Revista Ciano - vol.3, no.1, ano 2013

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ciano ISSN 2237 3683

Cláudio Portugal Por um Sentido de Excelência


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Em cartaz até 2 de fevereiro de 2014

Exposição do designer Alexandre Wollner Museu Angewandte Kunst Frankfurt, Alemanha

© Leonardo Finotti

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ciano ISSN 2237-3683

revista digital colaborativa

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edição atual v.3, n.1, 2013

editor chefe Eduardo Camillo

edições anteriores v.2, n.3, 2012 v.2, n.2, 2012 v.2, n.1, 2012 v.1, n.6, 2011

projeto visual Rafael Gatti

mais edições...

iniciativa Design Simples

fotografia Pedro Ungaretti

colaboração Ana Goyeneche Leonardo Finotti


nesta edição

editorial

entrevista crítica

in memoriam

Competência para Operar no Mundo Real Eduardo Camillo Cláudio Portugal Novidades Antigas Ligia Medeiros Martina Seibel Rodrigo Cury

p.6

p.16 p.100

André Stolarski: Vida em Projeto p.114 Felipe Kaizer

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Competência para Operar no Mundo Real editorial

editor-chefe

Eduardo Camillo fotografia

Pedro Ungaretti

Design for the Real World, do autor Victor Papanek, é um dos mais famosos e importantes livros de design. Sua premissa, de alguma maneira, foi focar o debate do campo no tema do mundo de forma mais holística. Tomar consciência de que existem sim problemas importantes aos quais o design não deve se furtar, como a temática de países subdesenvolvidos, ecologia, educação, responsabilidade social, o ser humano em si. Coisas, assumamos, tão triviais no nosso dia-a-dia — ainda

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mais no Brasil — que chega a constranger que tenhamos que ser chamados a atenção a isso: olhar para o mundo real.

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O número atual da revista dialoga diretamente com essa premissa: há um mundo real, com suas determinações, suas histórias, suas culturas e tensões, ao qual não devemos nos furtar de olhar, e sobre ele atuar. Esse atuar, entretanto, não é oposto à reflexão e crítica dessa mesma realidade. De maneira inversa, a reflexão é aspecto fundamental à própria prática que o mundo demanda, e a crítica é pressuposto norteador para tornar essa reflexão frutífera e emancipadora. É o que nos apresenta a fala do professor Luis Cláudio Portugal, o entrevistado dessa edição.


Crítico ferrenho do pensamento relativista, o professor expõe com clareza sua ideia de que, para que haja mudança — ou melhor, para que haja mudança para melhor, é necessário pensamento crítico. E só há pensamento crítico se for possível falar de bom e ruim, melhor e pior, certo e errado e, evidentemente, todas nuances entre esses polos opostos. Não estamos aqui falando de um tudo ou nada que poda na base qualquer desvio de uma norma pretensamente pré-estabelecida, mas sim de diálogo crítico, a dialética crítica, sobre a qual se pode falar do que é bom (porque melhor que outro) e do que é possível melhorar (porque aquém do que poderia ser). Fora disso, a crítica não possui substância que a sustente, e dissolve-se em discursos de egos e disputas.

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É o pensamento crítico sincero, aliado ao pensamento especulativo compromissado, que possibilita o debate sobre o belo, sobre a ética, sobre o mérito, sobre a excelência, sobre a sociedade, e sobre os diversos caminhos onde cada um desses pontos e tantos outros podem tomar corpo e tornarem-se realidade palpável em nosso meio. O professor, sempre tendo esse assunto como chão para desenvolver sua fala, trata ainda de outros temas relativos ao campo do Design, como sua definição, a relação interdisciplinar com as demais áreas, o ensino do design, a qualidade dos cursos superiores e sua vertiginosa explosão de vagas pelo Brasil, fala do usuário, do ser humano para quem se projeta, e fala de idealismo.


Idealismo que é o motor propulsor a qualquer projeto de mudança. É um primeiro cândido desejo de que onde estamos pode ser melhor, não por que nós queremos, mas porque o mundo e os demais assim o merecem. Em alinhamento a pontos importantes da fala do entrevistado principal, nossa revista compõem-se de outras duas contribuições. A primeira, de autoria da professora da Esdi Lígia Medeiros, de Martina Seibel e de Rodrigo Cury, disseca o Design Thinking em seu conteúdo constituinte, averiguando nesse método de trabalho tão em voga hoje no Brasil quais seus méritos e origens, e sobre como é importante reconhecer tais origens para que não se chame de novidade o que nem mesmo novo é.

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E o segundo texto é do autor convidado e já conhecido em nossas páginas Felipe Kaizer. Para essa edição, presta merecida homenagem ao designer André Stolarski, que nos deixou precocemente em Agosto desse ano. O interessante de seu texto, como vai observar o leitor, é que, a partir da convivência longa e constante de Kaizer com Stolarski, possibilitou-se presenciar a vida do designer não pontualmente e acabados, como nós de fora vemos em sua obra, mas sim em seu método de trabalho, de gestão, de encarar a vida e de pôr em prática convicções, realizando-as com um compromisso pouco comum, e por isso impressionante. Ambos textos abordam à sua maneira o ponto que introduzimos nesse texto: é preciso olhar a realidade e o mundo,


seja para prestar o devido reconhecimento ao que é, ao que já foi feito e reapropriado; seja para agir nela com convicção, ética e respeito a como ela se constitui. Desejamos que a leitura desse conteúdo seja inspiradora, e promova um interesse profundo de diálogo e de mudança. De diálogo, mesmo que seja para discordar veementemente. E de mudança, mas desde que seja mudança para melhor. Boa leitura!

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ExcelĂŞncia: Um Sonho PossĂ­vel entrevista 17

por

Ana Clara Goyeneche Eduardo Camillo Rafael Gatti fotografia

Pedro Ungaretti


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“Vamos combinar uma coisa: não existe salvação fora da racionalidade”

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No dia de hoje, um triste sentimento envolve a classe: pouco há para se comemorar neste dia do designer. Após um crescimento numérico monumental, o tão almejado reconhecimento social ainda esbarra num brutal déficit de excelência. Para desenvolver esta hipótese, buscamos a luz de um legítimo defensor da causa. Atuando nas bases, ele já formou inúmeros designers nas principais universidades brasileiras e hoje leciona no recém criado curso de Design da Universidade de São Paulo.


Estamos falando de Luís Cláudio Portugal. Certamente um dos maiores didatas do design que temos no Brasil. Por meio de um discurso consistente e livre de sofismas, somos apresentados a um ideal profissional tão necessário quanto desprezado nesta atual época. Suas informações nos impulsionarão rumo ao reencontro de valores e princípios fundamentais do ofício. Que esta idealista visão contribua para o enriquecimento de nossas reflexões, não apenas neste dia do designer, mas também no nosso cotidiano como designers.

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O senhor graduou-se na Esdi (Escola Superior de Desenho Industrial) em 1983, onde teve professores como Alexandre Wollner e Karl Heinz Bergmiller. Sabemos que é grande crítico da linha de pensamento relativista e que, em parte de sua pesquisa, investiga implicações do relativismo na teoria e prática do design. Quais os principais pontos, problemas e consequências que vê nesta perspectiva relativista, tão presente nos dias de hoje?


De fato, amigos, acho que um dos grandes problemas que observamos no campo do design, neste nosso momento histórico, é a questão da ideologia relativista perpassando a academia e a vida cotidiana. E a gente acha que isso é bom! A gente acha que relativismo é coisa ligada à tolerância, à democracia. E não é. Relativismo, a meu ver, é um mal simétrico ao mal do absolutismo. Os dois são os arqui-inimigos da dialética crítica, de uma reflexão que vise aperfeiçoar a realidade.

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Até o final dos anos 60, havia uma hegemonia do pensamento e do modelo absolutista de entender a realidade. E, a partir dos anos 70, a gente migrou para uma concepção de mundo relativista. Temos, nestes dois polos, forças simétricas que são mutuamente hostis e que inibem a dialética crítica. O absolutismo gera, engendra, o autoritarismo, que amordaça a expressão da crítica. Já o relativismo, gera, engendra, o niilismo, a concepção de mundo de que tanto faz, como tanto fez. Lá, a expressão é cerceada. Aqui, o interesse pela expressão é cerceado.


Questões de mérito, de excelência, de rigor, de aperfeiçoamento da realidade, perdem razão de ser. Deixam de ser possíveis porque a gente solapa a premissa fundamental, no caso do relativismo, de que algo possa ser melhor, possa ser superior, ou inferior, a outro algo. Assim, a gente vê a noção de mérito ser cada vez mais abandonada, cada vez menos perseguida, porque, se tudo for considerado igualmente bom e válido, nada será visto como superior a nada, nada justificaria ser aperfeiçoado – e nem, nesta ótica, sequer seria cogitável de ser aperfeiçoado. A crítica é, fundamentalmente, uma atividade de valoração, de apreciação de mérito e valor intrínseco ao objeto observado.

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É uma atividade de separar o joio do trigo, de atribuir mérito e demérito.

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De olhar o que é – e pensar no que poderia ser. E, se a gente achar que todas as diferenças são estritamente horizontais, como se dá com sabores de sorvete, a gente exclui a possibilidade de mérito, de excelência. A gente excluiria a possibilidade de termos projetos de cadeiras melhores do que outros, painéis de automóveis melhores do que outros, sites, bulas de remédios melhores do que outras. Não apenas o alinhamento entre a coisa e o contexto determina o mérito da coisa observada. Mas a coisa, em si, pode agregar, pode conter, imanentemente a ela, mérito ou demérito.


“Engajamento crítico é o motor que promove o aperfeiçoamento das práticas de projeto”

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Julgo importante denunciar o relativismo nos dias de hoje, mais do que denunciar o absolutismo, pois sinto que nosso momento ĂŠ fundamentalmente relativista. NĂłs mudamos de um ponto extremo do pĂŞndulo para outro extremo.


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E ambos, a meu ver, são infensos, são hostis à possibilidade de se criticar, ao interesse em se criticar, a engajar-se criticamente. Não temos mais segurança, nem interesse, por discutir: “ Por que você esta dizendo que tal


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coisa é melhor?”; “Por que você esta dizendo que isso não funciona bem?”; ou: “O que deveria ser em lugar disso?” Este engajamento crítico é o motor que promove o aperfeiçoamento das práticas de projeto, no caso do design. 32

E o relativismo implode esta premissa da possibilidade de algo ser suscetível de ser melhor do que outro algo, da possibilidade de coisas serem boas ou ruins, em si. Desta forma, o relativismo tolhe o florescimento da crítica. Sem entusiasmo por aperfeiçoar, por aspirar-se a fazer coisas mais rigorosas, com mais proficiência técnica e metodológica, sem a ênfase


na lucidez, tudo isso vira questão de gosto, de contexto, de relação a alguma outra coisa externa, extrínseca ao objeto de crítica. Uma outra consequência danosa do relativismo é o desapreço à racionalidade. Vamos combinar uma coisa: não existe salvação fora da racionalidade. Vocês foram criados em um momento em que a racionalidade é um mal, é um demérito. “ Racionalidade”, a gente é ensinado hoje, “ é coisa de nazista!, é contra a emoção, a espiritualidade, a imaginação.” Não é assim que nos ocorre uma primeira ideia de racionalidade? Amigos, não há civilização, não há humanidade, sem racionalidade.

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E, na prática de projeto, é essencial que sejamos extremamente competentes na gestão das variáveis, dos fatores, das situações de projeto – compatibilizando questões de uso, de tecnologia, de produção, ambientais, sociológicas, estéticas e culturais. 34

Esta competência de lidar, de tratar e de encontrar soluções criativas, a meu ver, é muito dependente da racionalidade. Acho que, sem a racionalidade, a gente dá um passo atrás, retrocede. A gente é menos humano. E esta descrença e hostilidade, esta vontade de querer virar a mesa da racionalidade, é muito originada pela visão de mundo relativista


que nos permeia. E ela é tão próxima a vocês, que eu acho que vocês sequer atentam para ela. Mas o mundo, antes, não era relativista. Vocês nasceram em uma atmosfera relativista, mas nem sempre foi assim. 35

E nem sempre haverá de ser assim.


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Imbricado com esta questão do relativismo, há um forte viés ético em seus discursos sobre o design e sua relação com outras áreas do saber. Por que considera tão crítico à ética do design uma definição estrita da atuação profissional?


Design é visceralmente dependente de outras áreas do saber. Não existe design sem esta troca multidisciplinar, com a psicologia, com a engenharia, com a semiótica, com a filosofia, com as artes; em alguns casos, com a arquitetura. Não existe design sem este intercâmbio. Entretanto, acho que existe uma diferença moral, uma diferença ética, muito importante, entre a contribuição que pode ser aportada de maneira assistiva, ancilar, a fecundar o campo, e, de outro lado, de maneira a tolher, conformar, formatar o campo do design, impondo a visão de pessoas que sequer conhecem a identidade, o ser que é o design.

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Isto, para mim, é uma questão que tem implicações morais muito evidentes. Tem uma coisa que eu não vejo ninguém falando por aí, e que acho transcendental, que é o “Campo do Design”. 40

O campo do design é invisível. Ele é abstrato, intangível. Não é como uma reserva florestal que a gente fotografa e olha no Google Earth. Não é como uma floresta que a gente pode medir e perceber quando alguém faz um barraco, corta um trecho ou faz uma queimada. O campo do design não é fotografável. Mas é tão real, tão efetivo, tão importante para o país e para nossa civilização, quanto uma reserva florestal.


O que recebemos de herança da geração que nos precedeu, temos que deixar para as gerações que virão. É uma visão ecológica, preservacionista, do campo do design. E quando a gente publica um artigo tipo qualquer coisa, quando a gente aprova em um concurso um candidato sem mérito, quando a gente dá nota máxima em um TCC que é um trabalho aquém, aprova alguém sem mérito no mestrado, no doutorado, a gente está tendo um papel de grilagem, um papel de fazer decair a qualidade geral do campo. E isso é grave. Isso vai ter impacto na reserva, no patrimônio, ainda que invisível, que é o campo.

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Explosão de crescimento do número de instituições de ensino ofertando cursos de design no Brasil 42

fonte

INEP, WITTER, 1985 ALVARES, M. R., 2004


Temos que buscar um respeito quase “ ecológico” em relação ao patrimônio para o país que é o campo do design. Amigos, eu sonho em ver este campo amadurecer. Houve uma explosão quantitativa nas duas últimas décadas. É chegada a hora de depurar. É chegada a hora de falar “não”. Existe diferença entre um cara mal formado e um cara bem formado. Existe diferença entre o professor que conhece e o professor que pulou de paraquedas. E não basta ser apaixonado pelo campo. Tem que saber o que ensinar. Tem que conhecer as especificidades. Eu não defendo que as pessoas, para ensinar design, precisem ter diploma de design. O diploma não quer dizer nada.

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Pela primeira vez o nĂşmero de vagas de ensino em design superou o ensino em arquitetura (em milhares de vagas) 44

fonte

INEP, e-MEC.


ExpansĂŁo dos mercados de ensino no perĂ­odo (em milhares de vagas) 45


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Mas defendo que devam ter profundo envolvimento de vida com o design. Esta é uma questão moral. Tem que ter decência na hora de aceitar, ou não, a incumbência sagrada de professor de design. Tem que ter feito o dever de casa para estar em condição de formar corações e mentes. Não é ser xenófobo, não é ser xiita, não é cobrar diploma. É cobrar competência e envolvimento de vida com o campo para estar em condição moral e técnica de ensiná-lo. E isto é muito grave, este uso da “santa causa” da multidiciplinaridade para favorecer interesses e carreiras pessoais – para permitir que se consiga construir mais um barraquinho na reserva florestal do design.


“A senha é falar: multidisciplinaridade. Ninguém mais vai continuar a criticar”

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E, assim, passa-se a ocupar postos de centralidade, funções de curadoria, funções de parecerista em órgãos de fomento, parecerista em congressos de design. Passa-se a ser keynote speaker de congressos importantes no Brasil e no exterior. 49

E isto formata o campo. Isto dilui o campo. Isto nivela o campo por baixo. Aí, alguém dirá: “multidisciplinaridade!”. Pronto! Estátua! Parou. A senha é falar: “multidisciplinaridade!”. Ninguém mais vai continuar a criticar.


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Assim, cria-se uma cunha de penetração no território do design, com essa “ santa bandeira” da multidisciplinaridade.

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Quem há de ser contra? Mesmo sabendo que o cara está errado, que o cara não tem mérito para estar ali, que não tem bagagem, não tem formação de vida, não tem bibliografia, não tem reflexão, não tem conhecimento técnico, teórico, prático, do campo, a gente vai querer ser tachado de antimultidisciplinaridade? Nenhum de nós! Há também uma questão, bastante importante, que é a conhecida imposição na academia no sentido de que a docência seja confiada a professores que possuam titulação de doutor.


Isto é compreensível e meritório. A gente quer um tipo de academia com produção de pesquisa, com produção de reflexão teórica na carreira do design. Mas este imperativo, de titulação de doutor, contrasta com uma certa latitude, talvez excessiva, quanto ao eixo horizontal do tipo da formação dos candidatos elegíveis. Então, aceitam-se pessoas de áreas até muito distantes do design, desde que sejam doutores. Como o campo do design é relativamente novo, está em processo de maturação, temos poucos doutores designers livres, que ainda não se situaram em uma universidade. Isto faz com que, nos concursos em que se cobra

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a exigência de doutorado — quase todos os concursos atualmente têm este quesito —, poucos doutores designers se candidatem.

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E os resultados são que este recrutamento faz com que doutores, não necessariamente designers, ensinem disciplinas de projeto de design, orientem TCCs de design, disciplinas estas em que a competência do design deveria estar mais presente. E isto gera, como consequência, diluição do repertório do design. A gente perde os referenciais, os marcos, o patrimônio que nos chegou de gerações anteriores.


“Quando a gente confunde as categorias, a gente perde a razão de ser do projetar”

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Então, é grave esta questão da necessidade de se dominar, profundamente, a competência de projeto. Que as várias áreas circunvizinhas do design contribuam de maneira a adubar, a enriquecer, respeitando a sementinha do design. Não, porém, criando uma fôrma, de fora para dentro, dizendo como o design há de ser. Por exemplo, como acontece no caso de a gente importar o olhar, a sintonia e a maneira de criar das artes plásticas para o campo do design. A gente faz um estrago! A gente pode projetar, por exemplo, algo inutilizável, uma cadeira “insentável”, algo que não liga, que queima, que machuca, que gera confusão.


Pode-se incorrer em algo que não seja boa poética das artes plásticas, tampouco boa poética do design. É como tentar-se um hibridismo, algo meio cobra e meio lagarto. Existe uma diferença entre a ideia de “fantasia”, tão bonita, tão importante, e a ideia de “criatividade”. Nas artes plásticas, a gente trabalha essencialmente com a dimensão da fantasia, da criação livre de restrições objetivas. No campo do design, a sintonia é diferente. Não é melhor, nem pior, realmente. É uma outra coisa, que apela muito mais à criatividade. No design, lida-se com a busca de solução para restrições práticas e objetivas. A solução de projeto

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tem que atender à forma do corpo, tem que atender à mãozinha da criança. Tem que atender às preocupações de estigma social do idoso, que não pode usar fraldas geriátricas de maneira que os humilhe. Tem que entender que existe, no design, uma realidade objetiva, um mundo lá fora. Existem situações de uso para usuários múltiplos, para usuários inespecíficos. A gente precisa conhecer profundamente estas várias e múltiplas situações de uso, por exemplo, para projetar uma garrafa que entre na geladeira. Para projetar uma garrafa que um idoso consiga colocar na geladeira. Se não, a gente faz projeto de fora para dentro. E isso não é projeto, é picaretagem!


Isto é a gente se impor à solução de projeto, em lugar de a gente se escravizar à solução de projeto. Design, meus amigos, só é design quando o design se curva ao usuário. Quando se curva aos processos tecnológicos, aos processos de produção, de comercialização, de manutenção, de descarte, de reciclagem. Quando respeita tudo isso que está lá fora. E para que a gente consiga computar tudo isso, a gente precisa de um método de trabalho diferente do método de um artista plástico, que tem outras considerações, preocupações e enfoques. Um artista plástico não tem esta premência de criar um cinto que segure

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a calça, de criar uma câmera que seja regulável pelas mãos e pelo intelecto de todos. É uma outra demanda a dos artistas plásticos.

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E quando a gente confunde as categorias, a gente perde o sentido e a razão de ser do projetar que passa muito por esta necessidade de atender, de ser funcional, de ser útil, que está na identidade, na dimensão ontológica do design. Nós temos que apoiar os seres humanos. É para isso que existe o design. É para fazer com que informação, tecnologia e serviços cheguem mais seguros, práticos, efetivos, inteligíveis, mais fáceis de limpar, fáceis de produzir, mais bonitos, mais espirituais, ao mundo lá fora.


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Como professor do curso de graduação em design na Usp (Universidade de São Paulo), onde também atua na pós-graduação, o senhor ministra uma disciplina de “Crítica do Design”. Pode nos comentar sobre ela?

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Sem a crítica, a gente reproduz o status quo. A gente reproduz o que é. A crítica é esta bússola que aponta para estágios mais aperfeiçoados, mais retificados de ser. No caso do design, de se projetar. 63

Então, amigos, como disse anteriormente, acho que, neste momento, a crítica está anestesiada por aquela percepção de que tudo é relativo, de que depende do contexto, da subjetividade, de que tudo é questão do estilo de cada um. Diz-se que o que é bom para um não é bom para outro (o quê, em muitos casos é verdade – mas, certamente, não em todos!). Então, nada é tido como melhor do que nada.


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Esta percepção é tão nociva para a crítica quanto a percepção absolutista, autoritária, que impinge uma única forma de ser e que impede a discussão sobre como aquela forma poderia ser melhorada. 64

A crítica é essencial para que façamos projetos melhores, para que a gente compreenda os conceitos envolvidos no design, para que a gente tenha uma pedagogia mais competente. A crítica é esse “Grilo Falante” que nos aponta, com uma vozinha débil, para onde deveríamos caminhar. E a gente, quando ouve o “Grilo Falante”, melhora o caso presente. Melhora o projeto sobre o qual estamos debruçados.


“Sem a crítica, a gente reproduz o status quo”

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Melhora aquilo sobre que escrevemos, sobre que pesquisamos, aquilo que ensinamos. Sou um apaixonado defensor da necessidade de criticarmos mais. Com mais segurança, com mais competência, rigor, justiça, com mais aderência ao objeto de crítica. Deveríamos criticar cada vez mais aquilo que observamos e aquilo que produzimos. A prática e a teoria do design se elevam quando a crítica está presente.

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O editor da Ciano, que também já foi seu aluno, observa que o senhor é grande defensor da aspiração idealista, como sendo de fundamental importância aos designers. Concorda que, nos dias de hoje, há um grande distanciamento deste conceito que apresenta em aula?


Acho que sim. Acho que o idealismo e a busca de sentido estão abafados neste nosso momento histórico. A gente não vê o brilho, a proposição, o ímpeto idealista. A gente se envergonha de ser idealista. 69

Porém, ser idealista é o que há! E isto deveria ser valorizado, preservado, admirado como uma das grandes qualidades. Amigos, a busca de sentido é um outro aspecto. A gente deveria estar empenhado em fazer as coisas pelas coisas. Mas a gente participa de congressos e sente que as pessoas estão ali, apenas, por estar ali.


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Estão ali mais para receber o papel. E não pelo nexo causal de estar ali.

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Acho que a gente tem que resgatar e reabilitar a noção de idealismo. O mundo, tenho para mim, é dos idealistas. A gente tem que ter entusiasmo. Design demanda isto, este brilho nos olhos. O taxímetro da vida já está correndo e, se a gente não fizer coisas com sonho, com paixão, com enlevo, com vontade de arrastar o real em direção a estágios menos brutos, menos ásperos, em direção ao ideal, não estaremos fazendo design. Temos que acreditar que: “ Não, eu posso fazer um ônibus com degraus mais baixos”; “Eu posso fazer uma cadeira em que as pessoas


não se cansem depois de quatro horas”; “ Eu posso fazer uma cartilha escolar em que as crianças consigam entender melhor os exemplos de geometria que estão sendo apresentados e isso vai melhorar o aprendizado dos garotos na escola”; “Eu quero fazer uma escola de design, limpando todas as imperfeições de que sempre falamos”. Vejam que isto, no fundo, é uma concepção quixotesca (no mais nobre sentido do termo), uma concepção idealista. Pressupõe querer corrigir o que estaria errado. Isto demanda a crença de que coisas possam estar erradas. E de que coisas são corrigíveis. Mas este pensamento vem sendo tão desprezado, tão ridicularizado...

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Existe uma canção, muito especial, que se chama: The Impossible Dream (O Sonho Impossível). É sobre a história do Don Quixote: um sonhador que almeja, mesmo ferido, mesmo humilhado, mesmo sem forças, corrigir e se lançar à frente para alcançar o inatingível. 72

Porque, com seu impulso, ele crê, o mundo será melhor. O mundo será melhor porque ele se empenhou em corrigir o que estaria errado – porque, para ele, certas coisas são passíveis de estar erradas em si. Este é o idealismo que temos que cultivar na gente. Mas como é difícil, em 2013, em um ambiente culto, a gente sugerir que algo possa ser superior a outro algo!


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A gente cresceu ouvindo que “não tem melhor, nem pior”. Dirão-nos: “Superior? Superior em relação a quê?” Não...

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Certas coisas, amigos, aí é que está, são boas em si. Quando a gente parte deste pressuposto, de que – em certas matérias e certas questões; não em todas! – existem formas mais adequadas do que outras, a gente deve se aferrar à busca de situações mais adequadas, mais aperfeiçoadas, mais rigorosas. E isto é a manifestação do idealismo.


“O mundo, tenho para mim, é dos idealistas”

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The Impossible Dream

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por

Joe Darion, 1965. do musical

“ Homem de La Mancha” para assistir

Clipe no You Tube

To dream the impossible dream, to fight the unbeatable foe, to bear with unbearable sorrow, to run where the brave dare not go... To right the unrightable wrong, to love pure and chaste from afar, to try when your arms are too weary to reach the unreachable star! This is my quest — to follow that star no matter how hopeless, no matter how far —


To fight for the right without question or pause, to be willing to march into hell for a heavenly cause! And I know if I’ll only be true to this glorious quest that my heart will be peaceful and calm when I’m laid to my rest. And the world will be better for this that one man, scorned and covered with scars, still strove with his last ounce of courage To reach the unreachable star!

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O Sonho Impossível

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Sonhar o sonho impossível, combater o inimigo imbatível, suportar o sofrimento insuportável, correr onde os bravos não ousam ir... Corrigir o erro incorrigível, amar de forma pura e casta a distância, persistir quando seus braços estão exaustos alcançar a inalcançável estrela! Esta é a minha busca — seguir aquela estrela não importa o quão sem esperanças, não importa o quão distante —


Lutar pelo certo sem duvidar ou cessar, estar disposto a marchar ao inferno por uma causa celestial! E sei, se fiel for a esta gloriosa missão que meu coração calmo e tranquilo estará quando vier a morrer. E o mundo será melhor por isto que um homem humilhado e coberto de cicatrizes, ainda se empenhou com sua última gota de coragem Para alcançar a estrela inalcançável!

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Gostaríamos de registrar junto aos nossos leitores, que a iniciativa da revista Ciano e, antes dela, do projeto Design Simples, fundaram-se sob os alicerces deste profundo idealismo profissional e humano apresentado por Cláudio Portugal. Nosso sincero “muito obrigado”! Transmitir, mesmo que uma pequena fração desta inquietação a mais pessoas, é nossa forma de tributo. Para finalizar, quais últimas recomendações daria aos estudantes e profissionais que desejam empreender neste mesmo caminho, rumo à excelência em suas profissões?


Em primeiro lugar, muito obrigado por este registro que vocês fizeram, imerecido, a nossa contribuição. É uma homenagem muitíssimo carinhosa. Fico bastante tocado, agradeço muito. Vamos usar esta fala como um estímulo para, um dia, fazer parte disto ser verdade. Continuando nesta direção, fico também maravilhado de ver que a geração que está surgindo não está perdida como me diziam que a minha geração estava. Então, ainda existe a chama! E, amigos, esta chama não vem da geração que está formando vocês. Vem de muito antes. Vem da geração que nos formou. Vem do Wollner, Bergmiller, Goebel, que nos formaram. Que foram formados por Otl Aicher, por Max Bill.

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Esses são os precursores, que passaram o bastão para nossos grandes mestres, que fundaram o design no Brasil e que, de certa maneira, nos expuseram a estes princípios, que são eternos. E vocês, jovens, quatro ou cinco gerações depois, reproduzem este mesmo brilho que aqueles que nos passaram o bastão receberam dos precursores, dos pioneiros do design, no começo da atividade. Então, é muito bacana que haja isto que estamos testemunhando, este encantamento de vocês. Bem, que conselhos daríamos para a geração que está se formando agora:

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“ Sejam mais humildes com o projeto” Pesquisem muito mais antes de traçar. Nada mais arrogante do que chegar traçando.

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Não imponham uma solução de projeto de fora para dentro. Não tragam a solução já pronta. Curvem-se ao projeto. Curvem-se aos usuários. É para eles que a gente está projetando. O que menos importa é a forma a que a gente chega. O que realmente faz sentido são as pessoas se apropriando daquela forma e vivendo seus cotidianos com completa abstração em relação a nossa contribuição.


Com humildade, com afinco, busquem as várias categorias de informação que se mostrem necessárias para iluminar o problema. Busquem todas estas informações com aquela qualidade de um grande jornalista, que se profunda na investigação. É isso que enraíza o projeto na realidade. Porque o projeto vai se desenvolver e vai ser entregue, ao final, de volta para a realidade. E, se ele não tiver raízes na realidade de uso, de produção, ambiental, ele vai ser um corpo estranho. Ele vai ser mais um gesto de arrogância. E não um gesto sublime, que dê sentido àquele trabalho.

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“ Persigam a qualidade” Existe uma diferença enorme entre algo bom e algo medíocre, vocês são testemunhas disso.

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Vocês, que observam uma consulta médica de alto nível e outra feita de maneira superficial, sabem como é diferente ser atendido por um bom médico. Do mesmo modo, é diferente ser atendido por um bom projeto de design. Isto faz a civilização dar um passo à frente, gera uma nova expectativa de qualidade na cultura material que nos circunda. Isto é muito do que se espera da gente e o que a gente deveria aspirar a oferecer ao mundo lá fora.


Sejam mais críticos em relação às alternativas que vocês gerarem. Sejam mais dedicados ao projeto. Menos afoitos. A qualidade, em geral, precisa de tempo para que se manifeste, para que se concretize. “ O mundo espera coisas que funcionem, não coisas que impressionem” A gente vê, com certa tristeza, com certa preocupação, que, em vários contextos educacionais, o design está sendo professado de maneira formalista. Jovens estão sendo estimulados a projetar de fora para dentro.

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Estão sendo encorajados a projetar um invólucro que chame a atenção, que “cause”, que tenha uma função epidérmica. E não a desenvolver um projeto orgânico, coeso, com aquele alinhamento tão especial entre a forma projetada e sua função. 88

Não caiam neste engodo dos sofistas, que se apresentam como designers. Não queiram impressionar, queiram atender. Queiram sentido naquilo que sai de vocês. “Uma sinalização de metrô em que as pessoas não se percam!” Haverá gratificação maior do que ver as pessoas sem frustração? Do que ver as pessoas com poder, porque encontraram a informação de maneira eficiente, clara, inequívoca?


“ Esta é a missão do design” Eliminar a confusão, eliminar a ambiguidade, eliminar o equívoco. Isto é dar poder ao ser humano. Para que ele se desincumba de suas tarefas, sem sequer pensar que aquilo existe. Sem sequer atentar para o fato de que aquela sinalização estava ali. E de que aquele produto foi feito por alguém que ficou meses em função de otimizar sua interface, para que tais usuários se beneficiassem em seus cotidianos. É um pouco disso de que se trata o design: criar interfaces mais suaves, mais eficientes, melhor pensadas.

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E não uma ideia excêntrica de um pseudoartista, de um pseudogênio, que crie algo para chocar, causar espalhafato, chamar a atenção para si – e não para resolver, atender, para funcionar na realidade.


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“ Temos que ser cada vez mais rigorosos, técnicos e humanistas” Temos que subir nos ombros de Otl Aicher. Temos que ir além, não aquém, dos realmente grandes.


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Temos que pegar de onde os melhores já chegaram – e avançar mais horizontes, a partir deles, não desconsiderando seus avanços. Temos que ampliar, refinar, atualizar seus marcos teóricos. E não embrutecer, diluir, desconhecer as competências a que o design já chegou no passado. Não nos cabe fazer meia volta e descaracterizar o design. Este é o risco, com esta invasão de curiosos, de improvisados, de neoespecialistas no campo. Nem todos os recém chegados ao campo, porém, reitere-se, são assim. Mas vemos grande parcela dos que ensinam, dos que escrevem sobre design ainda sem um envolvimento de vida com a profissão.


E isto, de certa maneira, degradaria as referências, os marcos, as ferramentas, o arcabouço teórico, os ideais da atividade do design com este desconhecimento da essência do nosso ofício. Vocês regulam em idade com a geração dos nossos grandes jogadores de vôlei. Por que vocês também não têm direito de ser, no design, o que esses craques do vôlei são no vôlei? Por que vocês se impõem limites? Vamos ser, na nossa profissão, tudo que a gente puder ser.

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“Vamos ser, na nossa profissão, tudo que a gente puder ser”


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para assistir

“The Impossible Dream”, Man of La Mancha, 1972. para ler

Artigo: Sobre a multidisciplinardade imprescindível e a multidisciplinaridade disfuncional na prática e no ensino do design, Cláudio Portugal, 2008.

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“Resignação não é uma atitude do design” 98

— Gui Bonsiepe

Edição de novembro de 2011


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“O que é inédito no Design Thinking ?”


Novidades Antigas

crítica

No ano de 2003, a música “Behind Blue Eyes”, interpretada pela banda norte americana Limp Bizkit, foi uma das mais executadas nas rádios de vários países e, em 2004, ocupou posições de destaque nos meios de comunicação brasileiros, tornando-se bastante popular entre os jovens da época.

por

Nem todos se deram conta, no entanto, que essa canção havia sido escrita por Pete Townshend em meados 1969, e lançada em 1971 no clássico disco

Ligia Medeiros Martina Seibel Rodrigo Cury

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“ Who’s Next” da banda britânica The Who. Um ouvinte ocasional talvez não tenha sentido a necessidade nem o desejo de saber mais detalhes sobre a gravação original da canção, mas aqueles interessados pela obra ou pelo tema devem ter sido naturalmente levados a buscar informações e a traçar linhas de continuidade que contextualizaram, no tempo e no espaço, os fatos, os produtos e as pessoas envolvidas naquela composição. Esse episódio nos faz lembrar que, não raro, temos notícia de algo que nos parece inédito, ou nos é oferecido como tal, mas, após uma busca simples, encontramos os fundamentos e as ideias que antecedem.


A construção e consolidação do conhecimento se dá assim mesmo: na reiterada revisão e contínua atualização de conceitos e formas de apresentação. Novas conexões e perspectivas são bem vindas e ajudam a manter o dinamismo do saber. Fazemos referência a este exemplo para comentar uma expressão hoje bastante popular, e um tópico recorrente nas discussões acadêmicas e profissionais do Design: o “Design Thinking”. O Design Thinking ganhou popularidade sobretudo a partir da divulgação promovida pelos membros da empresa IDEO das suas crenças e práticas projetuais, que depositam forte atenção no ser humano. Ora, o processo projetual com foco no ser humano certamente não

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é prerrogativa da IDEO, mas deve-se reconhecer o mérito da renovação, pelos representantes da empresa, da linguagem na apresentação dessa abordagem clássica do desenho industrial. Um conjunto de “ferramentas” nomeado HCD (Human Centered Design) é amplamente divulgado através de material instrucional que orienta a aplicação dessa ideia tão fundamental. O arquivo eletrônico disponível na página oficial da IDEO já foi acessado mais de 105 mil vezes. Tim Brown, atual CEO (Chief Executive Officer) e presidente da IDEO, ministra palestras em todo o mundo sobre o valor dessa abordagem projetual quando empresas e organizações desejam e precisam inovar.


O Design Thinking é apresentado como um recurso válido, útil e eficaz na captação e desenvolvimento de novas ideias. O que é inédito no Design Thinking? 105

Ele facilita a exploração da potencialidade criativa de uma equipe.

O “Brainstorming” procedimento difundido por Alex Faickney Osborn nos anos 1950, tem esse objetivo.

O Design Thinking é um método que estimula novos e singulares processos de pensamento.

O Synectics, técnica disseminada por George M. Prince e William J.J. Gordon em meados do século passado, tem essa intenção.


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O Design Thinking contribui para o distanciamento de percepções padrão de criatividade, da lógica vertical e da imaginação horizontal. 106

O Design Thinking destaca um tipo de pensamento projetual próprio do designer, e que difere do tipo convencional de resolução de problemas.

O “Lateral Thinking” promovido por Edward de Bono, também no século XX, se propõe a isso.

Nas décadas de 1970 e 1980, Ken Baynes e Nigel Cross mencionavam com frequência os modos desenhísticos de pensar, de ser e de conhecer. Nas palavras deles: “designerly ways of thinking”, “of being” e “of knowing”. Esses modos de raciocínio pareciam ser distintos dos estilos mais comuns nos meios corporativos, caracterizados por


pensamento dedutivo e indutivo. Nigel Cross, professor na Open University, no livro Designerly Ways of Knowing de 1982, citou os experimentos de Bryan Lawson para comparar e analisar quais seriam as estratégias de resolução de problemas adotadas por cientistas e designers. O primeiro grupo parecia conduzir seu pensamento de maneira bem diferente do segundo grupo. Motivados por essa tese, no início da década de 1990, Nigel Cross, Norbert Roozenburg e Kees Dorst iniciaram, na universidade de Delft,

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Holanda, o que se tornaria uma série de simpósios relacionados à pesquisa sobre o raciocínio projetual que é próprio e natural dos designers. 108

O Design Thinking se dirige a empresas e organizações, não se limitando às abordagens da pesquisa acadêmica.

Também nesse aspecto, encontramos as importantes contribuições de Bruce Archer, que desde os anos 1960 demonstrava a participação fundamental dos princípios norteadores do Desenho Industrial/Design no campo dos negócios. Henry Dreyfuss escreveu o livro “Designing for People” em 1955. George C. Beakley e Ernest G. Chilton escreveram


“Design: Serving the Needs of Man” em 1974. Um sem número de obras na área de Ergonomia foram produzidas sob o princípio do projeto com foco no ser humano. 109

Então, por que o Design Thinking está na moda? Qual é o seu mérito? Esse “Design Thinking”, e a forma como ele se apresenta, tem o mérito de dar importância ao desenho expressional e às técnicas de modelação rápida de ideias para visualização e compreensão de problemas. Isso promove o desenvolvimento das capacidades intelectuais e habilidades motoras daqueles


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envolvidos, estimula o autoconhecimento e a estima dos participantes, contribui para o engajamento e, consequentemente, para que se alcancem soluções mais efetivas às questões em estudo.

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Apesar de o disco “Who’s Next” ter feito um grande sucesso na Europa e nos Estados Unidos, nenhuma música do The Who figurava entre as mais tocadas nas rádios brasileiras nos anos de 1971 e 1972. Trinta e dois anos depois, muita gente cantou “Behind Blue Eyes” junto com o Limp Bizkit.


Ligia Medeiros é Desenhista Industrial formada na ESDI, Mestre em Art and Design Education e Doutora em Engenharia de Produção. Atualmente é Professora da UERJ e Coordenadora Adjunta do Programa de Pós Graduação em Design da ESDI. Desde 2010, trabalha com Martina Seibel, estudante de design de produto na UniRitter, e Rodrigo Cury, estudante de Design de Produto na UFRGS, em pesquisas sobre o raciocínio projetual, a desenhística e a graficacia.

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“A eficiência na produção é tão boa quanto o desenho do produto a permitir” — João Bezerra

Edição de fevereiro de 2012


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“Um projeto bem-sucedido não é uma espécie de milagre”


André Stolarski: Vida em Projeto

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por

Felipe Kaizer publicado em:

Aplataforma

Não sabemos quem alguém é antes de ouvirmos a história dos seus feitos. Quem foi André Stolarski? Títulos como o de designer, professor e tradutor não respondem a essa pergunta; tampouco o somatório de qualidades e defeitos. Qualquer estranho poderia partilhar das mesmas características ou reconhecer com facilidade sua modéstia, inteligência e generosidade. Mas quem será um dia capaz de contar a sua história?


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Tive a sorte de conviver com o André como seu estagiário na Tecnopop, entre 2005 e 2006, e como designer da equipe de Comunicação da Fundação Bienal de São Paulo desde 2009. Assisti a algumas das suas palestras e cursos; li e discuti em primeira mão alguns dos seus textos. Até hoje, Stolarski foi a pessoa com quem trabalhei por mais tempo. Mantivemos contato até seu falecimento em agosto de 2013, aos 43 anos. A meu ver, sua trajetória profissional levanta questões que dizem respeito a todos que trabalham com projeto. Amigos e familiares podem confirmar: a vida de André Stolarski foi pautada pelo trabalho. Ele se dedicou integralmente aos projetos


dos quais participou. Pode-se mesmo dizer que suas únicas atividades paralelas eram outros projetos; assim ele encarava suas falas e seus escritos. Para ele, um projeto – como quase tudo – era um arranjo particular entre condições de trabalho, prazos e pessoas. Ele lidava com essas variáveis com a ajuda não apenas das suas habilidades inatas, mas também de uma série de técnicas. André não era apenas excepcionalmente talentoso; ele se disciplinou. Stolarski desenhou, mais do que qualquer outra coisa, processos e estruturas de trabalho. Ele também não subestimou a importância dos recursos e das ferramentas para o sucesso dos projetos. Essas preocupações nasceram

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da consciência de que um projeto bem-sucedido não é uma espécie de milagre, mas o resultado de um processo bem conduzido. Sua sensibilidade a essas condições o obrigou, portanto, a se debruçar sobre as questões de metodologia e gerenciamento. A fixação com esses problemas era consequência menos de uma obsessão e mais de uma visão antecipada dos males de um processo descuidado. Mas André não protegeu apenas o futuro dos projetos. Suas equipes tinham um quê de sagrado. O controle mantido sobre as condições de trabalho visava não apenas à diminuição das chances de fracasso dos projetos, mas também à preservação das pessoas.


Eventualmente ele “blindava” suas equipes contra a sobrecarga de tarefas. Essa atitude rara na indústria cultural brasileira permitiu que elas fossem estáveis, bem como rentáveis. André conciliava os limites individuais com as demandas de trabalho, esperando o melhor de cada um dos seus colaboradores, sem o exigir. Com intuito de evitar qualquer tipo de exploração, ele aplicou seus métodos de trabalho contra os possíveis abusos de poder. Stolarski guardou o mesmo respeito pelos tempos dos projetos. Tinha dificuldade em conceber algo que não tivesse data para terminar, mas, por outro lado, a experiência adquirida com os anos de projetos simultâneos

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permitiu que ele imaginasse cenários futuros em toda sua complexidade. Essa forma de clarividência o levou a concluir que “todo projeto dá errado” e que não há nada de catastrófico nisso. Mediante uma prática que se alimentava dessa experiência crescente, Stolarski descobriu que um projeto não é um caminho estreito e seguro – cujo destino é a implementação de um plano elaborado de acordo com algumas intenções –, mas um campo de possibilidades que exige um trabalho constante de imaginação, pois não se sabe onde vai chegar. Essa prática reflexiva demonstrou que, independente de qualquer vontade declarada, todo projeto vagueia nesse campo. Nesse sentido, André foi um pragmático que guiou suas ações em função


“Projetos nascem, vivem e morrem no chamado “mundo real”

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dos resultados possíveis a cada vicissitude de projeto, e não de um ideal de sucesso. Ele aprendeu a se adaptar a esse caos de eventos imprevisíveis onde os projetos nascem, vivem e morrem no chamado “mundo real”. 122

Sua outra descoberta diz respeito às tensões internas aos projetos, fruto das diferenças pessoais. Por reconhecer a diversidade de agentes envolvidos, Stolarski não desprezou a contribuição nem o risco oferecido pelas subjetividades. Para evitar que os choques de personalidade estagnassem os processos, ele desenvolveu habilidades diplomáticas. Defendendo os projetos dos conflitos insolúveis de opinião, sua retórica


ganhou fama. Além de convencer, ele era capaz de comprometer com o projeto aqueles que estavam apenas envolvidos a uma distância segura. Contudo, Stolarski defendeu os projetos dentro dos limites impostos pelos agentes dominantes, sem questionar sua legitimidade. Ele “dançava a dança” – como costumava dizer –, sem a pretensão de mudá-la. A quantidade e qualidade dos projetos não dependeu só das suas habilidades e dos seus métodos, mas também das relações que ele manteve com todos a sua volta. Stolarski cultivou o compromisso com os projetos não somente em momentos de dificuldade. De fato, um compromisso generalizado e incondicional sempre se manifestou

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de início, e o nome dessa manifestação é confiança. André confiava. Como uma atmosfera, essa confiança contaminava todos que se aproximavam dele. Nela, a despeito de todas as probabilidades, mais coisas poderiam simplesmente acontecer. 124

Na sua trajetória profissional Stolarski apostou no que há de incerto: no possível, no subjetivo, no futuro. Ele viveu em paz com o acaso e a imprevisibilidade: sem mágoas, sem inimigos, sem medo. Ele aprendeu a tirar partido dos acidentes de percurso e, ao final, sua vida se transformou num projeto em andamento. Com seu humor irônico, André teria encarado sua própria morte como um simples contratempo no curso dos projetos. Suas realizações foram


o início de uma história que não podemos contar, porque ainda não se passou. Não conhecemos a dimensão do seu legado, pois ele continua em construção com as pessoas que herdaram seu trabalho. 125

Felipe Kaizer é designer gráfico e pesquisador independente, cujos interesses variam da filosofia política à história do livro. Graduou-se na PUC-Rio em 2006 e em 2009 ajudou a fundar a equipe interna de design da Fundação Bienal de São Paulo.


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5 entrevistados 17 articulistas 1 fot贸grafo 35 mil impress玫es


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Até a próxima edição! revistaciano.wordpress.com


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