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XVII

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XXV

XXV

—Não me parece necessario, disse elle. Deus está comnosco, filha, é claro. Não queiramos intrometter-nos nos seus planos. Elle vê mais longe que nós...

Ella concordou logo—como em tudo que sahia dos seus labios. Desde a primeira manhã, na casa [441] do tio Esguelhas, ella abandonára-se-lhe absolutamente, toda inteira, corpo, alma, vontade e sentimento: não havia na sua pelle um cabellinho, não corria no seu cerebro uma idéa a mais pequenina, que não pertencesse ao senhor parocho. Aquella possessão de todo o seu sêr não a invadira gradualmente; fôra completa, no momento que os seus fortes braços se tinham fechado sobre ella. Parecia que os beijos d’elle lhe tinham sorvido, esgotado a alma: agora era como uma dependencia inerte da sua pessoa. E não lh’o occultava; gozava em se humilhar, offerecer-se sempre, sentir-se toda d’elle, toda escrava; queria que elle pensasse por ella e vivesse por ella; descarregára-se n’elle, com satisfação, d’aquelle fardo da responsabilidade que sempre lhe pesára na vida; os seus juizos agora vinham-lhe formados do cerebro do parocho, tão naturalmente como se sahisse do coração d’elle o sangue que lhe corria nas veias. «O senhor parocho queria ou o senhor parocho dizia» era para ella uma razão toda sufficiente e toda poderosa. Vivia com os olhos n’elle, n’uma obediencia animal: tinha só a curvar-se quando elle fallava, e quando vinha o momento a desapertar o vestido.

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Amaro gozava prodigiosamente esta dominação; ella desforrava-o de todo um passado de dependencias—a casa do tio, o seminario, a sala branca do senhor conde de Ribamar... A sua existencia de padre era uma curvatura humilde que lhe fatigava a alma; vivia da obediencia ao senhor bispo, á camara [442] ecclesiastica, aos canones, á Regra que nem lhe permittia ter uma vontade propria nas suas relações com o sacristão. E agora, emfim, tinha alli aos seus pés aquelle corpo, aquella alma, aquelle sêr vivo sobre quem reinava com despotismo. Se passava os seus dias, por profissão, louvando, adorando e incensando Deus,—era elle tambem agora o Deus d’uma creatura que o temia e lhe dava uma devoção pontual. Para ella ao menos, era bello, superior aos condes e aos duques, tão digno da mitra como os mais sabios. Ella mesmo, um dia, dissera-lhe, depois de ter estado um momento pensativa:

—Tu podias chegar a Papa!

—D’esta massa se fazem, respondeu elle com seriedade.

Ella acreditava-o—com um receio, todavia, que as altas dignidades o afastassem d’ella, o levassem para longe de Leiria. Aquella paixão, em que estava

abysmada e que a saturava, tornára-a estupida e obtusa a tudo o que não respeitava ao senhor parocho ou ao seu amor. Amaro de resto não lhe consentia interesses, curiosidades alheias á sua pessoa. Prohibia-lhe até que lêsse romances e poesias. Para que se havia de fazer doutora? Que lhe importava o que ia no mundo? Um dia que ella fallára, com algum appetite, d’um baile que iam dar os Vias-Claras, offendeu-se como d’uma traição. Fez-lhe em casa do tio Esguelhas accusações tremendas: era uma vaidosa, uma perdida, uma filha de Satanaz!...

—Mas mato-te! Percebes? Mato-te!—exclamou, [443] agarrando-lhe os pulsos, fulminando-a com o olhar accêso.

Tinha um medo, que o pungia, de a vêr subtrahir-se ao seu imperio, perder-lhe a adoração muda e absoluta. Pensava ás vezes que ella se fatigaria, com o tempo, d’um homem que não lhe satisfazia as vaidades e os gostos de mulher, sempre mettido na sua batina negra, com a cara rapada e a corôa aberta. Imaginava que as gravatas de côres, os bigodes bem torcidos, um cavallo que trota, um uniforme de lanceiros exercem sobre as mulheres uma fascinação decisiva. E se a ouvia fallar d’algum official do destacamento, d’algum cavalheiro da cidade, eram ciumes desabridos...

—Góstas d’elle? Hein? É pelos trapos, pelo bigode?...

—Gósto d’elle! Oh, filho, eu nunca vi o homem!

Mas escusava de fallar da creatura, então! Era ter curiosidade, pôr o pensamento n’outro! D’essas faltas de vigilancia sobre a alma e a vontade é que se aproveitava o demonio!...

Viera assim a ter um odio a todo o mundo secular—que a poderia attrahir, arrastar para fóra da sombra da sua batina. Impedia-lhe, com pretextos complicados, toda a communicação com a cidade. Convenceu mesmo a mãi que a não deixasse ir só á Arcada e ás lojas. E não cessava de lhe representar os homens como monstros d’impiedade, cobertos de peccados como d’uma crosta, estupidos e falsos, votados ao inferno! Contava-lhe horrores de quasi [444] todos os rapazes de Leiria. Ella perguntava-lhe aterrada, mas curiosa:

—Como sabes tu?

—Não te posso dizer, respondia com uma reticencia, indicando que lhe fechava os labios o segredo da comfissão.

E ao mesmo tempo martellava-lhe os ouvidos com a glorificação do sacerdocio. Desenrolava-lhe com pompa a erudição dos seus antigos compendios, fazendo-lhe o elogio das funcções, da superioridade do padre. No Egypto, grande nação da antiguidade, o homem só podia ser rei se era sacerdote! Na Persia, na Ethiopia, um simples padre tinha o privilegio de desthronar os reis, dispôr das corôas! Onde havia uma auctoridade igual á sua? Nem mesmo na côrte do céo. O padre era superior aos anjos e aos seraphins—porque a elles não fôra dado como ao padre o poder maravilhoso de perdoar os peccados! Mesmo a Virgem Maria, tinha ella um poder maior que elle, padre Amaro? Não: com todo o respeito devido à magestade de Nossa Senhora, elle podia dizer com S. Bernardino de Sena: «o sacerdote excede-te, ó mãi amada!»—porque, se a Virgem tinha incarnado Deus no seu castissimo seio, fôra só uma vez, e o padre, no santo sacrificio da missa, incarnava Deus todos os dias! E isto não era argucia d’elle, todos os santos padres o admittiam...

—Hein, que te parece?

—Oh, filho! murmurava ella pasmada, desfallecida de voluptuosidade. [445]

Então deslumbrava-a com citações venerandas: S. Clemente, que chamou ao padre «o Deus da terra»; o eloquente S. Chrysostomo, que disse «que o padre é o embaixador que vem dar as ordens de Deus». E Santo Ambrosio que escreveu: «entre a dignidade do rei e a dignidade do padre ha maior differença que a que existe entre o chumbo e o ouro»!

—E o ouro é cá o menino, dizia Amaro com palmadinhas no peito. Que te parece?

Ella atirava-se-lhe aos braços, com beijos vorazes, como para tocar, possuir n’elle o «ouro de Santo Ambrosio», o «embaixador de Deus», tudo o que na terra havia mais alto e mais nobre, o sêr que excede em graça os archanjos!

Era este poder divino do padre, esta familiaridade com Deus, tanto ou mais que a influencia da sua voz—que a faziam crêr na promessa que elle lhe repetia sempre: que ser amada por um padre chamaria sobre ella o interesse, a amizade de Deus; que depois de morta dois anjos viriam tomal-a pela mão para a acompanhar e desfazer todas as duvidas que pudesse ter S. Pedro, chaveiro do céo; e que na sua sepultura, como succedera em França a uma rapariga amada por

um cura, nasceriam espontaneamente rosas brancas, como prova celeste de que a virgindade não se estraga nos abraços santos d’um padre...

Isto encantava-a. Áquella idéa da sua cova perfumada de rosas brancas, ficava toda pensativa, n’um [446] antegosto de felicidades mysticas, com suspirinhos de gozo. Affirmava, fazendo beicinho, que queria morrer.

Amaro galhofava.

—A fallar da morte, com essas carnesinhas...

Engordára com effeito. Estava agora d’uma belleza ampla e toda igual. Perdera aquella expressão inquieta que lhe punha nos labios uma seccura e lhe afilava o nariz. Nos seus beiços havia um vermelho quente e humido; o seu olhar tinha risos sob um fluido sereno; toda a sua pessoa uma apparencia madura de fecundidade. Fizera-se preguiçosa: em casa, a cada momento suspendia o seu trabalho, ficava a olhar longamente com um sorriso mudo e fixo; e tudo parecia ficar adormecido um momento, a agulha, o panno que ella costurava, toda a sua pessoa... Estava revendo o quarto do sineiro, o catre, o senhor parocho em mangas de camisa.

Passava os seus dias esperando as oito horas, em que elle apparecia regularmente com o conego. Mas os serões agora pezavam-lhe. Elle recommendára-lhe muita reserva; ella exagerava-a, por um excesso de obediencia, a ponto de nunca se sentar ao pé d’elle ao chá, e de nem mesmo lhe offerecer bolos. Odiava então a presença das velhas, a gralhada das vozes, as pachorras do quino: tudo lhe parecia intoleravel no mundo, excepto estar só com elle... Mas depois, em casa do sineiro, que desforra! Aquelle rosto todo alterado, aquellas suffocações de delirio, aquelles ais agonisantes, depois a immobilidade da [447] morte, assustavam ás vezes o padre. Erguia-se no cotovêlo, inquieto:

—Estás incommodada?

Ella abria os olhos espantados, como resurgindo de muito longe; e era realmente bella, cruzando os braços nús sobre o peito descoberto, dizendo lentamente com a cabeça que não...

XVIII

Uma circumstancia inesperada veio estragar aquellas manhãs da casa do sineiro. Foi a extravagancia da Tótó. Como disse o padre Amaro, «a rapariga sahia-lhes um monstro»!

Tinha agora por Amelia uma aversão desabrida. Apenas ella se aproximava da cama, atirava a cabeça para debaixo dos cobertores, torcendo-se com phrenesi se lhe sentia a mão ou a voz. Amelia fugia, impressionada com a idéa de que o diabo que habitava a Tótó, recebendo o cheiro que ella trazia da igreja nos vestidos, impregnados d’incenso e salpicados d’agua benta, se espolinhava de terror dentro do corpo da rapariga...

Amaro quiz reprehender a Tótó, fazer-lhe sentir, em palavras tremendas, a sua ingratidão demoniaca [450] para com a menina Amelia que vinha entretel-a, ensinal-a a conversar com Nosso Senhor... Mas a paralytica rompeu n’um chôro hysterico; depois, de repente, ficou immovel, hirta, esbugalhando os olhos em alvo, com uma escuma branca na bôca. Foi um grande susto; inundaram-lhe a cama d’agua; Amaro, por prudencia, recitou os exorcismos... E Amelia desde então resolveu «deixar a fera em paz». Não tentou mais ensinar-lhe o alphabeto, nem orações a Sant’Anna.

Mas, por escrupulo, iam sempre ao entrar vêl-a um instante. Não passavam da porta da alcova, perguntando-lhe d’alto «como ia». Nunca respondia. E elles retiravam-se logo aterrados com aquelles olhos selvagens e brilhantes, que os devoravam, indo d’um a outro, percorrendo-lhes o corpo, fixando-se com uma faiscação metallica nos vestidos d’Amelia e na batina do padre, como para lhe adivinhar o que estava por baixo, n’uma curiosidade avida que lhe dilatava desesperadamente as narinas e lhe arreganhava os beiços lividos. Mas era a mudez, obstinada e rancorosa, que os incommodava sobretudo. Amaro, que não acreditava muito em possessos e endemoninhados, via alli os symptomas de loucura furiosa. Os sustos d’Amelia augmentaram.—Felizmente que as pernas inertes cravavam a Tótó alli na enxerga! Senão, Jesus, era capaz de lhes entrar no quarto e mordêl-os n’um accesso!

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