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XII

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XXV

XXV

A velha exclamou, levando as mãos á cabeça:

—Ai! nem me falle n’isso, senhor parocho! Nem me falle n’isso, que até tenho estado doente!

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—Ah, já sabe?

—E mais que sei, senhor parocho! O senhor padre Natario, devo-lhe esse favor, esteve aqui hontem e contou-me tudo! Ai, que maroto! Ai, que alma perdida!

—E sabe que é o intimo do Agostinho, que são [289] bebedeiras na redacção até de madrugada, que vai para o bilhar do Terreiro achincalhar a religião...

—Ai, por quem é, senhor parocho, nem me diga, nem me diga! Que hontem, quando o senhor padre Natario esteve ahi, até tive escrupulos d’ouvir tanto peccado... Que lhe devo esse favor, ao senhor padre Natario, logo que soube veio-me contar... É de muito delicado... E olhe, senhor parocho, a mim sempre me quiz parecer isso mesmo do homem. Eu nunca o disse, nunca o disse! Que lá isso, esta boquinha nunca se pôz em vidas alheias... Mas tinha cá dentro um palpite. Elle ia á missa, cumpria o jejum; mas eu cá tinha a desconfiança que aquillo era para enganar a S. Joanneira e a pequena. Agora se vê! Eu foi creatura que nunca me cahiu em graça! Nunca, senhor parocho!—E de repente, com os olhinhos luzidios d’uma alegria perversa:—E agora, já se sabe, o casamento desmancha-se?

O padre Amaro recostou-se na cadeira, e muito pausadamente:

—Elle, minha senhora, seria notorio que uma rapariga de bons principios fosse casar com um pedreiro-livre, que não se confessa ha seis annos!

—Credo, senhor parocho! antes vêl-a morta! É necessario dizer tudo á rapariga...

O padre Amaro interrompeu, chegando rapidamente a cadeira para ao pé d’ella:

—Pois foi justamente para isso que eu a vim procurar, minha senhora. Eu hontem já fallei com a pequena... Mas comprehende, no meio d’aquelle [290] desgosto, com a pobre senhora a expirar ao lado, não pude insistir muito. Em-

fim disse-lhe o que havia, aconselhei-a por bons modos, expuz-lhe que ia perder a sua alma, ter uma vida desgraçada, etc. Fiz o que pude, minha senhora, como amigo e como parocho. E como era o meu dever (ainda que me custou, realmente custou-me), lembrei-lhe que, como christã e como senhora, tinha obrigação de romper com o escrevente.

—E ella?

O padre Amaro fez uma visagem descontente:

—Não disse que sim nem que não. Pôz-se a fazer biquinho, a choramingar. É verdade que estava muito alterada com a morte em casa. Que a rapariga não morre por elle, isso é claro; mas quer casar, tem medo que a mãi morra, que se veja só... Emfim sabe o que são raparigas! Que as minhas palavras fizeram-lhe effeito, ficou muito indignada, etc... Mas emfim, eu pensei que o melhor era a senhora fallar-lhe. A senhora é a amiga da casa, é madrinha, conheceu-a de pequena... Estou certo que no seu testamento havia de lhe deixar uma boa lembrança... Tudo isto são considerações...

—Ai, fica por minha conta, senhor parocho! exclamou a velha; hei de lh’as cantar!...

—A rapariga o que precisa é quem a dirija. Aqui para nós, precisa quem a confesse! Ella confessa-se ao padre Silverio; mas, sem querer dizer mal, o padre Silverio, coitado, pouco vale. Muito caridoso, muita virtude; mas o que se chama geito [291] não tem. Para elle a confissão é a desobriga. Pergunta doutrina, depois faz o exame pelos mandamentos da lei de Deus... Veja a senhora!... Está claro que a rapariga não furta, nem mata, nem deseja a mulher do seu proximo! A confissão assim não lhe aproveita: o que ella precisa é um confessor têso, que lhe diga—para alli! e sem réplica. A rapariga é um espirito fraco; como a maior parte das mulheres não se sabe dirigir por si; necessita por isso um confessor que a governe com uma vara de ferro, a quem ella obedeça, a quem conte tudo, de quem tenha medo... É como deve ser um confessor.

—O senhor parocho é que lhe servia...

Amaro sorriu modestamente:

—Não digo que não. Havia de aconselhal-a bem; sou amigo da mãi, acho que ella é boa rapariga e digna da graça de Deus. Que eu, sempre que converso

com ella, todos os conselhos que posso, em tudo, dou-lh’os... Mas a senhora comprehende, ha coisas em que se não póde estar a fallar na sala, com gente á volta... Só se está á vontade no confessionario. E é o que me falta, são as occasiões de lhe fallar só. Mas emfim eu não posso ir dizer-lhe: «a menina agora ha de se confessar commigo»! Eu n’isso sou muito escrupuloso...

—Mas digo-lh’o eu, senhor parocho! Ah, digo-lh’o eu!...

—Ora isso é que era um grande favor! Era um bem que fazia áquella alma! Porque se a rapariga me entrega a direcção da sua alma, então podemos [292] dizer que lhe acabaram as difficuldades, e temol-a no caminho da graça... E quando lhe vai fallar, D. Josepha?

D. Josepha, «como julgava peccado adiar», estava decidida a fallar-lhe essa mesma noite.

—Não me parece, D. Josepha. Hoje é noite de pezames... O escrevente naturalmente está lá...

—Credo, senhor parocho! Pois eu e as outras pequenas havemos de passar a noite debaixo das mesmas telhas com o hereje?

—Tem de ser. Emfim o rapaz por ora é considerado da familia... Além d’isso, D. Josepha, a senhora, a D. Maria e as Gansosinhos são pessoas da maior virtude... Mas nós não devemos ter orgulho da nossa virtude. Arriscamo-nos a perder-lhe todos os fructos. E é um acto de humildade, que agrada muito a Deus, o misturar-nos ás vezes com os maus; é como quando um grande fidalgo tem de estar lado a lado com um trabalhador d’enxada... É como se dissessemos: «eu sou-te superior em virtude, mas comparado com o que devia ser para entrar na gloria, quem sabe se não sou tão peccador como tu!...» E esta humilhação da alma é a melhor offerta que podemos fazer a Jesus.

D. Josepha escutava-o, babosa; e n’uma admiração:

—Ai, senhor parocho, que até dá virtude ouvil-o!

Amaro curvou-se:

—Deus ás vezes, na sua bondade, inspira-me [293] justas palavras... Pois minha senhora, eu não quero massar mais. Ficamos entendidos. A senhora falla

á pequena ámanhã; e se, como é de crêr, ella consentir em escutar os meus conselhos, traz-m’a á Sé no sabbado, ás oito horas. E falle-lhe têso, D. Josepha!

—Deixe-a commigo, senhor parocho!... Então não quer provar da minha marmelada?

—Provarei, disse Amaro tomando um ladrilho em que cravou os dentes com dignidade.

—É dos marmelos da D. Maria. Sahiu-me melhor que a das Gangosinhos...

—Pois adeus, D. Josepha... Ah, é verdade, que diz o nosso conego d’este caso do escrevente?

—O mano?...

N’este momento a campainha em baixo repicou com furor.

—Ha de ser elle, disse logo D. Josepha. E vem zangado!

Vinha, com effeito, da fazenda—furioso com o caseiro, o regedor, o governo e a perversidade dos homens. Tinham-lhe roubado uma porção de cebolinho; e, abafado de cólera, alliviava-se repetindo com gozo o nome do Inimigo.

—Credo, mano, que até lhe fica mal!—exclamou D. Josepha tomada d’escrupulos.

—Ora mana, deixemos essas pieguices para a quaresma! Digo co’os diabos! e repito co’os diabos! Mas eu lá disse ao caseiro, que se sentir gente na fazenda, carregue a espingarda e faça fogo! [294]

—Ha uma falta de respeito pela propriedade... disse Amaro.

—Ha uma falta de respeito por tudo! exclamou o conego. Um cebolinho que dava saude só olhar para elle! Pois senhores, lá vai! Isto é o que eu chamo um sacrilegio!... Um desaforado sacrilegio!—acrescentou convictamente; porque o roubo do seu cebolinho, o cebolinho d’um conego, parecia-lhe um acto tão negro d’impiedade como se tivessem sido furtados os vasos santos da Sé.

—Falta de temor a Deus, falta de religião, observou D. Josepha.

—Qual falta de religião! replicou o conego exasperado. Falta de cabos de policia, é o que é!—E voltando-se para Amaro:—Hoje é o enterro da velha, hein? Inda mais essa! Vá, mana, mande-me lá dentro uma volta lavada e os sapatos de fivela!

O padre Amaro então, retomado pela sua preoccupação:

—Estavamos cá a fallar do caso do João Eduardo: o Communicado!

—Isso é outra maroteira que tal! fez logo o conego. Vejam essa, tambem! Que quadrilha vai pelo mundo, que quadrilha!—E ficou de braços cruzados, com os olhos arregalados, como contemplando uma legião de monstros, soltos pelo universo, e arremessando-se com impudencia contra as reputações, os principios da Igreja, a honra das familias e o cebolinho do clero.

Ao sahir, o padre Amaro renovou ainda as suas [295] recommendações a D. Josepha, que o acompanhára ao patamar:

—Então hoje, noite de pezames, não se faz nada. Ámanhã falla á rapariga, e lá para o fim da semana leva-m’a á Sé. Bem. E convença a rapariga, D. Josepha, trate de salvar aquella alma! Olhe que Deus tem os olhos em si. Falle-lhe têso, falle-lhe têso!... E o nosso conego que se entenda com a S. Joanneira.

—Póde ir descansado, senhor parocho. Sou madrinha, e, quer ella queira quer não, hei de pôl-a no caminho da salvação...

—Amen, disse o padre Amaro.

N’essa noite, com effeito, D. Josepha «não fez nada». Eram os pezames na rua da Misericordia. Estavam em baixo, na saleta, alumiada lugubremente por uma só vela com um abat-jour verde-escuro. A S. Joanneira e Amelia, de luto, occupavam tristemente o canapé ao centro; e em redor, nas fileiras de cadeiras apoiadas á parede, as amigas, cobertas de negro pesado, conservavam-se funebremente immoveis, de faces contristadas, n’um torpôr mudo: ás vezes duas vozes ciciavam, ou d’um canto, na sombra, sahia um suspiro: depois o Libaninho, ou Arthur Couceiro, ia em bicos de pés espevitar o murrão da véla: a snr.a D. Maria da Assumpção expectorava o seu catarrho com um som choroso: e no silencio ouviam tamancos bater o lagedo da rua, ou os quartos d’hora no relogio da Misericordia.

A intervallos a Ruça, toda de negro, entrava [296] com o taboleiro de dôces e copos de chasada; levantava-se então o abat-jour; e as velhas, que já iam cerrando as palpebras, sentindo a sala mais clara, levavam logo os lenços aos olhos, e, com ais, serviam-se de bolinhos da Encarnação.

João Eduardo lá estava, a um canto, ignorado, ao pé da Gansoso surda que dormia com a boca aberta: toda a noite o seu olhar procurara debalde o olhar d’Amelia, que não se movia, com o rosto sobre o peito, as mãos no regaço, torcendo e destorcendo o seu lenço de cambraiela. O padre Amaro e o conego Dias vieram ás nove horas: o parocho com passos graves foi dizer á S. Joanneira:

—Minha senhora, o golpe é grande. Mas consolemo-nos, pensando que sua excellentissima mana está a esta hora gozando a companhia de Jesus Christo.

Houve em redor uma murmuração de soluços; e como não restavam cadeiras, os dois ecclesiasticos sentaram-se aos dois cantos do canapé, tendo no meio a S. Joanneira e Amelia em lagrimas. Eram assim reconhecidos pessoas de familia; a snr.a D. Maria da Assumpção notou baixinho a D. Joaquina Gansoso:

—Ai, até dá gosto vêl-os assim todos quatro!

E até ás dez horas a noite de pezames continuou soturna e somnolenta, perturbada apenas pela tosse constante de João Eduardo que estava constipado, e que—na opinião da snr.a D. Josepha Dias que o disse a todos, depois—«tossia só para fazer [297] troça e para achincalhar o respeito aos mortos».

D’ahi a dois dias, ás oito horas da manhã, a snr.a D. Josepha Dias e Amelia entraram na Sé—depois de terem fallado no terraço á Amparo, mulher do boticario, que tinha uma criança com sarampo, e, apesar de não ser coisa de cuidado, «viera á cautela fazer uma promessa».

O dia estava ennevoado, a igreja tinha uma luz parda. Amelia, pallida sob a sua mantilha de renda, parou defronte do altar de Nossa Senhora das Dôres, deixou-se cahir de joelhos, e ficou immovel, com o rosto sobre o livro de missa. A snr.a D. Josepha Dias, com passos fôfos, depois de se ter prostrado diante da capella do Santíssimo e do altar-mór, foi empurrar devagarinho a porta da sacristia: o padre Amaro lá passeava, com os hombros vergados, as mãos atraz das costas:

—Então? perguntou logo, erguendo para D. Josepha a sua face muito barbeada, onde os olhos reluziam inquietos.

—Está alli, disse a velha baixinho, n’uma expressão de triumpho. Fui eu mesmo buscal-a! Ai, fallei-lhe têso, senhor parocho, não lh’as poupei! Agora é comsigo!

—Obrigado, obrigado, D. Josepha! disse o padre, apertando-lhe as mãos ambas com força. Deus ha de lh’o levar em conta. [298]

Olhou em redor, nervoso; apalpou-se para sentir o lenço, a carteira dos papeis; e, cerrando devagarinho a porta da sacristia, desceu á igreja. Amelia ainda estava ajoelhada, fazendo um vulto negro immovel contra o pilar branco.

—Pst, fez-lhe D. Josepha.

Ella ergueu-se devagar, muito escarlate, compondo tremulamente com as mãos as pregas da mantilha em roda do pescoço.

—Aqui lh’a deixo, senhor parocho, disse a velha. Vou á Amparo da botica, e venho depois por ella... Ora vai, filha, vai, Deus t’alumie essa alma!

E sahiu, com mesuras a todos os altares.

O Carlos da botica—que era inquilino do conego e um pouco ronceiro na renda—desbarretou-se com espalhafato apenas D. Josepha appareceu á porta, e conduziu-a logo acima, á sala de cortinas de cassa, onde a Amparo costurava á janella.

—Ai, não se prenda, snr. Carlos, dizia-lhe a velha. Não largue os seus afazeres. Eu deixei a afilhada na Sé, e venho aqui descansar um bocadinho.

—Então, se me dá licença... E como vai o nosso conego?

—Não tornou a ter a dôr. Mas tem soffrido de tonturas.

—Começos da primavera, disse o Carlos que retomára o seu ar magestoso, de pé no meio da sala, com os dedos nas aberturas do collete. Tambem eu me tenho sentido perturbado... Nós, as pessoas sanguíneas, soffremos sempre d’is-

to que se póde chamar [299] o renascimento da seiva... Ha uma abundancia d’humores no sangue, que, não sendo eliminados pelos canaes proprios, vão, por assim dizer, abrir caminho, aqui e além, pelo corpo, sob a fórma de furunculo, espinha, nascida, ás vezes em logares bem incommodos, e, ainda que em si insignificantes, acompanhados sempre, por assim dizer, d’um cortejo... Perdão, sinto o praticante a palrar... Se me dá licença... Respeitos ao nosso conego. Que use a magnesia de James!

D. Josepha então quiz vêr a menina com o sarampo. Mas não passou da porta do quarto, recommendando á pequena, que arregalava uns olhos de febre, muito abafada na roupa, «não se descuidasse das suas oraçõesinhas de manhã e á noite». Aconselhou á Amparo alguns remedios, que eram milagrosos no sarampo; mas se a promessa fôra feita com fé, a menina podia-se considerar curada... Ai, todos os dias dava graças a Deus de se não ter casado! Que filhos eram só para trabalho e canceiras; e com as quezilias que traziam e o tempo que tomavam, eram até causa d’uma mulher se descuidar das suas praticas e metter a alma no inferno...

—Tem razão, D. Josepha, disse a Amparo, é um castigo... E eu com cinco! Ás vezes fazem-me tão doida, que me sento aqui na cadeirinha, e ponho-me a chorar só commigo...

Tinham voltado para junto da janella, e gozaram muito, espreitando o senhor administrador do concelho, que, por traz da vidraça da repartição, namorava [300] de binoculo a do Telles alfaiate.—Aí, era um escandalo! Que nunca houvera em Leiria auctoridades assim! O secretario geral em um desafôro com a Novaes... Que se podia esperar de homens sem religião, educados em Lisboa, que, segundo D. Josepha, estava predestinada a parecer como Gomorrha pelo fogo do céo?—A Amparo cosia com a cabeça baixa, envergonhada talvez diante d’aquella indignação piedosa, dos desejos culpados que a roiam de vêr o Passeio Publico e de ouvir os cantores em S. Carlos.

Mas bem depressa a snr.a D. Josepha começou a fallar do escrevente. A Amparo não sabia nada; e a velha teve a satisfação de contar prolixamente, «tim-tim por tim-tim», a historia do Communicado, o desgosto na rua da Misericordia, e a campanha de Natario para descobrir o liberal. Alargou-se principalmente sobre o caracter de João Eduardo, a sua impiedade, as suas orgias... E, considerando um dever de christã aniquilar o atheu, deu mesmo a entender que alguns roubos, ultimamente commettidos em Leiria, eram «obra de João Eduardo».

A Amparo declarou-se «banzada». O casamento então, com a Ameliasinha...

—Isso pertence á historia, declarou com jubilo D. Josepha Dias. Vão pôl-o fóra de casa! E por muito feliz se deve o homem dar em não ir parar ao banco dos réos... Que a mim o deve, e á prudencia do mano e do senhor padre Amaro. Que havia motivos para o ferrar na cadeia! [301]

—Mas a pequena gostava d’elle, ao que parece.

D. Josepha indignou-se. Credo, a Amelia era uma rapariga de juízo, de muita virtude! Apenas conheceu os desafôros, foi a primeira a dizer que não, e que não! Ai! detestava-o...—E D. Josepha, baixando a voz em confidencia, contou «que era positivo que elle vivia com uma desgraçada para os lados do quartel».

—Disse-m’o o senhor padre Natario, affirmou. E aquillo é homem que da sua boca nunca sae senão a verdade pura... Foi muito delicado commigo, devo-lhe esse favor. Apenas soube, veio-m’o logo dizer a casa, pedir-me conselhos... Emfim, muito attencioso.

Mas o Carlos appareceu de novo. Tinha a botica desembaraçada um momento (que não o tinham deixado respirar toda a manhã!) e vinha fazer companhia ás senhoras.

—Então já sabe, snr. Carlos, exclamou logo D. Josepha, o caso do Communicado e do João Eduardo?

O pharmaceutico arregalou os seus olhos redondos. Que relação havia entre um artigo tão indigno e esse mancebo que lhe parecia honesto?

—Honesto!? ganiu a snr.a D. Josepha Dias. Foi elle que o escreveu, snr. Carlos!

E vendo o Carlos morder o beiço de surpreza, D. Josepha, enthusiasmada, repetiu a historia da «maroteira».

—Que lhe parece, snr. Carlos, que lhe parece? [302]

O pharmaceutico deu a sua opinião, n’uma voz vagarosa, sobrecarregada da auctoridade d’um vasto entendimento:

—N’esse caso digo, e todas as pessoas de bem o dirão commigo, é uma vergonha para Leiria. Eu já tinha observado, quando li o Communicado: a religião é a base da sociedade, e minal-a é, por assim dizer, querer aluir o edificio... É uma desgraça que haja na cidade d’esses sectarios do materialismo e da republica, que, como é sabido, querem destruir tudo o que existe: proclamam que os homens e as mulheres se devem unir com a promiscuidade de cães e cadellas... (Desculpem exprimir-me assim, mas a sciencia é a sciencia). Querem ter o direito de entrar em minha casa, levar-me as pratas e o suor do meu rosto; não admittem que haja auctoridades, e se os deixassem seriam capazes de cuspir na sagrada hostia...

D. Josepha encolheu-se com um gritinho, muito arripiada.

—E ousa esta seita fallar em liberdade! Eu tambem sou liberal... Que, francamente o digo, eu não sou fanatico... Nem pelo facto d’um homem pertencer ao sacerdocio, o julgo um santo, não... Por exemplo, sempre embirrei com o parocho Migueis... Era uma giboia! Desculpe-me a senhora, mas era uma giboia. Disse-lh’o na cara, porque a lei das rolhas já lá vai... Derramamos o nosso sangue nas trincheiras do Porto, justamente para não haver lei das rolhas... Disse-lh’o na cara: «v. s.a é uma giboia!» [303] Mas, emfim, quando um homem veste uma batina deve ser respeitado... E o Communicado, repito, é um vergonha para Leiria... E tambem lhe digo, com esses atheus, esses republicanos, não deve haver consideração!... Eu sou homem pacifico, aqui a Amparosinho conhece-me bem; pois se eu tivesse d’aviar uma receita para um republicano declarado, não tinha duvida, em logar de lhe dar uma d’essas composições beneficas que são o orgulho de nossa sciencia, de lhe mandar uma dóse d’acido prussico... Não, não direi que lhe mandasse acido prussico... mas se estivesse no banco dos jurados havia de lhe fazer cahir em cima todo o peso da lei!

E balançou-se um momento sobre a ponta das chinelas, lançando um grande gesto em redor, como se esperasse os applausos d’um conselho de districto ou d’uma municipalidade em sessão.

Mas na Sé bateram então devagar as onze; e D. Josepha embrulhou-se á pressa no seu mantelete para ir buscar a pequena, coitada, que havia d’estar farta d’esperar.

O Carlos acompanhou-a, desbarretando-se, e dizendo-lhe (como um mimo que remettia ao seu senhorio):

—Repita ao nosso conego quaes são as minhas opiniões... Que n’essa questão do Communicado e d’ataques ao clero, estou d’alma e coração com suas senhorias... Criado seu, minha senhora... O tempo vai-se a embrulhar.

Quando D. Josepha entrou na igreja, Amelia estava [304] ainda no confessionario. A velha tossiu alto, ajoelhou, e, com as mãos sobre a face, abysmou-se n’uma devoção á Senhora do Rosario. A igreja ficou n’uma immobilidade e n’um silencio. Depois D. Josepha, voltando-se para o confessionario, espreitou por entre os dedos; Amelia conservava-se immovel, com a mantilha muito puxada para o rosto, a roda do vestido negro espalhada em redor; e D. Josepha recahiu na sua reza. Uma chuva fina fustigava agora os vidros d’uma janella ao lado. Emfim houve no confessionario um rangido da madeira, um frou-frou de vestidos nas lages,—e D. Josepha, voltando-se, viu de pé diante d’ella Amelia com a face escarlate e o olhar reluzindo muito.

—Está ha muito tempo á espera, madrinha!

—Um bocadinho. Estás promptinha, hein?

Ergueu-se, persignou-se, e as duas senhoras sahiram da Sé. Ainda cahia uma chuva fina; mas o snr. Arthur Couceiro, que passava no largo com officios para o governo civil, foi leval-as á rua da Misericordia debaixo do seu guardachuva.

231

XIII

João Eduardo, á noitinha, ia sahir de casa para a rua da Misericordia, levando debaixo do braço um rolo de amostras de papel de parede para Amelia escolher, quando á porta encontrou a Ruça que ia puxar a campainha. —Que é, Ruça?

—As senhoras foram passar a noite fóra de casa, e aqui está esta carta que manda a menina.

João Eduardo sentiu apertar-se-lhe o coração, e seguia com o olhar pasmado a Ruça, que descia a rua, batendo os tamancos. Foi ao pé do candieiro, defronte, abriu a carta:

«Snr. João Eduardo.

«O que estava decidido a respeito do nosso casamento era na persuasão que era v. s.a uma pessoa [306] de bem e que me poderia fazer feliz; mas como se sabe tudo, e que foi o senhor que escreveu o artigo do Districto, e calumniou os amigos da casa e me insultou a mim, e como os seus costumes não me dão garantia de felicidade na vida de casada, deve desde hoje considerar tudo acabado entre nós, pois não ha banhos publicados nem despezas feitas. E eu espero, bem como a mamã, que o senhor seja bastante delicado para não nos voltar a casa, nem perseguir-nos na rua. O que tudo lhe communico por ordem da mamã, e sou

«criada de v. s.a

«Amelia Caminha».

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