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Clark Mangabeira
TATUAGEM
Adúvida era simples, quase simplória: fazer ou não. Havia prós e contras, ambos os lados defendendo a posição com austeridade militar, limitando-se, contudo, a ressoar obviedades: como será quando ficar velha? Você vai se arrepender! O corpo é seu, faça o que quiser! O que importa isso tudo? A menina saiu certa. Os pais, mesmo dizendo que não se importavam, fingiam a posição, realmente não se importando... Maria desceu as escadas decidindo o local da tatuagem. Em cima do braço, comum demais; na panturrilha, cafona; no abdômen, dolorido. Enfim, decidiu-se. Era um local diferente, inusitado, não tão óbvio. Feliz, abriu a porta que dava para a rua.
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A certeza da decisão trouxe uma paz justa. Havia uma felicidade cor vermelho-terra, agridoce, na falta de dúvida. Descia pela garganta com o gosto de terra molhada. Chovia fino. Maria acelerou o passo, temendo o arrependimento. Não da tatuagem, isso estava definido. Temia o arrependimento da felicidade. Ser feliz causa estrago, incomoda os outros. Dá trabalho, ser feliz. É um investimento constante, uma doação a si mesma que deixava todo mundo com olhar de lobo, prateado, pronto para o abate. Maria, temendo o pior, distraiu-se com a camada de vapor que saía da terra marcada pela chuva. Marcas. Era isso que inventava a felicidade. Chegou à porta do estranho que a aguardava. Ele sorriu de volta. Marcado, estava pronto para marcá-la também. Valia a pena guardar o agridoce na boca, o cheiro de terra molhada. Percebeu-se mais certa da decisão. Mais feliz. Mais invejada. O moço preparou com calma o ato, um pouco sádico, sabendo a dor que iria causar. Ser feliz dói. Maria curvou-se: veio a primeira picada. Ela lacrimejou, mas sorriu por dentro.
Lembrou-se da chuva lá fora e os lobos foram embora.
Clark Mangabeira
Carioca cuiabano, é doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ e professor adjunto de Antropologia da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT. Graduado em Direito, Letras e Ciências Sociais, é escritor de ficção, tendo publicado contos e poemas em diversas revistas literárias e acadêmicas, e escreve enredos das Escolas de Samba do Rio de Janeiro.