOS SANTOS, JULIANA RODRIGUES, JÚNIOR CÉSAR GOMES GUIMÃES, KALLITA DOS ANJOS MORAES, LUCIENE CARVALHO, MILTON PEREIRA DE PINHO - GUAPO, RAFAEL LIRA, ROSARIO CASALENUOVO, ROSE DOMINGUES, THAYS OLIVEIRA SILVA, VALÉRIA CARVALHO, WILLIAN GAMA, YAN CARLOS NOGUEIRA Colaboradores ANDREY ROMEU, ANTÔNIO CARLOS FERREIRA (BANAVITA), CECÍLIA KAWALL, CHICO VALDINEI, EDUARDO ANDRADE, HEITOR MAGNO, HENRIQUE SANTIAN, JANA PESSOA, JOSÉ MEDEIROS, JOYCE

CORRÊA, JÚLIO ROCHA, LAÉRCIO MIRANDA, LUIS ALVES, RAI REIS, MAIKE BUENO, MARCOS BERGAMASCO, MARCOS LOPES, MÁRIO FRIEDLANDER Fotos OS ARTIGOS ASSINADOS NÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DE LUME MATO GROSSO, E SIM DE SEUS AUTORES. LUME - MATO GROSSO é uma publicação mensal da EDITORA MEMÓRIA BRASILEIRA Distribuição Exclusiva no Brasil RUA PROFESSORA AMÉLIA MUNIZ, 107, CIDADE ALTA, CUIABÁ, MT, 78.030-445 (65) 3054-1847 | 36371774 99284-0228 | 9925-8248 Contato WWW.FACEBOOK.COM/REVISTALUMEMT Lume-line REVISTALUMEMT@GMAIL.COM Cartas, matérias e sugestões de pauta MEMORIABRASILEIRA13@GMAIL.COM Para anunciar ROSELI MENDES CARNAÍBA Projeto Gráfico/Diagramação LEONARDO ROCHA FOTO: MARIO FRIEDLANDER Capa


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SUMÁRIO

16. 22. 28. PARA QUANDO VOCÊ FOR

18.

MEMÓRIA HISTÓRICA

ANTROPOLOGIA

MEIO AMBIENTE

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31. MEIO AMBIENTE


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50.

CULTURA

52. 58. FOTOGRAFIA

EDUCAÇÃO

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LITERATURA

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PERSONALIDADE

Senador Wellington Fagundes FOTO DIVULGAÇÃO

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aconselhar com parlamentares mais experientes para começar sua atuação parlamentar. Mas sempre levou em consideração os ensinamentos repassados pelo pai, João Antônio Fagundes, conhecido como “João Baiano”, que veio a “pé”de Santana dos Brejos (BA), numa longa viagem de quase dois quilômetros, até chegar a Poxoréo. Anos depois, mudou-se com a família para Rondonópolis, onde sua casa era sempre frequentada por políticos de vários partidos. Nas rodas de conversa, o assunto principal era sempre a política local, mas Mato Grosso e o Brasil também eram analisados. “Ele tinha uma sabedoria nata”, conta o filho caçula. Além da convivência com o pai, com quem aprendeu muito sobre política, Wellington havia exercido a diretoria da Associação Comercial e Industrial de Rondonópolis (1982-1985) e, em 1989, assumiu o cargo de secretário Municipal de Planejamento, convidado pelo então prefeito Hermínio Barreto, experiências que levou para Brasília. Mas foi também no contato com a população que Wellington pautou seu trabalho. Um exemplo é a atenção com os idosos. Ainda na primeira campanha Wellington Fagundes foi abordado Alto Paraguai (MT) por um velho garimpeiro que reclamava não ter acesso a uma aposen-

tadoria e se sentia abandonado pela nação.Surgiu assim a iniciativa do parlamentar em apresentar o projeto de Lei que se transformaria na “Política para o Idoso Carente”, que recebeu contribuições e veio a se tornar a LOAS - Lei Orgânica da Assistência Social, que concede o benefício de um salário mínimo para idosos e deficientes físicos carentes. Hoje, 5 milhões de pessoas são beneficiadas em todo o Brasil. Como deputado federal, Wellington começou a percorrer todo o Estado para conhecer seus problemas, seu potencial e as soluções. É considerado um parlamentar municipalista ao defender uma melhor distribuição dos recursos federais. “Ao longo desses 30 anos, vi o aumento das responsabilidades do município, que assumiu várias atribuições que antes eram do governo federal, mas a contrapartida em termos de recursos não ocorreu”, conta. Ele sempre faz questão de lembrar: “é nos municípios que as pessoas vivem e é lá que se dão os problemas e as soluções”. Em 1994, Wellington voltou a disputar as eleições para deputado federal com 30.023 votos, ficando em quarto lugar numa bancada de oito parlamentares. Na mesma eleição, foram eleitos Dante de Oliveira como governador, Márcio Lacer-

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m fevereiro de 2021, Wellington Fagundes completa 30 anos de atuação política ininterrupta. É o único na história política de Mato Grosso. Hoje senador da República, o mato-grossense rondonopolitano começou sua vida política disputando a eleição para deputado federal em 1990. Até então, dedicava-se à vida empresarial. Recém formado em Medicina Veterinária em Campo Grande (MS), atendia a várias fazendas da região e já havia criado uma empresa – a Agroboi – que mantém até hoje. “Quando cheguei para a Mariene (sua esposa) e disse que tinha sido indicado pelo partido para disputar uma eleição para deputado federal, ela achou que eu estivesse ficando louco”, (risos). “Ela disse: mas você nunca disputou uma eleição nem para vereador e vai sair já para deputado federal? (mais risos). Elegeu-se com 22.595 votos, o quinto na lista de oito deputados federais que incluía alguns veteranos, como o ex-governador Wilmar Peres de Farias e o ex-prefeito Rodrigues Palma. A eleição, realizada em 03 de outubro, também elegeu Jayme Campos a governador, Osvaldo Sobrinho como vice-governador e Júlio Campos como senador. A partir de então, Wellington Fagundes dividiu sua vida entre Rondonópolis e Brasília, onde procurou se

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da como vice-governador e os senadores Jonas Pinheiro e Carlos Bezerra. Quatro anos depois, foi o recordista de votos para a Câmara dos Deputados, com 81.625 votos. Em 2002, elegeu-se novamente com 114.098 votos, número que baixou para 78.215 nas eleições de 2006. Em 2010, voltou a ser campeão de votos, com 145.460 e em 2014 se elegeu senador da República com 646.344 votos – único na história política a se eleger sem fazer parte da chapa de governador eleito no primeiro turno . “Sempre tenho dito que o voto é uma confiança do eleitor depositada no político, que deve retribuir a essa confiança com muito trabalho”, diz ele. E trabalho é a marca desse parlamentar. Cada um dos municípios de Mato Grosso tem trabalho de Wellington. O parlamentar conhece Mato Grosso e acredita que é um estado em construção e precisa de investimentos em infraestrutura e programas sociais. Com toda essa experiência, ele sabe que Mato Grosso é um Estado em construção e precisa de investimentos em infraestrutura e programas sociais. Por isso, tem atuação em todas as áreas, passando pela Educação e Saúde. Uma das áreas de forte atuação do senador Wellington Fagundes é na infraestrutura e transporte.

Ele sabe do papel de Mato Grosso na produção de alimentos para o mundo. O aumento na produção de grãos em Mato Grosso não foi acompanhado pela logística. O produtor de soja do Mato Grosso, por exemplo, estima perder 40% do valor bruto de sua atividade para escoar o grão até os portos no Sul e Sudeste. Nos últimos anos, o governo vem tentando alavancar os investimentos em infraestrutura e Wellington Fagundes é um incansável lutador pelo aumento dos investimentos do Governo Federal nas rodovias que cortam Mato Grosso. Um exemplo está na BR-163, que recebe obras de duplicação no trecho entre Cuiabá e Rondonópolis. Antes considerado um dos trechos mais críticos nas rodovias brasileiras pelo grande número de acidentes frontais, hoje a rodovia registra uma diminuição nessa triste estatística. Pelo menos 85% da obra estão prontas. Outro trecho, de 44 km, ligando Rosário Oeste ao Posto Gil, já está totalmente duplicado. Ele ainda tem forte atuação para a conclusão da pavimentação da BR-158 (que liga Barra do Garças à divisa com o Pará) e 242, assim como na BR-174 e 070. Já no aspecto das ferrovias, Wellington Fagundes tem papel fundamental na ampliação da malha da Fer-

rovia Vicente Vuolo e na instalação de terminais de carga em Itiquira e Rondonópolis (onde está o maior terminal de cargas da América do Sul). Mais recentemente, tem atuado para o avanço dos trilhos da Ferrovia Vicente Vuolo até Cuiabá e o Norte do Estado. Como presidente da Frente Parlamentar de Logística e Infraestrutura, o parlamentar também tem dedicado especial atenção para a implantação da Ferrogrão, que deve ligar Sinop a Miritituba (no Pará) e a Ferrovia de Integração do Centro-Oeste (Fico), que vai ligar a região do Araguaia à Ferrovia Norte-Sul e ao porto de Itaqui, no Maranhão. Quando se trata de hidrovia, o parlamentar trabalhou para que a BR-174 seja federalizada e receba investimentos ligando Cáceres às comunidades de Santo Antônio das Lendas, Barranco Vermelho e Paratubal, permitindo o aproveitamento da Hidrovia Paraguai/Paraná pela implantação do Porto de Morrinhos, por onde poderá ser escoada a produção de carnes e grãos do Estado. Em mandato anterior, Wellington Fagundes teve forte atuação para viabilizar o convênio Brasil/Itália, que possibilitou a construção de pontes de concreto em todas as regiões de Mato Grosso. Uma das mais importantes é a ponte Sérgio Motta, em Cuiabá.


lumeMatoGrosso EM 1992, NO PRIMEIRO ANO DE MANDATO

E mais recentemente, ele conseguiu reverter as dificuldades que existiam para a internacionalização do Aeroporto Marechal Rondon, um antigo sonho do trade turístico. Outro trabalho que marca a atuação do parlamentar diz respeito ao aumento no repasse de recursos para os municípios. “Como homem nascido e criado no interior, aprendi desde muito cedo a importância da valorização das comunidades. Por isso, desde 1991, quando cheguei aqui no Congresso Nacional, tenho sempre me colocado na vertente da defesa dos municípios”, lembra. Em 2019, particularmente, importantes avanços fo-

ram conquistados na busca da consolidação dessa bandeira, como a partilha dos recursos arrecadados com o leilão do excedente de petróleo na camada do PRÉ-SAL, a chamada “cessão onerosa”. Foi importante derrubar, por meio do destaque que apresentou, os vetos do Governo ao projeto de ‘Reforma do Imposto sobre Serviços – ISS -, garantindo R$ 6 bilhões a mais no Orçamento das prefeituras em todo Brasil. Por essa luta, Fagundes foi apontado como o “senador número um” no ranking elaborado pelo Observatório Político da Confederação Nacional dos Municípios. “Precisamos fazer a par-

tilha do bolo tributário, hoje concentrado no Governo Federal. Até pouco tempo atrás, menos de 14% é que ia diretamente para os municípios. Lutamos muito, a cada ano, evoluímos, e hoje estamos chegando aos 19%. A Constituição diz que tem de ser 21%, no mínimo – o que nos impõe dizer que o próprio Governo não obedece à Constituição brasileira. Esse é o nosso desafio”, diz. Ao completar 30 anos de vida pública, ele reforça a ideia de que ainda tem muito a fazer. “Mato Grosso é um estado em construção e acredito que estamos no caminho de uma vida melhor para todos”

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E N T R E V I S TA

O Xeque-Mate Global FOTO DIVULGAÇÃO

LUIZ ANTONIO P. VALE

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chamada “pandemia” mudou a vida das pessoas, tirando-as da rotina e levando-as a um período de reclusão. A rotina traz a sensação de permanência, de estratificação, como se nada fosse mudar de forma significativa a ponto de abalar a vida íntima das pessoas. Com o lockdown fomos lembrados que fatores externos podem nos tirar da zona de conforto e que a vida pode mudar de forma drástica e rápida. Por outro lado, houve aspectos positivos, dos quais destaco o maior tempo livre para pensar, o que levou às pessoas a buscarem entender o que, de fato, está acontecendo a nível mundial. Os problemas oriundos da crise de 2008 não foram sanados. Existe uma “bolha” da dívida pairando no planeta. Segundo Peter Koenig, o PIB dos estadunidenses será de US$ 21 trilhões em 2019 (estimativa do Banco Mundial), com uma dívida em 2019 de US$ 23 trilhões, ou seja, 109,5% do PIB. O PIB mundial está projetado para 2019 em US$ 88,1 trilhões (Banco Mundial). De acordo com a Forbes, existem cerca de US$ 210 trilhões de “passivos não financiados” (valor presente líquido de obrigações futuras projetadas, mas não financiadas, principalmente previdência social, Medicaid e juros acumulados sobre dívidas), um número cerca de 10 vezes o PIB dos EUA, ou duas vezes e meia a produção econômica mundial. Além disso, há cerca de um a dois quatrilhões de dólares (ninguém sabe a quantia exata) dos chamados derivativos flutuando em todo o mundo. Esta dívida monstruosa é parcialmente detida na forma de títulos do Tesouro como reservas cambiais por países em todo o mundo.

Um colapso da economia americana, provocado pela pandemia, pode levar o dólar a deixar de ser a moeda de referência global. O grande problema da perda do status do dólar como moeda de referência global é que os EUA são totalmente dependentes deste status para “rolar” seu monstruoso déficit gêmeo e consequente dívida colossal. A perda futura desta liquidez do dólar levaria a economia dos EUA ao caos, e obter autorização do congresso para elevar continuamente o teto da dívida atual, como vem fazendo, não vai ajudar. O que os governos das potências estão fazendo para proteger-se desta perspectiva? Eles vêm fazendo nos últimos cinco anos um processo denominado “desdolarização”. Isso significa trocar ativos denominados em dólar de suas reservas internacionais por um ativo mais seguro, e o ativo escolhido foi o ouro. O ouro é reconhecido como uma reserva de valor segura a muitos séculos. Sobre esta questão não há muitas controvérsias entre aqueles que entendem do assunto. Os países investem milhões para construir estruturas seguras para custodiar seu ouro físico porque sabem que ele é uma reserva de valor inquestionável, do contrário por que o fariam? Numa crise ele é considerado um refúgio seguro, diferentemente de papeis de crédito sujeitos a especulação advinda de percepções de credibilidade e de liquidez. O governo dos EUA afirma ter 8.133,5 toneladas de ouro físico em suas reservas oficiais. Cinquenta e oito por cento são mantidos em Fort Knox, no Kentucky, 20% em West Point, no estado de Nova York, 16% estão na casa da US Mint em Denver, Colorado e 5% são mantidos nos cofres do NY Fed (Federal Reserve Bank of New York).

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E N T R E V I S TA E o Brasil, como vem se posicionando neste assunto? As autoridades do Brasil não enxergam, ou preferem não ver, o colossal movimento mundial dos grandes países de proteção das suas reservas internacionais, o que implica dentre outras coisas, na desdolarização e aquisição de grandes reservas de ouro, mantendo sua custódia física. Como pode ser visto abaixo o Brasil continua a manter a praticamente totalidade de suas reservas em Títulos, dentre outros ativos. Somente possuía em setembro de 2019 insignificantes US$ 3,18 bilhões em ouro, o que significa 0,85% das suas re-

Modalidade Reserva em moeda estrangeira*

US$ bilhões

Partic. %

357,52

94,97

Posição reserva FMI

3,05

0,81

DES

3,99

1,06

Ouro

3,18

0,85

Outros ativos

8,70

2,31

TOTAL

*Reserva em moeda estrangeira Títulos emitidos Moeda estrangeira Depósito - em Bancos Centrais, BIS e FMI Depósito - em Bancos no exterior

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servas. A Rússia, com uma economia menor que a brasileira, tem reservas de ouro de US$ 111 bilhões. As reservas brasileiras em setembro de 2019 tinham a seguinte composição: Não bastasse a vulnerabilidade óbvia é um péssimo negócio financeiro, pois em 2018 pagamos, em média, 9,5% a.a. sobre os títulos brasileiros que financiam a dívida pública, emitidos para 5 anos, e recebemos 3% a.a pelos títulos norte-americanos que compramos, emitidos para o mesmo prazo. Abaixo um quadro mostrando as reservas de ouro de alguns países em dez/2019.

376,43

US$ bilhões

Partic. %

348,93

92,69

5,65 2,93

1,50 0,78

357,52

94,97

Reservas Brasileiras - Setembro 2019 Fonte: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/reservasinternacionais Fonte: https://www3.bcb.gov.br/sdds/?0 Fonte: https://www3.bcb.gov.br/sdds/wicket/page?1


País

Toneladas

US$ bilhões

1

EUA

8.133

404,36

2

Alemanha

3.357

167,40

3

Itália

2.452

121,91

4

França

2.436

121,11

5

Rússia

2.242

111,47

6

China

1.948

96,85

7

Suíça

1.040

51,71

8

Japão

755

38,03

9

Índia

618

30,73

10

Holanda

612

30,43

Brasil

67

3,33

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Reservas de ouro das principais nações - 2019

Preço médio da tonelada no peíodo em US$ bilhões => 0,0497 Fonte: https://pt.tradingeconomics.com/country-list/gold-reserves Obs.: as reservas americanas de ouro nunca foram auditadas!

Como pode ser visto os países mais importantes e bem informados do mundo mantêm grandes reservas de ouro. O Brasil tinha apenas 67 toneladas em dez/2019, menos que sua própria produção anual. Fica bem claro que o Brasil não protegeu suas reservas e não se preparou para futuras crises. A pergunta mais relevante que devemos fazer é: PORQUE O BRASIL NÃO ACOMPANHOU O MOVIMENTO DOS MAIORES PAÍSES DO MUNDO (EUA, Alemanha, China, Rússia, França, Itália, etc....) DE MAN-

TER EM SUAS RESERVAS UMA QUANTIDADE SIGNIFICATIVA DE OURO FÍSICO? Crises são desenhadas também para depreciar ativos, permitindo a sua aquisição por preço baixo por quem estiver capitalizado, ou seja, para aqueles que se prepararam para este momento. O Xeque-mate Global está em andamento: o catalisador foi acionado, a economia dos países está sendo paralisada e entrando em colapso, o medo se dissemina ofuscando a razão. Falta apenas o passo final: reinicializar o sistema em novas bases. E o Brasil?

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PA R A Q UA N D O VOCE FOR

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CECÍLIA KAWALL Mora em Chapada dos Guimarães, é guia de ecoturismo e de aventura, empresária, fotógrafa e escreve para Lume MT.

Lume Vai ao Japão

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TEXTO E FOTOS CECÍLIA KAWALL

ue tal fazer uma visita logo ali , no Japão? Estive lá em 2009 e fiquei muito impressionada com a quantidade de imagens e templos. A religião original lá era o Xintô (xintoismo é a prática) onde não havia personificação de um sujeito, masculino ou feminino e sim a observação dos fenômenos da natureza. Tive o grande privilégio de ficar hospedada num templo que tinha 800 anos! Lá os guardiões são figuras fortes que parecem até vindas de um folclore. Mas quem trabalha nesta montanha é a água da cachoeira e o fogo e todo ano são celebrados rituais dedicados a estes elementos. Hoje o zen budismo (prática que segue os princípios de Buda, de muitas formas) é a religião mais encontrada por lá. De toda maneira os japoneses são extremamente hospitaleiros( a despeito da seriedade) e sempre querem agradar. Um costume que perdura é sempre ter à mão uma lembrancinha, para uma visita, um aluno ou até um atendente num balcão. O tradicional cumprimento, aquela reverência que fazem inclinando o tronco para frente diz: “obrigada pelo que vai acontecer entre nós” (arigatô onegai tashimas, ou apenas onegai tashimas) ao início do encontro e assim cria-se um espaço entre você e o outro. Ao final dizem : “obrigada pelo que aconteceu” (arigatô gozaimas). Foi uma experiência incrível, era como estar dentro do cenário de um filme. E um dos lugares mais interessantes por onde passei, ainda tenho muito material, aguardem os próximos capítulos!

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MEMÓRIA HISTÓRICA

O Brasil É Sempre O Primeiro A Discursar Na Assembleia Geral Da ONU. Porque?

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uve-se muito falar que é o representante brasileiro quem “sempre faz o primeiro discurso” na Assembleia Geral das Nações Unidas, que se reúne em Nova York no mês de setembro, mas isso não é exatamente verdade: o que hoje é a ordem tradicional dos discursos – Brasil primeiro, Estados Unidos em segundo, e depois os demais países, de acordo com um sistema que leva em conta, entre outros critérios, o nível de representação (se é o chefe de Estado quem vai falar, ou um ministro, ou um em-

OSWALDO ARANHA E A CRIAÇÃO DO ESTADO DE ISRAEL »»A página oficial da ONU sobre o protocolo da Assembleia Geral diz apenas que certas tradições emergiram ao longo do tempo, incluindo a ordem dos dois primeiros países a falar, Brasil e Estados Unidos. A explicação usual é que os EUA falam em segundo lugar por serem o anfitrião da Assembleia, e o Brasil, em primeiro, em reconhecimento ao papel desempenhado pelo brasileiro Oswaldo Aranha (1894-1960) nos primórdios da Organização das Nações Unidas. Oswaldo Aranha presidiu a Primeira Assembleia Geral Especial das Nações Unidas, realizada em 1947, e a Segunda Assembleia Geral Ordinária, no mesmo ano.

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baixador) só começou, de fato, em 1955, na Décima Assembleia. Antes disso, México, Estados Unidos, Canadá, Cuba e Filipinas também já haviam feito a abertura. Ainda assim, o Brasil foi o país que mais abriu sessões, mesmo no período anterior a 1955. Entre 1946 a 1954, um brasileiro abriu a Assembleia Geral três vezes. Representantes do México, duas, e EUA, Filipinas, Canadá e Cuba, uma vez cada. A primeira Assembleia Geral aberta pelo Brasil foi a quarta, de 1949. Mesmo depois do estabelecimento da tradição, a partir de 1955, no entanto, o Brasil não falou primeiro em duas oportunidades: nos anos de 1983 e 1984, o então presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, discursou antes do representante do Brasil, o então ministro das Relações Exteriores do governo João Figueiredo, Ramiro Saraiva Guerreiro. Figueiredo, aliás, foi o primeiro presidente brasileiro a fazer um discurso de abertura da Assembleia da ONU, em 1982. Antes dele, a tarefa sempre ficara a cargo do chanceler ou de um embaixador. Desde então, todo novo presidente do Brasil faz o discurso inaugural da Assembleia pelo menos uma vez, ao longo de seu mandato. A única exceção foi Itamar Franco.

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MEMÓRIA HISTÓRICA Essas duas reuniões tiveram o papel histórico de determinar – por meio da resolução 181 da Assembleia Geral – a partição da Palestina entre árabes e judeus, abrindo caminho para a criação do Estado de Israel. A votação final da resolução, em 29 de novembro de 1947, foi dramática: todos os seis países árabes que faziam parte da ONU na época retiraram-se da Assembleia em protesto contra a aprovação, sendo que quatro deles – Arábia Saudita, Iraque, Síria e Iêmen – anunciaram que não se sentiriam obrigados a respeitar a decisão, tomada por 33 votos, apenas dois além do mínimo necessário. Durante os trabalhos, Aranha rejeitou propostas, de autoria de países árabes e também da Colômbia, que devolveriam o plano para a Palestina ao estágio de debate em comitê, retirando-o da pauta de votação. No Brasil, na década de 1930, Aranha havia sido um dos principais articuladores da Aliança Liberal, o movimento que levaria à Revolução de 30 e à chegada de Getúlio Vargas ao poder. Foi Ministro da Justi-

À ESQUERDA OSWALDO ARANHA, AO CENTRO SOUZA DANTAS E À DIREITA GETÚLIO VARGAS

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ça e, depois, da Fazenda de Vargas. Participou da Assembleia Nacional Constituinte convocada após a revolução de 1932 em São Paulo, e foi nomeado embaixador brasileiro em Washington depois da promulgação da carta. Buscava viabilizar-se candidato à Presidência da República para o pleito previsto para 1938 quando Vargas deu o golpe do Estado Novo, em 1937. Sua primeira reação foi de ruptura com a ditadura que se instalava, mas em 1938 voltava ao governo, agora como ministro das Relações Exteriores. A nomeação foi saudada em editorial, pelo New York Times, como sinal de que “o regime [de Getúlio Vargas] não seguirá pelo caminho das ditaduras fascistas europeias”. ARANHA ARTICULA COM OS ALIADOS

»»Oswaldo Aranha foi instrumental para o

alinhamento do Brasil com as potências aliadas na Segunda Guerra Mundial, enfrentado a oposição de figuras do governo Vargas e, em alguns momentos, até mesmo do próprio presidente-ditador. Em


lumeMatoGrosso BOMBARDEIO JAPONÊS EM PEARL HARBOR

1940, quando a Marinha britânica deteve um navio brasileiro, o Siqueira Campos, que transportava carga vinda da Alemanha, Aranha teve de atuar para impedir o rompimento das relações diplomáticas do Brasil com o Reino Unido. Durante a Conferência do Rio de 1942, uma reunião de chanceleres das Américas convocada pelos Estados Unidos após o ataque de Pearl Harbor, e sua participação no encontro ajudou a cimentar a decisão coletiva das repúblicas das Américas de cortar relações diplomáticas com os países do Eixo, aprovada sob as ressalvas de Chile e Argentina. Três anos antes de sua morte, em 1957, durante o governo de Juscelino Kubitschek, Aranha, como embaixador, faria o discurso de abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, em nome do Brasil. O livro “O Brasil nas Nações Unidas:1946-2006”, publicado pelo Itamaraty, resume assim sua intervenção: “Oswaldo Aranha, um dos líderes brasileiros que mais

havia se distinguido na formulação da política de aliança com os EUA, critica a falta de cooperação norte-americana ao desenvolvimento da América Latina. Suas palavras revelam frustração diante do rumo tomado pela relação estratégica global e do papel secundário destinado à América Latina”. Então, fazer a abertura da Assembleia Geral, falando antes até dos Estados Unidos, é uma honra para o Brasil? Talvez. Mas, em 2012, o colunista do New York Times, Michael Pollack, ofereceu uma interpretação alternativa para a ordem dos discursos e que, segundo ele, é bem conhecida dos fãs de shows de rock: “O astro geralmente tem um show de abertura. A Assembleia Geral é um lugar lotado, com delegados de 193 Estados-membros ainda chegando e procurando seus lugares durante os pronunciamentos iniciais. O discurso do Brasil oferece um modo diplomático de todo mundo se ajeitar para o que costuma ser a atração principal: o presidente dos Estados Unidos”.

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Nunca Te Vi, Sempre Te Amei

À Desidério Aytai, um etnólogo de 7 fôlegos POR ANNA MARIA RIBEIRO FERNANDES MOREIRA DA COSTA FOTOS DESIDÉRIO AYTAI

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unca te vi, sempre te amei” (84 Charing Cross Road), filme de 1987, estrelado por Anthony Hopkins e Anne Bancroft, me remete à amizade que fiz com o professor Desidério Aytai, iniciada em 1987, (mesmo ano do filme) e finalizada, com sua morte, em 1998. Isso porque o enredo do filme trata da amizade entre duas pessoas que não se conheceram pessoalmente, mas pelas cartas trocadas durante duas décadas.

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ANTROPOLOGIA


e encontrou o espaço propício para construir sua carreira como antropólogo. Trabalhou na construção de pontes, estradas e locomotivas. Nessas áreas, publicou vários estudos, como cálculo das curvas econômicas das linhas férreas, determinação teórica do chamado fator de poissant de aços e um livro de mecânica para aprendizes técnicos. Foi premiado no concurso literário sobre vibrações da corda de aço dos elevadores. Na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCC), depois de aposentado, fundou a Faculdade de Engenharia, momento em que também assumiu o cargo de diretor. Mas, o grande sonho do engenheiro húngaro estava alicerçado na área da Antropologia, especialmente dos povos da África e da América do Sul. Ao chegar no Brasil, no campo da Arqueologia, iniciou suas pesquisas nos sambaquis do litoral Sul de São Paulo. Os resultados das escavações realizadas por Desidério Aytai e os alunos do curso de Ciências Sociais da PUCC, no final da década de 1950, e no decorrer dos anos de 1960, encontram-se no acervo da instituição, que também reúne peças coletadas em expedições às comunidades indígenas do Centro-Oeste e Norte brasileiros. Recebeu o convite da mesma universidade, em 1963, para ocupar a cadeira de Antropologia no curso de Ciências Sociais. Também foi professor e pesquisador na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e em outras faculdades. Como professor, Aytai passou grande parte de sua vida na região de Campinas. Em cidades próximas, sua presença marcou uma trajetória no campo da Antropologia e da Arqueologia. Fundou o Museu Histórico de Paulínia, em Paulínia, o Museu Municipal Elizabeth Aytai, em Monte Mor, nome atribuído em homenagem à esposa, pesquisadora que encontrou, no ano de 1971, uma urna funerária de tradição Tupi, datada de 800 a 1000 anos. Hoje o museu está sob a direção Zilda Rangel, sua discípula e grande amiga.

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Baseado na vida da escritora nova-yorquina Helene Hanff, a trama narra os efeitos de uma troca de cartas que se iniciou com um simples pedido de livro. A escritora, ao enviar uma carta à livraria de Londres em busca de livros raros, entrou em contato com o livreiro britânico que respondeu educadamente à correspondência. Daí nasceu uma comovente troca de cartas. Em relação à minha amizade com Desidério Aytai, ela teve início com o meu interesse em criar, em 1988, um centro de documentação na sede da Funai, em Vilhena, Rondônia, momento em que estive entre os grupos Nambiquara do Cerrado. Assim, enquanto Helene Hanff, personagem de Bancroft, procurou Frank Doel, papel encarnado por Hopkins, entrei em contato, também por correspondência, com Desidério Aytai, para solicitar sua produção bibliográfica e fotográfica para formar um acervo documental e bibliográfico à disposição dos funcionários para conhecerem melhor os mais de 30 grupos que formam o povo Nambiquara do Cerrado, da Serra do Norte e do Vale do Guaporé. Dentre os estudiosos que desenvolveram pesquisas com o povo Nambiquara, Aytai foi o que mais contribuiu para o enriquecimento do acervo que pretendi criar em Vilhena. Foi nesse período que tive acesso às Publicações do Museu Histórico de Paulínia, sob sua organização. Assim, a semelhança que existe entre a história de Hanff e a minha se dá em três pontos: as cartas, os livros e a amizade. Desidério Aytai nasceu em Budapeste, Hungria, em 1905. A história de Aytai no Brasil teve início após a Segunda Guerra Mundial, quando a Hungria tornou-se um Estado comunista. Avesso ao ideário comunista, Aytai deixou sua terra natal com a família para trabalhar no Museu da Smithsonian Institution, em Washington, no Musée de l’Homme, em Paris, e no Museu do Vaticano, em Roma. Em 1948, o engenheiro mecânico formado pela Real Universidade Húngara imigrou para o Brasil

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ANTROPOLOGIA

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DESIDÉRIO AYTAI


lumeMatoGrosso DESIDÉRIO AYTAI, EM 1967, COM DOIS NAMBIQUARA DA SERRA AZUL.

O desejo pelas pesquisas antropológicas, todavia, permaneceu acima de quaisquer outros interesses acadêmicos. Na década de 1960 iniciaram-se os trabalhos de campo do engenheiro etnógrafo junto ao povo Nambiquara, bem como a publicação de uma série de artigos. Entre 1963 e 1966, esteve entre o Mamaindê e o Sararé, grupos da Serra do Norte e do Vale do Guaporé, respectivamente. Com os grupos da Chapada dos Parecis realizou estudos em 1967, com o grupo Halotesu e, nesse mesmo ano, retornou ao Vale do Guaporé para pesquisar o grupo Wasusu, todos da etnia Nambiquara. Aytai passou, então, a dedicar-se às pesquisas de campo, na organização e como integrante de várias expedições às terras

dos índios Xavante (tese de doutorado), Bororo, Paresi, Guarani, Karajá, Nambiquara. Estudou um dos aspectos mais relevantes na vida dos indígenas – a música – geralmente negligenciada como objeto de estudo por pesquisadores de distintas áreas do conhecimento. A exiguidade de material sobre a música indígena deve-se, por outro lado, a dificuldade em registrar fenômeno tão efêmero como o som e, por outro lado, a de se compreender a música indígena nos contextos em que é produzida. Aytai conseguiu superar tais dificuldades e legou um riquíssimo acervo ainda a ser explorado. Em relação à música Nambiquara, o resultado das pesquisas de Aytai mostrou que o espaço musical dá-se tanto no pátio central, circundado por casas habitacionais, como

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ANTROPOLOGIA no interior de uma casa ritual, construída pelos homens especialmente para entoarem os instrumentos de taquara, com e sem ressonador de cabaça. Não há a obrigatoriedade da guarda das flautas retas ser exclusivamente na casa das flautas. O interior da mata, longe da curiosidade e dos olhos femininos, pode ser também um local apropriado para esconder os instrumentos musicais, entre galhos e, até mesmo, enrolados em cobertores. São entoadas durante o cultivo de plantas comestíveis e utilitárias, necessária à sobrevivência Nambiquara. Ao som da música, os índios ingerem um bebida à base de mandioca e também despejam-na no interior das flautas, alimentando-as, pois crêem que ali se encontra a alma do menino que, no tempo mítico, transformou-se em plantas utilitárias e comestíveis para seu povo. Principalmente em relação à musica, a contribuição acadêmica de Desidério Aytai é inquestiona-velmente decisiva para o conhecimento da cultura musical dos indígenas no país. Seus estudos são referências para pesquisadores interessados em ter acesso às especificidades da música indígena. E, ainda, ao considerar a escassez de obras sobre a cultura musical dos índios que atualmente habitam o território brasileiro, sua contribuição atinge maior dimensão,

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ÍNDIO NAMBIQUARA LORENZO, FABRICANDO UM PENTE, EM 1967.

pois teve o mérito de conservar informações etnomusicais de grupos humanos que hoje passam por transformações sociais. Nossa correspondência durou uma década: de 04.10.1987 a 18.04.1988. Recebi do professor Desidério Aytai um total de 129 aerogramas, cartas e cartões-postais. Após obter, por doação, sua produção bibliográfica e fotográfica e incorporá-la ao Acervo Documental da Fundação Nacional do Índio (Funai), nossa correspondência tomou outro rumo: o professor passou a orientar minhas pesquisas de campo, primeiramente entre os Potiguara, Paraíba, e depois entre os Nambiquara do Cerrado, Mato Grosso. Mais do que ler e orientar meus escritos, a presença de Aytai significou, na aldeia, longe das universidades, a segurança do percurso acadêmico necessário para adentrar em um terreno tão árido – o da cultural material e imaterial. Assim, tive o olhar aguçado do húngaro sob meus escritos e ao resultado de suas pesquisas de campo realizadas no anos de 1960, em especial aquelas desenvolvidas entre o povo Nambiquara. A última participação de Desidério Aytai em meus trabalhos acadêmicos ocorreu entre 1997 e 1998, durante a elaboração de minha monografia intitulada “Irmão do chão: os Nambiquara na etno-história contemporâ-

EM PRIMEIRO PLANO A ÍNDIA BERENICE, NAMBIQUARA DA SERRA AZUL, EM 1967, COM UM PARENTE.


em seu testamento. Hoje esse acervo encontra-se sob a responsabilidade do Museu do Índio, da Funai, no Rio de Janeiro, já digitalizado e disponível à pesquisa. Minha eterna gratidão ao professor Desidério se materializou no livro que escrevi: “Desidério Aytai e a etnografia Nambiquara” (2011). Na verdade, este livro foi escrito especialmente para ele. Ao me referir a Desidério Aytai, tenho por hábito compará-lo a Edgard Roquette-Pinto (1884-1954), médico, etnólogo, professor, escritor, ensaísta e pai da radiodifusão no Brasil. Isso por ambos terem percorrido um vasto caminho pelos diversos campos da ciência. Um mestre ou feiticeiro, na indagação de Carlos Drummond de Andrade que dedicou um poema a Roquette-Pinto, publicado em “Fala Amendoeira”. Aos 93 anos, em pleno exercício da profissão, no Museu Elizabeth Aytai, com as mãos trêmulas, passou a assinar suas últimas cartas como Desidério (93), “Desidério Fóssil” e “Desidério de 7 fôlegos”. No Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso, o húngaro que se naturalizou brasileiro se faz presente: dá nome à cadeira que ocupo. E no Museu Elizabeth Aytai estão as mais de cem cartas que escrevi ao professor Desidério durante uma década, acondicionadas em uma pasta amarela...

ÍNDIO NAMBIQUARA DA SERRA AZUL, EM 1967, FABRICANDO CASA.

ÍNDIOS NAMBIQUARA DA SERRA AZUL, EM 1967. O DO CENTRO TINHA PODERES MÁGICOS.

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nea”, apresentada ao Departamento de História da Universidade Federal de Mato Grosso. Nesse estudo, Aytai contribuiu de forma ímpar na análise dos textos e no enriquecimento da bibliografia Nambiquara, especialmente enviando-me cópias de estudos em língua estrangeira. Junto às cartas do professor, recebi os números das Publicações do Museu Histórico de Paulínia, com artigos direcionados aos meus interesses. Ao final de poucos anos pude colecionar todos os números do periódico, cuja edição foi interrompida após a sua morte. Minha correspondência com o professor Desidério foi intensa e produtiva. Nossos laços estreitaram-se a cada carta. Infelizmente, não tive a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente, como Helene Hanff não conheceu Frank Doel no filme “Nunca te vi, sempre te amei”. Mas, igualmente à escritora e ao livreiro, uma amizade nasceu. Amizade que teve como ponto de partida a pesquisa etnográfica, quando impingiu um legado técnico e metodológico às minhas pesquisas. Com sua morte, em 1995, recebi do Museu Histórico de Paulínia seu acervo sonoro, ainda inédito, com 71 fitas cassetes, contendo narrações indígenas sobre mitologia e cantos de diversas etnias que estudou. Creio que o professor tenha deixado estabelecido

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MEIO AMBIENTE

Consciência Ambiental

Em 10 anos, projeto repovoa rio Araguaia com 150 mil filhos de tartarugas-da-amazônia

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POR ROSE DOMINGUES FOTOS JOSÉ MEDEIROS

a recente edição projeto, foram soltas no Rio Araguaia, em São Félix do Araguaia, cerca de 3,5 mil tartarugas. A meta deste ano é ampliar para 10 mil e realizar o projeto dentro de escolas da região. Cerca de 150 mil filhotes de tartarugas-da-amazônia já foram soltos nos Rio Araguaia a partir do projeto ‘Amigos da Natureza’, lançado há 10 anos pelos municípios da região em parceria com o governo do estado. Além de fazer o repovoamento desta espécie que estava na lista de extinção, a iniciativa promove a educação ambiental da

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população, especialmente de crianças e jovens. O biólogo e voluntário do projeto, Francisco Assis Ribeiro Sousa, morador de São Félix do Araguaia, explica que o índice de sobrevivência das tartarugas na natureza fica em torno de 2 a 4% apenas. Com o manejo, fazendo a soltura dos filhotes sem os riscos de predadores, esse índice eleva para60%. Anualmente, têm sido soltos nos municípios da região uma média de 10 mil filhotes de tartaruga. “Todo esse esforço vale a pena porque, na natureza, esse resultado levaria de 20 a 30 anos para acontecer”.


lumeMatoGrosso Em mais uma edição do projeto, foram soltas no dia 15 de janeiro cerca de 3,5 mil filhotes de tartaruga às margens do Rio Araguaia e em alguns lagos próximo ao centro de São Félix do Araguaia (1.130 km de Cuiabá). A ação teve a participação de famílias inteiras, crianças, adolescentes, autoridades locais e também representantes da Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema). Com o neto Walter Hugo, de 9 anos, a presidente da Colônia Z7 de pescadores, Maria Rezende Alves, foi uma das pessoas da comunidade que fez questão de participar da soltura das tartarugas. Ela conta que atualmente a entidade possui 50 pescadores cadastrados, dos quais 20 do município vizinho, Novo Santo Antônio. Essa é a primeira vez que participam do projeto. “É com grande alegria que estamos envolvidos, porque ‘quem ama cuida’, quero que meus netos aprendam desde cedo que a natureza deve ser respeitada e bem cuidada”. Para o capitão da Marinha de São Félix, Sílvio Rocha de Sá, a parceria com o projeto foi uma experiência excepcional, pois, além de doar combustível e disponibilizar barco e homens para fazer o manejo dos

ovos, o espaço da instituição também serviu como berçário dos filhotes nos últimos 40 dias. “Nós pretendemos dar continuidade devido à importância de envolver as escolas, é uma maneira muito prática de deixar as crianças motivadas a conservar a natureza”. Mesmo com a troca de comando para o capitão Alexandre Rodrigues Araújo, a Marinha deve permanecer no projeto. Os promotores do município, Emanuel Escalante Ribeiro e Natália Guimarães Ferreira, fizeram questão de ajudar na soltura das tartarugas. Para Ribeiro, a experiência foi incrível e motivadora, já que o recurso doado pelo Ministério Público Estadual (MPE) para aquisição de combustível teve boa aplicabilidade. “Vamos ampliar a nossa participação a partir deste ano, por entender que a conscientização depende desse envolvimento social, principalmente das crianças”. A prefeita Janailza Taveira Leite, que acabou de assumir a administração municipal, afirma que este ano quer ampliar e fazer parceria com os outros municípios vizinhos não só na questão ambiental, como turística e de infraestrutura. “Até pouco tempo, a carne de tartaruga era um prato típico da região, transformar esse hábito cultural

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MEIO AMBIENTE

leva tempo e exige intervenções como esta, por isso pretendemos levar o projeto este ano para dentro de uma escola, para que as crianças cuidem dos filhotes”. Por estar ameaçada de extinção, a tartaruga-da-amazônia (Podocnenis expansa) é protegida por lei para captura, posse, transporte e comércio. Ainda assim, há o contrabando da carne dela, que é considerado por alguns um prato exótico e saboroso. A gordura é procurada para uso cosmético e medicinal. “Até pouco tempo, a tartaruga era abundante na região Araguaia e consumida somente pela população ribeirinha e indígena. Mas depois passou a sofrer forte pressão para seu comércio ilegal para outras regiões”, acrescenta Assis, o coordenador do projeto. Ele conta que na época da desova, em setembro, milhares de ovos às vezes são esmagados e deixados ao sol dentro de canoas e outros utensílios, para extrair a gordura. “Essa realidade precisa acabar, por isso estamos abertos a novos parceiros”.

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SOBRE A TARTARUGA A época de desova é entre agosto e setembro, no auge da seca; e o nascimento dos filhotes acontece entre final de novembro e dezembro. O filhote nasce com uma média de 5 a 7 centímetros e atinge, se for fêmea, até 1 metro, podendo ter até 50 kg, que é maior que o macho, podendo viver por mais de 100 anos. O número de filhotes está relacionado ao tamanho da fêmea, 70 a 120 filhotes por desova.


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Civilizando o Homem em Relação a Natureza

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Gaspar Rocha - o protetor das tartarugas POR JULIANA MENEZES FOTOS JOSÉ MEDEIROS

oi em 1979, que Gaspar Saturnino Rocha saiu do Pantanal para uma operação contra desmata-mento, na região do Araguaia. Na volta, a equipe do IBDF, hoje Ibama, parou na pequena cidade de Ribeirão Cascalheira para to-

mar um lanche. Foi então que descobriram o comércio de ovos, banha e carne de tartarugas. Era espantoso ver carroças com mais de 30 tartarugas gigantes da Amazônia retiradas da natureza de modo tão predatório. Foi diante dessa cena que nasceu uma his-

tória de mais de três décadas de dedicação e empenho para preservação dos quelônios de água doce. De lá para cá, Gaspar conta que já ajudou quase 12 milhões de filhotinhos de tartaruga a escapar de gaviões, jacarés, gambás e entrarem na água. Pode

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MEIO AMBIENTE

“GENTE, NÃO ESTAMOS PRESERVANDO A NATUREZA PARA A GENTE. ESTAMOS PRESERVANDO PARA NETOS, TETERENETOS. SE DEIXAR ACABAR, DAQUI UNS VINTE ANOS NÃO TEREMOS MAIS NADA”. SEO FELI

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e um dia terá que deixar as tartaruguinhas. Com tanta dedicação ao meio ambiente, sabemos que esse dia vai chegar, mas a história de seu Gaspar, que tanto contribuiu com Mato Grosso, já está gravada para sempre. OS TETERENETOS DE FELI Teterenetos... O sotaque pantaneiro, a fala humilde e a determinação fazem de Felizberto Alves da Costa, o seu Feli, uma pessoa única. Em uma época em que a tristeza o assolava por conta da morte da mãe, ele foi atraído para o Araguaia para ajudar na preservação dos quelônios de água doce, as tartarugas. O “tchique tchique” da areia, barulho feito quando os pés entram em contato com um areia tão limpa e pura, e a possibilidade de preservar a natureza fizeram com que o pantaneiro se apaixonasse pelo Araguaia. No começo, era difícil ir ajudar na soltura das tartaruguinhas e deixá-las. Passados alguns anos, o projeto começou a dar resultados. “Seo” Feli lembra que quando o projeto se iniciou há mais de 30 anos, por meio do técnico ambiental do IBAMA, Gaspar Rocha, o rio das Mortes não tinha mais peixes, botos ou tartarugas. Em cinco anos de projeto, o rio das Mortes voltou à vida. Ainda que não seja doutor da caneta, Felizberto possui um conhecimento da rotina das tartarugas que ape-

nas a experiência de quase três décadas de dedicação pode proporcionar. Atualmente, Felizberto é chefe do Refúgio da Vida Silvestre Quelônios do Araguaia, unidade de conser-vação criada por Mato Grosso há 14 anos. Ele cuida da preservação da tartaruga da Amazônia e fiscaliza a pesca ilegal dentro da unidade. Os anos de experiência de pescador profissional no Pantanal, em Mato Grosso do Sul, fazem com que seu Feli tenha um olho que nenhum pescador é capaz de enganar: ele sabe exatamente a malha da rede, o tipo de anzol que pegou aquele peixe. Com jeitinho, ele conversa, educa e convence: pesca, somente com muita responsabilidade e fora da área de conservação. Ele está satisfeito em ter deixado a vida de pescador profissional, que segundo ele não dá camisa para ninguém, para cuidar da natureza. E nós ficamos muito felizes em saber que no mundo há pessoas como Felizberto. Pessoas que sabem que precisamos pensar cada vez mais no futuro das próximas gerações. PENSAMENTO “A compaixão pelos animais está intimamente ligada a bondade de caráter, e pode ser seguramente afirmado que quem é cruel com os animais não pode ser um bom homem.” - Arthur Schopenhauer

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parecer muito, mas como tartaruga é um importante alimento para diversos predadores, apenas cerca de 2% desses filhotes chegam à vida adulta. Gaspar se empenha na certeza de que o trabalho garante não só a preservação do réptil, mas também de todo fauna do rio das Mortes, incluindo grandes felinos, como a onça-pintada, botos e peixes. O projeto de preservação dos animais ganhou ainda mais força com a criação da Unidade Estadual de Conservação Refúgio de Vida Silvestre Quelônios do Araguaia. É um trabalho, acima de tudo, de resultados. Há 30 anos não havia mais ocorrências de tartarugas em diversos rios de Mato Grosso. Com o trabalho focado na preservação, hoje elas estão de volta até no Parque do Cristalino. E a luta de seu Gaspar pelo meio ambiente atravessa as fronteiras do Vale do Araguaia, ele combateu os coureiros, caçadores de jacaré, no pantanal sul mato-grossense, e atuou no Parque Nacional de Chapada dos Guimarães, além de diversas outras operações em todo estado. Causos que vão desde ter que beber água de corixos usando tecido para filtrar folhas e dejetos de animais até embates com quadrilhas de caçadores. O técnico ambiental de 65 anos vai às lágrimas toda vez que pensa que sua aposentadoria está próxima

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E N T R E V I S TA ESPECIAL

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Lume na Cena Contemporânea

ClaudeteJaudy, o seu encontro com o teatro e sua homenagem às professoras Marília Beatriz de Figueiredo Leite e Terezinha de Jesus Arruda

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POR CARLOS FERREIRA FOTOS CHICO VENÂNCIO

as brincadeiras infantis na Rua Pedro Celestino, no centro histórico de Cuiabá e das práticas esportivas escolares, surge na sua vida, o teatro. Atriz desde muito cedo, com a primeira graduação em Economia, a segunda em Letras, ambas pela UFMT, atua no circo com malabares, pirofagia e prato chinês. Professora de teatro e de língua portuguesa é efetiva da rede pública de ensino e ainda lhe sobra tempo para trabalhar como produtora cultural. CLAUDETE JAUDY, CONTE-NOS, COMO TUDO COMEÇOU? Cursei o primário na Escola Estadual Barão de Melgaço e, em uma das séries, tive uma professora chamada Léa, era baixinha, assim como eu, (risos) usava óculos, muito divertida e talentosa e gostava de contar histórias, as quais po-

voaram minhas memórias por muito tempo; creio que meu gosto pelo teatro, nasceu dessa “contação” de histórias. Pouco depois, já no Colégio Coração de Jesus, desenvolvi o gosto pelo esporte e como escolha, fui jogar basquete, com todo esse tamanho. Mas, por ser pequena e rápida, meu professor Edmundo Sousa, colocou-me para treinamento especial, aí, não sobrava bola para ninguém. Já no Ensino Médio, na Escola Técnica Federal de Mato Grosso, hoje IFMT, deparei-me com o teatro, em um curso oferecido para os estudantes da escola e toda comunidade, foi paixão à primeira aula, nunca mais saí. A professora, hoje minha amiga, Marília Beatriz de Figueiredo Leite, falava sobre museus, canções da MPB que eu nunca tinha ouvido, falava também de artistas plásticos e sobre o que é teatro. Convidou-me a assistir uma aula, daí

para frente, nunca mais parei. Um novo mundo abriu-se para mim, a emoção de atuar na primeira peça teatral, “Paixão, Segundo a Conquista”, texto e direção da Professora Marília Beatriz, foi encenada na Escola Técnica. Nessa época o teatro ”Helio Vieira” estava na fase final, improvisamos tapumes e cavaletes, pois o palco ainda estava incompleto, e conseguimos inaugurá-lo. A “Paixão...” foi uma peça que ficou na memória de todos nós, através de exercícios teatrais, poesia e canto, fomos encontrando o seu tom e o ritmo. A peça falava do homem e da sua ocupação do espaço no tempo futuro, e a Professora Marília, já projetava esse futuro no teatro, quebrando o paradigma do convencional. Como podemos ver em um dos versos: Ao mundo restarão as camadas sobrepostas de silêncios, silêncios tão anunciados desde ago

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ra e estaremos então próximos ao alvo, (fim do século XX). Éramos mais de vinte e quatro jovens, entre eles: Everaldo Nonato, Ludmila Brandão, Márcia Vandoni, Marcos Cunha, Túlio Augusto Siqueira, Zita da Silva, José Hugo Taques, Neuza Fuji, Joilson Z. Rosa, Solange Maria Lima Barros, Sonizi Figueiredo, Ivana Campos, Elizabeth Correa, Noemi Carmo, Alzita Ormond, entre outros. A peça estreou em novembro de 1975 (tem gente que vai me matar por essa data - risos). Com uma platéia seleta, pais, diretores da escola e grande público, lotação total. Todos nós prontos e esperançosos para “mudar o mundo” e, de certa forma, mudamos. Hoje estamos aqui, uns especialis-

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tas, outros mestres, doutores, empresário e advogados, todos na luta cotidiana desse mundo contemporâneo e tecnológico. CLAUDETE, DEPOIS DESSE “REBENTO CULTURAL”, TEVE UMA SEGUNDA FASE? Em 1979, já na Universidade Federal de Mato Grosso, eu e Everaldo Nonato, também ator, fundamos o UNITELA - Grupo Universitário de Teatro e Laboratório, com o apoio do Departamento de Artes sob o Comando de, mais uma vez, a Professora Marília Beatriz de Figueiredo Leite que, na ocasião, nos proporcionou o acesso à Bolsa Arte da UFMT e, o nosso compromisso, como estudantes universitários, era fazer teatro. En-

tão, escrevemos e montamos a peça teatral: “Cuiabá, Cuiabá”, que traduzia por meio de críticas políticas, sátiras sobre o cotidiano social do momento que o grupo vivia. Essa peça foi encenada entre 1979 e 1980, ano este que recebemos o convite para uma apresentação na cidade de Belo Horizonte – MG, representando a Universidade Federal de Mato Grosso, no encontro de Bolsa Arte. A nossa simplicidade comoveu os mineiros que, com os olhos marejados de lágrimas nos ovacionaram; esse momento, não dá para esquecer. O Grupo era composto por Alzira Papadimacopulos, Zita Silva, Everaldo Nonato, Jacinira Arruda e Zaine Untar, professora de dança


QUAL A ORIGEM DA CIDADÃ, DA ATRIZ E DA MULHER, CLAUDETE JAUDY? Confesso que tive uma infância muito saudável. Morava no município de Nobres - MT, onde os meus pais tinham um armazém e a família um seringal. Lembro que minha casa era enorme e um quintal sem fim que acabava no rio. Nesse quintal construía meu mundo entre as galinhas, porcos e cães que eram meus fiéis amigos. Um dia passou por lá um circo e como ao lado da casa havia um campo enorme, a lona foi instalada ali. Fiquei encantada com aquele cenário e resolvi que ia ser do circo. Minhas tardes passaram a ser debaixo da lona, onde aprendi os primeiros movimentos circenses, embora poucos, mas intensos. Quando o circo foi embora, passei a ensinar o que tinha aprendido para os meus colegas de escola. Até que na década de 1980, na Casa da Cultura, já em Cuiabá – MT, com a iniciativa da Professora Terezinha Arruda, eu e mais um grupo de atores, participamos da Escola de Circo, onde aprendi as técnicas de malabares, pirofagia e do prato chinês.

COMO FOI A SUA CHEGADA E O SEU ENCONTRO COM A CAPITAL MATOGROSSENSE? Mudamos para Cuiabá, na década de 1980. A princípio estranhei a cidade grande. Imagine, mas o que me levou a acostumar por aqui foi o Cinema. Morava na Rua Pedro Celestino, bem pertinho deles: Cine Bandeirante e Cine Tropical. Quando fui pela primeira vez, confesso que tive medo. As cortinas do Cine Tropical eram verdes, de veludo, e para mim, pareciam imensas. As do Cine Bandeirantes eram vermelhas e cada um desses cinemas tinha como abertura da sessão, uma música como marca registrada da paisagem sonora. Nessa época, pagávamos apenas um ingresso, mas assistíamos o número de sessões que queríamos. Fui crescendo na Rua Pedro Celestino entre a Escola Técnica (IFMT) e a Casa da Cultura, sempre buscando conhecimento na área teatral e fa-

zia cursos e oficinas. Nessa época, chequei a ir à cidade do Rio de Janeiro, onde na CAL - Casa de Artes de Laranjeiras - fiz o Curso: Mergulho Teatral. Anos mais tarde, entrei para o mercado de trabalho e me tornei funcionária pública, mas sempre inquieta. Após formar-me em economia, fiz outra graduação em letras, ambas pela UFMT. Era o curso mais próximo da área cultural e teatral. Foi quando me veio o despertar, o acordar, o mexilhão, o responsável por tudo, o Teatro, onde me encontrei com Bertold Brechet, Augusto Boal, Shakespeare, Plínio Marcos, Vianinha, Chico Buarque, Caetano Veloso e muitos outros que, começaram a povoar a minha mente e o meu imaginário de artista. Maravilhada, viajava por esse mundo desconexo pela mão de duas mulheres que me ensinaram a amar a arte: Marília Beatriz de Figueiredo Leite e Terezinha de Jesus Arruda, minhas eternas professoras de arte, teatro e

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que cuidava na nossa expressão corporal. Os anos de Universidade cursando economia ficavam entre o profano e o sagrado, precisava do teatro para mover-me na sociedade.

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E N T R E V I S TA ESPECIAL da vida, a quem faço aqui, a minha homenagem e gratidão por terem me colocado dentro da maior escola da vida, a arte teatral. Mesmo assim, lidava entre a Economia e a Arte. Li Kant, Carl Max, fiz tabelas de juros, PIB, previ a inflação, mas estava sempre inquieta, angustiada, queria Machado de Assis, Eça de Queiroz, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Teles, Carlos Drummond de Andrade, Manoel Bandeira, entre outros. Ah! Depois, “fui para Passárgada”, lá fui amiga do Rei, fiz letras e saí professora. Acredito que sempre fui uma pessoa abençoada, desde criança. Fui platéia assídua das contações de histórias, ouvia pela boca dos peões da fazenda que, sentados em volta da fo-

À ESQUERDA IVAN BELÉM E A DIREITA CLAUDETE JAUDY

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gueira, contavam as mais lindas histórias. Da babá que contava aquelas história de bicho papão para a gente dormir e por fim, história da cidade da minha professora que, sempre ao final das aulas, parava tudo e pedia que guardássemos os materiais e nos contava histórias fascinantes. Acho que, quando temos que ser o que somos, desde cedo buscamos esse caminho e nada nos impede de alcançá-lo. COMO FOI A SUA TRAJETÓRIA, PARTICIPANDO DO TEATRO PROFISSIONAL? Em 1980, Alcides José Moura Lot, professor de teatro do Departamento de Artes da UFMT, aproveitando a formação do Grupo UNITELA – Grupo Universitário

de Teatro e Laboratório propôs várias montagens teatrais e uma delas, “Amazônia 2000”, uma pesquisa coletiva realizada na Aldeia indígena de Sangradouro e montagem do grupo, sob a direção de Alcides Lot que, em 1981, participou do Projeto Mambembão, Coordenado pelo INACEM, Instituto Nacional de Artes Cênicas, hoje FUNARTE, onde viajamos por cinco capitais brasileiras. A peça tratava de questões indígenas, problemas das ocupações fundiárias em Mato Grosso, desmatamento, entre outros, cujo feito foi registrado no Anuário do Teatro Brasileiro, pela relevância da pesquisa e temática trabalha ainda na década de 1980. Nos anos seguintes, fui contratada pela Prefeitura


EM QUE ÉPOCA VOCÊ COMEÇA NO TEATRO DE RUA E COMO ISSO SE DEU? Nos meados da década de 1980 nasce o teatro de rua, com diferentes linguagens: circo, (onde trabalhei como pirofagista e malabarista), sátira, críticas, trazendo sempre o humor, o deboche, elementos essenciais ao teatro popular. Nessa linha atuei com o Grupo Gambiarra em “Água de Melissa”, um espetáculo que montamos e que permaneceu por mais de 3 anos em cartaz.Esse trabalho era apresentado em bares, ruas, em frente de escolas e praças. Participávamos de Festivais, em todo Brasil. O Grupo Gambiarra tinha a prática de, toda sexta-feira, ia para a Praça da República no final da tarde para alegrar as pessoas que saiam do trabalho e estavam esperando ônibus e indo para suas casas. Chegávamos e fazíamos a grande roda, dançávamos e cantávamos até todos aproximarem e dávamos o início do espetáculo. Algumas vezes deparávamos com fatos inusitados e sem perder o humor, ence-

návamos e contracenávamos com o público. Anos de extremos conhecimentos e transformações. Uma das últimas montagens, “As Dondocas da República das Flores”, um musical com texto de Marilza Ribeiro e direção de Chico Amorim, trilha sonora de VeraBaggetti e Zuleika Arruda. A ação se passa na década de 50 em dois bordeis com suas respectivas proprietárias envolvidas em falcatruas com políticos. Depois com Ivan Belém e Tote Martins montamos, “A Virgindade Contestada”, texto de Luiz Carlos Ribeiro, todas encenadas no palco do Teatro Universitário. Com Regina Lobo e Milton Farias atuei na comédia, “Banho de Assento”, de Carlos Ferreira, com temporada no Teatro do Liceu Cuiabano com renda revertida a Casa Mãe Joana e ainda viajamos em algumas cidades do interior, sempre levando o humor e alegria. CLAUDETE, COMO SE DEU A SUA FORMAÇÃO NA ÁREA DO TEATRO? Participei de vários cursos de teatro em Cuiabá e em outras capitais. Além das primeiras Oficinas na Escola Técnica Federal, fiz curso com o diretor teatral João das Neves, do Rio de Janeiro, com duração de 60 horas, com Alcides José Moura Lot, estudei por aproximadamente 2 anos, Oficina de Tetro de Rua com Hamir Haddad.Já no Rio de Janeiro,

freqüentei o curso de teatro da CAL – Casa de Arte de Laranjeiras, entre outros que sempre eram oferecidos na Casa da Cultura nas décadas de 1980 e 1990. Na verdade, a minha capacitação se deu, mais empiricamente, quando comecei a ministrar oficinas teatrais para iniciantes, em projetos desenvolvidos pela Casa da Cultura de Cuiabá e pelo Teatro Universitário. Por meio da Secretaria de Apoio ao Educando, dirigida pela Professora Maria das Graças Campos, viajei para várias cidades do interior com Oficinas de teatro, malabares e pirofagia. Luz, Câmara e ação foi uma oficina desenvolvida em uma empresa para modelos, repassei as noções de interpretação e construção do ator / personagem. Outra oficina que foi muito gratificante aconteceu na Casa Cuiabana com parceria com Carlos Ferreira, na década de 90, cujos participantes eram das mais diversas áreas, tais como médico, advogado, professores, e muitas outras. VOCÊ TEM UMA PASSAGEM COMO DIRETORA NO TEATRO INFANTIL E A CONQUISTA DE ALGUNS PRÊMIOS, CONTE-NOS ESSA EXPERIÊNCIA. Em 1999, dirigi a peça infantil “Juvenal um Gato Preguiçoso”, com o Grupo Âncora de Teatro, com texto de Tânia Guimarães e com os atores Toni Costa e Janai

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Municipal de Cuiabá e lotada na Casa da Cultura, dirigida pela Professora Terezinha de Jesus Arruda, onde conheci o Grupo Gambiarra, atuando ao lado dos atores Ivan Belém, Liu Arruda, Meire Pedroso, Maria Tereza Prá, Wagton Douglas, Vital Siqueira, Mara Ferraz, Augusto Prócoro, entre outros.

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E N T R E V I S TA ESPECIAL na Paulli, participamos do IIFESTEG – Festival de Teatro do Colégio São Gonçalo, arrebatando nove prêmios entre os quais, os de melhor atriz e direção. A peça contava história sobre as queimadas sob a ótica do animal, representados por um passarinho (Toni Costa), uma formiga (Janaina Paulli) e o Cão Juvenal (Eu), e, como eles se sentem durante a queimada. Ficamos praticamente 4 anos em cartaz e apresentamos para 50 Escolas Estaduais, patrocinado pela Lei de incentivo a cultura. E em 2001, participei do IV FESTEG, com a peça “A Floresta é Minha Casa” da mesma autora de Juvenal, e direção de Janaina Paulli, onde recebi o prêmio de melhor atriz coadjuvante. Histó-

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ria essa sobre cativeiros de animais. Depois, como atriz convidada, participei da última peça, “Dona Cigarra e as Formigas no Terceiro Milênio”, de autoria de Sheila Couto. Que fala sobre o mundo do trabalho e suas manifestações. VOCÊ ESTEVE UM TEMPO AUSENTE DA CENA TEATRAL, COMO FOI ESSE PROCESSO E O QUE PRODUZIU? Após a minha participação na peça, “Dona Cigarra e as Formigas no Terceiro Milênio”, ausentei-me dos palcos e dediquei-me a minha profissão de professora, no qual fiz especialização “Descrição do português brasileiro” e vários cursos de formação e comecei atrabalhar com projetos pessoais em parceria com a produtora Lu Mello, trazendo peças nacionais para Cuiabá e me dedicando à literatura. Em 2002, lancei o livro “A Arte de se virar na arte”, um manual de conduta para assistir a espetáculos, que procura orientar o espectador desde a compra do ingresso até o cancelamento de um show que por ventura possa acontecer e o ensina como deverá agir sem conturbações, uma vez que os direitos do consumidor são garantidos por lei. Em 2005, No “Curso Técnico em Artes Dramáticas: Ator”, promovido pela Secretaria de Estado de Cultura em parceria com SENAC e SESC Arsenal, ministrei a disciplina “Análise do texto

teatral”, um curso com 40 alunos, sendo 20 da capital e 20 alunos de vários municípios de Mato Grosso, que culminou com a apresentação da peça teatral “Édipo Rei”, que teve como encenador o diretor e ator Sandro Lucose. Foi um momento Chave para as artes cênicas em Mato Grosso. Também ministrei aula como professora de História do Teatro no Curso de Tecnólogo da Universidade de Cuiabá (UNIC), uma experiência gratificante e desafiadora, pois nosso alunado era composto por pessoas de teatro, atores e atrizes que já tinham movimento em Cuiabá. NA ATUALIDADE, O QUE PRODUZ E DESENVOLVE NA ARTE E COMO VAI A SUA CARREIRA COMO PROFESSORA DA REDE PÚBLICA DE MATO GROSSO? Hoje estou atuando com “Os crônicos”, um grupo de teatro não convencional que realiza inserções cênicas das mais variadas tendências e linguagens. O grupo surgiu sob a orientação da Professora Marília Beatriz de Figueiredo Leite no ano de 2015, e já realizou algumas performances cênicas no salão nobre da Academia Mato-grossense de Letras e no Teatro Universitário pelo centenário de Gervásio Leite e Rubens de Mendonça. A partir de então, vem realizando investigações nas áreas da literatura, performance, teatro e


VOCÊ TEM ALGUMA “CARTA NA MANGA” PARA UM FUTURO BEM PRÓXIMO? Eu sempre escrevo poesia assim, de improviso. Tenho um caderno desses sem capa, surrado que fica ao alcance da mão, e nele vou depositando meus pensamentos, minhas impressões. Gosto de brincar com as palavras e descobrir os vários sentidos que ela nos propõe. Quando tiver material suficiente, aí sim, lançarei

meu livro de crônicas e poesias. Por hora, estou mais na fase de leitora, devagarzinho vou consumindo Eduardo Mahon, Marta Coco, Marilza Ribeiro, Lucinda Persona, Ivens Scaff, Luiz Carlos Ribeiro, Luciene Carvalho, Manoel de Barros, Silva Freire, Guilherme Dick, e outros tantos, estou aprendendo com eles e elas a me jogar na literatura. CLAUDETE JAUDY, FALENOS UM POUCO SOBRE O QUE É O TEATRO E DA IMPORTÂNCIA DESSA LINGUAGEM NA SUA VIDA. O bom do teatro é que ele não tem fim, é uma constante renovação, uma aprendizagem contínua. O artista de teatro nunca está pronto. Cada montagem é um desafio, cada atuação é como se fosse a primeira vez, onde a construção da personagem tem que ser trabalhada, pesquisada, nos seus mínimos detalhes, na sua essência. É exercitar-se constantemente! Quem faz teatro, tem que ler muito para ter referências que ajudarão na composição da personagem e da cena. O teatro enquanto lugar, cabe a todos. Nesse sentido, nunca está esgotado, cabe o jovem, o velho, a criança, o engenheiro, o advogado, o professor, o pedreiro, a balconista, o eletricista, o músico, o maquinista, o motorista. Enfim....., tudo e todos. Fazer teatro é estar em sintonia com uma luz bri-

lhante. E é essa luz brilhante que me guia e que muitas vezes a vejo no corpo de profissionais como da atriz, Fernanda Montenegro, pela qual tenho grande respeito e admiração. Assisti-la no teatro, na televisão ou no cinema é uma aula extraordinária. Cada gesto, cada olhar, na medida certa, o tom de voz claro, ritmo enxuto. Outra luz, sempre brilhante no meu caminho é Augusto Boal, de quem gosto muito pela história e militância no teatro popular, trazendo para o palco personagens admiráveis e de lutas inesgotáveis. E são essas luzes brilhantes que me revela que a importância do teatro em minha vida é estar em sintonia com a paz.

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música, em busca de materiais que sirvam de suportes literários para a construção de uma dramaturgia apropriada às intervenções cênicas que realiza. Um trabalho que me deu imenso prazer foi a montagem do espetáculo “Rondon: Silêncio Orgânico de Flores” de Silva Freire, na 4ª edição do Circuito Cultural Setembro Freire, dirigido pelo diretor Luiz Marchetti. Como professora, busco uma linguagem cultural com meus alunos, trabalhando com literatura de maneira prazerosa, seja dos Clássicos ou Contemporâneos, mas sem perder o lúdico. E continuo trabalhando ao lado da produtora Lu Mello em produções de peças teatrais e shows que estão em circuito nacionais. Portanto, nem sempre estou em cena, mas na cena da arte, nos bastidores e nos backstage da vida. Na arte é assim: movimento, ela vai girando e nós seguindo o percurso.

CARLOS ROBERTO FERREIRA Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea pela UFMT, ator e diretor teatral e professor efetivo de arte da rede pública de ensino de Mato Grosso. Contato: E-mail: robertoferreiera. cultura@gmail.com Facebook: Carlos Roberto Ferreira

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R E P O RTAG E M ESPECIAL

Segredos da Floresta

Leonardo Rocha é loiro, tem olhos azuis e se autodenomina índio. Índio Yawalapiti, com vivência e experiência xinguana. Desde criança mora em Chapada dos Guimarães, uma cidade mística e bastante visitada por suas belezas naturais e clima ameno FOTOS MARIO FRIEDLANDER

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R E P O RTAG E M ESPECIAL

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habilidade e conhecimento com as plantas, adquiridos desde sua infância com o povo Yawalapiti, no Alto Xingu, além do amor e encantamento pelos segredos da floresta, fizeram de Leo Rocha um homem conhecido mundo afora, através da série de TV “ Desafio em Dose Dupla Brasil”, produzida pela Discovery Channel. Esse programa, de grande audiência mundial, mostra as técnicas que Leo Rocha e o Coronel Leite, também especialista em sobrevivência em ambientes selvagens, desenvolveram para protagonizar tal empreitada.

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O DESAFIO DO XINGU Leo Rocha tinha onze anos de idade quando conheceu os Yawalapiti, em 1987, no I Encontro de Pajés, realizado na cidade de Chapada dos Guimarães, onde morava com sua família. (...) “Menino branco, coração índio, vai com nós”. Com estas palavras, o Pajé Tacumã, comunicou dona Avani, mãe de Leo, que levaria seu filho para o Parque Indígena do Xingu. Ainda menino Leo aprenderia a ser índio. Tacumã, um dos pajés mais importantes de todos os tempos, ficou tão intrigado com o menino branco que, tão jovem, já sabia tan-

to sobre plantas, que o convidou para voltar com eles para a aldeia. Dona Avani deixou, mas se não tivesse deixado, ele iria mesmo assim. Durante seis meses, Leo conheceu técnicas indígenas e os segredos dos remédios do mato. Recebeu ensinamentos a respeito das histórias dos povos indígenas, das plantas, dos bichos e, principalmente, da complexidade das relações que existem na natureza. Ele aprendeu a respeitar a natureza, sem medo. Nessa época, em 1987, o cacique dos Yawalapiti do Alto Xingu era Paru, um renomado raizeiro, falecido em 2015. Ao ver Leo-


O ARCO PRETO O arco preto, que faz parte da vida de Leo Rocha, é uma arma lendária, procurada por índios de várias culturas. Faz-se o arco preto valendo-se de técnica milenar, com madeira retirada de árvore rara e somente encontrada no Alto Xingu. É conhecida pelos Mehinako por Muiapitana. Trata-se de madeira de cor vermelho escuro e suas fibras lembram múscu-

los. Apresenta cerne muito duro, com densidade muito alta, de aproximadamente 1.200 km/m³, pesada, que afunda na água. Uma pequena lasca de aproximadamente 2 m de comprimento pesa até 200 kg. Ancestralmente era feito a partir de machadinha, lasca de pedra, dente de animais e fogo. Por isso uma peça levava meses, as vezes até o ano todo para se concluir o processo de sua confecção. Mas o retorno era um arco com uma espécie de garantia vitalícia, que dura gerações, passando de pai pra filho, neto, bisneto e não se acaba. Por isso é muito valioso. É uma das peças que possui maior valor de troca no Alto Xingu, com os povos que os procuram É usado, inclusive, como pagamento de dotes de casamento. É um arco que transmite a força do guerreiro com precisão e força incríveis. É o arco de maior potência entre os arcos nativos brasileiros. Ao longo dos tempos fez muita diferença na sobrevivência dos índios desta região, sendo fundamental como ferramenta de subsistência e arma de defesa. Tal arma possibilitou que esses povos habitassem essa região desde os tempos mais remotos, pois pra eles o mito da criação do mundo é no Xingu. Contemporaneamente Léo Rocha é um dos poucos Yawalapiti que ainda detém o conhecimento de confeccionar o arco preto. Talvez o único.

OPÇÃO DE VIDA É comum deparar-se em Chapada dos Guimarães com Leo Rocha, afinal de contas é ali que ele mora. Sua casa é atípica, customizada com enorme bloco de pedra canga e árvores do cerrado em sua sala de visitas. Uma enorme clarabóia joga luz solar e água de chuva nas árvores e plantas que vicejam ao seu derredor. As janelas, as portas, os vitrais e a luz de velas, sempre acesas em vários pontos daquele espaço mágico leva paz e harmonia aos seus moradores e aos seus amigos e convidados. Sempre de pés descalços e trabalhando em atividades que remetem aos povos da floresta, busca socializar seus dividendos com seus irmãos índios, por entender que essa é uma forma de retribuir e fortalecer a cultura e conhecimentos adquiridos nas matas xinguanas. Em 2014, voltou ao Xingu, e ali ficou por trinta dias. Esteve com os Yawalapiti e buscou madeira para confeccionar o arco preto. Buscou na floresta e encontrou uma árvore já morta num incêndio, caída na mata. Achou a madeira sozinho. Tirou 14 lascas de mais de 2 m de comprimento. Deixou 12 lascas na mata, e, trouxe duas pra fazer os arcos na cidade de Chapada dos Guimarães. Dentre suas inúmeras atividades profissionais se destaca a de rea

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nardo, Paru adotou-o como seu filho. Aritana, contemporaneamente o maior representante indígena entre os brancos, em todos os níveis, é filho de Paru. Paru, como a ele se refere Leonardo, pois era esse o nome que usava quando o adotou, ficou conhecido por Kanato, que representa evolução de seu pai, Índio Paru. No Alto Xingu, adotam-se vários nomes durante a vida: e outros podem vir como títulos de reconhecimento de seu desenvolvimento como pajé, líder, guerreiro, guerreiro cantador, contador de histórias e outras especialidades indígenas. Em 1993, aos dezessete anos, Leo Rocha voltou ao Alto Xingu para mais uma temporada de aprendizado, sendo recepcionado por seu pai, Cacique Paru, que ordenou a Muraika Waura, a ensinar o jovem Leo a fabricar o mítico arco preto. Muraika, já falecido, era grande arqueiro, um dos poucos que detinha o milenar conhecimento de fazer o arco preto.

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R E P O RTAG E M ESPECIAL lizar vivências na natureza para pessoas interessadas em aprender técnicas básicas e conhecer os recursos que essa experiência oferece. Participam dessas experiências pessoas das mais diferentes profissões e lugares, que tem vontade de conhecer os segredos que a floresta apresenta. Em fevereiro de 2015, inaugurou em Chapada dos Guimarães a “Leo Rocha Arte Indígena”, uma loja dedicada a divulgar e resgatar a cultura dos povos nativos do Brasil. Nesta mesma linha de atividade comercial vai funcionar sua loja no Aeroporto Marechal Rondon, em Várzea Grande. O encontro consigo mesmo, sua aceitação como menino índio, mesmo sendo branco e de olhos azuis, fez de Leo Rocha um homem diferente, capaz de fabricar o mítico arco preto. Sobre esta fase de sua vida, com os Yawalapiti, entre os onze e dezessete anos, no Xingu, a jornalista Letícia Baeta produziu espetacular texto, com o título de “O menino branco e o arco preto”, como podemos ver na sequência. O MENINO BRANCO E O ARCO PRETO “Quando ele completou dezessete anos, voltou pro Xingu. Ele tinha aprendido muita coisa quando foi pela primeira vez, aos onze anos. Na meninice ficou seis meses. Seis meses quase todo em reclusão. Não totalmente fecha-

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do, um sistema semi aberto. Às vezes pescava, saía pro rio, brincava. Mas a maior parte do tempo ficou dentro da grande casa, fechadinho no escuro e no silêncio da reclusão. Paru Cacique e índios de várias aldeias, algumas a mais de 500 km de distância, vinham de barco e a pé, prá contar suas histórias pros meninos da reclusão. Essas histórias nunca lhe saíram da cabeça. Pelo contrário. Ele quase ouvia suas vozes quando, agora grande, entrava no mato: “Aquela planta, menino, vai procurar aquela planta que eu te ensi-nei”. Reconhecia árvores, folhas, galhos que só conhecia nas histórias em cada trilha, caminho, passagem que andava. Descalço, sempre descalço no seu mato. Ele até sonhava na língua. E voltar ao Xingu agora era uma grande honra para ele. Leonardo percebia essa oportunidade. Estava radiante de felicidade, sentia o Xingu inflamando no peito. E Paru pai sabia, sentia e via Leonardo inquieto. Ele também não queria perder um tiquinho de Leonardo sequer. Paru então pediu a Muraika Waurá que ensinasse Leonardo a fazer o arco preto. Muraika não gostou muito da missão. Paru sabia dos dons de Leonardo desde que ele veio, menino. Paru estava preparando Leonardo. E era chegada a hora de fazer arco preto. Não só a hora dele, do

menino, mas o momento da aldeia. Poucos sabiam fazer tão importante peça. Um pouco mais de tempo... um pouco menos de tradição e o conhecimento de tal raridade estaria extinto. Paru sabia, Paru temia. Então Muraika deu o pior de seus facões a Leonardo e saíram na pior hora da tarde a procura da madeira. Andaram por horas na mata, com pouca comida. O mestre tentava desanimar Leonardo. Pensava que o menino branco desistiria fácil da missão. Muraika não acreditava em Leonardo. Mas, como Paru pediu, o velho chegou até a grande árvore. Rachar a madeira com machado, tirar o brancal, deixar só o cerne e levar a lasca para a aldeia. O mestre ensinou e foi embora. O menino ficou. Sozinho no mato. Leonardo pegou o machado e começou a cortar a árvore. Bateu, bateu, bateu. Leonardo cansado, Leonardo suado. Por quase sessenta dias o menino branco trabalhou no mato e percorreu o mesmo caminho até conseguir levar toda a madeira até a aldeia. Um caminho de pântano. Teve um índio que passou por ali e foi atacado por uma sucuri, e viam sempre pegada de onça. Quando o dia nascia e o menino branco acordava, atravessava o pântano e ia prá sua árvore trabalhar as lascas. As vezes nem comia, esquecia. E trabalhava, trabalhava. O menino branco do arco pre


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chamou alguns homens no centro da aldeia. Chamou o menino branco e levou o arco preto. Ele falava e pedia para um índio mais jovem traduzir para o português de Leonardo. “Muraika não queria ensinar arco preto pra Leonardo. Muraika pensava Leonardo não conseguir. Muraika não podia desrespeitar madeira, desrespeitar arco. Então Muraika deu madeira errada para Leonardo. Madeira pequena. Pensava, Leonardo não vai conseguir. Mas Muraika está muito feliz. Leonardo conseguiu. Mesmo madeira pequena. Leonardo bom. Muito bom.” O menino branco não sabia se chorava ou se ria. Se corava ou se sumia. Mas todos olharam para ele e mexeram suas cabeças em sinal de entendimento. Mas no fundo, lá no fundo, Leonardo branco sentiu. Acima do seu orgulho de bom arqueiro que era, ele se sentiu enganado. Não gostou. A mentira lhe feriu como uma flecha que fura e sangra. Foi pra beira do rio. Ficou. Por um bom tempo o menino branco ficou parado, olhando a água se mexendo sabiamente. Voltou pra aldeia, chamou Muraika, encarando-o de outra forma, um pouco mais de igual pra igual e o intimou com todo respeito: “amanhã quando o sol ainda estiver nascendo você vai me levar no mato de novo. Vai me mostrar a madeira certa!”

Não sei se o velho entendeu as palavras ditas em português, mas ele captou o recado e acenou afirmativamente. Conforme combinado, os dois arqueiros saíram no escuro da madrugada e trombaram com o sol nascendo pelo caminho, onde estava madeira certa do arco preto. Árvore grande, tronco grosso. Leonardo caminhava decidido. Pés certeiros no chão, olho semicerrado a procura dos detalhes na mata. Facão na mão, pele queimada, mãos calejadas. O branco mudava de cor, virava índio! Da madeira certa, Leonardo Rocha não tirou apenas uma lasca para fazer o arco, tirou nove. Recomeçou o trabalho de dois meses, com o mesmo empenho. Alguns dias antes de terminar o trabalho, várias casas da aldeia pegaram fogo, inclusive a sua. Leonardo perdeu tudo: arco, rede, documento, dinheiro pra voltar pra cidade. (...) “Eu perdi tudo. Fiquei só com três lascas que estavam dentro do rio, e a minha bagagem passou a ser a roupa que eu tinha no corpo e o facão que eu estava na mão. Mas ai eu vi o tanto que eu era da tribo. Porque no outro dia eu tinha rede, eu tinha cobertor, eu tinha roupa, comida. Eu tinha a mesma coisa que todo mundo tinha e a mesma falta que todo mundo tinha. Ai eu vi o quanto eu estava sendo aceito completamente na tribo”.

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to. No meio da manhã voltava prá aldeia e ia mexer com as lascas que já estavam guardadas no rio, escondidas pra nenhum índio achar. As vezes escondia e nem achava mais... depois procurava até achar... esconderijo de índio... loca de bicho. Na beira do rio trabalhava com o facão, faca pequena, caco de vidro pra raspar e lixa. Depois de três a quatro meses de dedicação a peça enfim ficou pronta. Leonardo branco não acreditava. Estava satisfeito, estava orgulhoso. Muraika chamou então Leonardo para o último processo. O velho ainda não acreditava em Leonardo. O menino não havia desistido por nada! Muraika então acendeu uma pequena fogueira, pegou arco de Leonardo e colocou perto do fogo. Aqueceu um lado, virou do outro. Parecia que o mestre assava um peixe. Todo arco preto passa por esse último processo. Se um mínimo corte errado na madeira, logo no começo do trabalho, tivesse sido feito, agora, no fogo, a madeira racharia de fora a fora, como um vidro estilhaçado. O fogo esquentava a cara de Leonardo, olhando fixo e, de perto, seu arco, enquanto Muraika esperava pela rachadura. Muraika esperou, mas ela não veio. O mestre então olhou para Leonardo branco. Muraika entendeu Leonardo. Muraika entendeu Paru. No dia seguinte o velho

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C U LT U R A

O Poder Das

Palavras

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POR JOÃO CARLOS MANTEUFEL FOTOS DIVULGAÇÃO


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JOÃO CARLOS MANTEUFEL Publicitário e cineasta

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pedido foi simples. João, fala do seu novo filme, lançado no Cine Teatro, que conta com depoimentos de grandes poetas, músicos, escritores, jornalistas, editores, filme que fez um breve apanhado de toda cadeia produtiva que cerca a palavra. Mas vivemos em tempos sombrios. Precisamos refletir muito mais do que jogar confetes. A idolatria da palavra deverá ser o calvário da humanidade. Ou sua salvação. Desde as cavernas, esperamos uma intervenção divina, esperamos que os imperadores não fossem tão romanos, esperamos que a igreja não acreditasse em indulgências, esperamos que a peste se interrompesse, esperamos que o pensamento burguês fosse apenas uma moda, esperamos que a guerra resolvesse, esperamos o mundo atômico, por conta da fé nas palavras, seja de um ou de outro, esperamos até chegarmos num futuro doente e dividido. O futuro é agora. Trump, Putin, LePen, Bolsonaro, são realidades e

não utopias. Uma vez solta, a palavra não tem volta. A Palavra é forte. A palavra é inexorável. A Palavra é poder. Pela Palavra Jesus arrastou multidões e ainda arrasta aos Bilhões. Pelas Palavras, o homem cantou aos 4 ventos a tão saudada Revolução Industrial. Industrialização que se disseminou por todas as latitudes. Dinheiro pelo dinheiro, dente por dente, doa a quem doer. A visão horizontal ofusca o crescimento vertical. Não podemos mais esperar. Tempo é dinheiro. Tudo na vida tem um preço. E tem mesmo. Somos cria de uma geração que, movida a sagaz fórmula do capital gerando capital, destruiu, no último século, mais que o restante de toda humanidade. Os fins justificam os meios. Em vez de resguardar podemos desfrutar, em vez de apreensão podemos amortizar. Só que nos chega uma conta alta demais. Um cálculo que chelpa nenhuma poderá abrandar. Não me livro da culpa. Minha profissão é criar sonhos impossíveis ao alcance da sua mão, é tornar um objeto em

símbolo, é simplesmente vender pra fazer você comprar, comprar e comprar. E vendemos tudo. Até a alma. E numa guerra de palavras, começamos a vender o mais precioso dos produtos: o planeta. Nunca se falou tanto em aquecimento global, em preservação. É a nova moda. É a nova moda para sustentar aquela antiga e perpétua moda. Mais uma ação num planejamento de marketing, mais um alvitre a ser oferecido. Compre aqui e salve o planeta em 10 vezes sem juros. Que nada! Aquecimento global é coisa da mídia. Aquecimento global não existe. Assim são as Palavras. Imutáveis e mutantes. Palavra que deverá ser o calvário da humanidade. Não vamos expor que estamos tratando um câncer maligno com doses homeopáticas, não vamos desvendar que o capitalismo nunca deixará de ser selvagem. Estamos apenas criando uma espera para o que não tem como esperar. Infelizmente, talvez, estejamos criando o último capítulo da Humanidade. Que Deus tenha piedade de nós.

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FOTOGRAFIA

FOTOS DOS ALUNOS


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HENRIQUE SANTIAN O fotógrafo documentarista traz em suas obras um pouco daquilo por onde passa, histórias contadas em imagens, e sentimentos que nos fazem enxergar o mundo a nossa volta e ver que nosso espaço se resume na amplidão

Quilombolas de Vila Bela

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TEXTO DA REDAÇÃO FOTOS HENRIQUE SANTIAN

fotógrafo Henrique Santian tem desenvolvido notável trabalho em Mato Grosso, além de ser conhecido pela qualidade de seu olho clínico para boas imagens, tem-se dedicado ao ensino da arte de fotografar. Santian já esteve em todos os quadrantes desse Estado, ensinando e orientando jovens aprendizes e amantes da fotografia. Recentemente desenvolveu trabalho de etnografia em oficinas de fotogra-

fia na cidade de Vila Bela da Santíssima Trindade, a primeira capital de Mato Grosso. Santian selecionou 20 jovens quilombolas que documentaram através de imagens a cidade e sua rica história e cultura. O intuito foi aprimorar uma discussão sobre a relevância da fotografia, sua importância documental e suas características etnográficas. “A fotografia é cada vez mais presente no nosso cotidiano e pode ser utilizada como expressão autoral e ferramen-

ta de produção do conhecimento”, disse Santian aos seus alunos. Continuando sua explanação falou: “Ao fazermos as imagens nos apropriarmos de um objeto que desaparecerá. Existe uma magia quando imortalizamos as pessoas e o tempo nas fotos. Para as tribos urbanas, fotografias são provas de sua existência, de sua identidade e história, a oficina aprimora ressaltar a importância da fotografia como instrumento de resgate documental”.

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MEMÓRIA

Filinto Müller

A história que precisa ser revisada

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POR JOÃO CARLOS VICENTE FERREIRA

o começo deste mês de março visitei o casal de amigos Zita Müller e Zé Arruda, em Cuiabá. Na saída, após um bom café com chipas e uma conversa prá lá de gostosa, Zita me entregou cópia de uma carta escrita há mais de cinquenta anos e guardada no seio familiar por deferência a Filinto Müller, um dos mais ilustres membros dessa tradicional família mato-grossense. Essa carta foi escrita por Romário Paulino do Espírito Santo, amigo e admirador de Filinto Müller, notadamente pelo que este fi-

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zera pelos “filhos” de Mato Grosso na cidade do Rio de Janeiro. O destinatário era David Nasser, jornalista que se destacou nas décadas de 1950 até 1970, com artigos contundentes e ácidos direcionados a Filinto Müller, de quem era declaradamente um desafeto. A carta, escrita com veneranda paixão pelos feitos de Filinto, por ter sido testemunha ocular de fatos históricos, foi feita para tocar o coração do jornalista, se tocou, não sei, no entanto, ao escreve-la, Romário representou centenas de pessoas que foram recepcionadas, bem atendidas

e encaminhadas à vida, no Rio de Janeiro. Desses jovens muitos voltaram à sua terra e contribuíram para o seu crescimento, outros ficaram na então capital federal do país, à época. Muito ainda há de se falar sobre Filinto Müller, a história lhe deve a réplica. É comum vermos histórias e biografias sendo manchadas por atos impensados. E depois? Como ficam essas pessoas que tiveram dedos apontados para si? Se defenderam a tempo? Alguns não. Acredito que esse é o caso de Filinto, pois sua precoce morte o impediu desse feito.


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MEMÓRIA

A CARTA: “Rio de Janeiro, 9 de janeiro de 1966 Meu caro David Nasser

Chamo-o de “caro” porque o respeito, pela sua figura de jornalista independente, útil à coletividade e, sobretudo, por considera-lo um homem sério. Você não me conhece, nem precisará conhecer-me, se não o desejar. Chamo-me Romário Paulino do Espírito Santo, de 52 anos, Delegado de Polícia aposentado e advogado militante. Prestei, também, durante 20 anos serviços à Mes-bla, como Superintendente de Pessoal e, agora, por estar doente, fui obrigado a afastar-me do serviço efetivo, passando, a Consultor Jurídico Trabalhista. Estou dando estes dados para você obter informações sobre a minha pessoa, se lhe interessar conhecer quem lhe escreve e o admira. Entretanto, como você, eu sou um homem e não posso mais omitir-me a respeito das injustiças que você faz a Filinto Müller. Estou certo de que você não está bem informado e eu lhe peço que me permita repor a verdade dos fatos. Conheci Filinto quando ele era Capitão, com 32 anos e eu um rapaz pobre, com 18 anos, lutando com dificuldades, apesar de já ser bacharel em Ciências e Letras. Vim de Mato Grosso para estudar e, para fazê-lo, fui até servente. Passei privações até que Filinto me acolheu, dando-me um emprego de investigador especial, mas dando-me, mais do que o emprego, a certeza de que eu já não estava só. Na Polícia, servi a Filinto com o maior entusiasmo, expondo inúmeras vezes a minha vida. Dei e levei tiros, especialmente na fase aguda do comunismo. Muitas vezes tivemos que agir com violência, reprimindo violência, mas jamais houve a covardia, a perversidade e crueldade que você insiste em imputar a Filinto. Isso representa uma contradição na sua vida de jornalista. Você diz tantas verdades, fica sabendo que isso é uma mentira. Fui testemunha ocular dos fatos. Filinto era Chefe de Polícia de uma Ditadura, era um homem forte, duro, mas era um homem de bem. Houve, é claro, alguns excessos de auxiliares, mas que ele reprimia, só não dando publicidade para não dar armas ao “inimigo”. Não houve o caso da cela mais húmida, nem a frase que você lhe atribui, “pode ir tratando do enterro”, dirigindo-se ao pai de Fournier. Não houve a sevícia à mulher de Berger, como nada teve Filinto com o ato da extradição da mulher de Prestes. Muita coisa eu lhe poderia contar se tempo houvesse de sua parte para ouvir-me.

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Escreve-lhe, repito, para que o líder de uma geração de jornalistas não persista num erro e numa injustiça. Afianço-lhe, sob minha palavra de honra, que Filinto não sabe desta carta, não a autorizaria. Mas eu não preciso mais de Filinto, nem mesmo de sua autorização. Minha gratidão para com ele, que só acabará com a minha morte, entretanto, faz com que o respeite como a um pai, que o estime como a um irmão – também o defendo como a um filho. Sou um homem que nada mais deseja a não ser paz para dedicar à família o resto dos seus dias. Fui humilde a vida toda e quero morrer humildemente. Não quero sequer que esta transpire além de nós dois, porque eu já estarei em paz por ter tirado esse “osso que me atravessava a garganta há tantos anos”, e você poderá estar em paz se usar a coragem que possui para retificar um erro que vem cometendo reiteradamente. Estou diabético Nasser, pagando para não ter as preocupações que tive a vida inteira, mas não pude mais silenciar-me depois que li, como sempre faço, o seu último artigo de “O Cruzeiro”. Qualquer que seja a sua atitude, eu não mudarei em relação a você, que eu considero um baluarte da democracia. Continuarei a ouvir o Diário de um Repórter e a ler as suas brilhantes crônicas, mesmo quando injustas como a do caso em tela, talvez por ser baseada em informações errôneas. E perdoe-me “por ser longo, por não tive tempo de ser breve”, porém, como advogado, como cidadão e como mato-grossense, eu precisava defender esse homem que amparou uma geração de “bororos”, como eu, e que hoje ainda é um dos esteios da nacionalidade. Cordialmente,

Romário Paulino do Espírito Santo P.S. Assim, não concordo com todas as cousas que você escreve, mas defenderei até a morte o seu direito de escreve-las.”

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EDUCAÇÃO

Língua Portuguesa: 10 Palavras Portuguesas de Origem Russa A Língua Portuguesa sempre incorporou palavras de outros idiomas. Descubra 12 casos de palavras portuguesas de origem russa.

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COM VXMAG


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o longo dos séculos, a Língua Portuguesa adotou palavras de outros idiomas. No início, as palavras tinham origem sobretudo no latim e no grego. Mais tarde, o francês ganhou preponderância. Nos últimos tempos, foi a língua inglesa a ganhar terreno. No entanto, tempos houve em que a Língua Portuguesa incorporou palavras da Língua Russa. Apesar da distância física que separa Portugal da Rússia, o enorme potencial cultural do povo russo, especialmente durante os tempos da União Soviética, fez com que outros idiomas do mundo adoptassem palavras suas. A nossa lista possui apenas 12, mas serão mais embora as que não estão aqui listadas não tenham tradução oficial em português ou sejam apenas utilizadas em situações ou contextos especiais. É o caso das palavras Perestroika (reforma), Glasnot (transparência), Siloviki (homens que possuem armas), etc… Descubra algumas palavras portuguesas de origem russa.

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EDUCAÇÃO

1. VODKA

3. TUNDRA

»»Vodca ou vodka (em russo: водка; em polaco: wódka) é uma popular bebida destilada, incolor, quase sem sabor e com um teor alcoólico entre 35 e 60%. A vodca é a bebida nacional da Polônia e da Rússia, O nome vodka (em português: vodca) é o diminutivo de água (“aguinha”) em várias línguas eslavas, contudo não se tem certeza da origem etimológica, que poderia ser apenas uma coincidência.

»»Tundra é um bioma no qual a baixa temperatura e estações de crescimento curtas impedem o desenvolvimento de árvores. Existem três tipos de tundra: tundra árctica tundra alpina, e tundra antárctica. Numa tundra, a vegetação é composta por arbustos, ciperáceas, gramíneas, musgos e líquenes. Em algumas tundras existem árvores dispersas. O ecótono entre a tundra e a floresta é denominado linha de árvores. O termo “tundra” tem origem em russo: тундра, a partir do lapónico tūndâr (“terras altas”, “região montanhosa sem árvores”).

2. MAMUTE

4. TAIGA

»»Do russo mammot, nome dado aos res-

tos mortais dos paquidermes encontrados desta espécie. No entanto, a origem da palavra mamute é confusa. Alguns etimologistas consideram que o termo tenha surgido a partir do francês mammuthus, que mais tarde foi incorporado ao dicionário espanhol na forma mamut. Outros estudiosos da raiz etimológica da palavra “mamute” acreditam que ambos os termos (russo e francês) derivaram da língua ostíaca, falada pelo povo ostíaco, que habitava a região da Sibéria Ocidental. A partir da língua espanhola, o termo “mamute” chegou ao português.

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»»A taiga (do russo тайга́), também conhecida por floresta de coníferas, ou ainda floresta boreal, é um bioma predominante das regiões localizadas em elevadas latitudes cujo clima típico é o continental frio e polar, comumente encontrado no norte do Alasca, Canadá, sul da Groenlândia, parte da Noruega, Suécia, Finlândia, Sibéria e Japão. No Canadá, usa-se o termo floresta boreal para designar a parte meridional desse bioma, e o termo taiga é usado para designar as áreas menos arborizadas a sul da linha de vegetação arbórea do Ártico. FOTO DIVULGAÇÃO


»»Troika ou troica (em russo: тройка) é a palavra russa que designa um comité de três membros. A origem do termo vem da “troika” que em russo significa um carro conduzido por três cavalos alinhados lado a lado, ou mais frequentemente, um trenó puxado por cavalos. Em política, a palavra troika designa uma aliança de três personagens do mesmo nível e poder que se reúnem num esforço único para a gestão de uma entidade ou para completar uma missão, como o triunvirato de Roma. 6. BOLCHEVIQUE

7. CZAR

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5. TROIKA

»»Tsar (ou Czar) é uma versão reduzida da

palavra latina caeser, introduzida ao vocabulário popular em 1547 por Ivan, o Terrível, e refere-se ao título oficial do monarca russo. No período entre os anos 1613 e 1917, a Rússia foi comandada pela Dinastia Romanov, e o primeiro czar chamava-se Mikhail Fiódorovitch. O último governante do país, Nikolai II, abdicou do trono em 1917 a favor do seu irmão mais novo Mikhail, que, mesmo seguindo o exemplo do Nikolai e recusando-se a ser o próximo monarca, é formalmente considerado o último czar russo. 8. BELUGA

»»É o termo usado para se referir aos mem-

bros do Partido Comunista, o único existente na União Soviética. A palavra nasceu num dos congressos do Partido Social Democrata de Trabalhadores da Rússia, quando o grupo liderado por Vladimir Lenine recebeu a maioria de votos num dos principais assuntos discutidos. Apesar de o grupo não ter obtido o mesmo sucesso em outras votações, a palavra ganhou a popularidade e foi atribuída a todos os aliados do futuro líder soviético. Após a divisão do partido em “bolcheviques” (maioria) e “mencheviques” (minoria), o primeiro grupo ganhou maior apoio da população pela associação da palavra “maioria” com algo “melhor”.

»»A Baleia Branca, ou Beluga, é um mamí-

fero marinho da ordem dos cetáceos. Habitando as águas frias do hemisfério Norte, as Belugas são encontradas em altas latitudes, em torno do círculo polar Ártico, distribuindo-se desde a costa da Groenlândia até à região da Noruega. Populações residentes

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EDUCAÇÃO

»»destes mamíferos são observadas na cos-

ta do Alasca e Canadá, porém tratam-se de uma exceção, visto que esta espécie geralmente realiza migrações sazonais em grupos de 30 a 100 indivíduos. 9. COSSACO

o nome aldeão de Matriona, ou Matriochka, o seu diminutivo. É curioso que o seu protótipo foi um brinquedo desmontável japonês, que chegou à Rússia no final do século 19. Uma matriochka pode conter entre 3 a 24 bonecas. Ultimamente, ganharam popularidade como lembranças da Rússia bonecos representando figuras políticas. Por exemplo, dentro de Putin está Ieltsin, e dentro deste, Gorbatchov, seguido por Brejnev, Khruschov, Estaline e Lenine em miniatura. 11. GULAG

»»A palavra “cossaco” vem do russo kazak. O termo é originário do turco e quer dizer “aventureiro” ou “homem livre”. Os cossacos são um povo proveniente das estepes da Europa oriental, ao norte do mar Negro e do mar Cáspio. Eles têm parentesco com o atual povo cazaque, que hoje vive no Cazaquistão, situado ao sul da Rússia. O termo “cossaco” também designa os soldados que serviam no exército do czar (imperador) da Rússia, principalmente na cavalaria. Os cossacos dividiam-se em dois principais grupos étnicos: os cossacos zaporojianos, que habitavam as estepes da Ucrânia; e os cossacos russos, das regiões fronteiriças do Principado de Moscóvia (sediado em Moscou). 10. MATRIOSCA

»»Gulag é a abreviação para “Diretoria Geral de Campos de Prisioneiros”, criada na década de 1930. Lá, criminosos e presos políticos eram mantidos e usados para trabalhos pesados. Após o lançamento do livro “Arquipélago Gulag”, de Aleksandr Soljenítsin, a palavra transformou-se em sinónimo de repressões políticas, já que a maior parte das vítimas eram condenadas a até 25 anos de prisão por crimes não existentes. Muitas vezes, as penas incluíam “10 anos sem direito de correspondência com familiares” – o que, até certo ponto, também significava pena de morte em diversos casos. 12. COSMONAUTA

»»Cosmonauta é uma adaptação da pala-

»»A conhecida boneca de madeira, no interior da qual estão várias outras menores, tem

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vra russa kosmonavt, derivada das palavras gregas “kosmos” (“universo”) e “nautes” (“marinheiro”). Então, semanticamente falando, a única diferença entre um astronauta e um cosmonauta é que no primeiro caso a palavra considera as estrelas, e no segundo o universo. Por convenção, cosmonauta é o viajante espacial da Roscosmos (a agência espacial federal russa).


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CLARICE LISPECTOR Escritora

A Lucidez Perigosa POR CLARICE LISPECTOR FOTOS DIVULGAÇÃO

Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: é uma lucidez vazia, como explicar? assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise. Estou por assim dizer vendo claramente o vazio. E nem entendo aquilo que entendo: pois estou infinitamente maior que eu mesma, e não me alcanço. Além do que: que faço dessa lucidez? Sei também que esta minha lucidez pode-se tornar o inferno humano - já me aconteceu antes.

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Americanidade A Busca Pelo Intercâmbio Cultural Entre Os Povos Da América Do Sul:

Mercedes Sosa

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cantora argentina Mercedes Sosa, das vozes mais conhecidas do folclore latino-americano, nasceu em Tucumán no dia 9 de julho de 1935, tendo falecido em Buenos Aires, a 4 de outubro de 2009.

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Mercedes, que ficou conhecida pelo apelido de La Negra, devido os seus longos e lisos cabelos negros, foi descoberta aos quinze anos de idade, cantando numa competição de uma rádio local da cidade natal, quando foi-lhe oferecido um contrato de dois meses.


são pelo Brasil, a temporada foi tensa. Em Curitiba seus fãs em sua maioria eram os estudantes que se identificavam com sua música de protesto, suas posições políticas corajosas e dignas. Mercedes convocou compositores de músicas novas a dividirem as gravações: o cubano Pablo Milanes em El Tiempo, em Implacable, El Que Puso; Teresa Parido no chamamé Pedro Canoeiro; Tito Paez em Parte Del Aire; Victor Heredia em Marcar Quila. Mercedes possui um dueto So le piedo a Dios com a cantora de samba, Beth Carvalho, cada uma cantando no seu idioma. Destaca-se também o dueto de Mercedes com o cantor cearense Fagner na música “Años”, sucesso gravado em 1981. Outra música de Mercedes muito conhecida na sua firme e, ao mesmo tempo, terna voz é a canção Gracias a la vida, composição de Violeta Parra. A cantora recebeu, em vida, diversos prêmios, dentre os quais um Grammy Latino, na categoria de Melhor Álbum Folclórico, com o CD Misa Criolla. Teve destaque o disco Alta Fidelidad, de 1998, com canções do roqueiro argentino Charly Garcia. Mercedes seguia fiel ao seu lema: “O que entra no coração do povo não pode ser proibido”. Nada como o tempo para fazer as devidas colocações. Símbolo da resistência política, dos direitos humanos, da contestação as ditaduras latino-americanas nos anos 1960 e 70, Mercedes Sosa nunca mudou. Continuava a ser a grande cantora e compositora - íntegra artista que, sempre, corajosamente, denunciava as violências dos ditadores do Cone Sul. Entretanto, ela, que era perseguida, boicotada e cuja presença assustava a tantos, foi adulada por um público que aprecia suas letras, música e performance musical que mescla temas de paz e igualdade social. Mercedes nunca deixou de cantar as mazelas do povo, fosse em discos ou shows. Mesmo após seu passamento, sua voz continuou a correr o mundo, visto que a música era a atividade que exerceu com enorme prazer até sua morte

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Admirada pelo timbre de contralto, gravou o primeiro disco Canciones con Fundamento, com um perfil de folk argentino. Consagrou-se internacionalmente nos EUA e Europa em 1967, e em 1970, com Ariel Ramirez e Felix Luna, gravando Cantata Sudamericana e Mujeres Argentinas. Gravou um tributo à chilena Violeta Parra. Mercedes interpretou um vasto repertório, gravando canções de vários estilos. Atuou com muitos músicos argentinos, a exemplo de León Gieco, Charly García, Antonio Tarragó Ros, Rodolfo Mederos e Fito Páez, além de outros latino-americanos, notadamente brasileiros. Foi ativista política de esquerda, e peronista na juventude. Em tempos relativamente recentes manifestou-se como forte opositora de Carlos Menem e apoiou a eleição do presidente Néstor Kirchner. Sua preocupação sócio-política refletiu-se no repertório interpretado, tornando-se uma das grandes expoentes da Nueva Canción, um movimento musical latino-americano da década de 1960, com raízes africanas, cubanas, andinas e espanholas. Por ser engajada politicamente, amargou anos de exílio voluntário, durante os quais excursionou por diversos países, inclusive o Brasil. A música brasileira era uma das paixões de Sosa. Foram muitos os encontros com nomes como Milton Nascimento, Chico Buarque e Raimundo Fagner, Caetano Veloso, Gilberto Gil, dentre outros artistas. São expressões da Nueva Canción, marcada por uma ideologia de rechaço ao que entendiam como imperialismo norte-americano, consumismo e desigualdade social. Em 1978, em turné pelo Brasil, Mercedes passou pelo aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, onde foi proibida de sair da sala VIP, lá foram vê-la seus amigos Milton Nascimento e Chico Buarque, entre outros. Na época, seu nome constava na relação dos indesejáveis da ditadura militar que dominava o Brasil. Mais tarde, quando, finalmente, obteve autorização para fazer sua primeira excur-

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