Elias Boaventura
A lição que ficou
Desmemórias 2 A lição que ficou
Elias Boaventura
São Carlos, 2012
Elias Boaventura
Desmemórias 2 A lição que ficou
São Carlos, 2012
© 2012, Elias Boaventura.
Ilustrações Maria Luísa Bissoto Produção editorial Diagrama Editorial Apoio editorial Suzana Amyuni Revisão de texto Jocenilson Ribeiro Santos Digitação dos originais Inalda Pimentel de Araújo
Boaventura, Elias. Desmemórias 2: A lição que ficou. São Carlos : Diagrama Editorial, 2012. 192p. Il. isbn 978-85-65527-00-2 1. Literatura Brasileira – Contos 2. Contos – Literatura Brasileira I. Título. CDD-869.935
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A minha estimuladora companheira Sylvana. A meus queridos filhos, a quem muito estimo. Ao Instituto Granbery, onde vivi bons momentos. A D. Inalda, Suzana, Maria LuĂsa e Marcos pelo apoio imprescindĂvel que me dispensaram.
Sumário A beleza das tempestades, 13 A expulsão, 19 Aos pés da cruz, 27 As mortes de minha mãe, 33 Capiçobeiro, 41 Carangola, 47 Cartas à árvore do Granbery, 53 Caturra, 61 Chico Cachaça, 67 Da rua dos meninos ou aos meninos de rua, 73 Dora, 79 Joaquim Queimado, 85 Meu boi Campolino, 91 Meus galos: Gigante e Vinagre, 99 Meus dois pais, 107 Minha mãe e meu canário cantador, 113 O apelido que funcionou, 119 O clube de la fenêtre, 125 O comunista, 131 O que me ensinaram as flores, 139 Meu primeiro fracasso financeiro, 145 Solidão, 151 Granbery 120 anos, 157 O longo sofrimento da ovelha Peunim, 163 A caminho do Granbery – meu paraíso, 169 No interior do paraíso , 177 A imprevisibilidade da vida, 183 Mocidade vazia, 189
Apresentação
Conhecer Elias Boaventura e poder desfrutar de sua companhia é aprender como viver pelo próximo, como se expressar de modo que todos entendam; é saber quais as diversas maneiras de enfrentar os próprios problemas e ainda crescer com eles. É entender como cada situação pode se transformar em uma lição de vida para nós mesmos e para aqueles que conosco convivem. Ler os textos do Elias é reforçar todos esses ensinamentos. Vê-los publicados é ter a certeza boa de que cada um deles poderá ser compartilhado por muitos; e, também, ver com alegria que o autor está, desta forma, eternizando a profissão que sempre desenvolveu com tanto prazer: a de professor. Neste livro, cada artigo traz implícito o amor aos amigos e à igreja, a saudade do Granbery, a gratidão aos pais pelo carinho e pela educação e tantos outros sentimentos que envolvem essas histórias. Ao final de cada história, fica explícito que todas as situações vividas trazem consigo um lado positivo. A fala do caipira, os nomes e os apelidos característicos do interior, a vivência com amigos, a roça, a natureza, os animais, a infância, a cozinha e o fogão à lenha, as conversas com as árvores são contadas de modo que nos acalentam e nos fazem rir. Rimos da história em si e suspiramos pelas semelhanças que encontramos com nossa própria vida. Algumas lembranças mostram que o autor não fugiu dos momentos ruins e das advertências que levou… As trapalhadas 7
com as pessoas, o uso do terno alheio, os traumas vividos no Granbery ou em Carangola… são assuntos abordados sem medo. Aquilo que aparentemente não deu certo o fez crescer. As reflexões sobre suas atitudes fizeram-no amadurecer. E, embora a revolta aparecesse em alguns momentos, cedo ou tarde, a lição chegava e permanecia. Esta é a bagagem registrada em “Desmemórias II – a lição que ficou”. Elias sabe falar a linguagem do povo e, neste livro, faz com que a gente reviva e dê um novo significado àquelas situações comuns, como os problemas vividos na juventude, a morte, a separação da família, de amigos e de animais de estimação, entre tantas outras experiências semelhantes às que vivemos. Um livro que pode ser lido na sequência ou aleatoriamente (ou, ainda, como gosta o autor, em desordem). De qualquer forma, é possível entender gostosamente a mensagem. O leitor vai sentir vontade de ler mais. E, de qualquer jeito, com este livro, vai aprender uma grande lição! Marcos Campos
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A título de introdução
Como já afirmei em Desmemórias, há algum tempo percebi que minhas lembranças da infância e da juventude começavam, já com certa velocidade, a desaparecer de minha memória ou a se tornar confusas nos momentos em que tentava retomá-las. Diante desse fenômeno involuntário e, quem sabe, inevitável, tentei resgatá-las e registrá-las de modo mais sistemático, antes que se desfizessem por completo e me visse sem passado. Após 35 anos de ausência, voltei a Coimbra, a cidade na zona da mata mineira em que nasci. E, ao passar por suas ruas e praças, deparei-me de modo intenso, por meio de seus descendentes, com muitos amigos desse passado que tem insistido em esvaecer-se. Hoje já mortos, eles me passaram forte sensação pela presença de seus filhos, netos e até bisnetos. Na maioria de tais encontros, emocionei-me além do possível e acabei até por evitá-los, a me recolher emocionalmente. A antiga vila dos meus tempos de menino, atualmente uma pequena e aconchegante cidade, fincada no alto de uma serra, constitui uma bela edificação, obra desses modestos personagens meus contemporâneos. Mas, por vivermos em sociedade de classes, seus feitos e construções permanecem escondidos e, nos dois únicos livros sobre a região, não são sequer mencionados. Neles impera a história dos mandatários, dos que exerciam o poder e até mesmo daqueles que, por suas maldades, contribuíram para aumentar a dor dos mais frágeis.
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Assim, ao me dispor a essa empreitada retroativa àqueles tempos e àquelas personalidades, duas inquietações prescindiram minhas reflexões ou, melhor dizendo, foram nelas inspiradas: a força das pessoas ligadas às classes populares e as ricas contribuições, via de regra, não levadas em conta pela oficialidade histórica, que tanto representam para o avanço da solidariedade no processo social. Sonhei. E sonhando distribuí, ao longo destas páginas, uma composição de minhas desmemórias, sem preocupação com registro cronológico ou histórico, mas regido pelo fluir de causos que foram emergindo e das reflexões por eles instigadas. Dessa forma, a percepção aqui exposta a público não se compõe apenas de fatos efetivos, dado que o compromisso maior é com minha emoção sobre esse passado, que teimosamente busco reconstruir. Fica a clareza de que, mais do que os acontecimentos – estes, em parte, já vejo esvaírem-se –, impregnaram-me a sapiência e o poder de gente tão simples de meu passado que, nas mais distintas circunstâncias ao longo da minha vida, insistiram oniricamente em fazer-se presentificados. Com Desmemórias II – A lição que ficou, tenho a intenção de acrescentar mais algumas informações que surgiram em minha mente e são complementares àquelas expostas em Desmemórias – A força do fraco. Quero agradecer a todos os que me ajudaram, que não foram poucos, e pedir perdão a muitos dos personagens por informações importantes que, involuntariamente, omiti sobre eles. Elias Boaventura
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A beleza das tempestades
A beleza das tempestades •
aprecio uma tempestade com relâmpagos, trovões, raios e aguaceiro. A tempestade me acalma e me dá segurança. Creio que aprendi a gostar dela desde minha infância como morador rural. Éramos, eu e meus irmãos, capinadores e apanhadores de café em área próxima de nossa residência e, assim que a chuva começava, ouvíamos a esperada ordem do pai: “Meninos, venham para casa; vem chuva forte e perigosa”. Juntávamos rapidamente os “cacumbus”, se houvesse tempo, colhíamos espigas de milho e marchávamos apressados para nosso aconchego, à espera que a chuva fechasse o tempo. A chuva desabava e tinha início um gostoso cerimonial. Todos os espelhos eram cobertos, ninguém pegava em garfos, facas, ferros ou ferramentas, exceção feita às panelas no fogão de lenha. 13
No cair da tarde, em uma grande cozinha de chão batido, com um bom fogão de lenha, iniciava-se a mais gostosa reunião familiar acompanhada de inhame, cará, milho verde e batata doce, assados, servidos com chá de folha branca, de laranja ou de mercurim. Rolavam as histórias dos pais, às vezes músicas com uma pequena sanfona, até que viesse a ordem para irmos dormir com a mesma roupa que vínhamos do trabalho. Aguaceiro, relâmpago, trovões tornavam-se aconchegantes e passavam a ser sinônimos de carinho e segurança. Nós rezávamos para que as tempestades viessem, principalmente, na parte da tarde. Era bom demais. Com o passar do tempo, já moço, conheci um amigo que morava em uma gruta, toda de pedra, em grande área de mineração. Narrei-lhe minha experiência e ele, com entusiasmo, convidou-me para viver uma tempestade na fazenda dele. Lá fui eu, em dia que a tempestade se anunciava baixar. A chuva caía aos cântaros, e, assim que lá chegamos, ele me mostrou uma janela perto de um para-raios e me aconselhou: “aqui você poderá ficar mais ou menos tranquilo. Quando a tempestade ficar brava, não se assuste e se você tiver coragem vai contemplar algo indescritível.” Duas horas depois o fenômeno começou. Estrondosos e assustadores trovões que faziam tremer a própria casa, relâmpagos cruzavam os céus como se anunciassem uma catástrofe, as enxurradas davam-nos a ideia de cachoeiras, e os vendavais sacudiam e envergavam as árvores de modo ameaçador e de beleza extraordinária. Tentei, apavorado, afastar-me da janela, mas ele me constrangeu dizendo “não faça isso, não deixe o medo te cegar, contemple esta beleza da tempestade, ela é muito menos perigosa que a vida e sem a maldade dela.” Aceitei a exortação e retornei para contemplar aquela fúria da natureza que, de fato, era um lindo espetáculo e uma decisiva manifestação de força da ordem natural. 14
Na manhã seguinte, o tempo estava claro, as aves e as plantações pareciam celebrar a varredura que os vendavais e as chuvas fizeram na atmosfera e se podia respirar a gostosa aragem do ambiente, confirmando o que por lá se dizia, depois da tempestade vem a bonança. Não sei se em função disso, aprendi a gostar das tempestades e encarar positivamente as crises e as perdas da vida. Tenho mesmo a tentação de entender a existência como uma sequência de grandes perdas, semelhantes às tempestades que, corretamente gerenciadas, se transformam em gratificantes vitórias. Hoje, tenho que admitir que os momentos de grandes crises em minha vida foram aqueles em que mais cresci e mais me aproximei de mim mesmo, o que me fez até criar certo receio dos períodos de calmaria. Deve ser um possível defeito de formação, mas confesso que tenho orgulho dos momentos críticos e tensos de minha vida. Tenho reclamado com as pessoas que organizam meu currículo pela insistência em esconder minhas tempestades e fracassos vividos, dos quais me orgulho tanto. Tenho advertido meus jovens alunos de que tomem muito cuidado com os momentos felizes, porque, quase sempre, é neles que escorregamos e rolamos ribanceira abaixo. Vista a vida de um lugar seguro, cada um pode viver as tempestades naturais, sociais ou de qualquer natureza, que não somente são lindas e agradáveis aos olhos, mas também ótimas para nos levar a um encontro conosco, a sentirmos mais de perto nossos limites e possibilidades e perceber a existência do outro.
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A expuls達o