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Walesca Cassundé
A TRAGÉDIA DE MARIA E A ÓPERA BUFA
Num sete de setembro de um ano que não começou de fato, os dragões da independência marcham, ombro a ombro, ostentando todo o aparato de seus ricos uniformes: dragonas, espadas reluzentes e penachos coloridos.
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No palanque, autoridades da república acompanhados de suas matronas dirigem ao povo um palavrório oco - discursos retóricos; inúteis para um público carente de tudo: saúde, segurança, emprego, educação de qualidade e justiça. E lá está Maria, indigente de esperança, acompanhando os desfiles em bloco. O marido foi despedido pela empresa que faliu, atropelada pela pandemia. Mudaram-se para o entorno de Brasília para reduzir as despesas com moradia mas, sem o salário do varão, precisam fazer biscates para alimentar a filha especial.
Melancólica, ela vê graduados empunhando a bandeira - o verde tremeluzente ofuscado pela fumaça cinzenta que mancha o céu da floresta e do cerrado.
Agoniada, tenta render-se ao surto de patriotismo que assola a plateia - arrebatada pela imagem do mandatário da nação desfilando em carro aberto - a faixa presidencial atravessada no peito; a expressão solene e o sorriso tranquilo dos bem-nutridos.
Desolada e faminta, Maria se esgueira pelo eixo monumental até a Passarela dos Poderes, protegida pela invisibilidade social que a todos enfeitiça, e aproveitando o ensejo do setembro amarelo, estanca a sua dor sangrando os pulsos, com a ajuda de um cutelo. E ali jaz Maria - a excluída, esvaindo-se em sangue no chão de Brasília.
Walesca Cassundé
Nome literário de Walesca de Araújo Cassundé, cuiabana, residente em Campo Grande-MS. Formada em direito pela FUCMT. Advogada por opção e criminalista por vocação. Poeta por catarse, libertação física e purgação espiritual. Em março de 2017, lançou “Confissões Essenciais”, pela Ed. Gráfica Ruy Barbosa.