REVISTA PIXÉ
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Marli Walker É Doutora em Literatura (UnB). Leciona no IFMT e integra o Coletivo Literário Maria Taquara/Mulherio das Letras - MT. Publicou os livros de poesia “Pó de serra” (2006/2017), “Águas de encantação” (2009), “Apesar do amor” (2016), Jardim de ossos (2020) e o romance “Coração Madeira” (2020).
A literatura tem sexo? É possível identificar uma “escrita feminina”? Em Portugal, houve essa discussão na década retrasada, um esforço para demonstrar que, empiricamente, as mulheres pensam e escrevem de forma diferente dos homens. Isto é, há uma espécie de desvio estético, uma nuance, uma exclusividade. Você concorda? Pensar sobre o sexo da literatura seria como discutir o sexo dos anjos. Literatura é literatura e desenvolver a arte literária, criar em prosa e verso deixou de ser um privilégio androcêntrico quando as mulheres começaram a publicar. No entanto, e muito diferente disso, é possível identificar uma escrita literária feminina em função da perspectiva gerada pelos filtros que permeiam o ser e estar da mulher no mundo, essencialmente diferente da experiência masculina. Essa característica nada tem a ver com desvio estético ou exclusividade temática e formal. Trata-se, antes, de uma escrita que traz para a representação da realidade a voz de sujeitos historicamente marcados pela cultura falocêntrica, isto é, a mulher escreve e articula a sua voz a partir do lugar a que essa cultura a relegou durante séculos, a partir dessas marcas, da herança cerceadora e impositiva que sempre a representou como objeto, nunca como sujeito nas narrativas literárias. Isso é ruim? Isso é bom? Perguntas equivocadas. É apenas diferente. E é sobre essa diferença que recaem inúmeras pesquisas, que antecedem as discussões portuguesas, em busca de concepções e formulações teóricas sobre uma especificidade na escrita da mulher. A diferença existe e é relativamente simples de entender.
Veja que, em 1929, a britânica Virgínia Wolff já afirmava que “uma mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu para escrever ficção”. Duas décadas depois, a francesa Simone de Beauvoir analisou a condição cultural de submissão a que a mulher fora submetida historicamente como condicionante de sua exclusão do espaço público, cunhando a famosa afirmação de que “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Ora, o processo é cultural, está claro. Bem, de lá para cá, tanto em Portugal como em vários lugares do mundo, as reflexões em torno do tema se multiplicaram e, evidentemente, reverberaram no Brasil, onde os estudos de gênero foram introduzidos a partir dos anos 1990. Por aqui, há diversos grupos de pesquisa consolidados analisando, discutindo e teorizando o tema. Cito o Grupo de Trabalho Mulher e Literatura, filiado à ANPOL, do qual faço parte, apenas para ilustrar. Veja que não se pode começar a pensar a questão da diferença de vozes sem passar pelas circunstâncias histórias que homens e mulheres viveram, ou seja, a cultura patriarcal que traz o homem como o centro em torno do qual o mundo gira e para quem tudo converge. O homem sempre foi o narrador das guerras e das conquistas porque ele é que viveu todas as experiências do espaço público, tanto político quanto econômico e cultural. Ele sempre decidiu sobre os destinos de todos os membros da família. Ele dispôs da existência da mulher, que ficou restrita ao espaço doméstico como espectadora e espelho amplificador de todas as narrativas de glória e poder criadas por ele. Não estou dizendo que essa condição de passividade a