Revista Pequiseduca v1n1

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Apresentação A Revista Eletrônica Pesquiseduca é uma publicação semestral do Programa de Mestrado em Educação, da Universidade Católica de Santos (UniSantos), e tem seus volumes disponibilizados gratuitamente na internet. Sua produção foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), por meio do Programa Nacional de Cooperação Acadêmica (Procad), parceria vigente entre a UniSantos e a Unisinos no período 2005/2009. Seu principal objetivo é publicar artigos inéditos que analisem a complexidade e fecundidade das diferentes perspectivas de abordagem da pesquisa em Educação, especialmente focada nas temáticas de formação docente e nas análises circunstanciadas da dinâmica processual das instituições escolares. As seções da Revista acolhem artigos científicos sob forma de ensaios ou análises críticas, resenhas de livros e/ou críticas elaboradas sobre obras acadêmicas, artigos que discutem resultados de pesquisas ou que analisam experiências e processos de inovação realizados em redes de ensino/instituições educacionais, bem como notícias e informações sobre o Programa de Mestrado em Educação da UniSantos.

Profª. Dra. Sueli Mazzilli Editora Responsável Profª. Dra. Ângela Maria Martins Profª. Dra. Maria Amélia Santoro Franco Profª. Dra. Maria de Fátima Barbosa Abdalla Conselho Editorial


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Editorial No primeiro número da Revista Eletrônica Pesquiseduca, publicamos artigos de renomados autores na área de Educação, que aceitaram o convite para integrar esta primeira edição da Revista, a quem agradecemos a deferência. A indissociável relação entre políticas públicas, modelos de organização, gestão das instituições escolares e formação de professores é o fio condutor que articula as produções apresentadas nesta publicação, organizada em dois grandes blocos – temáticas relacionadas a políticas públicas que incidem sobre as instituições escolares e a formação de professores. O primeiro bloco é aberto com o artigo “Descentralização do Estado e Pacto Federativo”, do professor José Roberto Rus Perez, da Unicamp. Considerando o caráter federativo do sistema político brasileiro, o autor problematiza as relações entre as esferas federal, estaduais e municipais, focando os desdobramentos dessa distribuição de poderes nos serviços educacionais destinados à população. Enfocando especificidades de sistemas escolares municipais, o artigo “Educação Escolar Municipal e Sociedade Civil”, do professor Pedro Ganzeli, também da Unicamp, apresenta consistente análise sobre o processo de construção de estruturas participativas em administrações públicas municipais na área de Educação e as implicações decorrentes das parcerias entre sociedade civil e Estado. A eficácia dos mecanismos de representação dos pais de alunos em escolas maternais e elementares francesas é analisada pelo professor Gilles Monceau, da Universidade Paris 8, no artigo “Efficacité des mécanismes de représentation des parents d’élèves: équité ou égalité?”. Partindo da premissa de que a legitimidade conferida pela eleição não garante representatividade, o autor toma como referência a proximidade sociocultural que os representantes mantêm ou não com os professores e a escola – fato que afeta as formas de representação -, valendo-se dos conceitos de equidade e igualdade para analisar as diferentes situações que se apresentam na pesquisa realizada. Abrindo o segundo bloco temático, o artigo “Considerações acerca do conceito de Epistemologia da Prática”, do professor Silas Borges Monteiro, da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), oferece aos leitores oportuna retrospectiva do processo histórico de construção conceitual do termo epistemologia no campo da Educação, remetendo-os às especificidades do conceito de epistemologia da prática na formulação dos diferentes autores que a plasmaram e a suas implicações na produção de conhecimentos sobre formação de professores na atualidade. Em estreita relação com o tema anterior, a professora Marília Claret Geraes Duran, da Universidade Metodista de São Paulo, analisa as diferentes concepções de cotidiano que permeiam estudos sobre formação e prática de professores em seu artigo “O cotidiano escolar e as pesquisas em Educação”, destacando as contribuições de Michel de Certeau para esse campo de estudos. No “Saberes de professor com formação européia, em Santos (década de 1910)”, a professora Maria Apparecida Franco Pereira, da Universidade Católica de Santos (UniSantos), analisa as concepções do professor Alcides Luiz Alves, que atuou na Escola da Sociedade União Operária, na cidade de Santos, na década de 1910. Examina temas como organização do currículo escolar, da educação feminina nas escolas e da disciplina escolar, entre outros, propiciando oportunas reflexões sobre questões relativas à escola atual no Brasil. Finalizando este bloco, uma proposta de procedimentos metodológicos para o desenvolvimento de estágios supervisionados em cursos de licenciatura, orientados pelos instrumentais da pesquisa, é o


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tema tratado pela professora Maria Socorro Lucena Lima, da Universidade Estadual do Ceará (UECE), em “O estágio nos cursos de licenciatura e a metáfora da árvore”. Na sessão de resenhas, este número apresenta a análise produzida pela professora Francisca Eleodora Santos Severino, da Universidade Católica de Santos, sobre a obra de Francisco Imbernón “Formação Permanente do Professorado, Novas Tendências”, publicada em 2009 pela Editora Cortez. Nossa expectativa é de que a Revista Eletrônica do Programa de Mestrado em Educação da UniSantos venha a constituir-se em mais um instrumento de reflexão sobre Educação e que possa incentivar debates profícuos na busca incessante pelo aprimoramento da qualidade da Educação e das escolas em nosso país. Agradecemos a colaboração de nossos leitores na divulgação e também no aprimoramento da Revista e desejamos a todos uma boa leitura!!

Profª. Dra. Sueli Mazzilli Editora Responsável


Sociedade civil, Gestão municipal da Educação e Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) Pedro Ganzeli* Departamento de Políticas, Administração e Sistemas Educacionais, Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Av. Bertrand Russell, 801, Cidade Universitária “Zeferino Vaz”, CEP 13083-865, Campinas, SP, Brasil, e-mail: pganzeli@terra.com.br O processo de descentralização da Educação no Brasil, nos anos 90, ocorreu tendo como eixo o debate sobre a relação entre a sociedade civil e o Estado, em sentido restrito. Passamos, então, a verificar o uso indiscriminado da expressão sociedade civil em legislações, planos educacionais, programas de governo, documentos estes que orientaram as reformas na administração pública da Educação sem a devida clareza conceitual. Neste trabalho buscamos esclarecer, inicialmente, possíveis significados do conceito de sociedade civil para, em seguida, compreendermos como foi se constituindo historicamente a relação entre a sociedade civil e o aparelho do Estado na área da Educação. Finalizaremos o artigo problematizando proposições presentes no Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) no âmbito da administração pública municipal da Educação. Palavras-chave: Sociedade civil. Sociedade política. Parcerias. Secretaria Municipal de Educação (SME). Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE).

Municipal Education Management and Education Plan The process of decentralization of education in Brazil in the 1990s, there was an axis with the debate on the relationship between civil society and state, in the strict sense. We, then, to check the indiscriminate use of the term Civil Society in laws, education plans and programs of government, these documents which guided the reforms in public administration education, without adequate conceptual clarity. In this study we sought clarification, initially, possible meanings of the concept of Civil Society, to then understand how it was being historically the relationship between civil society and the state apparatus, in education. Finalizing the article problematized propositions on the Development Plan for Education with in the municipal administration of public education. Keywords: Civil society. Partnerships. Municipal Department of Education. Development Plan for Education.

* Atuação em Administração Educacional, com ênfase em Administração de sistemas educacionais e Gestão da escola pública. Professor do Departamento de Políticas, Administração e Sistemas Educacionais e membro do Laboratório de Gestão Educacional (Lage) na Faculdade de Educação da Unicamp.


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1 Introdução Nos anos 90, no Brasil, ganhou força o debate sobre as responsabilidades do Estado e da sociedade civil na resolução dos graves problemas gerados pela transformação da economia mundial. As reformas implementadas no Estado brasileiro possibilitaram, na esfera federal, a redução de sua dimensão, por meio dos diversos programas de privatização, como também alteraram sua estrutura administrativa, tendo, como exemplo, a criação das agências reguladoras (de energia, de comunicação, de estradas, entre outras), ampliando, dessa forma, a participação da sociedade civil na condução de políticas e no atendimento à população em suas áreas de abrangência. Nesse período, pudemos observar, no âmbito da sociedade civil, grande expansão de organizações, agrupando em 2002 um total de 276 mil entidades, fundações, instituições e Organizações Não-governamentais (ONGs) (Gois, 2004). Esse dinamismo da sociedade civil mobilizou um enorme contingente de pessoas em projetos de diferentes áreas (social, ambiental, cultural, entre outras), com o objetivo de melhorar a qualidade de vida dos grupos sociais mais suscetíveis às reformas econômicas em curso. Nesse texto analisaremos diferentes formas de entendimento do conceito de sociedade civil, bem como problematizaremos as possíveis implicações das chamadas “parcerias” no âmbito da administração publica municipal, mais especificamente na área da Educação, analisando as propostas do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) direcionadas aos municípios. Não temos a pretensão de esgotar o assunto, dada a sua complexidade. Nossa intenção é ampliar o debate, trazendo algumas reflexões sobre o processo de construção de estruturas participativas no âmbito da administração pública municipal na área da Educação.

2 Estado e sociedade civil O Estado capitalista é marcado pela luta entre classes sociais fundamentais; de um lado, a burguesia, proprietária do capital financeiro e produtivo, e, de outro, o proletariado, possuidor da

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força de trabalho. Faleiros (1980) define o Estado capitalista como uma relação social igual a um campo de batalha, “onde as diferentes frações da burguesia e certos interesses do grupo no poder se defrontam e se conciliam com certos interesses das classes dominadas” (p. 46). Os interesses de classe estão em constante embate, especialmente quando entra em jogo a utilização dos recursos financeiros gerados pelo esforço comum da sociedade presente nas políticas públicas. É nessa perspectiva que cabe compreendermos o conceito de Estado. Em seu sentido restrito, o Estado pode ser compreendido como as diferentes instituições que integram a administração pública, encarregadas de prover a sociedade em suas mais diversas necessidades. A idéia de reforma do Estado ganhou força no Brasil na década de 90. Para os defensores da reforma, a redução da administração pública possibilitaria o aumento de sua eficiência econômica, reduzindo o custo de seu funcionamento. Tratavase de introduzir o conceito de Estado mínimo, tarefa que gerou vários dilemas. Criar um Estado mais barato e mais eficiente era o ideal dos reformadores, porém, na prática, “é difícil para os reformadores contemplar, ao mesmo tempo, economias de curto prazo e bons resultados futuros; dedicarse a mudanças radicais e imediatas e ao processo contínuo de reforma; implementar decisões extremamente duras e táticas que visem a motivar os funcionários” (Kettl, 1999, p. 77). No Brasil essas reformas da administração pública foram observadas de forma mais contundente na esfera federal, por meio das privatizações de grandes empresas nacionais, como a Companhia Vale do Rio Doce, bem como por alterações na estrutura administrativa com a criação de Agências Reguladoras, tais como a Agência Nacional de Águas (ANA). Todos esses “ajustes” foram decorrentes do processo de globalização da economia que exige maior circulação do capital financeiro entre os estados nacionais, cujas fronteiras estão tornando cada vez mais “porosas” as relações econômicas internacionais. “O discurso que ouvimos todos os dias, para nos fazer crer que deve haver menos Estado, vale-se dessa mencionada ‘porosidade’, mas sua base essencial é o fato de que os condutores da globalização necessitam de um Estado flexível a seus Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 1, p. 4-19, jul-dez. 2009


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interesses. As privatizações são a mostra de que o capital se tornou ‘devorante’, guloso ao extremo, exigindo sempre mais, querendo tudo. Além disso, a instalação desses capitais globalizados supõe que o território se adapte às suas necessidades de fluidez, investindo pesadamente para alterar a geografia das regiões escolhidas. De tal forma, o Estado acaba por ter menos recursos para tudo o que é social, sobretudo no caso das privatizações ‘caricatas’, como no modelo brasileiro, que financia as empresas estrangeiras candidatas à compra do capital social nacional. Não é que o Estado se ausente ou se torne menor. Ele apenas se omite quanto ao interesse das populações e se torna mais forte, mais ágil, mais presente ao serviço da economia dominante” (Santos, 2000, p. 66).

O Estado, guiado pela lógica reformista, ao mesmo tempo em que “se omite” em relação às demandas sociais; por outro lado, incentiva a atuação da sociedade civil na resolução de seus problemas. É nesse complexo e dinâmico contexto que cabe questionarmos qual a concepção de sociedade civil que favorece a lógica do Estado mínimo. Nogueira (2003), alertando para a grande diversidade de entendimento do conceito de sociedade civil, apresenta três formas de compreendê-lo: a sociedade civil político-estatal, a sociedade civil liberista e a sociedade civil social. O conceito de sociedade civil político-estatal foi elaborado a partir dos estudos de Gramsci que buscou compreender como a classe dominante constrói e mantém a hegemonia sobre a sociedade. Gramsci privilegiou a análise da ação política como sendo um aspecto fundamental para a transformação dos Estados modernos. Ele compreende o Estado como “todo o complexo de atividades práticas e teóricas com o qual a classe dominante não somente justifica e mantém seu domínio, mas procura conquistar o consentimento ativo daqueles sobre os quais exerce sua dominação” (Carnoy, 1988, p. 90). Assim, amplia o conceito de Estado, entendido como a soma da sociedade política (tribunais, parlamento, exército, entre outras instituições que hoje consideramos integrantes da administração pública) mais Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 1, p. 4-19, jul-dez. 2009

sociedade civil (igrejas, jornais, sindicatos, entre outras instituições)1. A sociedade política tem seus portadores materiais nos chamados aparelhos coercitivos do Estado, enquanto que os portadores materiais da sociedade civil são os aparelhos privados de hegemonia, ou seja, “organismos sociais aos quais se adere voluntariamente e que, por isso, são relativamente autônomos em face do Estado em sentido estrito” (Coutinho, 1987, p. 67). As esferas do Estado possuem a função de conservar ou modificar as relações econômicas e sociais, conforme os interesses da classe social que mantém a hegemonia na sociedade. Coerente com essa concepção de Estado, Gramsci elaborou uma estratégia de luta para a conquista do poder pelas classes oprimidas. Para ele, essa luta deve se dar, prioritariamente, no campo da superestrutura. Assim, a classe proletária deve construir uma contra-hegemonia que possibilite a criação de uma nova ordem social e econômica. Gramsci propôs a formação de ‘instituições’ que, por sua própria estrutura organizacional, possibilitem à massa de trabalhadores uma aprendizagem da convivência democrática. A proposta de formação de Conselhos em diferentes esferas sociais é um exemplo dessas estruturas de transformação e luta pelo poder do Estado. A atuação nessas estruturas participativas proporciona ao cidadão uma aprendizagem política, tornando-o um governante em potencial, ampliando sua compreensão sobre as inter-relações entre a sociedade política e a sociedade civil. A sociedade civil nessa perspectiva pode ser compreendida como parte do Estado, no âmbito da superestrutura. Para Nogueira (2003), em “sua configuração típico-ideal, essa sociedade civil produz incentivos basicamente organizacionais e 1 Gramsci preocupou-se com a análise na esfera da superestrutura: “Permanecemos sempre no terreno da identificação de Estado e de governo, identificação que não passa de uma reapresentação da forma corporativo-econômica, isto é, da confusão entre sociedade civil e sociedade política, pois se deve notar que na noção geral de Estado entram elementos que também são comuns à noção de sociedade civil (nesse sentido, poder-se-ia dizer que Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia revestida de coerção). Numa doutrina que conceba o Estado como tendencialmente passível de extinção e de dissolução na sociedade regulada, o argumento é fundamental. O elemento Estado-coerção pode ser imaginado em processo de desaparecimento, à medida que se afirmam elementos cada vez mais conspícuos de sociedade regulada (ou Estado ético ou sociedade civil)” (1989, p. 149).


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integradores: unificação, politização e fortalecimento do interesse público e democrático. Desse ponto de vista, a sociedade civil político-estatal é o campo por excelência do governo socialmente vinculado e da contestação política. Nela podem se articular movimentos que apontam seja para a construção de hegemonias, seja para o controle e o direcionamento dos governos, seja para a regulação estatal e o delineamento de soluções positivas para os problemas sociais” (p. 10). Nessa concepção de sociedade político-estatal, a luta ideológica entre a classe dominante e a classe proletária está presente em todos os espaços do Estado ampliado, ou seja, na sociedade política e na sociedade civil. Já a concepção de sociedade civil liberista foi construída mais recentemente pelos defensores da reforma do Estado, aqui compreendido em seu sentido restrito, mais especificamente, como todo o aparato da administração pública. Na sociedade civil liberista, as relações de mercado sobrepõemse às relações sociais. As ações políticas são pautadas pela concorrência e pelo individualismo. O Estado (restrito), a sociedade civil e o mercado são pensados de forma autônoma, ainda que exista uma relação entre eles, “o Estado mostra-se como o outro lado tanto do mercado e da sociedade civil, como de eventuais alianças ou combinações entre eles” (Nogueira, 2003, p. 10). Nessa forma de entender a sociedade civil, não entra a discussão do conceito de hegemonia. A concepção que a rege é a da neutralidade das relações, implicando a visão de sociedade civil como local privilegiado da participação desinteressada do poder político. “Nessa concepção, a sociedade civil é externa ao Estado, uma instância pré-estatal ou infraestatal, e nela se busca compensar a lógica das burocracias públicas e do mercado com a lógica do associativismo sociocultural. Um espaço a partir do qual se pode ferir e hostilizar os governos, mas de onde não se estruturam governos alternativos ou movimentos de recomposição social. Nele, pode existir oposição, mas não contestação” (Nogueira, 2003, p. 11 – grifo do autor). A partir dessa concepção, a perspectiva que se coloca é a da construção de um Estado mínimo e a ampliação máxima da atuação de orga-

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nizações da sociedade civil na resolução de seus problemas, reunidas no chamado Terceiro Setor2. Por sua vez, na concepção de sociedade civil social, é possível identificarmos a presença da luta pela hegemonia, porém vista de forma cosmopolita, para além das realidades nacionais. “Nela, a política está presente e tem lugar de destaque, mas nem sempre comanda: luta social muitas vezes exclui a luta institucional e com ela se choca, impossibilitando ou dificultando o delineamento e a viabilização de estratégias de poder e hegemonia (...) Recusa-se a se deixar ‘diluir’ no institucional (entendido sobretudo como sistema político e partidário), já que se concebe como maior do que ele e imune a seus desvios e degradações” (Nogueira, 2003, p. 12). Evers (1983), ao estudar os movimentos alternativos na República Federal da Alemanha, mostra-nos que eles são frutos da descrença de grande parte da população, principalmente dos jovens, em relação às políticas sociais-democráticas presentes em seu país. Essa descrença apóia-se no aprofundamento da recessão econômica no início da década de 80. Desencantados com os modelos ‘tradicionais’ de participação, essa população (trabalhadores estrangeiros, mulheres, operários jovens e ‘velhos’, desempregados, aposentados, inválidos, minorias étnicas, culturais e/ou sexuais) foi sendo ‘atraída’ pelos ideais ecológicos, antimilitaristas e antiindustrialistas que “levantavam a bandeira” do igualitarismo nos moldes das correntes libertárias anarquistas. Uma consequência desse processo foi a ocorrência de discussões sobre a crise política, social e econômica fora dos limites da administração pública e do parlamento, ou seja, do Estado em seu sentido restrito. No caso da sociedade alemã, relata Evers (1983), os debates sobre os graves problemas sociais passaram a ser travados, “cada vez mais longe do parlamento, nas convenções das igrejas, nos eventos culturais, nos grupos comunitários etc. Aos poucos, o gabinete e o parlamento são deixados de lado na tomada de decisões importantes que resultam de negociações ‘a portas fechadas’, nas cúpulas econômicas, nas conferências da OTAN, nas comissões européias etc. Os partidos políticos não são mais considerados – nem eles próprios se 2 Primeiro Setor = Estado (restrito); Segundo Setor = mercado; Terceiro Setor = organizações e instituições da sociedade civil.

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consideram na verdade – uma expressão de identidade coletiva” (p. 28). Essas novas práticas de organização coletiva, apesar de insulares, seriam os germes de uma nova cultura, na qual o Estado deixaria de ter a função de regulador neutro da sociedade. Para os novos grupos políticos, o Estado passa a ser considerado como a expressão da relação predominante de forças que não representa os interesses da sociedade, ou mais especificamente da comunidade, que eles representam. Esses grupos passaram a negar o Estado e o parlamento e a valorizar a vida em comunidade em que o igualitarismo esteja presente. Combatem toda ação, estatal ou industrial, que possa prejudicar de alguma forma a vida humana. Enfim, posicionam-se “de costas para o Estado e longe do parlamento” (Evers, 1983). As contestações e mobilizações buscam provocar mudanças na política pública sem, no entanto, alterar a estrutura institucional de poder. “De qualquer modo, ao menos em boa parte das ações, a expectativa é que a ativação da sociedade civil mundial promova uma espécie de ‘encapsulamento’ dos diversos governos, forçandoos a uma atuação socialmente mais responsável” (Nogueira, 2003, p. 13). Essas diferentes formas de pensar a sociedade civil ajudam-nos a compreender a relação entre a administração pública, em especial a Secretaria Municipal de Educação, e as chamadas ‘parcerias’, defendidas pelos interlocutores da reforma do Estado. A seguir, analisaremos como foram se constituindo as relações entre sociedade política e sociedade civil na área da Educação em nosso país.

3 Educação escolar e sociedade civil O debate sobre a participação do Estado na oferta ou não do ensino retoma os anos 20 e 30, sendo um marco na história da educação brasileira o “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nacional” na defesa do ensino público, gratuito e laico. Outro momento marcante nesse embate ocorreu quando foi discutida e elaborada a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº 4024/61, especialmente após a apresentação do substitutivo ao projeto de lei original, pelo deputado Carlos Lacerda, em 1958. Por esse substitutivo, “a iniciativa privada estava reivindicando para si a Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 1, p. 4-19, jul-dez. 2009

prioridade absoluta de ação e de proteção por parte do Estado e, para tanto, ela se opunha a que este exercesse a sua função democrática, que era a de fornecer educação ao povo, educação que, sendo pública, seria gratuita e, como tal, entraria, em condições favoráveis, na linha de competição com a educação particular” (Romanelli, 2002, p. 175). Mais recentemente, nos anos 70 e 80, no bojo da luta pela democratização do país, ganhou força a idéia da constituição de uma escola pública de caráter comunitário. Cunha (1991), ao discutir o significado da participação da comunidade na Educação, criticou os diferentes grupos que defendiam a substituição da escola pública pela chamada escola “comunitária”, em especial as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), muito atuantes naquele período: “As CEBs desenvolveram sua própria pedagogia (...), assim como participaram de alguns movimentos reivindicatórios pela construção, ampliação ou melhoria de escolas públicas. Mas seu efeito mais importante foi paradigmático: substituírem o Estado na gestão da escola pública. A escola gerida pela ‘comunidade’ seria a verdadeira escola pública, isto é, do povo e para o povo, sem a intermediação do Estado que, além de julgado incompetente em termos administrativos e pedagógicos, utilizaria as redes escolares para efeitos clientelísticos e eleitoreiros. E não faltavam casos empíricos para ‘comprovar’ essa tese...” (Cunha, 1991, p. 386 – grifo do autor).

Para Cunha (1991), a ideologia comunitária impede o desenvolvimento do conceito de escola pública, entendida em sua essência como a escola que atende a todos, para além daqueles que pertencem a um determinado grupo ou comunidade. Essa discussão sobre a presença cada vez maior da sociedade civil na área da Educação foi se fortalecendo ao longo dos anos 90 por meio de documentos norteadores da política educacional. Em 1990, em Jomtien, na Tailândia, ocorreu a Conferência Mundial de Educação para Todos, tendo como patrocinadores a Organização das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e o Banco Mundial. Dessa Conferência resultou a “Declaração


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Mundial de Educação para Todos”, documento que balizou a elaboração dos “Planos Decenais de Educação” dos países de maior população no mundo, signatários desse documento. Consideramos essa Declaração como sendo um importante referencial na construção do pensamento hegemônico para a regulação da Educação mundial (Barroso, 2003). Nela podemos observar a grande preocupação com a focalização das políticas na área da Educação, bem como a defesa da descentralização da gestão educacional. Para nossos propósitos, destacaremos abaixo os artigos 7º e 9° que indicam a participação da sociedade civil na Educação. O artigo 7° possui o título “Fortalecer as Alianças”, justificando, pois, a necessidade de novas articulações entre o Estado (restrito) e a sociedade civil:

organizacionais” que o Estado (restrito) deixar de fornecer. No artigo 9º, intitulado “Mobilização dos Recursos”, foi incentivada a aplicação de recursos provenientes de outras fontes, como podemos verificar:

“As autoridades responsáveis pela educação aos níveis nacional, estadual e municipal têm a obrigação prioritária de proporcionar educação básica para todos. Não se pode, todavia, esperar que elas supram a totalidade dos requisitos humanos, financeiros e organizacionais necessários a essa tarefa. Novas e crescentes articulações e alianças serão necessárias em todos os níveis: entre todos os subsetores e formas de educação, reconhecendo o papel especial dos professores, dos administradores e do pessoal que trabalha em educação; entre os órgãos educacionais e demais órgãos do governo, incluindo os de planejamento, finanças, trabalho, comunicações e outros setores sociais; entre as organizações governamentais e não-governamentais com o setor privado, com as comunidades locais, com os grupos religiosos e com as famílias” (Brasil, 1993, pp. 77-78).

O artigo reforça a necessidade de utilização de recursos da sociedade civil, inclusive aqueles “voluntários”, os quais não são sistemáticos, dependendo das condições de contexto para que ocorram. Ou seja, podemos observar no documento a preocupação expressa de mobilizar a sociedade civil para assumir a responsabilidade na manutenção da Educação. Fica evidente que se trata da concepção de sociedade civil liberista, separando, de forma clara, de um lado os órgãos governamentais e, de outro, as organizações não-governamentais. Tendo por base essa Declaração, foi elaborado no Brasil, em 1993, o “Plano Decenal de Educação para Todos”, cujo objetivo mais amplo foi o de assegurar, “até o ano de 2003, a crianças, jovens e adultos, conteúdos mínimos de aprendizagem que atendam à necessidade da vida contemporânea” (pp. 12-13). Salientamos que, em seu diagnóstico, encontramos a preocupação com a participação da sociedade civil na Educação nacional:

Ao afirmar que o Estado não possui recursos necessários para garantir o direito à Educação para todos, esse documento reforça a idéia predominante da falência do Estado, idéia essa muito discutível, conforme apontado por Santos (2000), anteriormente citado. Em um segundo momento, evidencia a necessidade de que haja novas “articulações e alianças” entre o setor público e privado para suprir a ausência do Estado na área da Educação, defendendo a colaboração das famílias na complementação dos “requisitos humanos, financeiros e

“Para que as necessidades básicas de aprendizagem para todos sejam satisfeitas, mediante ações de alcance muito mais amplo, será essencial mobilizar atuais e novos recursos financeiros e humanos, públicos, privados ou voluntários. Todos os membros da sociedade têm uma contribuição a dar, lembrando sempre que o tempo, a energia e os recursos dirigidos à educação básica constituem, certamente, o investimento mais importante que se pode fazer no povo e no futuro de um país” (Brasil, 1993, p. 79).

“Para que o País volte a se desenvolver, impõese um profundo ajustamento econômico e financeiro, que torne possível novo modo de inserção na ordem econômica internacional. Para tanto, serão necessárias profundas transformações estruturais, desconcentração espacial da economia e uma vigorosa redistribuição de renda e de riqueza. Tal processo gerará mudanças na composição e dinâmica das estruturas de emprego e das formas de organização da produção, o que Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 1, p. 4-19, jul-dez. 2009


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requer alterações correspondentes nas estruturas e modalidades de aquisição e desenvolvimento das competências humanas. Serão necessários novos critérios de planejamento educativo e de relações entre escola e sociedade, capazes de gerar oportunidades educacionais mais amplas e diferenciadas para os vários segmentos da população. (...) A descentralização e a autonomia, no contexto da democratização da sociedade, levam a uma reorganização dos espaços de atuação e das atribuições das diferentes instâncias de governo e da sociedade organizada na educação, com novos processos e instrumentos de participação, de parceria e de controle” (Brasil, 1993, p. 21).

A participação da sociedade civil ganhou, nesse documento, um ‘caráter gerencial’, considerada, assim, como parte fundamental da estratégia para a redução das atribuições do Estado na garantia da qualidade da Educação. Nesse sentido, o que se pretendeu foi a utilização das organizações nãogovernamentais para a implementação de políticas elaboradas a partir dos ‘órgãos de governo’. Cabe destacar que não estamos querendo negar a importância da presença da sociedade civil no campo educacional, especialmente na forma de Conselhos Deliberativos; porém, o que estamos apontando é o caráter instrumental que os documentos impõem para a sociedade civil e suas organizações, como “setor estratégico”, para a omissão do Estado (restrito) na garantia dos direitos de todos os cidadãos. Essa visão de sociedade civil como setor estratégico do planejamento governamental pode ser verificada em outro documento, o “Planejamento Político-estratégico”, que norteou as ações do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) em seus dois mandatos como presidente do Brasil (1995-2002). Em sua apresentação, o documento indicou que a principal estratégia para a qualificação da Educação nacional era a mobilização: “O elevado nível de consciência que a sociedade brasileira vem demonstrando sobre a importância da educação como investimento estratégico, para garantir o desenvolvimento econômico e a plena cidadania, pode, portanto, alicerçar uma verdadeira vontade política que permita a superação das deficiências do nosso sistema de ensino. Mobilização, portanto, é a palavra-chave do Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 1, p. 4-19, jul-dez. 2009

grande esforço a que se está dando início para enfrentar as distorções do sistema educacional brasileiro...” (Brasil, 1995, p. 2).

Mais uma vez, podemos constatar nesse documento a idéia de “mobilizar” recursos físicos, humanos e financeiros para além daqueles destinados pelo Estado (restrito). O documento propôs que o Ministério da Educação reduzisse suas atribuições de órgão executor e ampliasse suas funções no processo de elaboração da política educacional no país. Nessa direção foram propostas mudanças na legislação com a justificativa de facilitar e ampliar a participação da sociedade civil na Educação: “A busca de qualidade aponta para a necessidade de rever e simplificar o arcabouço legal, normativo e regulamentar para estimular (e não tolher) a ação dos agentes públicos e privados na promoção da qualidade de ensino. É preciso descentralizar e desburocratizar o sistema, bem como levar os recursos para quem executa na ponta” (Brasil, 1995, p. 6).

Buscou-se favorecer mudanças na legislação vigente e na criação de leis que descentralizassem a Educação aos moldes da reforma do Estado. Nesse sentido a aprovação da Emenda 14/96, da Lei nº 9424/96, que a regulamentou, e da Lei n° 9394/96, nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, significou a consolidação dessa política de descentralização. O impacto da Emenda 14/96 e da Lei nº 9424/96, que a regulamentou, para a Educação nacional tem sido objeto de análise de vários autores (Monlevade & Ferreira, 1998; Oliveira, 2001; Davies 1999; Martins, Oliveira & Bueno, 2004). Neste artigo, destacaremos o aspecto relacionado diretamente à participação, ou seja, à constituição dos Conselhos de Acompanhamento e Controle Social (CACS). A Lei nº 9424/96, em seu art. 4º, orienta a criação dos CACS no âmbito da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, indicando o número e a origem dos representantes nos Colegiados em cada âmbito de governo, como também dispõe como atribuição desses o “acompanhamento e controle social sobre a repartição e a transferência e aplicação dos recursos do Fundo” e “a supervisão do censo escolar anual” (§ 4º). Como podemos observar, a Lei é genérica quanto às atribuições e


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competências dos CACS. Cada esfera de governo ficou responsável pela criação dos CACS por meio de legislação específica. A generalidade dessa Lei possibilitou inúmeras interpretações em relação a essa estrutura participativa. Rodrigues (2001) avalia que, no estado de São Paulo, a ação dos CACS foi fortalecida pela atuação de órgãos supraestaduais que exigiram o repasse de informações aos Conselhos municipais, indicando essa relação como positiva para a fiscalização do uso de recursos do Fundef. Porém, aponta ainda dificuldades quanto ao seu funcionamento, tais como: formas de cooptação dos representantes pelos governantes municipais, em especial nos municípios de pequeno porte (até 20 mil habitantes); o desconhecimento técnico por parte do representante; os custos individuais para a participação; e os obstáculos colocados pela administração municipal que inibiram ou mesmo impediram o funcionamento pleno dos CACS. O autor explicanos ainda que as “possibilidades de melhoria da participação do controle público são também fortemente determinadas pelas condições gerais de atraso e autoritarismo que caracterizam a genealogia histórico-estrutural da sociedade brasileira. Os Conselhos do setor educacional são fortemente limitados por esse contexto” (2001, p. 55). Avaliação semelhante foi realizada por Guimarães (2004) que verificou inclusive a “não criação ou funcionamento inadequado do Conselho de Acompanhamento e Controle Social do Fundef” (p. 207). Carnielli e Gomes (2008) indagam sobre os verdadeiros efeitos dos CACS para a democratização da administração pública ao afirmarem que as “evidências não permitem responder categórica e excludentemente se os colegiados abrem caminho à participação e à cidadania ou se promovem a desmobilização social e o clientelismo político” (pp. 147-148). Podemos dizer que a lógica ‘flexibilizante’ que orientou a criação dessas instâncias participativas não favoreceu a presença real da sociedade civil no âmbito da sociedade política. Essa mesma lógica, por sua vez, também prevaleceu na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9394/96). A Lei faz referência direta ao termo gestão democrática em três artigos. No art. 3º foi definida como um dos 11 princípios que regem a Educação Nacional, a saber, a “gestão democrática do ensino público,

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na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino” (Inciso VIII). No art. 14, quando assegura que os sistemas públicos de ensino devem elaborar as normas de gestão democrática que atendam aos seguintes princípios: I – participação dos profissionais da Educação na elaboração do projeto pedagógico da escola; II – participação das comunidades escolar e local em Conselhos escolares ou equivalentes.

Também as instituições públicas de ensino superior devem obedecer ao princípio da gestão democrática, conforme previsto no art. 56, que assegura a existência de “órgãos colegiados deliberativos” em sua estrutura organizacional. Além dessas referências diretas à gestão democrática, destacamos o art. 15, que prescreve a necessidade de os sistemas de ensino assegurarem “às unidades públicas de educação básica que os integram progressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa e de gestão financeira”, que, a nosso ver, contribui para a construção da gestão democrática. Conforme podemos observar, no que concerne à gestão democrática, a legislação limitou-se ao âmbito das unidades escolares e instituições de ensino superior de oferta pública. Pouco foi dito sobre a gestão democrática no âmbito dos sistemas de ensino. A LDB estabeleceu que o Conselho Nacional de Educação possui as funções normativas e de supervisão (art. 9, Inciso IX, § 1º), caracterizando-o como órgão auxiliar do Ministério da Educação, proposta essa muito distante daquela defendida pelo “Fórum Nacional de Educação em Defesa da Escola Pública”, que o considerava como “uma instância com funções deliberativas análogas àquelas exercidas pelo Legislativo e Judiciário no âmbito da sociedade como um todo” (Saviani, 1997, p. 208). Ao comparamos as duas idéias de Conselho Nacional de Educação, verificamos que enquanto na proposta do Fórum buscava-se criar um espaço de interação entre a sociedade política e sociedade civil, prevaleceu na LDB a concepção que separa de forma clara o Estado (restrito) da sociedade civil. Ao analisar a LDB em sua totalidade, Saviani (1997) reforça a idéia acima, conforme podemos ver a seguir: “Seria possível considerar esse tipo de orientação e, portanto, essa concepção de LDB, como uma Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 1, p. 4-19, jul-dez. 2009


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concepção neoliberal? Levando em conta o significado correntemente atribuído ao conceito de neoliberal, a saber: valorização dos mecanismos de mercado, apelo à iniciativa privada e às organizações não-governamentais em detrimento do lugar e do papel do Estado e das iniciativas do setor público com a conseqüente redução das ações e dos investimentos públicos, a resposta é positiva” (p. 200).

Ainda sobre a égide do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), foi elaborado o Plano Nacional de Educação (PNE), institucionalizado pela Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001. Nesse documento encontramos nove referências sobre o termo sociedade civil. Destacaremos dois fragmentos que servirão de exemplo sobre a concepção de sociedade civil que prevalece no PNE. No capítulo sobre Educação de Adultos, na parte em que é realizado o diagnóstico sobre a situação precária da escolarização de boa parcela da população de jovens e adultos em nosso país, o documento afirma que: “Para atender a essa clientela, numerosa e heterogênea no que se refere a interesses e competências adquiridas na prática social, há que se diversificarem os programas. Nesse sentido, é fundamental a participação solidária de toda a comunidade, com o envolvimento das organizações da sociedade civil diretamente envolvidas na temática (...)”.

É visível neste trecho a ênfase dada à participação das “organizações da sociedade civil”, ficando em segundo plano a participação da sociedade política. No capítulo VI do PNE, que trata do “Acompanhamento e Avaliação do Plano”, o documento explicita que: “É necessário que algumas entidades da sociedade civil diretamente interessadas e responsáveis pelos direitos da criança e do adolescente participem do acompanhamento e da avaliação do Plano Nacional de Educação...”.

O legislador buscou discriminar “algumas” entidades da sociedade civil que estariam aptas a participar dos processos de acompanhamento e avaliação do PNE. Nesse sentido faz-se necessário compreendermos as múltiplas formas de relacionamento existentes entre o aparelho de Estado e as Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 1, p. 4-19, jul-dez. 2009

entidades da sociedade civil, em especial, as Organizações Não-governamentais (ONGs). Ao estudar as possíveis interfaces entre o Estado (restrito) e a sociedade civil, Teixeira (2002) verificou três possibilidades desse “encontro”: 1ª – caracterizada como sendo uma relação menos formal que envolve, por um lado, pressão, monitoramento e crítica por parte da ONG em relação ao Estado, e, por outro, em alguns casos, proposição e acompanhamento dos passos do governo (p. 110); 2ª – caracterizada por serviços prestados pela ONG, em que o Estado se relaciona com ela como se estivesse contratando os serviços de uma empresa, seja para fazer consultoria, seja para um serviço específico (p. 111); 3ª – O terceiro encontro envolve a consolidação de projetos elaborados conjuntamente entre poder público e ONG (p. 111).

Verificamos a possibilidade de diferentes vínculos entre o Estado (restrito) e as entidades da sociedade civil, o que nos faz questionar o nível de autonomia que estas possuem em relação às políticas educacionais implementadas pelos diferentes governos, em especial aquelas que mantêm contratos de prestação de serviços com o aparelho do Estado. Em 20 de dezembro de 2006, foi aprovada a Emenda Constitucional nº 53 que criou o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), de natureza contábil, que substituiu o Fundef. Sendo mais abrangente do que seu antecessor, o Fundeb compreende o atendimento dos alunos das diversas etapas e modalidades da educação básica pública presencial. Sua regulamentação ocorreu em dois momentos, inicialmente pela Medida Provisória nº 339, de 28 de dezembro de 2006, e, em seguida, pela Lei n° 11.494, aprovada em 20 de julho de 2007. Uma inovação presente na Lei n° 11.949 foi a criação da Comissão Intergovernamental de Financiamento da Educação Básica de Qualidade, no âmbito do Ministério da Educação, que reúne representantes das instâncias do poder executivo responsáveis pela Educação, dos entes federados por cada uma das cinco regiões político-administrativas do país. Possui, entre outras, a atribuição


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de “especificar anualmente as ponderações aplicáveis entre diferentes etapas, modalidades e tipos de estabelecimento de ensino da educação básica” (Inciso I, art. 13). A nosso ver, trata-se de um importante espaço de encontro e deliberação que pode vir a favorecer a integração entre as instâncias de poder, contribuindo, enquanto experiência políticoadministrativa, a implantação do sistema nacional de Educação. Foram instituídos também, à semelhança dos CACS do Fundef, Conselhos de Acompanhamento do Fundeb, no âmbito de cada ente federado. Embora suas atribuições e composição não tenham sofrido modificações, verificamos significativas alterações em relação às características que cada representante deve possuir como membro do Conselho de Acompanhamento. O art. 24 define que não poderão pertencer ao Conselho membros que forem: I - cônjuge e parentes consanguíneos ou afins, até o 3° (terceiro) grau, do Presidente e do Vice-Presidente da República, dos Ministros de Estado, do Governador e do Vice-Governador, do Prefeito e do Vice-Prefeito, e dos Secretários Estaduais, Distritais ou Municipais; II - tesoureiro, contador ou funcionário de empresa de assessoria ou consultoria que preste serviços relacionados à administração ou controle interno dos recursos do Fundo, bem como cônjuges, parentes consanguíneos ou afins, até 3° (terceiro) grau, desses profissionais; III - estudantes que não sejam emancipados; IV - pais de alunos que: a) exerçam cargos ou funções públicas de livre nomeação e exoneração no âmbito dos órgãos do respectivo poder Executivo gestor dos recursos; ou b) prestem serviços terceirizados, no âmbito dos poderes Executivos, em que atuam os respectivos Conselhos (§ 5º).

Essas restrições buscam impedir os vícios verificados em várias estruturas participativas quando interesses particulares acabam por prevalecer sobre o interesse público. Por outro lado, com a preocupação de garantir maior liberdade e autonomia aos membros dos Conselhos de Acompanhamento, foi definido que os servidores públicos representantes

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no Conselho não poderão ser exonerados sem justa causa ou transferidos de estabelecimento de ensino, sem o seu consentimento, como também ser afastados da condição de conselheiro sem justificativa. Aos alunos representantes não poderão ser atribuídas faltas nas atividades escolares quando estiverem participando das reuniões do Conselho de Acompanhamento (§ 8º, art. 24). Ressalta-se que evitar abusos foi a intenção dos legisladores, porém sabemos que muito ainda precisará ser feito para a garantia do funcionamento democrático no cotidiano dos Conselhos na área da Educação. Outra inovação verificada na Lei n° 10.494 está na possibilidade de o Conselho de Acompanhamento do Fundeb integrar-se ao Conselho Municipal de Educação, tornando-se uma Câmara específica para esse fim (art. 37). Esse indicativo é, em nossa opinião, muito promissor, pois procura evitar o excesso de estruturas participativas com finalidades semelhantes, como é o caso dos Conselhos acima citados. Estamos certos de que os Conselhos Municipais de Educação ainda possuem fragilidades, tais como: baixa frequência de reuniões; ausência de regimentos internos, que discipline seu funcionamento; grande dependência do órgão municipal responsável pela Educação, entre outras (Oliveira, Ganzeli, Giubilei & Borges, 2006). Porém, por seu caráter mais abrangente, com a possibilidade de ser um primeiro elo do sistema nacional de Educação, mostra-se como um caminho promissor de aprendizado participativo para a comunidade escolar, bem como para a democratização do espaço público na área da Educação. Nossa análise mostra que, apesar de prevalecer uma concepção de ‘sociedade civil liberista’, existe a possibilidade, verificada nas legislações mais recentes, de um direcionamento para a concepção de ‘sociedade civil político-estatal’, ainda que em uma perspectiva inicial; sendo esse um primeiro passo de muitos de uma longa e tortuosa jornada. Passemos a seguir a problematizar os impactos dessa concepção no âmbito da administração municipal na área da Educação.

4 Gestão municipal da Educação e sociedade civil A formação dos municípios no Brasil está diretamente relacionada ao processo de “modernização Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 1, p. 4-19, jul-dez. 2009


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conservadora” do Estado Brasileiro, tendo como características principais o patrimonialismo, o clientelismo e o mérito burocrático (Azevedo, 2002). Por outro lado, encontramos entre os 5.560 municípios brasileiros (IBGE, 2001) grande diversidade; cada qual possuindo especificidades relacionadas a sua geografia e institucionalidade. Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam que, do total de municípios brasileiros, 72,9% (4.059 municípios)3 possuem população com até 20 mil habitantes. Para Azevedo (2002), 90% desses municípios possuem “alto grau de dependência das transferências correntes para suas receitas” (p. 62), o que implica a subordinação desses às políticas públicas de seus estados e da União, reduzindo, assim, o grau de autonomia dos mesmos. A gestão municipal é uma atividade técnico-política (Matus, 2000), o que implica uma multiplicidade de conflitos e interesses. Segundo Daniel (2003), “Os conflitos envolvem as próprias representações que diferentes classes sociais têm a respeito da sua realidade e também divergências relativas a interesses econômicos, interesses que eu denomino de poder econômico local, particularmente aqueles vinculados a relações com o próprio governo local: empresas que têm interesses ligados ao governo local” (p. 57).

Nessa perspectiva, podemos dizer que uma das principais características das secretarias municipais de educação ou departamentos de educação municipais é a diversidade, considerando as condições de financiamento da educação escolar municipal, a estrutura legal que organiza e disciplina as ações dos órgãos da administração pública e a qualificação do pessoal que trabalha na área da educação municipal; que, por sua vez, determina estratégias específicas para o atendimento das necessidades educacionais de cada municipalidade. O processo de municipalização da Educação, induzido pela Emenda Constitucional nº 14/96, gerou uma corrida por parte dos municípios em 3 Municípios segundo classes de tamanho da população: Até 5.000 hab. = 1.371; de 5.001 a 20.000 hab. = 2.688; de 20.001 a 100.000 hab. = 1.275; de 100.001 a 500.000 hab. = 194; mais de 500.000 hab. = 32. Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisa, Coordenação de População e Indicadores Sociais. Pesquisa de Informações Básicas Municipais, 2001.

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criar as redes de ensino fundamental. Esse movimento provocou alterações e adaptações de forma diversificada entre os órgãos públicos municipais da área de Educação, bem como ampliou a política de focalização do governo federal. As políticas educacionais implementadas pelo governo federal nos anos 90 seguiram a lógica gerencial, privilegiando a concorrência por parte das prefeituras e organizações não-governamentais na disputa por recursos vinculados a programas específicos na área da Educação, denominados “Projetos Educacionais”, gerenciados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Na avaliação de Azevedo (2002), o “processo estabelecido para que as entidades se candidatassem a esses programas explica, com toda nitidez, a adoção das práticas gerencialistas na Educação, dentre elas, a administração por projetos e o princípio da competição” (p. 64). A autora demonstra ainda que muitos municípios acabam não sendo atendidos por programas na área da Educação por não possuírem as condições técnico-administrativas e financeiras para enfrentarem a concorrência4, avaliando que: “Guiadas pela lógica economicista-instrumental, as medidas de política deixam de considerar os espaços locais e o arcaísmo remanescente em muitas das suas estruturas de poder, em face mesmo da situação de pobreza que caracteriza a maior parte da nossa malha municipal. Nesse contexto, incidem os parcos recursos financeiros destinados aos níveis essenciais de ensino para que se efetivem processos de escolarização com qualidade” (p. 66).

Outro fator que nos chama atenção é a possibilidade de organizações não-governamentais poderem disputar verbas públicas em pé de igualdade com os municípios. Essa concorrência reduz as possibilidades de acesso a verbas federais e estaduais pelos municípios. Os investimentos que deveriam qualificar os quadros profissionais do aparelho do Estado acabam sendo transferidos para as ONGs. Por outro lado, é preciso ficar atento à natureza das ONGs que se candidatam à prestação de serviços. Falconer (2003), mesmo sendo um entusiasta do 4 De um total de 14.359 projetos educacionais cadastrados no FNDE, em 2000, apenas 3.338 (23,24%) foram efetivamente conveniados e financiados (Azevedo, 2002).


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Terceiro Setor, alerta que “é muito comum noticiarem-se casos de desvio de dinheiro de doações, de não-cumprimento de padrões mínimos de qualidade de atendimento e até de organizações criadas para fins ilícitos”, lembrando-nos da necessidade de buscarmos o máximo de informação sobre a ONG com a qual se pretende manter vínculos. Mesmo entre aquelas ONGs que se incorporam na perspectiva de sociedade civil social, percebemos alterações em seu interior que estão reduzindo sua potencialidade de intervenção político-social. Essas estão priorizando a profissionalização de seus membros “militantes” em busca de maior eficiência financeira, afastando-se dos ideais que iluminaram a sua criação. Para Gohn (2001), a escassez de recursos financeiros das agências internacionais de cooperação levou muitas ONGs a alterarem seus procedimentos em busca de autossuficiência financeira; com isso, “as atividades de militância política, via pressões sociais, passaram para segundo lugar, e as atividades produtivas ganharam centralidade no dia-a-dia das ONGs (...). Outro resultado das mudanças da conjuntura sobre as ONGs foi a necessidade de qualificação de seus quadros. A palavra de ordem passou a ser eficiência e produtividade na gestão de projetos sociais para gerir recursos que garantem a sobrevivência das próprias entidades. Ter pessoal qualificado com competência para elaborar projetos com gabarito passou a ser a diretriz central, e não mais a militância ou o engajamento anterior à causa em ação” (pp. 77-78).

A especialização das ONGs ligadas à área da Educação poderá criar um “mercado educacional” (Barroso, 2002) no qual as “empresas cidadãs” concorrem por sua fatia do erário público. A aplicação da concepção liberista de sociedade civil coloca o Estado (restrito) como possível cliente das ONGs prestadoras de serviços educacionais. Nesse sentido, Costa (2001) chama nossa atenção: “Pode ser útil estar alerta contra a impressão de novidade das propostas de gestão descentralizada, baseadas na existência de uma suposta esfera pública não-estatal. Em nossas condições isso pode significar apenas a reedição de antigos esquemas clientelistas e fisiológicos” (p. 51).

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Concordamos com Gutierrez e Cattani (2001) quando afirmam que “numa perspectiva estritamente conceitual, transferir a autoridade e a responsabilidade pela gestão de um bem público para um grupo diretamente envolvido no trabalho é uma prática democrática e socialmente justa, desde que não se escondam por trás o incentivo a ações de natureza corporativa e tampouco a intenção por parte do Estado de se desfazer de suas obrigações para com a população” (p. 63). A relação entre sociedade política e sociedade civil não deve ser condicionada pela lógica de mercado, como querem os ideólogos da Reforma do Estado. Essa relação deve ser firmada na transparência das ações da esfera pública e nos princípios democráticos constitucionais. Em 24 de abril de 2007, foi lançado o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), pelo Ministério da Educação, que se constitui em um conjunto de programas do governo federal na área da Educação. Foi considerado como um plano executivo que se sustenta em “seis pilares: i) visão sistêmica da Educação; ii) territorialidade; iii) desenvolvimento; iv) regime de colaboração; v) responsabilização e vi) mobilização social” (MEC, 2007, p. 11). Desde seu lançamento, o PDE foi alvo de inúmeras críticas, em especial, pela forma como o MEC encaminhou a participação da sociedade civil, quando verificamos a grande influência de entidades ligadas à elite empresarial nas orientações conceituais e organizacionais do Plano (Saviani, 2007). Dado o limite de espaço, não analisaremos o conjunto de ações e suas relações com o processo de participação da sociedade civil nessa política, destacando apenas as mais diretamente relacionadas à gestão municipal de Educação. O Decreto n° 6.094, de 24 de abril de 2007, regulamentou a forma de colaboração entre a União, o Distrito Federal, os estados e os municípios, a qual envolve a concordância das partes em orientar sua política educacional segundo as 28 diretrizes previstas nessa legislação (art. 2º). Assim, todos os convênios firmados entre a União e os demais entes federados implicarão a “assunção de responsabilidade de promover a melhoria da qualidade da educação básica em sua esfera de competência, expressa pelo cumprimento do IDEB [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica], observandose as diretrizes relacionadas no art. 2º” (art. 5º). Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 1, p. 4-19, jul-dez. 2009


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Assim, o governo federal buscou induzir os entes federados às orientações gerais da Educação por ele definidas. Dentre as 28 diretrizes do “Plano de Metas - Compromisso Todos pela Educação”, oito diretrizes fazem referência à participação da sociedade civil na gestão da Educação, a saber: “XX - acompanhar e avaliar, com participação da comunidade e do Conselho de Educação, as políticas públicas na área de Educação e garantir condições, sobretudo institucionais, de continuidade das ações efetivas, preservando a memória daquelas realizadas; XXI - zelar pela transparência da gestão pública na área da Educação, garantindo o funcionamento efetivo, autônomo e articulado dos Conselhos de controle social; XXII - promover a gestão participativa na rede de ensino; XXIII - elaborar plano de educação e instalar Conselho de Educação, quando inexistentes; XXV - fomentar e apoiar os Conselhos escolares, envolvendo as famílias dos educandos por meio de atribuições, dentre outras, de zelar pela manutenção da escola, pelo monitoramento das ações e pela consecução das metas do Compromisso; XXVI - transformar a escola em um espaço comunitário e manter ou recuperar aqueles espaços e equipamentos públicos da cidade que possam ser utilizados pela comunidade escolar; XXVII - firmar parcerias externas à comunidade escolar, visando à melhoria da infraestrutura da escola ou a promoção de projetos socioculturais e ações educativas; XXVIII - organizar um comitê local do Compromisso, com representantes das associações de empresários, trabalhadores, sociedade civil, Ministério Público, Conselho Tutelar e com dirigentes do sistema educacional público, encarregado da mobilização da sociedade e do acompanhamento das metas de evolução do Ideb” (Decreto n° 6.094/2007, art. 2).

Nesse momento, verificamos a utilização de uma prática muito usual entre nossos governantes, a de apresentar diretrizes amplas, ou até mesmo ousadas, sem, no entanto, indicar os meios necessários para sua concretização, bem como a não-definição das instituições públicas responPesquiseduca, Santos, v. 1, n. 1, p. 4-19, jul-dez. 2009

sáveis pelo acompanhamento e pela avaliação das ações a serem realizadas. A possibilidade de formação de estruturas participativas e do reforço daquelas já existentes, como os Conselhos Municipais de Educação, para exercer as tarefas acima apontadas, deveria ser acompanhada de estímulos institucionais previstos em legislação. Para Pontual (2007), “no que se refere às formas de participação previstas pelo PDE em relação à criação de conselhos gestores de acompanhamento e fiscalização da implementação das metas do Plano, não fica clara a sua distinção e articulação em relação aos já previstos conselhos do Fundeb e aos conselhos municipais de educação já existentes” (p. 50). O autor alerta sobre a possibilidade de fragilização dos canais existentes, decorrente da “pulverização” da participação em múltiplos órgãos representativos no município. Foi proposta a realização da Conferência Nacional de Educação Básica que deveria ser precedida de conferências municipais e estaduais de Educação, porém, verificamos apenas a realização das conferências no âmbito estadual, com raras exceções, em alguns municípios. No final do ano de 2007 e início de 2008, nos 26 estados e Distrito Federal foram realizadas Conferências de Educação, chegando à mobilização de 21.546 participantes. Em alguns estados, as Conferências foram precedidas de encontros intraestaduais, favorecendo, assim, a mobilização e organização participativa. A região Nordeste foi a que obteve o maior número de participantes nas Conferências de seus estados, com 6.506 participantes, enquanto a Sul registrou o menor número, 2.200 participantes. Em abril de 2008 foi realizada a 1ª Conferência Nacional da Educação Básica (Coneb), com a presença de 1.927 participantes, entre delegados representantes dos estados e indicados por instituições governamentais de âmbito federal (Senado Federal, Câmara Federal, Ministério da Educação, Conselho Nacional de Educação, entre outras), como também indicados por entidades representativas (Contee, Anpae, Anped, Anfope, Movimentos Sociais, Indígenas, Quilombolas, entre outras), além de observadores. O tema central da Coneb foi “Construção do Sistema Nacional Articulado de Educação”, com cinco eixos temáticos: “I. Desafios da Construção de um Sistema Nacional Articulado de Educação; II. Democratização da Gestão


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e Qualidade Social da Educação; III. Construção do Regime de Colaboração entre os Sistemas de Ensino, tendo como um dos instrumentos o Financiamento da Educação; IV. Inclusão e Diversidade na Educação Básica; e V. Formação e Valorização Profissional”. As teses presentes no documento final pouco avançam em relação àquelas presentes na Constituição Federal, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e no Plano Nacional de Educação, tornando-se, então, um documento repetitivo. Na seção que trata do eixo II (Democratização da Gestão e Qualidade Social da Educação), verificamos ênfase na proposição da transformação dos Conselhos de Educação, nas várias esferas de poder, como sendo as instâncias privilegiadas para a definição de políticas educacionais, porém faltaram, a nosso ver, diretrizes de ação para que isso venha a se concretizar. O Documento indica, de forma geral, a necessidade de “definição em lei de mecanismos institucionais e legais que regulamentam o artigo 206 da CF88 e concretizem o princípio da gestão democrática”, reivindicação presente desde os primeiros debates sobre a Lei de Diretrizes e Bases, iniciados há 20 anos, com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil. A grande ausência desse debate foram os municípios, quando não realizaram suas conferências. Considerando que esses são responsáveis pela maioria das matrículas da educação básica no país, correspondendo a 52% das matrículas em 2006 (Pinto, 2007), cabe o alerta para as autoridades educacionais recuperarem o tempo perdido, de forma a favorecer a concretização das Conferências Municipais antes da Conferência Nacional de Educação , prevista para o ano de 2010, garantindo, assim, a mobilização social. Sem “a voz” dos municípios fica impraticável a construção do Sistema Nacional de Educação. Uma proposta do PDE que gerou grande debate foi o anúncio do apoio técnico e financeiro pelo Ministério da Educação para os 1.242 municípios com os piores índices de qualidade aferidos pelo Ideb. Os municípios que aderirem ao Compromisso (Decreto 6.094/2007) elaborarão, com auxílio de equipe técnica do MEC, o Plano de Ação Articulada (PAR) que deverá se orientar por três eixos temáticos: Gestão Educacional; Formação de Professores e dos Profissionais de Serviço e Apoio Escolar;

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Práticas Pedagógicas e Avaliação; e Infraestrutura Física e Recursos Pedagógicos5. Com a assistência técnica e financeira, o MEC procura solucionar a lacuna verificada nos municípios brasileiros que não tinham acesso às verbas públicas, conforme analisamos anteriormente. Outro aspecto relevante é a possibilidade da criação nesses municípios de instrumentos de planejamento educacional com a elaboração do Plano de Ação Integrada (PAR) que favorece a qualidade organizacional das secretarias ou departamentos de ensino dos municípios. Por outro lado, fica a questão: será que a concepção de gestão por resultados, que orienta essa política educacional, dará conta da diversidade presente entre os municípios brasileiros? A construção da gestão escolar em cada município possui um dinamismo próprio. Assim, não podemos falar em modelo de Secretaria Municipal de Educação ou Departamento de Educação Municipal, sendo necessária a análise da situação de cada caso, procurando compreender como estão se estruturando e se instituindo (Romão, 1997). É preciso saber se os órgãos de gestão educacional dos municípios estão estruturados para a participação democrática. Para tanto, deve-se compreender de forma clara quem define a política educacional implementada no município; deve-se questionar o significado da sociedade civil no contexto educacional do município e, enfim, avaliar o impacto da presença das ‘parcerias’ na qualidade do ensino municipal. No âmbito local, os Conselhos Municipais de Educação devem ser criados onde não existem e fortalecidos naqueles municípios que já institucionalizaram esse espaço de participação, proporcionando transparências nas relações entre sociedade política e sociedade civil. Apesar de reconhecermos as limitações do funcionamento de estruturas participativas, acreditamos ser os Conselhos Municipais de Educação um espaço de aprendizagem democrática. Esperamos que as interrogações deste trabalho sirvam de estímulo para a ampliação do debate aqui iniciado sobre a complexidade que envolve a dinâmica presente na relação entre a sociedade política e a sociedade civil; debate esse fundamental para a construção de uma sociedade democrática. 5 BRASIL (MEC). Resolução FNDE nº 29, de 20 de junho de 2007.

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Descentralização do Estado e Pacto Federativo José Roberto Rus Perez* Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Av. Bertrand Russell, 801, Cidade Universitária “Zeferino Vaz”, CEP 13083-865, Campinas, SP, Brasil, e-mail: rusperez@uol.com.br Ao analisar o processo de reforma educacional, enfatizando a natureza federativa do sistema político brasileiro, o texto detem-se na compreensão da articulação das três esferas governamentais na provisão dos serviços educacionais e apresenta o caso norte-americano a título de comparação para uma melhor compreensão de como se deu a articulação dos diferentes niveis em país federado. A separação entre os sistemas escolares estaduais e municipais é uma questão profundamente institucionalizada que tem levado a uma duplicação de serviços administrativos, à inexistência de um planejamento local e a uma ausência de garantia de serviços educacionais de qualidade para a população. O centro da discussão localiza-se na distribuição dos poderes, responsabilidades e recursos entre os níveis de governo; sendo permanente o embate entre os governos federal, estaduais e municipais por mais recursos. Palavras-chave: Política educacional. Federalismo. Descentralização. Reforma educacional.

Decentralization of the State and Federalism Analyzing the process of educational reform, emphasizing the federative nature of the Brazilian political system, the text pauses to understand the interaction of three spheres of government in the provision of educational services and presents the American case for comparison to a better understanding how they gave the articulation of different levels in federated country. The separation between school systems and municipal is a deeply institutionalized that has led to duplication of administrative services, the lack of a local planning and a lack of guarantee of quality educational services for the population. The heart of the problem lies in the distribution of powers, responsibilities and resources between levels of government, and the permanent struggle between the federal, state and municipal governments for more resources. Keyword: Educational policy. Federalism. Decentralization. Education reform.

1 Introdução O debate sobre a Educação brasileira é extremamente focado na atuação do governo federal tanto quando se apontam as causas de seu pífio desem-

penho assim como quando se buscam soluções. Espera-se sempre que o Ministério da Educação seja o condutor das políticas ou, pelo menos, que seja o grande financiador. Contudo, dadas as características de nosso sistema de repartição de

* Professor da Faculdade de Educação e Coordenador do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da Unicamp. Autor do livro Avalição, Impasses e Desafios da Educação Básica publicado pela Editora da Unicamp e Annablume.


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competências, revela-se um quadro em que, cada vez mais, são as unidades federadas e, sobretudo, os municípios os principais atores da política educacional, especialmente no que se refere à Educação Básica. Configura-se, dessa forma, o que já foi considerado por Paiva (1990) como uma das questões fundamentais da história republicana. Segundo essa autora, a discussão sobre qual instância administrativa deveria legislar e prover o desenvolvimento dos diferentes níveis de ensino estava ainda, na ordem do dia, quando já se comemorava o centenário da República. E podemos dizer que, caminhando para o final da primeira década do século XXI, tal discussão permanece muito vigorosa. Assim, este texto busca compreender o processo de reforma educacional, enfatizando a natureza federativa do sistema político brasileiro. Para tanto, analisa como se articulam as três esferas governamentais na provisão dos serviços educacionais e apresenta o caso norte-americano a título de comparação para entendermos como se deu a articulação dos diferentes níveis em país federado. A separação entre os sistemas escolares estaduais e municipais é uma questão profundamente institucionalizada que tem levado a uma duplicação de serviços administrativos, à inexistência de um planejamento local e à ausência de garantia de serviços educacionais de qualidade para a população. O centro da discussão localiza-se na distribuição dos poderes, responsabilidades e recursos entre os níveis de governo, sendo permanente o embate entre os governos federal, estaduais e municipais por mais recursos, reforçando esta característica de todo o sistema federal.

2 As relações federativas no setor educacional É preciso alertar, inicialmente, que ainda carecemos de um balanço do intenso processo de descentralização ocorrido no Brasil, desde os anos 80, que alterou o sistema nacional de proteção social. Os estudos sobre tendências e características das reformas dos programas sociais realizados no início do século XXI, segundo Draibe (2002), mostraram que não ocorreu o desmantelamento dos pilares da proteção social prenunciados pelas reformas liberais e que eles se distanciaram do antigo padrão do sistema nacional de políticas sociais A mesma autora ainda identifica que

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ocorreu um movimento de inflexão do padrão de proteção social com a introdução de novas concepções de direito e justiça social, novos parâmetros e critérios para alocação de recursos e reforço do poder regulatório do Estado.Nesse período vários mecanismos foram propostos, tais como: a descentralização, maior transparência, a accountability dos processos decisórios, mais participação social etc. Embora o desempenho de alguns indicadores sociais tenha revelado uma mudança positiva, não houve nenhum avanço na redução da desigualdade. No setor Educação, a descentralização, especialmente em sua vertente de municipalização, ganhou destaque na reforma educacional, em detrimento de outras medidas que faziam parte do rol de propostas de reforma defendidas no âmbito internacional, tais como a autonomia escolar, a reformulação da carreira dos professores e até mesmo a avaliação. Na perspectiva de alguns autores, o exame dos mecanismos e processos que tornam possível coordenar ações entre esferas de governo indica que esta capacidade é diretamente afetada pelo modo como estão estruturadas as relações federativas nas políticas particulares. O que se verifica é que está no âmago do pacto federativo, firmado na Constituição de 1988, o formato das competências concorrentes para a maior parte das políticas sociais brasileiras. Na verdade, as propostas para combinar descentralização fiscal com descentralização de competências foram estrategicamente derrotadas na Assembléia Nacional Constituinte de 1987-88. Assim, qualquer ente federativo, embora constitucionalmente autorizado a implementar programas nas áreas de saúde, educação, assistência social, habitação e saneamento, não estava constitucionalmente obrigado a implementar programas nessas áreas (Arretche, 2002). Mudanças tributárias, ocorridas desde então, levaram a um fortalecimento dos estados e municípios e a um aumento da competência tributária dos governos subnacionais. Houve aumento das receitas e maior grau de autonomia dos governos subnacionais e mais responsabilidades no financiamento dos programas sociais. Contudo, o quadro que ainda temos revela que, no final dos anos 90, o gasto em programas sociais teve sua grande sustentação na União, responsável por 56% do total dos gastos, seguida pelos estados, cujo porcentual de gastos foi de 27%, e, finalmente, os municípios, particiPesquiseduca, Santos, v. 1, n. 1, p. 20-28, jul-dez. 2009


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pando com 17% do total. Com relação à Educação, é no nível fundamental de ensino aquele em que se concentra o maior gasto público, seguido do nível superior. Do ponto de vista da partilha federativa, enquanto o gasto da União concentra-se no ensino superior, o dos estados e municípios concentra-se nos níveis fundamental e médio de ensino, como mostra a Tabela 1. Os dados dessa Tabela revelam ainda a forte descentralização do gasto educacional antes das reformas dos anos 90: enquanto a União responde por 20% de todo o gasto público educacional, os estados e municípios respondem por 49% e 31%, respectivamente, daquele total. Mesmo as transferências federais, em Educação, para os governos infranacionais representam apenas 12% do gasto público total nessa função (Afonso, 1996: 12). O único nível de ensino que se encontra sob a competência de uma única esfera de governo é educação infantil, cujo financiamento é, essencialmente, oferecido pelos municípios. O sistema brasileiro de financiamento à Educação, em especial ao ensino fundamental, era completamente descentralizado, pois, apesar da existência do preceito constitucional que determina o porcentual a ser investido, o volume de recursos aluno/ano efetivamente disponível em cada rede dependia exclusivamente das receitas e das matrículas do ente responsável. Com a criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental (Fundef), em 1996, foi introduzida uma nova lógica no sistema, segundo alguns autores, dando um passo em direção à centralização

da distribuição dos recursos da Educação Básica (cf. Fernandes; Gremaud & Ulyssea, 2004). Para esses autores, o Fundo caracteriza-se por ser um mecanismo essencialmente redistributivo (no âmbito de cada estado), centralizando parte dos recursos do governo estadual e dos municípios e distribuindoos de forma proporcional ao número de matrículas no ensino fundamental. Portanto, o Fundo também se caracteriza por ser “um instrumento de redução nas desigualdades de valor aluno/ano no ensino fundamental entre municípios ricos, pobres e governo estadual. Em outras palavras, com a introdução do Fundef o sistema brasileiro de financiamento à Educação passou a considerar não só o nível de recursos, mas também a eqüidade em sua distribuição (ainda que somente no ensino fundamental)” (Fernandes; Gremaud & Ulyssea, 2004). A formulação do Fundef pelo Executivo e sua discussão e aprovação pelo Legislativo revelaram a situação muito peculiar de uma reforma que implicava basicamente o rearranjo do sistema de financiamento de outras duas esferas de governo. Analisando a capacidade do executivo federal em realizar reformas sociais, Arretche conclui que os quatro casos por ela analisados (saúde, educação, habitação e saneamento) “têm em comum o fato de que o sucesso das reformas dependia da capacidade do executivo federal superar o poder de veto à implementação de políticas, decorrente da baixa integração vertical de Estados federativos. Devido à sua autonomia política e fiscal, os governos subnacionais adotam as políticas federais apenas por

Tabela 1. Gasto público com Educação segundo níveis de ensino e níveis de governo (%) Brasil - 1996. Nível de Por nível de governo Total Por nível de ensino Total Nível de governo Nível de governo ensino otal Federal Estadual Municipal Federal Estadual Municipal Educação 0,0 0,6 18,5 5, 6 0,0 5,2 94,8 100 Infantil Educação 11,2 77,7 71,8 58,6 5,1 59,7 35,3 100 Fundamental Ensino 9,4 9,7 7,8 9,0 27,3 48,0 24,6 100 Médio Educação 79,4 12,0 1,9 26,8 77,9 20,1 2,0 100 Superior Total 100 100 100 100 20,2 49,1 30,8 100 Reproduzido de Draibe, S. Brasil 1980-2000: proteção e insegurança sociais em tempos difíceis. Taller Inter-Regional “Protección Social en una Era Insegura: Un Intercambio Sur-Sur sobre Políticas Sociales Alternativas en Respuesta a la Globalización”. Santiago/Chile, 14 a 16 de maio de 2002. Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 1, p. 20-28, jul-dez. 2009


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adesão voluntária ou obrigação constitucional. Em todos os casos analisados, o governo federal excluiu a possibilidade de atribuir competências exclusivas ou obrigações constitucionais aos governos subnacionais, buscando a aprovação de medidas cuja estrutura de incentivos tornasse atraente a subordinação de estados e/ou municípios a seus objetivos de reforma”. Dos quatro casos analisados pela autora, em apenas um, “a municipalização do ensino fundamental”, a aprovação de uma emenda constitucional foi a estratégia adotada pelo governo federal (Arretche, 2002). A despeito de a Constituição Federal de 1988 ter instituído um sistema legal de repartição de receitas que limita a capacidade de gasto do governo federal e, por consequência, sua capacidade de coordenação de políticas, Arretche conclui que “o governo federal dispõe de instrumentos para coordenar as políticas sociais, ainda que estes variem entre as diferentes políticas” (Arretche, 2004).

3 O caso norte-americano O Brasil e os Estados Unidos da América são duas federações contemporâneas que apresentam algumas semelhanças em relação ao papel do governo federal na indução de políticas de descentralização. Analisaremos o caso norte-americano para refletirmos sobre o papel do governo federal na provisão da Educação. Alguns autores questionam um importante mito contemporâneo e da retórica popular que caracteriza a Educação norte-americana como sendo sempre e estritamente um “assunto local”. Há um consenso de que “o localismo desempenhou um papel importantíssimo para o dinamismo da nação, especialmente no que se refere à diversidade de abordagens e inovações de políticas educacionais” (Hirschland & Steinmo, 2003). Em alguns períodos, contudo, fortes políticas nacionais para apoiar a provisão educacional e as reformas foram necessárias para superar as grandes ineficiências e iniquidades promovidas pelo localismo excessivo. Os fundos do governo federal vieram, especialmente, durante aqueles momentos de dificuldade e crise social e econômica, quando cada Estado sozinho não podia manter a Educação. O governo federal tinha enorme concentração de poder. No momento da Revo-

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lução Americana, todos os fundadores (­Founding Fathers) eram extremamente interessados pela Educação e por seu papel em ajudar os estados federados a construírem uma nova nação e um novo povo. Nessa época a Educação já estava disseminada em muitas partes dos EUA, ultrapassando a própria Europa. Havia, contudo, grandes disparidades nas características, qualidade e distribuição dos recursos educacionais entre as ex-colônias. A Constituição estabeleceu para o Estado Federado todo o poder sobre a Educação. Eram, entretanto, destacáveis as diferenças entre as Constituições dos Estados Federados, especialmente do Sul e Sudeste do país, onde a Educação de negros era proibida. Nesse princípio, o papel do governo federal em apoiar a provisão e os recursos financeiros públicos para a Educação foi significativo. Ocorreu transferência de terras do governo federal para os estados oferecerem a Educação pública. No início do século XIX, os estados possuíam recursos próprios, mas estes eram erráticos e a Educação não se espalhava. A educação rural, por exemplo, era basicamente oferecida pelas organizações da Igreja. Entre 1820 e 1850, com a chegada dos imigrantes, mais uma vez o governo federal investiu recursos financeiros nos estados doando terras (Hirschland & Steinmo, 2003). Posteriormente à Guerra Civil, o governo federal repassou recursos para eliminar o analfabetismo, especialmente entre os mais de 4 milhões de negros que foram libertos. Em 1867 foi criado o primeiro Departamento de Educação que, após uma grande reação contrária à sua existência, foi rebaixado para um Escritório de Educação. Entre 1870 e 1890 nenhuma lei foi aprovada para permitir ao governo federal intervir no sistema, sustentado especialmente pelas elites do Sul do país que recusavam ajuda para educar os negros. Para Hirschland e Steinmo, a fragmentação e os impedimentos de atuação do governo federal de apoiar a Educação não evitaram que ele ajudasse de forma pouco sistematizada os estados, embora o maior apoio do governo federal tivesse ocorrido na montagem do sistema antes da Guerra Civil (Hirschland & Steinmo, 2003). Para Neal McCluskey, após 1867 o governo federal começou a acumular responsabilidade em várias áreas. Em 1890, por exemplo, começou a oferecer bolsas para o ensino pós-secundário. Na primeira metade do século XX destacou-se a Smith-Hugh Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 1, p. 20-28, jul-dez. 2009


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Vocational Education Act de 1917, por meio do qual o governo assumiu a responsabilidade de manter a educação vocacional; entretanto, foi apenas após a II Guerra Mundial que a expansão da atuação federal acentuou-se. O Lanham Act de 1941 e Impact Aid de 1950 autorizaram o governo federal a compensar financeiramente os distritos educacionais. Em 1944 a “G.I. Bill” permitiu a assistência federal para os veteranos de Guerra frequentarem o ensino póssecundário. Após o lançamento do satélite soviético Sputink (1957), com o National Defense Act, foram desenvolvidos currículos de ciências, matemática e línguas estrangeiras para todo o país (McCluskey, 2004). Outro momento significativo ocorreu com a aprovação das leis de combate à pobreza e apoio aos direitos civis nos anos 60 e 70. Nesse período foi aprovada a mais importante legislação – a Elementary and Secondary Education Act –, em 1965, que permanece até os dias de hoje como núcleo da política educacional federal e abrange inúmeros programas. O maior desses programas é o Title I que destina recursos para os distritos escolares locais segundo o número de alunos pobres matriculados. Há também o programa de educação bilingue, o programa de treinamento de professor (Eisenhower Professional Program), a ajuda para introdução de tecnologias, programas de segurança e combate a drogas, ajuda à pesquisa e coleta de dados. Sua natureza é muito diversa e rica. Há ainda apoio à educação de nativos do Havaí e do Alasca, imigrantes, crianças sem-teto, educação artística, assistência técnica etc. (Ravitch, 2000). No que se refere ao ensino superior, o governo federal apoia a expansão de oportunidades educacionais subsidiando bolsas para alunos sem condições financeiras. Segundo dados do mesmo autor, a ajuda federal atende menos de 10% do gasto em Educação pública. Isso não significa que a legislação federal e a regulação não deixem de ter um grande impacto no custo e na manutenção das escolas públicas; sendo o melhor exemplo a Educação Especial (McCluskey, 2004). Menefee-Libey, a partir de seus estudos, defende que os esforços da reforma com base na autonomia do sistema local é uma ilusão. Os estados federados constituem-se, atualmente, nos mais importantes atores do sistema educacional. Dessa forma, qualquer reforma localista jamais obterá sucesso, caso não esteja alinhada com a política do Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 1, p. 20-28, jul-dez. 2009

estado, ou pelo menos conte com a aquiescência dos formuladores dos governos estaduais. Com a aprovação do “Elementary and Secondary Education Act”, já mencionado, que concentrou como nunca havia acontecido antes autoridade sobre a educação americana nas mãos do governo federal, uma grande quantidade de leis e os recursos financeiros foram gradativamente aumentando, os quais saltaram de cerca de 25 bilhões de dólares, em 1965, para mais de 108 bilhões, em 2002 (McCluskey, 2004). No entanto, sob o programa “No Child Left Behind Act”, começa a se perceber um movimento que se opõe a esse controle federal; neste momento diversos estados lutam na justiça contra a obrigatoriedade de participação nas avaliações nacionais. Há, entretanto, autores que defendem a ação do governo federal especialmente nas chamadas “big issues” de profundo impacto nas escolas do país, tais como evitar a desagregação quando os estados são incapazes de romper com o apartheid racial na Educação. Foi ainda o governo federal que aprovou a maior parte da legislação sobre inclusão para os portadores de deficiência física. Historicamente, os oponentes à ajuda federal às escolas têm-se preocupado com o fato de que o imenso poder do governo federal possa ser usado para impor soluções federais para as escolas locais. Os deputados dos estados do Sul do país também se opõem à ajuda às escolas, receando que o governo federal use sua autoridade para acabar com a segregação nas escolas públicas (Ravitch, 2000). Desde a aprovação do ESEA, segundo Paul T. Hill, os programas federais têm feito com que as escolas se pareçam mais com instituições–padrão, pressionando-as de três maneiras: 1) forçando-as a se tornarem operadoras de programas e regras ao invés de ouvirem a comunidade; 2) impelindoas a competir com um complexo conjunto de leis e programas formulados por cortes, burocracias e legisladores; 3) e obrigando-as a operar sobre imposições relativas às medidas de equidade que facilitam ao governo interferir com efetiva instrução (Hill, 2000). Para Elmore, após 2001, irônica e estranhamente o Partido Republicano e o Congresso conservador apoiaram e realizaram a mais ampla e perigosa expansão do poder federal sobre o sistema nacional de Educação da história, pela imposição de um sistema de avaliação em larga escala, uma avaliação


Descentralização do Estado e Pacto Federativo

do Estado em unidades federadas cuja tradição de controle local é muito forte. O mesmo autor aponta, neste caso, para três tipos de riscos: político, administrativo e técnico (Elmore, 2002). Para se entender a intervenção federal e o seu fracasso nas reformas educacionais norte-americanas é preciso reconhecer que o debate sobre o apropriado papel do governo federal na provisão da Educação está presente desde a fundação da república norte-americana. Para Menefee-Libey, dada a natureza federativa do sistema político norteamericano, uma reforma do sistema educacional deve oferecer um programa que alinhe os esforços locais com os do estado e, algumas vezes, com os do governo federal. Contrapor instituições localistas a instituições republicanas traz como resultado o fato de que a política educacional norte-americana, no nível nacional, está longe do que se caracteriza como uma política coerente e estável. O recente debate tem chegado a um consenso de que é crescente na política educacional a inter-relação entre os diferentes níveis de governo.

4 O Pacto Federativo – novos desafios Retornando nosso foco para o sistema educacional brasileiro, talvez seja o momento de superar a dicotomia, ou o chamado movimento pendular entre centralização e descentralização, e passarmos a entender o que de fato ocorre com a distribuição de competências. Em relação ao setor educacional, dadas suas dimensões e ainda suas colossais debilidades e fraquezas, fica a necessidade de refletir sobre o apropriado papel de cada nível de governo na manutenção e no desenvolvimento do ensino. O setor da Educação Básica no Brasil apresenta uma incomum dificuldade e complexidade: é um imenso e desagregado setor com mais de 50.000 escolas urbanas e, aproximadamente, 100.000 rurais, mantidas por 27 estados e 5.561 municípios, educando mais de 50 milhões de crianças e jovens, empregando aproximadamente 2 milhões de professores e outros profissionais, e tendo como responsabilidade um diverso e amplo conjunto de políticas e programas. Há uma percepção generalizada de que sistemas centralizados de financiamento e provisão de serviços são extremamente ineficientes e oferecem

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produtos de baixa qualidade, assim como estimulam iniquidades na distribuição dos recursos. A melhor alternativa passa a ser imediatamente a descentralização. Contudo, alguns estudos apontam que o alcance de maior eficiência e igualdade requer tanto descentralização quanto a centralização (Gershberg & Jacobs, 1998). No caso brasileiro há que se considerar a acentuada heterogeneidade entre os estados e municípios. Com relação à arrecadação de tributos, por exemplo, verifica-se uma imensa desigualdade no plano horizontal, isto é, entre os governos subnacionais. A razão entre os estados com maior e menor capacidade de arrecadação tributária própria em 1997 foi de 9,4 (Prado, in Arretche, 2004). No interior de cada estado, municípios de mesmo tamanho apresentam enorme diversidade de arrecadação. Excetuando as capitais – com arrecadação até 10 vezes superior à dos demais municípios de seu próprio estado –, os municípios de maior porte não revelam melhor desempenho do que os pequenos, independentemente do nível de renda do estado em que estão localizados (Prado, in Arretche, 2004). É enorme a variação na receita disponível entre os municípios e estados brasileiros. A razão entre a receita média per capita dos municípios acima de 1 milhão de habitantes na região Sudeste e dos municípios abaixo de 20 mil habitantes nas regiões Norte e Nordeste pode ser de até 46 vezes (Gomes & MacDowell, in Arretche, 2004). Uma vez realizadas as transferências constitucionais, a receita disponível per capita do estado de Roraima, por exemplo, foi de duas vezes a de São Paulo, em 1997. Para superar a desigualdade da capacidade de arrecadação, foi criado um sistema de transferências fiscais; assim, transferências obrigatórias de caráter constitucional distribuem parte das receitas arrecadadas pela União para estados e municípios, bem como dos estados para seus respectivos municípios. Por isso, Arretche alerta-nos para os chamados “ciclos de centralização” (Reforma Tributária de 1965-68) e “descentralização” (Constituições Federais de 1946 e 1988) do sistema fiscal brasileiro: “Não se referem a processos de mudança na distribuição da autoridade para tributar, mas, sim, estão diretamente associados às alíquotas aplicadas aos impostos de repartição obrigatória, bem como à autonomia de gasto dos governos locais sobre os recursos recebidos” (Arretche, 2004). É importante Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 1, p. 20-28, jul-dez. 2009


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ressaltar que as receitas provenientes das transferências constitucionais (Fundo de Participação dos Estados e Fundo de Participação dos Municípios) podem ser gastas de modo bastante autônomo pelos governos subnacionais, excetuando-se as vinculações constitucionais de gasto em saúde e Educação. Esse difícil equacionamento da arrecadação dos recursos financeiros e de sua distribuição pelas regiões parece ser recorrente em nossa história. Evaldo Cabral de Mello, comentando um estudo de autoria de André Villela, ainda por publicar, declara que esse estudo confirma a tese da excessiva centralização e da distribuição desigual dos recursos entre as regiões durante o Império. Com base no exame de “Balanços da Receita e Despesa do Império”, o autor pôde examinar detidamente por região (segundo a divisão canônica da geografia do Império entre Norte e Sul) a partilha regional das receitas e despesas. “Resumindo a investigação de André Villela, enquanto o Sul proporcionava 64,5% da receita imperial, o Norte entrava com 35,5%. No tocante às despesas brutas, ao passo que 68,8% eram realizadas no Sul, apenas 16,0% o eram no Norte, os restantes 15% eram feitas em Londres a título de pagamento da dívida externa. O autor nos recorda de certos aspectos do sistema fiscal do Império. Até os anos da Regência, não se distinguiam receita geral e receita provincial. Foi a Lei Orçamentária de 1833-1834 que alocou ao governo central os direitos de importação e exportação, arrecadados nos principais portos – Rio, Salvador, Recife, São Luís e Belém –, bem como os direitos a certos tributos recolhidos no interior do Brasil, deixando o restante às Províncias e aos municípios. A partilha continuou a ser leonina, cabendo ao governo central cerca de 80% de toda a receita, segundo os cálculos de Villela, dos quais 75% incidiam sobre o comércio exterior. Segundo esse autor, a iniqüidade do rateio era de tal ordem que os investimentos correspondiam a 66,4% no Sul e a 31,6% no Norte, enquanto que a população do Norte equivalia a 52%, em 1854, e a 47,1%, em 1890” (Mello, 2005).

Na prática, essas desigualdades limitam definitivamente a possibilidade de que se estabeleçam constitucionalmente competências exclusivas entre Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 1, p. 20-28, jul-dez. 2009

os níveis de governo para as ações sociais. Como nos alertava Martins, dada essa característica, as políticas sociais “enfrentam uma conjuntura nem sempre favorável para que as políticas descentralizadoras baseadas em amplos programas de governo sejam bem-sucedidas” (Martins, 2004, p. 162). Adicionalmente, como as transferências fiscais têm limitado efeito equalizador, de acordo com inúmeros estudos sobre as diferenças interestaduais e intermunicipais de capacidade de gasto, permanece necessária a ação do governo federal para viabilizar patamares básicos de produção de serviços sociais. Em suma, a coordenação federal dos programas sociais justifica-se tanto por razões relacionadas à coordenação das decisões dos governos locais quanto para corrigir desigualdades de capacidade de gasto entre estados e municípios. Nesse sentido, o caso do Fundef é exemplar, uma vez que, a despeito de todo o seu impacto na universalização do ensino fundamental, a complementação da União para o ensino fundamental teve resultados quase nulos sobre as desigualdades interestaduais de padrões de gasto, segundo alguns estudos (Vazquez, 2003); revelando que os desembolsos federais têm apresentado reduzido efeito redistributivo (Arretche, 2004). Um outro aspecto a se considerar na opção entre centralização e descentralização é o argumento de que a descentralização baseia-se na crença de que os governos subnacionais podem fazer escolhas mais efetivas, reduzindo custos, utilizando estilo administrativo mais apropriado e eficiente; ampliando, dessa forma, a accountability. Contudo, se a capacidade administrativa dos governos subnacionais é fraca, o nível central deve se responsabilizar, estimular e transferir conhecimento para prover os serviços. A descentralização também é vista como um meio de promover a democracia. Ela fortalece os mecanismos de proposição de medidas para atender aos segmentos mais pobres da população. Além disso, a redistribuição do poder pelos setores sociais, frequentemente, envolve lobbies e interesses de grupos tanto no nível central quanto nos diferentes níveis inferiores de governo. Alguns estudiosos defendem o conceito de auxiliar, de subsidiário entre as esferas de governo, uma vez que ele proporciona um método simples e prático: a provisão do serviço fica para o nível mais inferior com a finalidade de promover a participação demo-


Descentralização do Estado e Pacto Federativo

crática, sem sacrificar a eficiência e a economia de escala. De qualquer forma, não se pode esquecer que os governos nacionais têm a grande capacidade de formular políticas distributivas interregionais, transferindo recursos das regiões mais ricas para as mais pobres. Há, dentre os especialistas, sobre o financiamento da Educação, aqueles que defendem que a estrutura centralizada é a melhor forma para o sistema de financiamento à Educação. Para esses autores, um sistema de financiamento completamente centralizado resulta em uma renda média maior, um gasto médio em Educação mais elevado e um bem-estar também mais elevado. “Portanto, um sistema de financiamento à educação centralizado é capaz de garantir a equalização na disponibilidade de recursos aluno/ano entre os diferentes federados e, ao mesmo tempo, levar a uma maior eficiência da economia como um todo” (Fernandes; Gremaud & Ulyssea, 2004). Finalmente, alguns autores defendem a unificação dos sistemas escolares estaduais e municipais que atribuiria novas responsabilidades tanto aos governos estaduais quanto aos municípios. A unificação não implicaria nem a municipalização nem o abandono da responsabilidade educacional por parte dos governos estaduais, mas o “estabelecimento de um único sistema de escola pública no qual estado, municípios e dirigentes de escolas trabalhem juntos e não de forma independente” (Plank, 1998).

5 Conclusão No momento em que ganha centralidade o debate sobre o pacto federativo, uma vez que o sistema federal constitui-se em um modelo complexo de governo e de imenso potencial de conflitos, torna-se fundamental compreender profundamente as questões aqui analisadas. A política educacional, dessa forma, precisa ser compreendida em sua articulação com as demais políticas, levando-nos a pensar no papel redistributivo do governo central e no papel dos municípios, especialmente da grande maioria dos municípios pobres e marcadamente rurais, que praticamente não arrecadam tributos. Há que se considerar alternativas de desenvolvimento

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regional que propiciem uma redução das desigualdades sociais. Deixando de lado discursos superficiais de defesa, seja da descentralização, seja da centralização, é preciso ampliar e reforçar os mecanismos de formulação de políticas e de controle público dos governantes nos estados e municípios. Na prática, para se avaliar a performance da accountability, é necessário determinar: Quem é responsável por qual aspecto do serviço oferecido?; Como os incentivos estimulam a efetiva provisão do serviço?; Em função das duas determinações, como funciona a oferta dos serviços? Dada a complexidade da empreitada, é preciso estar atento à constante tensão entre o risco do crescimento exacerbado do governo central e a descentralização radical. Algumas questões ecoam sobre nossas cabeças: O que o governo federal faz que apenas o governo federal pode fazer?; O que o governo federal faz e que pode parar de fazer?; O que o governo federal faz e pode ser mudado porque não está funcionando?; A ação do governo federal deve ser expandida?; Qual o papel do governo estadual?; Como melhorar o processo de tomada das decisões nos municípios?; Como ampliar os mecanismos de prestação de contas à sociedade?

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O cotidiano escolar e as pesquisas em Educação Marília Claret Geraes Duran* Programa de Pós Graduação em Educação, Faculdade de Humanidades e Direito, Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), Av. Senador Verguerio, 1301, Centro, CEP 09750-001, São Bernardo do Campo, SP, Brasil, e-mail: marilia.claret@terra.com.br Este artigo foi construído na perspectiva das contribuições de pesquisas do/no cotidiano escolar para a Educação. Na verdade, o estudo das realidades que formam o cotidiano vem ocorrendo por óticas diferentes, o que mostra a importância de se analisarem algumas versões de como considerar o cotidiano. Nessa direção, retomo alguns dos modos de pensar o cotidiano e as práticas cotidianas, na pesquisa em Educação, as referências que foram sendo construídas, a partir das perspectivas de Agnes Heller (1975) e de Henri Lefebvre (1968, 1983), com os trabalhos de Maria Helena Souza Patto (1993) e Sonia Penin (1989). Introduzo as importantes contribuições de Michel de Certeau (1994, 1995), autor cuja originalidade se evidencia na forma como ele inverteu os modos de interpretar as práticas culturais contemporâneas, recuperando as astúcias anônimas das artes de fazer – a arte de viver a sociedade de consumo. Nesse contexto, o artigo traz uma discussão das contribuições das pesquisas do/no cotidiano escolar para pensar a Educação, para pensar a escola, para pensar a escola pública. Palavras-chave: Pesquisa do/no cotidiano escolar. Michel de Certeau. Henri Lefebvre. Agnes Heller.

The school routine and research in education This article was elaborated from the perspective of the contributions of researches about and in everyday school life for Education. Indeed, the study of the realities that form everyday school life has been occurring in different perspectives, which shows the importance of examining several versions of how to consider everyday school life. In this context, I retake some of the ways of thinking everyday school life and daily practices, in educational research, the references that were being built, from the perspectives of Agnes Heller (1975) and Henri Lefebvre (1968, 1983) with the studies of Maria Helena Souza Patto (1993) and Sonia Penin (1989). I introduce the important contributions of Michel de Certeau (1994, 1995), an author whose originality is evident as he reversed the ways of interpreting contemporary cultural practices recovering the anonymous gimmicks of the arts of making – the art of living the society of consumption. In this context, the article offers a discussion of the contributions of some researches about everyday school life to think the education, to think the school and to think the public school. Keywords: Research of everyday school life. Michel de Certeau. Henri Lefebvre. Agnes Heller.

* Doutora em Educação (Psicologia da Educação/PUC-SP). Estágio Pós-Doutoral na Fundação Carlos Chagas – CIERS-Ed/FCC. Docente Pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Educação. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas FormAção/CNPq.


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1 Introdução O tema do cotidiano tem aparecido com frequência nas pesquisas e nos estudos da Educação e das Ciências Humanas em geral, com interesse crescente dos pesquisadores pelas questões do diaa-dia, pelas questões mais rotineiras que compõem os acontecimentos diários da vida e os significados que as pessoas vão construindo, nos seus hábitos, nos rituais do ambiente doméstico ou da sala de aula, nas ruas ou nas igrejas, e todo o sentido social e político dessas práticas e comportamentos que se expressam “na penumbra”, em um cotidiano tão carregado de contradições. O estudo das realidades que formam o cotidiano tem se realizado por óticas diferentes. Chizzotti (1992, p. 88), em uma versão provisória sobre o conceito de cotidiano, alerta para uma questão fundamental, qual seja, de que este não pode ser tomado univocamente como se todos os trajetos de vida estivessem sujeitos às mesmas condições e se traduzissem em realidades uniformes, independentes de condições objetivas em que essas vidas acontecem. Nesse sentido, esse autor evidencia a importância de se analisarem algumas versões de como se considera o cotidiano, algumas versões epistemológicas que privilegiam, ou não, as realidades vividas pelos sujeitos e que encontram nelas relevância científica, política, social ou nada disso, porque significam divergências ideológicas e representam os conflitos sociais que denunciam a vida ordinária. Chizzotti chama a atenção para dois viéses desse conceito: um, que toma o cotidiano como vulgar, como amontoado inconsequente das ações humanas; outro, que considera o cotidiano como campo residual da vida, situado em uma zona obscura do conhecimento em que o indivíduo pratica sua existência como se ela permanecesse mergulhada na ignorância e na penumbra permanente da vida. Chizzotti também procura condensar algumas correntes que trabalham esse cotidiano, que se torna um campo privilegiado a partir dos anos 50, atraindo diferentes correntes, que se envolvem neste campo, na busca de um tratamento específico. As questões do cotidiano têm sido tratadas, no Brasil, a partir de Agnes Heller – uma discípula direta de Lukás e da Escola de Budapeste, e por Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 1, p. 29-42, jul-dez. 2009

Lefebvre, que faz um tratado do cotidiano procurando extrair as características descritivas da vida cotidiana e criar uma ontologia desta. Para empreender essa tarefa de pensar o cotidiano nas pesquisas em Educação, considerei duas pesquisadoras brasileiras: Sonia Penin (1989), que orientou “sua mirada da escola trabalhando simultaneamente duas dimensões: a história e o cotidiano”, e Maria Helena Souza Patto (1993), que, em sua empreitada teórico-metodológica para encontrar uma forma de pesquisar e entender a vida na escola sem desconsiderar a vida social, foi buscar subsídios no complexo conceito sociológico de vida cotidiana. Sonia Penin discute algumas posições teóricas e conceitos sobre a vida cotidiana e sua crítica, tomados principalmente, mas não exclusivamente, de Lefebvre: “Apesar de ter sido Lukás quem introduziu o tema do cotidiano, foi Lefebvre o primeiro autor a fazer da vida cotidiana o objeto de uma reflexão filosófica sistemática: sua primeira obra sobre o assunto data de 1946 (...) e suas formulações foram desenvolvidas a partir do marxismo que, para ele, é um conhecimento crítico da vida cotidiana, já que descreve e analisa a vida cotidiana da sociedade e indica os meios de transformá-la” (Penin, p. 14).

Já Maria Helena Patto (1987) estabelece sua ancoragem em uma área recente do conhecimento sociológico – a sociologia da vida cotidiana, “(...) à qual se encontra ligado o nome de Agnes Heller, pensadora marxista comprometida com a busca da fundamentação teórica para um projeto político de ‘mudar a vida’ nas sociedades atuais marcadas pela exploração econômica e pela dominação cultural” (p. 132). E, para uma mirada inicial sobre as questões da pesquisa do/no cotidiano e não “sobre” o cotidiano, faço uma breve incursão nos trabalhos dessas duas pesquisadoras. Não é minha intenção apresentar um mapeamento, à moda de um estado do conhecimento, das pesquisas que vêm sendo realizadas nessa perspectiva temática, mas, sim, de contribuir com uma discussão que questiona o porquê pesquisar o cotidiano, ou seja, “O que a vida de todos os dias pode contribuir para a pesquisa na área da Educação?”, com vistas a compreender concretamente a realidade escolar – plural e ao mesmo


O cotidiano escolar e as pesquisas em Educação

tempo diferenciada – e apreender a complexidade da “unidade na diversidade” que representam.

2 Cotidiano e escola – a obra em construção de Sonia Penin Sonia Penin (1989) descreve em seu livro as condições concretas de vida cotidiana em quatro escolas públicas de 1º grau – período que correspondia, na época em que a pesquisa foi realizada, a oito anos de escolaridade, – da 1ª à 8ª série, articulando essa descrição com as representações que professores, equipe técnica e pais de alunos apresentam sobre tais condições. Caracteriza seu trabalho como “estudo de campo” de tipo exploratório – cujo objetivo maior foi explorar o campo, a existência de eventos e, em menor proporção, identificar frequência, distribuição e intensidade dos mesmos. Em uma abordagem metodológica da “antropologia dialética” (Lefebvre, 1961. p. 99), propõe-se a discutir a “obra” escola a partir de duas vertentes: a) descrever as condições objetivas sobre as quais a vida cotidiana acontecia e que constituía a “matéria prima” da obra construída, considerando as categorias próprias de uma análise estrutural e formal, utilizadas instrumentalmente, acompanhadas de análise crítica mais abrangente e totalizadora; b) analisar as representações dos sujeitos coletivos envolvidos – investigação do cotidiano subjetivo ou dos sujeitos no cotidiano –; representações que esses sujeitos mantinham com a questão central: causas escolares do alto índice de repetência e evasão escolar dos alunos e seus desdobramentos. A autora discute sua posição teórica a respeito do estudo da escola, considerando sinteticamente três posições diferenciadoras: abordagem positivista ou neopositivista da ciência; abordagem crítico-reprodutivista; e a análise dinâmica da relação sociedade-escola, na qual as contradições que ocorrem no interior da escola são evidenciadas e entendidas no movimento histórico (Gramsci) – posição com a qual a autora se identifica. Embora dê ênfase à abordagem microssociológica, não deixa de lado as questões macrossociológicas. Tomando Henri Lefebvre como interlocutor privilegiado (1961), parte do pressuposto de que “não é possível conhecer a sociedade (global) sem conhecer a vida cotidiana (...) e não é possível conhecer a cotidia-

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nidade sem o conhecimento crítico da sociedade (global)” (cf. Penin, 1989, p. 13). A autora, com Lefebvre, conceitua vida cotidiana, cotidiano e cotidianidade: vida cotidiana significa um nível da realidade social, distinguindo-se, portanto de “práxis” – conceito mais abrangente, que coincide com a totalidade em ato, englobando tanto a base como as superestruturas e as interações entre as duas (diferentemente de Heller, para quem as atividades cotidianas não fazem parte da “práxis”). A vida cotidiana envolve a totalidade da prática humana, incluindo tanto a atividade objetiva do homem, transformadora da natureza e do mundo social, quanto a formação da subjetividade humana; todos os momentos do homem, todos os seus tipos de ação, reflexão e sentimentos, que se originam no trabalho, fazem parte da práxis. Para Lefebvre, práxis coincide com a totalidade em ato, englobando tanto a base como as superestruturas e as interações entre as duas, concepção que coincide com a de Kosik (1976. pp. 201-202): “(...) práxis (...) abrange a totalidade da prática humana, incluindo tanto a atividade objetiva do homem, transformadora da natureza e do mundo social, quanto a formação da subjetividade humana. Desta forma, todos os momentos do homem, ou seja, todos os seus tipos de ação, reflexão e sentimentos, que se originam no trabalho, fazem parte da práxis” (citado por Penin, idem, p. 15).

Nessa perspectiva, a vida cotidiana não se reduz ao conhecimento de situações circunscritas apenas a esse nível de realidade – estamos ao mesmo tempo na vida cotidiana e fora dela. As atividades superiores distinguem-se daquelas da vida cotidiana, mas não se desligam dela, ou seja, as atividades superiores dos homens nascem do gérmen contido na prática cotidiana (Penin, ibidem, p. 16). Assim problematizado, tudo aquilo que se produz e se constrói nas esferas superiores da prática social deve mostrar sua verdade no cotidiano. Para Lefebvre, afirma Penin, “é na vida cotidiana e a partir dela que se cumprem as verdadeiras criações, aquelas que produzem os homens no curso de sua humanização: as obras” (p. 17). Cotidiano é a palavra que designa essa entrada na modernidade, ou seja, quando a sociedade européia Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 1, p. 29-42, jul-dez. 2009


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torna-se cumulativa, pelo crescimento das forças produtivas, a vida cotidiana entra na modernidade e o cotidiano consolida-se. Três valores farão a modernidade: a técnica, o trabalho e a linguagem. Mas a ideologia da modernidade vigente tem mantido o cotidiano como lugar de continuidade (Penin, p. 18). E a autora parte de um quadro dos fatores que intervêm no cotidiano, organizado por Lefebvre, para considerar aqueles que estão presentes no cotidiano escolar: um grupo de parâmetros organiza-se em relação aos fatores de homogeneidade; outro, em relação aos fatores de fragmentação; e outros ainda, em relação aos fatores de hierarquização do cotidiano. Outro grupo é constituído pelos fatores de oposição à homogeneidade, à fragmentação e à hierarquização do cotidiano, ou seja, constituemse com e nas diferenças (contra a homogeneidade), na unidade (contra a fragmentação) e na cisão e na igualdade (contra a hierarquia). Essas considerações são importantes para entendermos que as manipulações do cotidiano podem ser alcançadas pelo estudo das representações que, segundo Lefebvre, mostra qual é o seu papel; as representações formam-se entre o vivido e o percebido; o concebido constitui o discurso articulado que procura determinar o eixo do saber a ser promovido e divulgado – representa o ideário teórico de uma época; o vivido é formado tanto pela vivência da subjetividade dos sujeitos quanto pela vivência social e coletiva dos sujeitos em um contexto específico (Penin, p. 27). Ou seja, “O concebido e o vivido se relacionam em movimento constante e dialético e, entre ambos, as representações fazem às vezes de mediadoras” (Lefebvre, 1983. p. 223). Lefebvre discute o conceito de representação junto com o conceito de obra – ou seja, uma realidade específica, entendida como “presença” única, é uma obra socialmente construída por aqueles que a vivenciam. A obra possui uma presença, enquanto o produto permanece no meio das representações. Para captar as representações, é necessário estudar o discurso e a prática social correspondente (p. 29). E Sonia Penin, apropriando-se do conceito de representação junto com o conceito de obra, traz a análise da obra escola – quatro obras em construção. Com o estudo do cotidiano da obra escola, com o estudo das ações dos sujeitos e suas representações – ligadas que estão com o dilema da evasão escolar –, foi possível evidenciar que as Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 1, p. 29-42, jul-dez. 2009

práticas cotidianas fornecem munição para diversas decisões institucionais relacionadas à Educação. Conhecer o cotidiano é necessário porque, sendo conhecido, é possível conquistá-lo e planejar ações que permitam transformá-lo. O estudo das quatro obras possibilitou comparar escolas que iniciaram sua construção social em momentos históricos diferentes e que foram criadas para servir a diferentes clientelas e necessidades sociais. Apesar de semelhanças entre algumas delas, cada escola apresenta-se como obra única, resultado singular e permanente construção social – essa é a grande contribuição dos estudos de Sonia Penin. Ela deixou claramente delineadas as diferenças: • Diferenças no processo de desenvolvimento: as mais antigas, Gama e Delta, criadas em 1964, em zonas centrais, para servir alunos das camadas médias, vinham perdendo clientela ao longo dos anos. Ao passo que as mais recentes, Alfa e Beta, criadas em 1976, na periferia da cidade, destinadas à classe trabalhadora, aumentava progressivamente suas matrículas. • Diferenças considerando a rotatividade, número de faltas e vivência na história cotidiana – obstáculos à consecução de uma boa qualidade de ensino... “escola pobre para o aluno pobre”. • Diferenças objetivas no tempo de escolarização e de trabalho pedagógico diário oferecido às crianças das quatro escolas. • Diferenças considerando a relação social estabelecida entre pais e agentes pedagógicos em estreita dependência do nível socioeconômico dos pais: aqueles que pertenciam à classe média frequentavam a escola e relacionavam-se com os educadores; os pertencentes à classe trabalhadora, não.

Em síntese, apesar de as quatro escolas pesquisadas pertencerem a um mesmo sistema de ensino, cada uma revela-se como “presença única”, com características singulares de existência. Pelo fato de essas características não se manifestarem de forma estática, mas em movimento constante, as escolas pesquisadas mostram-se como “obra em construção”, ou seja, evidenciando a construção diária e cotidiana que é própria de cada escola. Se, por vezes, somos tentados a transformar o cotidiano em “cotidianidade”, como salienta Lefebvre,


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é também possível pensar sobre o que pode ser feito para transformar a escola – é nessa perspectiva que a escola pode ser entendida como “obra em construção”!

3 A produção do fracasso escolar – Maria Helena Patto Maria Helena Patto (....) enfrenta o desafio teórico-metodológico de encontrar uma forma de entender a vida na escola considerando o conceito sociológico de vida cotidiana, ligado a Agnes Heller, por isso mesmo na perspectiva de não deixar de considerar a vida social. Justifica suas escolhas pela constatação da coexistência de altos índices de evasão e repetência e de um grande número de pesquisas sobre as causas do fracasso escolar, o que a remeteu à realização da revisão crítica da literatura voltada para esse tema, tendo em vista entender sua constituição ao longo da história, definindo o seu discurso “no que ele diz”, “no que ele não diz” e “no que se contradiz” (p. 5); estabelecendo a continuidade das pesquisas na área, contribuindo para a compreensão do fracasso escolar – enquanto processo psicossocial complexo –, observações em vários contextos e entrevistas formais e informais com todos os envolvidos, incluindo o discurso das crianças. Toma como referência teórica, para a reflexão sobre a escolarização das classes subalternas, Agnes Heller – para avançar o pensamento marxista no sentido de dar conta de questões políticas, sociais e econômicas que emergem no século XX, nos países capitalistas do Terceiro Mundo. Autora voltada para as relações entre a vida comum dos homens comuns e os movimentos da história e que não perde de vista a especificidade das pessoas envolvidas nas ações que tecem a vida cotidiana. Constatando que a subjetividade (no sentido da individualidade, da pessoa, do sujeito) foi banida do pensamento materialista histórico, Heller a resgata e a coloca no centro do processo histórico, entendido como expressão do homem em busca de sua humanização. Sua contribuição foi colocar a temática do indivíduo no centro de suas reflexões; não o indivíduo abstrato, mas, sim, o indivíduo da vida cotidiana, voltado às atividades necessárias à sua sobrevivência.

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Considerando o conceito de vida cotidiana em geral, abstraída de seus determinantes sociais, entende que toda vida cotidiana é heterogênea, hierárquica, espontânea, econômica; e que as ideias necessárias à cotidianidade jamais se elevam ao nível de teoria – a ação cotidiana não é práxis, baseia-se em juízos provisórios, é probabilística e recorre à ultrageneralização e à imitação. É a vida de todo homem e do homem todo – é a vida do indivíduo e o indivíduo é sempre ser particular e ser genérico. Todas essas tendências são formas necessárias do pensamento e da ação na vida cotidiana – quando se cristalizam em absolutos estamos diante da alienação. A alienação ocorre quando se dá um abismo entre a produção humanogenérica e a participação consciente dos indivíduos nessa produção. A maneira como Heller desenvolve os temas do preconceito e dos papéis sociais, de como estes se expressam na vida cotidiana, em geral, e na cotidianidade das sociedades em que predomina o modo capitalista de produção, em particular, ilustra sua teoria da ação e do pensamento cotidianos (p. 136). Considera a atividade cotidiana essencialmente pragmática: o “útil” e o “verdadeiro”; as ultrageneralizações constituem a base do pensamento cotidiano, valendo-se de juízos provisórios; as supergeneralizações ocorrem por meio de analogias e precedentes. Heller apresenta um tipo particular de juízo provisório – o preconceito – juízo falso, que tem como componente afetivo a fé e, como limite, a intolerância emocional ligada à satisfação de necessidades da particularidade. Isso não significa dizer que os sistemas de preconceitos sociais decorrem dos preconceitos do homem tomados isoladamente. A maioria de nossos preconceitos tem um caráter imediatamente social – os assimilamos e aplicamos por mediações a casos concretos (p. 137). Segundo Heller, os preconceitos têm a função de consolidar e manter a estabilidade e a coesão de integrações sociais, principalmente de classes sociais, e ocorrem justamente quando a coesão está ameaçada. Por isso, a maior parte dos preconceitos é produto das classes dominantes, apoiadas no conservadorismo, no comodismo, no conformismo ou nos interesses imediatos dos integrantes das classes ou camadas sociais que lhes são antagônicas, conseguindo mobilizá-las contra os interesses de sua própria classe e contra a práxis (p. 138). Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 1, p. 29-42, jul-dez. 2009


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Ao dedicar-se a uma teoria dos papéis, considera seu exercício nas condições sociais de manipulação e alienação. O homem vai-se fragmentando em seus papéis, pode ser devorado neles e por eles e viver a estereotipia dos papéis de uma forma limitadora da individualidade, ou seja, orientandose na cotidianidade pelo simples cumprimento adequado desses papéis, assimilando mudamente as normas dominantes e vivendo de uma maneira que caracteriza o conformismo. Nesses casos, a particularidade suplanta a individualidade. (Por individualidade Heller entende a aliança da particularidade com a genericidade, via explicitação das possibilidades de liberdade, de fazer escolhas moralmente orientadas, de conduzir a vida.) (pp. 140-141). Entretanto, Heller considera que as relações entre o indivíduo e o papel nem sempre são de total identificação, mesmo nas sociedades de comportamento manipulado e administrado (possibilidades dessa relação: desde a plena identificação – forma mais direta de expressão da alienação –, até a recusa de papel – característica daqueles que não se sentem à vontade na alienação). Heller recusa a concepção funcionalista de papel, assinala a impossibilidade de manipulação sem limite dos homens: “em situações novas, surpreendentes, nas quais os estereótipos deixam de funcionar ou funcionam mal, restabelece-se sempre a unidade da personalidade”. Heller considera simultaneamente o individual e o social no desempenho de papéis: “inimaginável que não haja, mesmo no interior dos estereótipos, nenhuma qualidade particular, individual, nenhuma matiz individual”. Ao ressaltar a “matiz individual”, recoloca, em termos totalmente diversos dos da psicologia, a importância da subjetividade, da história de vida, da unicidade das pessoas envolvidas na vida social (p. 143). Na concepção de Heller, a vida cotidiana é, dialeticamente, o lugar da dominação e da rebeldia ou da revolução. Para ela não existe “perfeita submissão”, nem mesmo na sociedade manipulada pela burocracia e pela indústria cultural. Ao privilegiar a vida cotidiana como lugar onde a sociedade adquire existência concreta, redefine o lugar onde se dão as transformações sociais. Assumem importância, nesta perspectiva teórica, os centros moleculares de poder – escola, família – porque onde quer que existam relações de poder, existe a possibilidade de questioná-las e trabalhá-las. Uma revolução só o é Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 1, p. 29-42, jul-dez. 2009

quando se dá na vida cotidiana e passa pela subjetividade, pela participação; é um processo lento e celular – não se pode fazer a revolução visível sem a revolução invisível. Por isso a constituição do pequeno grupo é um momento importante de passagem da particularidade para a individualidade e, portanto, para o próprio processo de mudanças sociais radicais (p. 143). O objetivo de Maria Helena Patto, em sua pesquisa, é de contribuir para a compreensão do fracasso escolar como parte integrante da vida da escola e esta como expressão das formas que a vida assume na sociedade que a contém, realizando observação da realidade material e humana de uma escola, participando do seu dia-a-dia e mantendo contatos mais ou menos formais com os participantes do processo escolar – professores, administradores, técnicos, alunos e pais de alunos, enquanto cidadãos que vivem parte de suas vidas na escola ou em função dela. Sua intenção inicial, nem sempre concretizada, era de observar atentamente as práticas e os processos a que se dedicam sem desenvolver qualquer colaboração ativa com a escola enquanto a pesquisa durasse (p. 153). A opção pelo estudo de caso significou voltar sua atenção para a observação da vida material e humana de uma escola de periferia do centro urbano industrial de São Paulo, participando do seu dia-a-dia, durante dois anos, com o objetivo de entender o lugar e o significado do caso, no universo do qual faz parte, compreendendo a relação entre o particular e o geral. É um estudo representativo, ou seja, o particular representa o geral. E, em sua busca, no sentido de conhecer a trama de inter-relações, do sentido das práticas e processos observáveis em uma escola, de suas relações com a produção do fracasso escolar de seus alunos, Maria Helena Patto defrontou-se com um bairro, com uma escola, com pessoas portadoras de interesses e histórias, pessoas que tecem essa trama e definem seu sentido. A primeira constatação: a diretora fizera sua, a palavra de ordem oficial – redução da repetência na 1ª série –, e o faz, aparentemente, cumprindoa com a competência que lhe propicia a técnica, a objetividade e neutralidade que lhe confere a burocracia. E a pesquisadora caracteriza tal política como a “ditadura dos números” que as autoridades educacionais, coerentemente com a mentalidade burocrática, vivem e fazem viver – passaporte para


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a promoção de professores com base no número de aprovações. Os primeiros contatos: diretora e assistente pedagógica – duas personagens centrais na dinâmica da escola (poder), cuja primeira imagem é a da eficiência e harmonia da escola “caso bemsucedido de educação escolar no qual educadoras de uma escola se irmanam no compromisso com a elevação do nível da escolaridade de um grupo de crianças das classes populares”. A pesquisa propôs-se a trazer à tona a face ineficiente da escola, na perspectiva de entender o processo de produção do fracasso escolar – tornando rapidamente inverossímil o caráter de instituição escolar exemplar, pondo “o dedo na ferida que esta versão evita tocar”. Os professores, como cadeia, também colocam a responsabilidade aos imediatamente inferiores, culpando as crianças e suas famílias pelo fracasso escolar, pelas dificuldades de escolarização; considerando deficiências ou distúrbios localizados nas próprias crianças e em suas famílias. Na verdade, os professores incorporam o discurso da escola e, ao mesmo tempo, duvidam, questionam, mas não são capazes de uma reflexão crítica. O autoritarismo que permeia as relações educacionais encontra “aos olhos dos professores” sua manifestação mais visível na figura da diretora. Da mesma forma, os obstáculos à realização de um bom ensino assumem “aos olhos da diretora” sua manifestação mais visível na figura dos professores. Imersos na cotidianidade que toma conta da vida da escola, diretora e professores não conseguem apreender criticamente a totalidade social da qual fazem parte. A convivência na escola permitiu à pesquisadora captar ambiguidades e contradições e identificar insatisfações e tensões que, quase nunca são explicitadas e muito menos resolvidas, mas que permanentemente latejam no corpo da escola. A apreensão do significado do que ocorre na escola requer mais do que saber que há pessoas investidas de poder: é fundamental saber como elas exercem e por que o fazem de determinadas maneiras. Foi isso que a pesquisa captou nas entrevistas mais ou menos formais, nas visitas, nas observações da realidade humana e material da escola: ao observar a realidade material e humana que compõe a escola, ao captar o cotidiano escolar na trama de preconceitos ali envolvidos, ao “desnudar” o cotidiano escolar cotidianizado, ao captar ambiguidades, contradições, insatisfações e tensões, Maria Helena

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Patto mostrou também que, “além das práticas e procedimentos de um cotidiano escolar, existem sujeitos”.

4 O codidiano em Michel de Certeau Outra tendência básica de estudos, que se propõe a investigar o cotidiano, vem do trabalho de Michel de Certeau. Pelo menos três cenários de sua trajetória pessoal/profissional chamaram nossa atenção na leitura atenta de alguns de seus livros1 e das apresentações de Luce Giard: sua produção científica inicial – ligada ao campo religioso e à experiência dos místicos – já estava marcada por “caminhos estranhos à lógica das instituições do saber”; suspeitando delas, relativizando a noção de verdade, colocando em dúvida seus modelos; seu rigor conceitual, sua crítica exigente e lúcida, que têm como fontes a reflexão sobre a história; e sua formação filosófica e seu interesse pela epistemologia. Foucault e Bourdieu dividem o mesmo papel de “fornecedores de propostas teóricas fortes, lidas de perto, com admiração e respeito, cuidadosamente discutidas por Certeau e, enfim, postas de lado” (p. 17). Conforme Giard, se Foucault e Bourdieu, por um lado, dividem esse papel de fornecedores de propostas teóricas fortes, por outro lado, também servem de figuras teóricas de oposição; o que não é explicável apenas pelas teses de Certeau, mas por uma diferença que precede sua teoria – uma antiafinidade eletiva por características de estilo, de tonicidade, de pressupostos; características essas perceptíveis no conjunto de sua obra, que evidencia uma “generosidade de sua inteligência e uma confiança depositada no outro” (p. 18), e que dá a Certeau a possibilidade de perceber microdiferenças onde tantos outros só vêem obediência e uniformização. Pode-se resumir a posição de Certeau em uma de suas frases: “Sempre é bom recordar que não se deve tomar os outros por idiotas” (p. 19). Os autores que mais contribuições deram ao texto das “Artes de fazer”: Freud, com sua Psicopatologia 1 Refiro-me aos livros editados no Brasil pela editora Vozes (Petrópolis/ RJ): A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer e 2. Morar e cozinhar (1994) e pela Papirus Editora (Campinas/SP): A cultura no plural (1995).

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da vida cotidiana2 (1901) e Wittgenstein, além das contribuições filosóficas de todas as épocas. Certeau valoriza em Freud seu trabalho de ultrapassar os campos científicos constituídos, pela “insinuação do ordinário”, na medida em que ele “estabelece um contrato com o homem ordinário e conjuga seu discurso com a multidão cujo destino comum consiste em ser ludibriada, frustrada, forçada ao trabalho cansativo, submetida à lei da mentira e ao tormento da morte” (p. 61). Nesse sentido, Freud ultrapassa o privilégio de, arbitrariamente, “falar em nome do ordinário” ou de “pretender estar neste lugar geral”! Em Wittgenstein, Certeau vai buscar “uma filosofia que forneça um ‘modelo’ e que efetue um exame rigoroso da linguagem ordinária”, abordando essa linguagem “de cada dia” de maneira a não afirmar nada que extrapole a competência dessa linguagem, de jamais tornar-se perito nela, ou o seu intérprete, sendo impossível, então, a conversão da competência em autoridade. Autores como Detiénne e Vernant causam grande admiração em Certeau pela maneira como se utilizam da narração para colocar em evidência as astúcias gregas. Para Detiénne – historiador e antropólogo –, o relato não exprime uma prática, não se contenta em dizer um movimento, “ele o faz”. Assim, Detiénne “diz as práticas gregas”, narrando histórias gregas, “re-citando” seus gestos táticos no ritmo alegre de suas táticas. Para dizer o que os gestos táticos dizem, não há outro discurso senão eles. Alguém pergunta: mas o que ‘querem’ dizer? Então se responde: vou contá-los de novo. “Se alguém lhe perguntasse qual era o sentido de uma sonata, Beethoven, segundo se conta, a tocava de novo. O mesmo acontece com a re-citação da tradição oral (...)” (p. 155). “De uma história bem conhecida, classificável portanto, um detalhe ‘de circunstância’ pode modificar radicalmente o seu alcance. ‘Recitála’ é jogar com esse elemento a mais, escondido no estereótipo feliz do lugar comum (...) E quem tem ouvidos para ouvir, que o ouça! O ouvido apurado sabe discernir no dito aquilo que aí é marcado de diferente pelo ato de dizê-(lo) aqui e agora, e não se cansa de prestar atenção a essas habilidades astu2 Freud, em sua Psicopatologia da vida cotidiana, estuda os atos falhos, os lapsos das falas, de leituras, de audição, pequenos acontecimentos da vida cotidiana, do dia-a-dia de qualquer pessoa (transitórios e destituídos de grande importância), para descobrir aspectos importantes e decisivos ao conhecimento do psiquismo.

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ciosas do contador” (p. 166). Detiénne e Vernant escreveram um livro sobre as astúcias da inteligência dos gregos – livro que é uma série de relatos e consagra-se a uma forma de inteligência sempre “mergulhada numa prática” onde se combinam “ o faro, a sagacidade, a previsão, a flexibilidade de espírito, a ‘finta’, a esperteza, a atenção vigilante, o senso de oportunidade, habilidades diversas, uma experiência longamente adquirida” (p. 156). A originalidade da obra de Certeau evidencia-se na forma como ele inverteu a forma de interpretar as práticas culturais contemporâneas, recuperando as astúcias anônimas das artes de fazer – esta arte de viver a sociedade de consumo. Se “a razão técnica acredita que sabe como organizar do melhor modo possível pessoas e coisas, a cada um atribuindo um lugar, um papel e produtos a consumir”, Certeau nos mostra que: “(...) o homem ordinário escapa silenciosamente a essa conformação. Ele inventa o cotidiano, graças às artes de fazer, astúcias sutis, táticas de resistência pelas quais ele altera os objetos e os códigos, se reapropria do espaço e do uso a seu jeito. Voltas e atalhos, maneiras de dar golpes, astúcias de caçadores, mobilidades, histórias e jogos de palavras, mil práticas inventivas provam, a quem tem olhos para ver, que a multidão sem qualidades não é obediente e passiva, mas abre o próprio caminho no uso dos produtos impostos, numa ampla liberdade em que cada um procura viver do melhor modo possível a ordem social e a violência das coisas” (Notas da contracapa do livro Invenções do cotidiano: artes de fazer).

Ao atribuir às práticas o estatuto de objeto teórico, Certeau busca encontrar os meios para “distinguir maneiras de fazer”, de pensar “estilos de ação”, ou seja, fazer a teoria das práticas, no seguinte sentido: propor “algumas maneiras de pensar as práticas cotidianas dos consumidores, supondo no ponto de partida que elas são do tipo tático”. Essa análise das práticas “vai e vem, cada vez novamente captada (...), brincalhona, fujona...”.

5 O sentido de “cultura” e de “consumo” em Certeau Para Certeau (1994), a uma produção racionalizada, expansionista, além de centralizada,


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barulhenta e espetacular, corresponde outra produção, qualificada de consumo: esta é astuciosa, é dispersa, mas, ao mesmo tempo, ela se insinua ubiquamente silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos próprios, mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante (p. 39). Sob essa perspectiva, toda cultura requer “um modo de fazer”, uma atividade, um modo de apropriação, uma adoção e uma transformação pessoais; ou seja, uma produção institucionalizada, centralizada, faz corresponder a outra produção – há uma invenção no cotidiano que estabelece as formas como os consumidores vão se ajustando e reorganizando esse produto –, uma produção mais escondida, aquela dos “consumidores”, e que “marca o que fazem com os produtos”. Certeau (1996) considerava que, embora qualquer atividade humana possa ser cultura, ela não o é necessariamente ou não é forçosamente reconhecida como tal, pois, “para que haja cultura, não basta ser autor das práticas sociais; é preciso que essas práticas sociais tenham significado para aquele que as realiza” (p. 142). Entedia a “(...) cultura comum e cotidiana enquanto apropriação (ou reapropriação); o consumo ou recepção como ‘uma maneira de praticar’, apontando para a necessidade de extrair das práticas cotidianas, ‘do seu ruído’, as ‘maneiras de fazer’ que, majoritárias na vida social, não aparecem muitas vezes, senão a título de ‘resistências’ ou de inércias em relação ao desenvolvimento da produção sociocultural” (Certeau, 1994, pp. 16-17). Discutindo a cristianização forçada a que eram submetidos os indígenas da América do Sul, pelos colonizadores hispânicos, parecendo, por fora, submeter-se totalmente e conformar-se com as expectativas do conquistador, Certeau mostra-nos que, de fato, “metaforizavam” a ordem dominante, fazendo funcionar as suas leis e suas representações num outro registro, no quadro da própria tradição. “A força de sua diferença se mantinha nos procedimentos de consumo” (p. 40). Nesse sentido, Certeau considerava que “(...) a presença e a circulação de uma representação, ensinada como o código da promoção socioeconômica (por pregadores, por educadores ou por vulgarizadores) não indica, de modo algum, o que ela é para seus usuários. É ainda necessário analisar sua manipulação pelos praticantes que não a fabricaram” (p. 40).

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Para poder apreciar “a diferença ou a semelhança entre a produção da imagem e a produção secundária que se esconde nos processos de sua utilização”, Certeau propõe, como baliza teórica, “a construção de frases próprias com um vocabulário e uma sintaxe recebidos” (p. 40), supondo que, pelas maneiras de usar essa produção, pelas invenções cotidianas, pelas maneiras de fazer, ocorre com os usuários, a exemplo dos povos indígenas, uma “bricolagem” com e na economia cultural dominante, pela possibilidade de descobrir inúmeras metamorfoses da lei, segundo seus interesses próprios e suas próprias regras.

6 O sentido de política em Certeau Como nos ensina Certeau, a legitimidade da “autoridade”, isto é, a expressão daquilo que é “aceito” como “crível” constrói-se pelas representações que vão se articulando em torno dela e que se traduzem por uma “constelação de referências”, fontes, uma história, uma iconografia, em suma, por uma articulação de “autoridades”. Nesse sentido, “a toda vontade construtiva são necessários sinais de reconhecimento e acordos feitos acerca das condições de possibilidade, para que seja aberto um espaço onde se desenvolva” (Certeau, 1995, p. 34). São as representações aceitas que, segundo ele, inauguram e, ao mesmo tempo, exprimem essa nova credibilidade. Uma vez anunciada uma política e assumida sua implantação, são oferecidas condições de possilibidade que são os “sinais de reconhecimento”, os “acordos feitos acerca dessas condições de possibilidade” para que se desenvolva. Nesse processo, cria possíveis e impossíveis – não atende a todas as demandas, mas as possíveis, pois “a política não garante a felicidade nem confere significado às coisas. Ela cria ou recusa condições de possibilidade, interdita ou permite: torna possível ou impossível” (Certeau, 1995, p. 214). Como afirma Luce Giard, em seus comentários sobre o livro A cultura do plural3, essa foi a verdadeira aspiração que moveu Michel de Certeau durante sua vida: inventar o 3 Esse livro ocupa, na cronologia das obras de Certeau, uma posição intermediária. Sua edição francesa data de 1974; La prise de parole é de 1968 e L’invention du quotidien tem uma primeira edição em 1980 e uma nova edição em 1990.

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possível, ocupar um espaço de movimentação no qual possa surgir uma liberdade.

7 O par “estratégia” e “tática” Para dar conta das práticas de consumo – não do material utilizado e imposto pela produção, mas da formalidade própria dessas práticas, do seu “movimento” astucioso, da atividade de “fazer com”, das maneiras de utilizar os produtos –, Certeau estabelece uma distinção entre estratégias e táticas. Chama de estratégia “o cálculo (ou a manipulação) das relações de forças que se torna possível a partir de um momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser isolado”. Nesse sentido, a estratégia postula um “lugar”, “um próprio”, “um lugar do poder e do querer próprios”, de onde se podem “gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças (os clientes ou os concorrentes, os inimigos, o campo em torno da cidade, os objetivos e objetos de pesquisa etc.)” (1994, p. 99). Reconhece nas estratégias um tipo específico de saber – aquele que sustenta e determina o poder de conquistar para si um “lugar próprio”. Reconhece também o domínio dos lugares pelo olhar, o qual transforma as forças estranhas em objetos que se podem observar e medir, controlar e incluir na sua visão, prever e antecipar-se ao tempo pela leitura de um espaço. “Um poder é a preliminar deste saber, e não apenas seu efeito ou seu atributo” (p. 100). Por tática entende a “ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio”, ou seja, “a tática não tem por lugar senão o do outro” (p. 100). Este não-lugar lhe permite mobilidade, movimento, operando “golpe por golpe”, “lance por lance”, captando “no vôo, as possibilidades oferecidas por um instante”, “as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário”; vai “caçar”, cria “surpresas”, “consegue estar onde ninguém espera. É astúcia. Em suma, a tática é a arte do fraco” (p. 101); “são procedimentos que valem pela pertinência que dão ao tempo” (p. 102). A diferença entre estratégias e táticas, sob o aspecto das relações tempo/espaço, remete a duas opções históricas em matéria de ação e segurança: “as estratégias apontam para a resisPesquiseduca, Santos, v. 1, n. 1, p. 29-42, jul-dez. 2009

tência que o estabelecimento de um lugar oferece ao gasto do tempo; as táticas apontam para uma hábil utilização do tempo, das ocasiões que apresenta e também dos jogos que introduz nas fundações de um poder” (p. 102).

8 Práticas, criações e artes na escola Para falar de práticas, criações e artes na escola será preciso ouvir a palavra de professores, pensar a respeito de suas invenções, procurando evidenciar microdiferenças onde tantos outros apenas percebem uniformização e conformismo. Começo com o depoimento de uma professora, em um momento de “avaliação formativa”, que ocorreu em uma importante cidade no estado de São Paulo, em que discutíamos a organização da escola em ciclos, considerando a política do Ciclo Básico dos anos 19804. Ao final de discussões e debates em dois dias intensos de trabalho, uma professora pediu para fazer um depoimento, um desabafo, que mostrou fortemente seu sentimento de desconforto durante todo o processo. Com voz embargada, descreveu sua atuação como professora e como alfabetizadora, finalizando com a seguinte afirmação: “Venho aos encontros de formação, ouço bem tudo o que falam, mas, quando fecho a minha sala de aula, ‘a cartilha está atrás da porta’! (2004)”. Problematizando esta questão forte que a professora explicitou, utilizando-se da metáfora “com a cartilha atrás da porta”, considero importante salientar que o estudo no/ do cotidiano, o estudo das práticas que acontecem na escola, o estudo das “artes de fazer” dos professores e alunos – as ações do tipo tático –, e a análise delas, busca a compreensão possível por outro caminho. Certeau nos fala de acompanhar alguns procedimentos – multiformes, resistentes, astuciosos e teimosos – que escapam à disciplina sem ficar mesmo assim fora do campo onde se exerce, e que deveriam levar a uma teoria das práticas cotidianas, do espaço vivido e de uma inquietante familiaridade da cidade. Em uma perspectiva semelhante, proponho esta possibilidade para os procedimentos astuciosos dos 4 Para um aprofundamento desse tema, consultar o livro da autora Ciclo Básico em São Paulo – memórias - em co-autoria (ver Bibliografia). Consultar também o artigo publicado em 2005, no volume 35, número 124, de Cadernos de Pesquisa (FCC).


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professores, que deveria levar a uma teoria das práticas que acontecem no espaço da escola. Começo estabelecendo os contornos contextuais e políticos em que ocorreu tal discussão, porque entendo que as rupturas conceituais no processo de alfabetização, nos anos 1980, estão inextricavelmente ligadas à implantação do Ciclo Básico de Alfabetização em São Paulo nesse período. Assim, é importante, neste primeiro momento, estabelecer uma distinção entre “ciclos” e “progressão continuada”; entre uma escola organizada em ciclos (em todos os níveis de ensino), a estratégia de agrupar séries em que os avanços dos alunos não sofrem solução de continuidade durante toda a escolarização e a proposta do Ciclo Básico de Alfabetização, em que as antigas 1ª e 2ª séries do ensino fundamental formaram um único bloco, um único tempo, garantindo a permanência do aluno nesse ciclo sem interrupção no seu processo de aprendizagem. Entendo que a implantação do “Ciclo Básico” mostrou que é possível pensar e fazer a escola para além da sua materialização em uma lógica seletiva e excludente que é constitutiva do sistema seriado, dos currículos gradeados e disciplinares. Na verdade, como nos lembra Gomes (2004, p. 39), o Ciclo Básico de alfabetização, adotado em São Paulo (1984) e em Minas Gerais (1985), representa o que ele chama de “primeira geração de inovações no campo da desseriação”. Tal proposta insere-se no contexto de um movimento renovador desencadeado pela vitória eleitoral da oposição nesses estados após 20 anos de regime militar. Quase 10 anos separam o depoimento desta professora, que diz de sua insatisfação com as mudanças na teoria e na prática da leitura e da escrita na escola, utilizando-se da metáfora “com a cartilha atrás da porta”, do de outra professora, colhido nos idos de 1994 (Duran, 1995) a respeito de sua prática. Disse ela: “(...) às vezes a gente pensa: – Será que estou fazendo certo? Será que estou perdendo tempo? E a gente fica nessa dificuldade. E também acho que ainda precisa muita coisa para eu me inteirar mesmo dessa proposta. Estou meio ‘mesclada’ ainda...” (Professora alfabetizadora da rede pública estadual de São Paulo, Brasil, 1994)

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A resposta da professora, questionada sobre sua prática alfabetizadora no Ciclo Básico, evidencia que a política da escola em ciclos5, naquele momento histórico, representou uma ruptura e estabeleceu alterações no que vinha sendo feito na sala de aula. Aponta também para alguns dos significados de mudança, em um sentido geral e, em especial, para os significados de mudança, considerando a implantação de uma política educacional: insegurança e medo do desconhecido são sentimentos evidentes, até porque “o novo representa, quase sempre, uma ameaça – à ordem, ao estabelecido, ao já absorvido e acomodado” (Rosa, 1994). Uma nova pedagogia da alfabetização foi se construindo ao longo do período, no contexto das discussões com os professores que enfrentaram os desafios de uma mudança conceitual. As discussões do fracasso escolar no interior da escola, com a revisão crítica dos preconceitos e estereótipos em relação às camadas mais pobres da população, grande parte marginalizada na escola; a abordagem construtivista, mediada pelas pesquisas de Emília Ferreiro (1979) sobre a alfabetização, e as contribuições da psicolinguística, da sociolinguística e do sociointeracionismo vygotskyano, no quadro das discussões da aquisição da língua escrita pela criança, no processo de escolarização regular, constituíram os eixos de uma mudança paradigmática que se estabeleceu. Ao apresentar uma nova forma de entender e de trabalhar a aprendizagem da leitura e da escrita, a política do Ciclo Básico, com a construção de uma nova proposta de alfabetização, representou um momento de ruptura qualitativa. Por um lado, desencadeou mudanças nas práticas tradicionais em sala de aula e, por outro, reacendeu resistências. É evidente que não seria sem resistência que professores e diretores praticantes de constantes remanejamentos para constituir turmas homogê5 O Ciclo Básico iniciou-se como uma proposta política para todo o sistema estadual de São Paulo – as antigas 1ª e 2ª séries do ensino fundamental formando um único bloco, um único período, garantindo a permanência do aluno nesse ciclo sem interrupção no seu processo de aprendizagem, isto é, sem reprovação. Tal proposta correspondia à decisão política de enfrentar, já a partir dos primeiros anos de escolaridade, a questão da alfabetização e da democratização da escola; uma escola em que aproximadamente 40% das crianças não ultrapassavam a barreira da primeira série e em que grande parte dos alunos sobreviventes conservava dificuldades no uso da língua escrita ao longo das séries seguintes.

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neas passariam a perceber e valorizar a importância da heterogeneidade da classe para o próprio processo de aprendizagem de seus alunos. Daí porque a proposta teve diferentes níveis de assimilação e interpretação entre os professores, em um processo em que a “modernização” dos rótulos não conseguia esconder a permanência dos conteúdos anteriores. Mudar e resistir – talvez seja essa uma relação possível e necessária quando se pensa na radicalidade presente nas propostas de organização da escola em ciclos. A forma “escola”, a sua lógica constituída historicamente, reage à mudança de sua função social predominantemente excludente e seletiva. Assim, na análise de Freitas (2003), contrariar essa lógica é, no âmbito da sociedade atual, um processo possível apenas como resistência, o que não diminui sua importância como possibilidade, mas alerta para seus limites (pp. 34-35). E se toda mudança é movimento, a resistência à mudança é essa mobilização em sentido inverso. Mas voltemos à resposta da professora com relação à sua prática alfabetizadora no Ciclo Básico, mergulhando na riqueza do cotidiano da escola. A professora do nosso exemplo se diz “mesclada”. Dizer-se “mesclada” significaria, mesmo, uma recusa, uma resistência explícita ao Ciclo Básico e seus corolários, uma negação ao construtivismo, o descarte da avaliação formativa? Ou, sem rejeitálos diretamente, sem modificá-los, “mesclada” pode significar a subversão do professor, pelas suas maneiras de usá-los, para fins e em função de referências estranhas a eles e das quais não podia fugir? Quero problematizar essas questões considerando a mesma perspectiva com que Certeau (1995) discutia a cristianização forçada a que eram submetidos os indígenas da América do Sul, pelos colonizadores hispânicos, parecendo, por fora, submeter-se totalmente e conformar-se com as expectativas do conquistador. Certeau dirige nossa atenção para considerar que, de fato, eles “metaforizavam” a ordem dominante, fazendo funcionar as suas leis e suas representações em um outro registro no quadro da própria tradição – a força de sua diferença mantinha-se nos procedimentos de consumo. Nesse sentido, Certeau (1994) contribui para uma análise que evidencia a atividade de “fazer com”, ou seja, os movimentos astuciosos das práticas e suas maneiras de utilizar os produtos impostos por um lugar de poder. Afirma que: “(...) a presença e Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 1, p. 29-42, jul-dez. 2009

a circulação de uma representação, ensinada como o código da promoção socioeconômica (por pregadores, por educadores ou por vulgarizadores) não indica, de modo algum, o que ela é para seus usuários. É ainda necessário analisar a sua manipulação pelos praticantes que não a fabricaram” (p. 41). A organização da escola em ciclos, sua proposta de alfabetização, problematizando uma lógica escolar excludente e seletiva, materializa-se também como um processo de resistência, processo esse que deve ser valorizado pelo grau de mobilização que permite arregimentar? A professora do nosso exemplo, ao dizer-se “mesclada”, estaria manifestando uma recusa explícita ao Ciclo Básico e seus corolários? Ou, sem rejeitá-los diretamente, sem modificá-los, dizer-se “mesclada” poderia significar a subversão do professor pelas suas maneiras de usá-los, pelas maneiras de empregar os produtos impostos, para fins e em função de referências estranhas a eles e das quais não poderia fugir? Ou seja, pelas invenções cotidianas, pelas maneiras de fazer, pelas maneiras de usar os corolários de uma escola organizada em ciclos, ocorreu a incorporação de algumas de suas categorias em um quadro tradicional. À exemplo dos povos indígenas, a professora teria feito uma “bricolagem” com e no Ciclo Básico, usando inúmeras metamorfoses da Teoria, segundo seus interesses e suas próprias regras? E a segunda professora, quais sentidos articulam-se com sua “cartilha atrás da porta”? Um deles poderia ser o de sua conformização a um ensino massivo e normalizado, que efetuou uma “mestiçagem” entre o escrito e o oral? Certeau (1984, 1994) ajuda-nos a discutir essa questão importante, que tem por trás uma tradição de hierarquização social entre a atividade leitora e a escrita. Ou seja, Certeau discute o que chama “psicolinguística da compreensão”, distinguindo, na leitura, o “ato léxico” do “ato escriturístico”. As pesquisas desenvolvidas nessa perspectiva mostram que: “(...) a criança escolarizada aprende a ler paralelamente à sua aprendizagem da decifração e não graças a ela: ler o sentido e decifrar as letras corresponde a duas atividades diversas, mesmo que se cruzem. Noutras palavras, somente uma memória cultural adquirida de ouvido, por tradição oral, permite e enriquece aos poucos


O cotidiano escolar e as pesquisas em Educação

as estratégias de interrogação semântica cujas expectativas a decifração de um texto afina, precisa, corrige. Desde a leitura da criança até a do cientista, ela é precedida e possibilitada pela comunicação oral, inumerável ‘autoridade’ que os textos não citam quase nunca” (1994, pp. 263-264).

E o que representa a “cartilha atrás da porta”? Pode ser a crença de que ‘a decifração’ é que remete à atividade leitora! Então é possível questionar: Qual ou quais os sentidos do ler, qual ou quais os sentidos da leitura, se a cartilha está atrás da porta? Neste caso, talvez a leitura fique “obliterada por uma relação de forças (entre mestres e alunos, ou entre produtores e consumidores), das quais ela se torna o instrumento” (ibidem, p. 267). Já observava Marguerite Duras: “Talvez se leia sempre no escuro... A leitura depende da escuridão da noite. Mesmo que se leia em pleno dia, fora, faz-se noite em redor do livro” (citado por Certeau, p. 269). Mas “a cartilha atrás da porta” pode significar também uma “ação calculada”, uma tática, uma singularidade no ‘uso’ de regras e produtos impostos e que pode levar a possibilidades múltiplas de compreensão das práticas alfabetizadoras, a possibilidades de efetivamente se considerar os modos como os professores incorporaram, transformaram ou resistiram às orientações impostas por uma ordem social dominante. O sentido de “consumo” de Certeau (1994) traz uma contribuição para o estudo desta questão. Diz ele: “A uma produção racionalizada, expansionista, além de centralizada, barulhenta e espetacular, corresponde outra produção, qualificada de consumo: esta é astuciosa, é dispersa, mas, ao mesmo tempo, ela se insinua ubiquamente silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos próprios, mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante” (p. 39).

Ou seja, a produção da professora do nosso exemplo teria como característica “suas astúcias, seu esfarelamento em conformidade com as ocasiões, suas ‘piratarias’, sua clandestinidade, seu murmúrio incansável, em sua uma quase-invisibilidade” (ibidem, p. 94). A cartilha, que está “atrás da porta”, pode representar esta arte de utilizar

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os produtos que são impostos, ou seja, há uma invenção no cotidiano que estabelece as formas como professores e alunos, nas escolas, vão se ajustando e reorganizando esse discurso oficial – uma produção mais escondida, aquela dos ‘consumidores’, e que ‘marca o que fazem com os produtos’. Pesquisar o cotidiano escolar é justamente captar essas artes de fazer, essas operações que acontecem nas escolas, realizadas por professores e alunos. Mas não só. Pesquisar o cotidiano escolar significa um caminho de investigação pela sondagem das “vias da lucidez e da ação”. Uma sondagem que permite recuperar os aspectos contraditórios e as diversas perspectivas presentes, os múltiplos aspectos e características sociais e políticas que formam o contexto mais amplo, a partir do qual se pode discutir o desempenho de uma medida encetada pelo poder público e seus usos na escola. As invenções cotidianas que ocorrem na escola representam as diferentes formas de os professores ajustarem-se às políticas que lhes são impostas, às diferentes formas de “caça não-autorizada”6 que vão reorganizando o cotidiano de suas práticas. Quais são as representações aceitas pela escola, pelos professores e alunos7 a respeito de uma determinada política educacional? Certeau considera que são as “representações aceitas que inauguram uma nova credibilidade ao mesmo tempo em que a exprimem” (ibidem, p. 34). Como discutir uma determinada política sem considerar, em primeiro lugar, que não podemos tratar esse assunto apenas segundo certo lugar – o nosso? É preciso reconhecer que “nunca podemos obliterar nem transpor a alteridade que mantêm, diante e fora de nós, as experiências e as observações ancoradas alhures, em outros lugares” (Certeau, 1995, p. 222). Ao colocar sob suspeita alguns dos caminhos trilhados por uma determinada política, ao denunciar as inconsistências, as contradições “entre aquilo que as autoridades articulam e aquilo que delas é aceito, entre a comunicação que permitem e a legitimidade que pressupõem, entre aquilo que 6 A expressão é de Certeau (1994, p. 38), referindo-se às invenções cotidianas dos “consumidores” da “cultura oficial” - os dominados: o que não quer dizer passivos ou dóceis. 7 Tomo como referência dos processos que ocorrem na escola professores e alunos, pois são eles o foco mais visível da comunidade escolar. Mas é claro que estamos nos referindo também aos demais agentes educativos da escola e aos pais.

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elas tornam possível e aquilo que as torna críveis” (ibidem, p. 40), evidencia-se o “visível” e o “opaco” da credibilidade em torno desta determinada política. Constituindo-se objeto de reflexão dos professores, as invenções cotidianas representam as diferentes formas de os professores ajustarem-se a essa política, às diferentes formas de reorganizarem o cotidiano de suas práticas. Tais invenções do/no cotidiano vão produzindo uma “cultura”, saberes pedagógicos da escola, saberes produzidos por professores e alunos, na dialeticidade da vida cotidiana, na concretude do cotidiano escolar. Como lembra Certeau, “o estudo de algumas táticas cotidianas presentes não deve, no entanto, esquecer o horizonte de onde vêm e, no outro extremo, nem o horizonte para onde poderiam ir” (1994, p. 105). A tática é a arte do fraco, sem lugar próprio, comandada pela ausência de um poder. Considerá-la na pesquisa no/do cotidiano significa inscrever-se na “viagem de uma maneira de ver as coisas para outra [a qual] começa com esta constatação: há uma crise das representações que mina a autoridade, palavras outrora eficazes se tornaram não críveis, uma vez que não abrem as portas cerradas e não mudam as coisas” (Giard, 1995, p. 11). Como assinala uma aluna do Mestrado em Educação (2009), referindo-se às contribuições de Michel de Certeau, em uma das atividades reflexivas do semestre letivo: “(...) O cotidiano em Certeau pode ser um convite para re-olharmos o homem comum (homem ordinário) e sua inventividade, suas mil maneiras de fazer (...). A ‘arte de fazer’ (termo certeauniano) expressa uma resistência criativa, dinâmica e silenciosa do ser comum. Perceber ou considerar a existência dos ‘espaços’ dentro dos ‘lugares’ instituídos no cotidiano escolar a partir de A Invenção do Cotidiano tem se tornado um exercício, uma ‘análise gazeteira’ para mim, com outros sentidos e outras interpretações, no sentido de estar atenta para ‘práticas escamote-

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adas’ de sobrevivência dos alunos e professores” (Elaine Martins Donda, 2009).

Assim, a escuta da ‘infinidade móbil’ das táticas praticadas nas escolas inscreve-nos nesse movimento de compreender as práticas, não pelas extremidades de um aparelho técnico, mas, sim, por sua própria lógica. Assegura ao menos sua presença a título de ‘fantasmas’.

Referências Bibliográficas Certeau, M. de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis/RJ: Vozes, 1994. ______. A cultura no plural. Campinas/SP: Papirus, 1995. ______. A invenção do cotidiano: 2. Artes de fazer. Petrópolis/RJ: Vozes, 1996. CHIZZOTTI, A. O cotidiano e as pesquisas em educação. In: FAZENDA, I. (org.) Novos enfoques da pesquisa educacional. São Paulo: Cortez, 1992. pp. 85-98. DURAN, M.C.G. Ensaio sobre a contribuição de Michel de Certeau à pesquisa em formação de professores e trabalho docente. Educação & Linguagem. vol. 15. São Bernardo do Campo: Editora Metodista 2007. pp. 117-137. ______. Maneiras de pensar o cotidiano com Michel de Certeau. Revista Diálogo Educacional. vol. 7. Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR), 2007. pp. 115-128. ______. Alfabetização na rede pública de São Paulo – a história de caminhos e descaminhos do Ciclo Básico. Tese de Doutorado em Psicologia da Educação. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), 1995. GIARD, L. A invenção do possível. In: CERTEAU, M. de. A cultura no plural. Campinas/SP: Papirus, 1995. pp. 7-15. PATTO, M.H. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: T.A. Queiroz, 1993. PENIN, S. Cotidiano e escola: a obra em construção. São Paulo: Cortez, 1989. SPINK, M.J. (org.) O conhecimento no cotidiano: as representações sociais na perspectiva da psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 1995.


O estágio nos cursos de licenciatura e a metáfora da árvore Maria Socorro Lucena Lima* Departamento de Métodos e Técnicas Em Educação, Centro de Educação, Universidade Estadual do Ceará (UECE), Av. Paranjana, 1700, Itaperi, CEP 60740-000, Fortaleza, CE, Brasil, e-mail: socorro_lucena@uol.com.br

1 Introdução A atual legislação do ensino, em vigor desde 1990, vem provocando desafio aos professores dos cursos de formação de professores, no sentido de rever a questão da Prática Pedagógica e do Estágio Supervisionado, considerados elementos que se aproximam e se complementam, tendo percurso que vai do início do curso de licenciatura e caminha passo a passo em direção à sala de aula. A Prática Pedagógica e o Estágio Supervisionado, com 400 horas cada, (Resolução CNE/CP n° 2, de fevereiro de 2002), são entendidos por nós como eixos temáticos, distribuídos ao longo dos semestres letivos em três etapas consecutivas: Prática Pedagógica (I, II e III), que vai do início até a metade do curso, e mais três fases que correspondem ao Estágio Supervisionado (I, II e III) na segunda metade do curso. Considerando os limites e as possibilidades da Universidade, dos alunos, do projeto político-pedagógico dos cursos de licenciatura à aplicabilidade da legislação, defendemos uma consistência teórica, a produção do conhecimento, a relação teoria e prática, a docência e a pesquisa. Reafirmamos, assim, o compromisso com a formação docente pautada nos princípios da pedagogia dialética e nas posturas críticas e reflexivas, em que a teoria ilumina a prática e a prática ressignifica a teoria, em contexto histórico e condições objetivas de realização. Ajuda-nos a compreensão do Estágio/Prática Pedagógica a metáfora da árvore, cujas raízes representam a fundamentação teórica estudada, o tronco simboliza a pesquisa, os galhos e as folhas são as atividades desenvolvidas e os frutos representam os registros reflexivos realizados pelos estagiários.

O referencial teórico, como as raízes, sustenta e alimenta o projeto de articulação com a prática dos formadores e formandos, constituindo as bases do Estágio, como parte do projeto político-pedagógico do curso. Assim, as atividades desenvolvidas derivam de uma concepção de professor como intelectual em processo de formação. Nesse contexto, a atividade docente é práxis (Pimenta, 1996) e o Estágio, campo de conhecimento que tem a pesquisa como eixo (Pimenta & Lima, 2004). A pesquisa representa o tronco da árvore que conduz aos estudos e à concretização das idéias, transformando-as em atividades, posturas metodológicas e ações pedagógicas ligadas ao ensinar e ao aprender. A atividade docente inclui procedimentos de pesquisa e de intervenção, problematização, análise, reflexão e busca de alternativas para os problemas. Trabalham-se também a investigação sobre a identidade e a memória docente, as ações pedagógicas, o trabalho docente e as práticas institucionais, a escola, sua organização e seu movimento, o livro didático e os parâmetros curriculares situados em contextos sociais, históricos e culturais. A atenta observação pode abrir um leque de outras questões sobre o cotidiano escolar, no qual os estagiários aprendem a profissão docente e encontram elementos de sua identidade na interação e intervenção que lhes confiram reconhecimento de sua presença naquele espaço; realizando as articulações pedagógicas possíveis que os tornam sempre estagiários de novas experiências e que os façam refletir sobre a escola enquanto espaço do fenômeno educativo. As atividades do Estágio, que deverão ser mobilizadas pelos alunos, constam do trabalho de

* Atualmente professora adjunta da Universidade Estadual do Ceará. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Didática, atuando principalmente nos seguintes temas: estágio supervisionado, estágio, formação docente, formação continuada e professor reflexivo.


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campo. Essas são comparadas a flores, folhas, frutos e galhos da árvore. Para a consecução desse trabalho, são necessários os instrumentais de pesquisa: roteiros de questionários, de entrevistas e de observação. É importante destacar três momentos em sala de aula: o estudo do referencial teórico, a elaboração dos instrumentais para a coleta de dados da pesquisa de campo e a construção dos textos coletivos com os dados trazidos pelos alunos. O registro e a reflexão compreendem as experiências vivenciadas que vão permitir a elaboração de uma produção individual e coletiva de todo o processo realizado e a socialização desses conhecimentos.

2 Uma proposta A proposta que defendemos começa com a Prática Pedagógica, desenvolvida em três etapas que fazem o caminho do estudo da identidade profissional docente e se movimenta em direção à sala de aula. A primeira fase (Professor, Identidade e Memória Docente) acontece no início do curso de Licenciatura, fazendo a interface entre professores da rede pública e privada por meio de entrevistas sobre histórias de vida e investiga os fundamentos epistemológicos, filosóficos e históricos da prática de ensino. A fundamentação teórica que subsidia essa fase consta do estudo das narrativas sobre as histórias de vida e a memória dos professores sobre suas carreiras docentes. Os encontros presenciais acontecem de forma alternada, utilizando-se de um tripé composto de estudo teórico, reflexão e utilização de pesquisa de campo. A segunda fase (O professor e a escola em movimento) tem a preocupação de tornar a Prática de Ensino espaço de reflexão a partir do movimento real do espaço escolar por meio das aprendizagens do contexto: local da escola; aprendizagens de chegada: a porta ou o portão da escola; o diagnóstico da escola; a escola em movimento; a gestão escolar; os turnos, as salas especiais de ensino; a história da escola. São utilizadas, como instrumento de coleta de dados, a observação e a entrevista. Na terceira fase (O Livro Didático e os Parâmetros Curriculares) os alunos trabalham com entrevistas e observações sobre a utilização do livro didático e o estudo dos Parâmetros Curriculares de Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 1, p. 43-45, jul-dez. 2009

cada área específica de conhecimento em que ele está matriculado na Licenciatura. As três etapas da Prática Pedagógica fazem o encaminhamento dos alunos para a construção da identidade docente e para o papel do professor que tem como local de trabalho a escola e os processos de ensino-aprendizagem. As atividades são realizadas na alternância entre a escola-campo e as reuniões presenciais de ensino com pesquisa e privilegiam a produção textual com a revisão de literatura sobre os assuntos tratados. Somente após essa trajetória, que percorre a profissão, o local de atuação e os instrumentos de trabalho do professor, é que se inicia o Estágio Supervisionado em sala de aula. O Estágio Supervisionado, também dividido em três fases, poderá acontecer com dois momentos de monitoria e um de registro reflexivo. A monitoria compreende a sala de aula como espaço de aprendizagem, convivência e construção do conhecimento. Serão estudados os hábitos da sala de aula, a postura do professor, o comportamento dos alunos, o processo de ensino-aprendizagem, a relação entre alunos e a metodologia aplicada. As experiências são confrontadas com os estudos teóricos sobre as finalidades da educação na formação da sociedade humana. O registro reflexivo mostra o Estágio como reflexão da práxis, a partir do estágio como pesquisa, e a pesquisa no Estágio. A regência compreende as duas fases da monitoria e uma de registro reflexivo, que é a produção escrita em forma de trabalho monográfico sobre o processo vivenciado. O conteúdo restringe-se à produção da monografia, na qual se encontram as metodologias de investigação aplicadas, os achados da pesquisa, os pontos de reflexão e os desdobramentos desta. Para o desenvolvimento dessa fase, utilizamos como fundamentação autores como: Guimarães (2004); Libâneo (1998); Pimenta; Lima (2004); Severino (1996) e Vieira; Albuquerque (2001).

3 Conclusão Quando assumimos o professor como um intelectual em contínua construção de sua identidade profissional, as ações formativas assumem uma importância e um papel fundamental no desenvolvimento profissional docente. Para definir as características da formação contínua, partimos


O estágio nos cursos de licenciatura e a metáfora da árvore

da rede de relações que envolvem a prática dos professores: o conhecimento, a instituição, o coletivo, os alunos, a organização escolar, as relações de trabalho, a política educacional na sociedade e o momento histórico que estamos vivendo. Defendemos, então, que “(...) formação contínua é o processo de articulação entre o trabalho docente, o conhecimento e o desenvolvimento profissional do professor, enquanto possibilidade de postura reflexiva dinamizada pela práxis” (Lima, 2001, p. 45). Esse conceito tem como ponto de partida e de chegada o trabalho docente com base em dois princípios: o primeiro considera que o trabalho (do professor) é princípio educativo e o segundo está fundamentado na afirmativa de Pimenta (1994): “a atividade docente é práxis”. O Estágio em sua concepção mais ampla propõese a instrumentalizar o estagiário para a reflexão sobre o seu fazer pedagógico mais abrangente e a sua identidade profissional. Assim, estaremos conscientes de que o Estágio é um campo de conhecimento, uma aproximação do estagiário com a profissão docente e com os seus profissionais em seu local de trabalho, no concreto das suas práticas. Antônio Nóvoa, em um de seus estudos, evoca o uso pedagógico das metáforas. Que a metáfora da árvore ajude-nos a pensar melhor o Estágio curricular supervisionado.

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Referências Bibliográficas GUIMARÃES, V. S. Formação de professores: saberes, identidade e profissão. Campinas/SP: Papirus, 2004. LIBÂNEO, J. C. Adeus professor, adeus professora: novas exigências educacionais e profissão docente. São Paulo: Cortez, 1998. LIMA, M. S. L. A formação contínua dos professores nos caminhos e descaminhos do desenvolvimento profissional. Doutorado em Educação. Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), 2001. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA (MEC). CNE/ CP. Resolução n° 2, de 19 de fevereiro de 2002. Institui a duração e a carga horária dos cursos de licenciatura, de graduação plena, de formação de professores da Educação Básica, em nível superior. PIMENTA, S.G. O estágio na formação de professores: unidade teoria e prática? São Paulo: Cortez, 1994. ______. (org.) Pedagogia: ciência da educação? São Paulo: Cortez, 1996. PIMENTA, S.G.; LIMA, M. S. L. Estágio e docência. São Paulo: Cortez, 2004. SEVERINO, A. J. “O pedagogo no terceiro milênio: enfrentando os desafios postos pelas tramas do saber, do fazer e do poder”. In: Identidade: o pedagogo. São Paulo: FEUSP, 1996. VIEIRA, S. L.; ALBUQUERQUE, M. G. M. Política e planejamento educacional. Fortaleza/CE: Editora Demócrito Rocha, 2001.

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Efficacité des mécanismes de représentation des parents d’élèves: équité ou égalité? Gilles Monceau* CIRCEFT-ESCOL, Université Paris 8, 2 rue de la Liberté, 93526, Saint-Denis, Cedex, A427 e-mail: Gilles.Monceau@univ-paris8.fr Dans les écoles maternelles et élémentaires françaises, des élus représentent les parents dans les conseils d’école. Ils sont les interlocuteurs privilégiés des directeurs. Cependant, les recherches montrent avec insistance que ces représentants de parents appartiennent à des catégories sociales qui entretiennent avec les enseignants une proximité socio-culturelle importante. Le phénomène est également présent dans les écoles relevant de l’éducation prioritaire où, lorsque des parents de classes moyennes investissent le quartier (gentrification), ils deviennent les représentants des autres parents malgré leur faible importance numérique. Dans les ZEP où cette évolution ne se produit pas, ce sont souvent les directeurs d’école qui, devant l’absence de candidats, sollicitent de futurs élus. Dans ces situations, la légitimité conférée par l’élection ne recouvre pas la représentativité sociologique. Comment se pose alors la question de l’équité de traitement de tous les parents par des équipes enseignantes? Comment les dispositifs de coopération parents/enseignants peuvent-ils intervenir sur cette situation? mots clés: Coopération. Inégalité scolaire. Inégalité sociale. Représentation. Parents d’élèves,

Eficácia dos mecanismos de representação dos pais de alunos: equidade ou igualdade? Nas escolas maternas e elementares francesas, dos eleitos representam os pais nos conselhos de escola. São os interlocutores privilegiados dos directores. Contudo, as investigações mostram com insistência que estes representantes de pais pertencem à categorias sociais que mantêm com os professores uma proximidade sociocultural importante. O fenómeno está igualmente presente nas escolas que são da competência da educação prioritária onde, quando pais de classes médias investem o bairro (gentrification), tornam-se os representantes dos outros pais apesar da sua fraca importância numérica. Nos ZEP onde esta evolução não se produz, são frequentemente os directores de escola que, na frente da ausência de candidatos, solicitam futuros eleitos. Nestas situações, a legitimidade conferida pela eleição não abrange a representatividade sociológico. Como põe-se então a pergunta da equidade de tratamento dos pais por equipas que ensinam? Como os dispositivos de cooperação pais/professores podem intervir sobre esta situação? palavras-chave: Cooperação. Desigualdade escolar. Desigualdade social. Representação. Pais de alunos.

* Professor do Departamento de Ciências da Educação da Universidade de Paris 8 e coordenador do L’Axe socio-clinique institutionnel de l’équipe de recherche ESSI da mesma universidade.


Efficacité des mécanismes de représentation des parents d’élèves: équité ou égalité?

1 Introduction Ce texte a été précédé d’une communication orale au colloque international “Efficacité et équité en éducation”, organisé à l’Université de Rennes 2 du 19 au 21 novembre 2008 par l’Association des Enseignants et Chercheurs en Sciences de l’Education, le laboratoire CREAD et l’IUFM de Bretagne. Il devrait permettre aux lecteurs brésiliens de se familiariser avec la problématique française des relations entre l’Ecole et les parents d’élèves. Les situations sont bien sûr très différentes dans les deux pays mais les institutions scolaires y sont traversées par les enjeux politiques du traitement des inégalités scolaires par la mise en œuvre de programmes de type compensatoire.1 En France, le slogan “donner plus à ceux qui ont moins” a présidé au lancement de la politique des Zones d’éducation prioritaires (ZEP) en 1982. Il ne s’est probablement jamais réellement traduit dans les faits en ZEP. Comme le constatent Martine Kherroubi et Jean-Yves Rochex2, très peu d’études fiables sont disponibles sur cette question et cellesci sont dispersées dans leurs objets (personnels, locaux, ressources annexes). Ces travaux, que complètent des monographies d’établissements et de ZEP, indiquent que l’éducation dite prioritaire ne l’est pas réellement devenue, du moins pour ce qui est de la dimension financière. Sachant que “les dépenses de personnel représentent les trois quarts de la dépense d’éducation”3 et que par ailleurs les enseignants affectés en ZEP cherchent majoritairement à s’en éloigner (au point que le ministère de l’Education nationale a mis en place un système de bonification d’ancienneté pour tenter de les retenir durant quelques années) on comprend par exemple que l’éducation prioritaire ne concentre pas les enseignants les plus expérimentés qui sont aussi les mieux rémunérés. 1 Cecilia Coimbra et Maria-Livia do Nascimento, “Programas compensatórios: seduções capitalistas?” in Esther Maria M. Arantes, Maria Livia do Nascimento, et Tania Mara Galli Fonseca. (Org.). Práticas psi inventando a vida. Niterói, EDUFF, 2007, p. 123-132. 2 Dans la seconde partie d’une note de synthèse sur les recherches portant sur les politiques de ZEP: “La recherche en éducation et les ZEP en France 2. Apprentissage et exercice professionnel en ZEP: résultats, analyse, interprétations”, Revue française de pédagogie, n° 146, 2004, p. 115-190. 3 Martine Jeljoul, “Le coût de l’éducation en 2006. Evaluation provisoire du compte”, Note d’information n°07-41, MENRT, 2007.

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Les moyens attribués aux ZEP ne paraissent importants que si l’on fait abstraction des inégalités structurelles précédemment évoquées. Plus largement, les ressources consacrées à la scolarité varient d’un territoire à un autre par les effets conjugués de la décentralisation et de la variété des ressources locales. Le principe d’équité, qui s’est substitué dans de nombreux discours à celui de l’égalité, est donc lui-même resté en grande partie inopérant. La mobilisation des acteurs locaux, en particulier des enseignants, n’est pas non plus parvenu à compenser cet état de fait, comme le montrent les différents bilans établis sur les résultats de la politique d’éducation prioritaire4. Cette tension entre égalité et équité prend aujourd’hui une coloration nouvelle avec la montée des discours politiques sur la “discrimation positive”5 qui, en faisant porter le regard sur l’individu plutôt que sur le territoire ou l’établissement, se focalisent sur une efficacité scolaire mesurée d’abord par les résultats et les trajectoires individuels des élèves. C’est dans ce contexte que se pose la question de la représentativité des parents d’élèves élus, se déclinant alternativement dans ses dimensions politique et sociologique.

2 Démarche et terrains d’enquête Nos observations résultent d’une recherche menée pour le compte de la Fondation de France dans le cadre de son programme “Enfance”. Cette communication s’appuie plus particulièrement sur deux des quatre enquêtes réalisées pour cette recherche6. L’une a été conduite par Brigitte Larguèze et l’autre par moi-même. Sept écoles ont fait l’objet d’un travail plus approfondi. Cinq d’entre elles avaient reçu un prix de la Fondation de France 4 Constat posé par exemple par une étude portant sur les dix premières années d’existence des ZEP qui souligne que ce bilan décevant est d’abord celui d’une politique: Roland Bénabou, Francis Kramarz et Corinne Prost, “Zones d’éducation prioritaire: quels moyens pour quels résultats? Une évaluation sur la période 1982-1992.” Economie et statistique, n°380, 2004. 5 Pour ces glissements successifs de l’égalité à la discrimination positive en passant par l’équité, cf. Martine Kherroubi, “L’éducation prioritaire”: entre “école pour tous” et “discrimination positive”, L’école et ses transformations (titre encore sous réserve), Lhôtel Hervé et Prairat Erick, Presses Universitaires de Nancy, à paraître en 2009. 6 Recherche coordonnée par Martine Kherroubi et dont les résultats ont été publiés dans: Martine Kherroubi (dir.), Des parents dans l’école, ERES, Ramonville Saint Agne, 2008.

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Gilles Monceau

pour leur action de coopération avec les parents. Six étaient classées ZEP mais ceci était susceptible d’être remis en cause pour deux d’entre elles. Ces écoles ZEP (aux publics hétérogènes) étaient situées en zone urbaine (à Paris, en banlieue parisienne et dans une ville moyenne), l’école hors ZEP se trouvait en milieu semi-rural et recevait une population d’enfants d’employés, d’ouvriers et de cadres moyens. Nos travaux dans ces sept établissements ont combiné des observations directes de différentes situations scolaires (entrée et sortie des enfants, classe, récréation, ateliers, réunions entre enseignants, entre enseignants et parents), la consultation des projets écrits des écoles et la réalisation d’entretiens individuels et collectifs. Conduit durant une année scolaire, ce travail permet de faire avancer l’analyse concernant la problématique de la représentativité bien que celle-ci n’ait pas été notre axe central. C’est la tension, partout présente, entre “parents d’élèves” (élus ou participants à une association de parents) et “autres parents” (moins présents dans les établissements) qui nous a conduit à examiner la coopération parents/enseignants sous cet angle.

3 Des dynamiques sociales différentes selon les quartiers et leurs effets sur la démocratie représentative scolaire

Le rapport de l’Inspection générale portant sur La place et le rôle des parents à l’école, paru en 2006, résume ainsi l’évolution et la disparité des taux de participation selon les catégories sociales des parents et les territoires: “A la dernière rentrée scolaire, l’effritement du taux de participation des parents à l’élection de leurs représentants, déjà observé à la rentrée 2004, s’est poursuivi. La proportion de votants enregistrée est inférieure de 7 points dans le premier degré et de 6 points dans le second degré à celle de 1999, année qui marque le pic de la participation des parents. Le taux actuel est de 43,7% dans le premier degré et de 26,7% dans le second degré (avec une grande diversité selon la nature des établissements: 33,8% dans les collèges, 23,8% dans les LEGT, 13,5% dans les LP). (…) dans les établissements visités par la mission de la relation entre la participation aux élections et la catégorie socioprofessionnelle (CSP) des parents (augmentée d’un facteur 3 par exemple dans un lycée de la région parisienne quand l’on passe de parents ouvriers ou au chômage à ceux qui ont une situation de cadre). (…) les résultats sont nettement inférieurs à la moyenne nationale dans les départements sensibles: en Seine-SaintDenis, l’écart est de 12 points dans le premier degré, de 20 points dans le second degré !”8

Dans les écoles maternelles et élémentaires, des élus représentent les parents dans les conseils d’école. Ils sont les interlocuteurs privilégiés des directeurs. Cependant, les recherches montrent avec insistance que ces représentants de parents appartiennent à des catégories sociales qui entretiennent avec les enseignants une proximité socio-culturelle importante7. Les taux de participation aux élections de parents dans les conseils d’école du premier degré ont augmenté de 1991 à 1999 pour diminuer depuis 2004, ceci en oscillant entre 43 et 50%. Ces taux sont bien inférieurs dans les ZEP où ils sont d’ailleurs devenus des indicateurs de la capacité de l’école à mobiliser les parents autour d’elle.

Ces observations en recoupent bien d’autres. Les projets des écoles situées en ZEP mentionnent des taux de participation généralement inférieurs à la moyenne nationale. Parmi les sept écoles auxquelles il est fait référence ici, quatre voient des parents se présenter aux élections sans l’intervention des enseignants (l’école en milieu semi-rural hors ZEP et les trois écoles ZEP qui reçoivent une population nouvelle plus aisée). Dans les trois autres, également situées en ZEP, ce sont les directeurs qui sollicitent des candidatures. La mission de l’Inspection générale (2006) a mentionné cette pratique dans son rapport. Plutôt que d’en interroger la légitimité institutionnelle, elle explique ce phénomène par l’affaiblissement de la vie associative en général et à

7 Martine Barthélémy, « Des militants de l’école. Les associations de parents d’élèves en France “, Revue française de sociologie, 26, n° 3, juillet-septembre 1995, p. 439-472.

8 Alain Warzee et coll., La place et le rôle des parents dans l’école (rapport au ministre de l’Education nationale et de la recherche), octobre 2006, p.22.

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la transformation qu’elle croit percevoir de la nature de l’action des associations de parents d’élèves. La sur-représentation des classes moyennes dans les conseils d’école, constatée au niveau nationale par les recherches portant sur les associations de parents d’élèves, se produit également dans les établissements qui relèvent de l’éducation prioritaire lorsqu’il y a hétérogénéité (mixité?) sociale. Lorsque des parents de classes moyennes investissent un quartier considéré comme populaire (gentrification), ils deviennent rapidement les représentants des autres parents dans les instances scolaires, malgré leur faible importance numérique. Cette arrivée coïncide souvent avec des mutations urbaines (rénovations voire reconstructions des immeubles, implantations d’équipements culturels) qui transforment la physionomie même du quartier. Ces configurations génèrent des dynamiques sociales sur lesquelles s’appuient les acteurs, les directeurs d’école en particulier. Dans d’autres quartiers qualifiés de “sensibles”, où cette mixité sociale est absente, la dynamique sociale est inverse à la précédente, avec une stagnation voire une paupérisation des situations familiales. Cette tendance est dominante dans les quartiers relevant de l’éducation prioritaire9 et recoupe plus largement les observations faites sur les zones sensibles. L’Observatoire national des Zones urbaines sensibles (ZUS) notait ainsi, dans son rapport de 2005:

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à un coût souvent moindre que dans les autres quartiers”.10

La concentration des difficultés socio-économiques a des effets mesurables sur l’état sanitaire des élèves, comme le remarque l’Observatoire de la pauvreté et de l’exclusion sociale.11 Mais les mouvements de population ont aussi des effets sur la représentativité des élus aux conseils d’écoles. Soit la légitimité conférée par l’élection ne recouvre pas la représentativité sociologique12 (quand les classes moyennes représentent les plus défavorisées) soit elle n’est pas le fruit d’une démarche autonome des candidats (lorsque ce sont les directeurs qui recherchent eux-mêmes les candidats). Comment se pose alors la question de l’équité de traitement des parents dans leurs relations à l’école? Comment les dispositifs de coopération parents/ enseignants agissent-ils sur cette situation?

4 Des mécanismes complexes entre accaparemment par les classes moyennes, instrumentalisation par les directeurs et retrait des parents les plus défavorisés

“Les départs des ZUS n’ont été que partiellement compensés par de nouvelles arrivées: pour 100 personnes qui ont quitté les ZUS, 59 sont arrivées. Ces arrivées correspondent pour leur majorité à une entrée dans le parc locatif social. Les entrants sont plus défavorisés que les personnes qui ont quitté les ZUS: peu qualifiés, plus souvent en emploi précaire, ils sont plus exposés au risque de chômage et au déclassement professionnel. (…)Toutefois, le fait d’arriver en ZUS ou de changer de logement en restant dans ces quartiers doit aussi être lu comme une possibilité d’améliorer ses conditions de logement,

Le défaut de représentativité sociologique des parents élus pose certaines difficultés qui peuvent nuire à l’efficacité de l’école, en particulier parce qu’elle peut éloigner davantage encore les parents les moins familiers de l’institution scolaire. Nos enquêtes empiriques ont identifié différentes situations de ce type. Ce phénomène n’a cependant rien de mécanique et l’instauration, par les enseignants, d’une politique de coopération impliquant l’ensemble des parents peut contrer cette tendance en favorisant une relation plus directe entre les parents et l’enseignants de leur enfant. Ce sont alors les représentants de parents qui se trouvent mis de côté. Un directeur d’école élémentaire nous a ainsi expliqué que, dans son école, les difficultés autour de la coopération avec les parents ont montré qu’il y avait deux populations de parents dans l’école: “classe moyenne et catégorie défavorisée”. Des

9 Cf. les constats également réalisés par différentes recherches qui expliquent par cette aggravation des difficultés sociales (chômage notamment) le fait que l’investissement de moyens supplémentaires dans les zones d’éducation prioritaire n’ait pas produit d’augmentation des résultats scolaires.

10 Rapport de l’Observatoire national des zones urbaines sensibles, 2005, p. 119. 11 Rapport de l’Observatoire de la pauvreté et de l’exclusion sociale, 2005-2006, p. 98-99. 12 Ce qui n’est pas propre à l’élection des représentants de parents.

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parents de la première catégorie ont cherché à intervenir sur les enseignants en investissant les instances de représentation mais aussi les différents dispositifs de coopération. Ceci a éloigné les autres parents de l’école qui ont alors douté des compétences des enseignants en qui ils avaient confiance auparavant. Le fait de consulter régulièrement les parents sur le fonctionnement de l’école serait ainsi interprété par certains comme un aveu d’incompétence de l’équipe enseignante. Cette impression s’ajouterait au sentiment que les enseignants ont une relation élective avec un groupe de parents. Ce directeur nous a rapporté que l’équipe enseignante avait repris l’initiative après qu’un conflit avec le groupe des parents les plus investis se soit soldé par le départ de ceux-ci. D’après lui, la grande majorité des parents ont alors trouvé que l’école était “plus à l’écoute”. Les nouveaux élus au conseil d’école n’appartiennent plus à des associations de parents structurées. Ils n’animent pas non plus d’autres associations du quartier. Là où les groupements de parents sont autonomes par rapport aux enseignants et de fait moins sociologiquement représentatifs des autres parents, il est fréquent qu’ils se présentent néanmoins comme les garants de l’intérêt collectif. Ainsi, dans la continuité logique de ce qui fait leur choix de scolariser leurs enfants dans le quartier, les parents de classe moyenne insistent sur leur engagement au service de tous. Un élu FCPE a ainsi déclaré: “Pour notre part, c’était un engagement plutôt collectif, faire en sorte que globalement l’institution bouge, qu’il y ait moins de gamins qui restent sur le bord de la route. Nous, nos gamins ils marchent bien, ce sont de bons élèves”. Cet engagement, présenté comme dépassant les enjeux locaux, prend en compte l’hétérogénéité sociale du quartier: “Nous, ce qu’on essaye au maximum, parce qu’on sait bien qu’on n’est pas représentatifs de l’ensemble des parents, on essaye d’une certaine façon de “mouiller” des parents d’élèves d’origine étrangère”. Ce manque de représentativité sociologique se trouve également formulée par une autre représentante FCPE: «A ma connaissance, on n’a pas d’adhérents de milieu plus populaire. On a des familles étrangères mais de classe moyenne”. Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 1, p. 46-53, jul-dez. 2009

Lorsque les parents de classes moyennes représentent les autres, ils sont désignés comme étant “les parents d’élèves”. C’est ainsi que les parents les moins présents à l’école deviennent «les autres parents”, quand bien même ils sont majoritaires. Cette pratique est extrêmement courante et les enseignants comme les parents que nous avons interrogés sur ce point perçoivent rarement l’impact que cela peut avoir sur leurs relations. Dans un entretien collectifs avec vingt-cinq parents d’une école classée ZEP, dont les ¾ se sont dit habituellement peu présents à l’école, nombreux disaient ne pas se sentir concernés lorsqu’ils recevaient des informations adressées aux “parents d’élèves”. Ces mêmes parents revendiquaient pourtant d’être considérés comme des parents d’élèves au même titre que les élus. Pour tous les parents, la relation individuelle avec l’enseignant de leur enfant est au centre de leur demande, ceci même lorsqu’ils investissent également des relations plus collectives. Les opportunités relationnelles créées par les activités de coopération avec les enseignants permettent aux parents qui s’y investissent d’être mieux informés et d’intervenir plus directement sur la scolarité de leur propre enfant. Une déléguée de parents explique ainsi qu’en côtoyant l’enseignante de son fils au conseil d’école et dans d’autres réunions, elle a pu établir avec elle une relation suffisamment étroite pour oser lui demander «des trucs” pour faciliter sa scolarité (comment aider l’enfant à mieux tenir son stylo par exemple). C’est le cas également pour d’autres parents qui apportent une aide de service ou matérielle à l’école. Le rapprochement parents/enseignants est l’un des mobiles les plus cités par les enseignants à propos de l’organisation de la coopération. Les actions les plus efficaces pour réaliser ce rapprochement ne sont pas les plus visibles ni les plus “politiquement correctes”. Elles privilégient les principes de la démocratie directe plutôt que la démocratie représentative et du fonctionnement réglementaire institué. C’est le cas de réunions auxquelles tous les parents sont activement invités à participer, oralement voire téléphoniquement. Certaines de ces pratiques semblent confiner au “paternalisme” lorsque le directeur sollicite des candidats aux conseils d’école, prépare lui-même les bulletins de vote puis organise ensuite les réunions


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des parents élus pour préparer avec eux leurs interventions au conseil. Les parents que nous avons interrogés et qui ont été choisis de cette manière, le ressentent comme une gratification. Le conseil d’école devient alors un outil dans les mains du directeur. Il l’utilise pour susciter de l’engagement. Nous avons observé que certains “parents d’élèves” réalisent ainsi de véritables carrières dans l’institution scolaire. D’abord participants à quelques actions organisées par l’école, ils peuvent ensuite être sollicités pour siéger au conseil d’école, puis se voir proposer une fonction rémunérée de parents relais, accompagnée de formations. Une mère de famille rencontrée durant l’enquête, après avoir acceptée de siéger en conseil d’école, s’est vue proposer des remplacements sur des postes d’ATSEM13. A l’opposé, nous avons rencontré des situations où des parents fortement organisés développaient une action autonome par rapport aux enseignants, allant même jusqu’à intervenir sur le fonctionnement interne non seulement de l’école mais aussi de l’équipe enseignante. Dans l’une des écoles, un conflit a opposé le nouveau directeur à une partie des parents FCPE qui prenait le parti des enseignants les plus anciens avec lesquels celui-ci était entré en conflit:

élection au conseil d’école comme une validation de leur légitimité à intervenir sur l’établissement. Cette mobilisation peut aussi rendre des services importants aux enseignants comme lorsque les parents s’organisent en association pour prendre en charge les enfants en dehors du temps scolaire selon les indications des enseignants ou bien pour obtenir des moyens des collectivités locales ou bien de l’Education nationale. Il y a là une dynamique de minorité active assez classique14 qui peut être tour à tour inquiétante et rassurante pour les enseignants et les directeurs. Confronté à ces interlocuteurs “trop compétents”, plusieurs directeurs avec lesquels nous avons mené des entretiens, mettent en doute, en raison de leur non représentation sociologique, la légitimité des élus de classe moyenne à parler au nom des “autres parents”. La politique d’évaluation des projets d’école est aussi un élément qui incite des directeurs à “coopter” des parents lorsque les sièges au conseil ne sont pas pourvus spontanément. Une augmentation du taux de participation à l’élection et celle du nombre de sièges pourvus sont en effet des indicateurs valorisants leur action en l’objectivant. C’est ce qu’a expliqué une directrice d’école travaillant dans un quartier abandonné par les classes moyennes:

“Nous, devant ça, on a été une très grande majorité de représentants de parents d’élèves à lui faire comprendre que cela ne pouvait plus continuer comme ça. Et quitte à choisir, on préférait garder l’équipe d’enseignants qui était là depuis un certain temps et qui faisait un bon travail.”

“Cette année, une autre chose positive c’est que j’ai quatre mamans au conseil d’école. On a eu plus de 50% de participation aux élections des parents délégués. Avec une seule liste de parents qui se présentent en indépendants”.

Dans ce rapport de force, les représentants de parents ont également fait intervenir la hiérarchie de l’Education nationale. Cette situation s’est produite dans plusieurs écoles où nous avons enquêté, elle participe d’un jeu relationnel dans lequel alternent des moments de tensions et des moments de soutien réciproque. Les groupes de représentants de parents élaborent des stratégies, se répartissent des rôles, jouent sur des relations individuelles et collectives, soutiennent et attaquent alternativement les enseignants. Ils utilisent leur 13 Agent Territorial Spécialisé en Ecole Maternelle. Voir à propos du rôle des ATSEM: Pascale Garnier, “Des “relais” entre école et familles: les ATSEM”, Des parents dans l’école. Op. cit.

Cette directrice qui, comme d’autres directeurs rencontrés, parle de “ses” mamans pour désigner les mères d’élèves de son école, est particulièrement satisfaite d’être parvenue d’une part à pourvoir les sièges de représentants de parents au conseil d’école et d’autre part à faire progresser le taux de participation aux élections. Elle déborde ainsi son rôle de garante de l’application des textes réglementaires pour agir directement sur la production d’un taux de participation qui entrera positivement en compte dans l’évaluation de son action. Nos observations dans les différentes écoles ont fortement convergé pour montrer le renforcement de la place central du directeur lorsqu’une poli14 Serge Moscovici, Psychologie des minorités actives, Paris, PUF, 1979.

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tique de coopération avec les parents est mise en œuvre. Les préoccupations des directeurs d’écoles primaires et la réalité de leurs fonctions les conduisent alors à se rapprocher des chefs d’établissements du secondaire15. Solliciter des candidats à l’élection des représentants de parents c’est falsifier le principe d’une représentation autonome des parents, le directeur choisissant de fait ses interlocuteurs. Mais c’est aussi utiliser un dispositif de représentation collective comme dispositif de formation de parents initialement en retrait. Nous avons ainsi rencontré des parents qui disent avoir beaucoup appris sur l’école mais aussi sur la politique locale en participant au conseil d’école. Ces dynamiques sont inverses à ce que d’autres travaux16 ont montré dans le cas de parents de classes moyennes pour qui l’investissement dans l’école prolonge un engagement associatif, politique ou syndical antérieur. Il faut aussi remarquer que certains parents ainsi sollicités pour être candidats disent leur déception d’avoir découvert que les enseignants ne parlaient pas de pédagogie au conseil d’école. Ils préfèrent alors ne pas se représenter l’année suivante pour préférer des activités qui leur permettent d’entrer dans la classe.

5 Donner des clés aux parents qui ne les possèdent pas déjà? La formule d’Anne-Marie Chartier, selon laquelle les enfants de milieu populaire doivent “apprendre l’école pour apprendre à l’école”, est reprise dans la note de synthèse déjà citée portant sur les recherches menées en ZEP17. Ce seraient des “savoirs invisibles concernant moins les contenus que les formes d’apprentissage et les modalités du travail d’étude propres à l’école et à la “forme scolaire” la forme scolaire qu’ils (les parents) devraient ainsi s’approprier.” Ces savoirs invisibles seraient requis par l’école comme allant de soi “sans guère travailler à en doter ceux qui n’en disposent pas, et que les enfants d’origine plus favorisée ont déjà en 15 Anne Barrère, Sociologie des chefs d’établissement. Les managers de la République, PUF, Paris, 2006. 16 Ceux de Martine Barthélémy en particulier. 17 Martine Kherroubi et Jean-Yves Rochex, op. cit., p. 137.

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partie découverts et construits grâce à leurs familles.18” Ces savoirs invisibles et ces implicites sont constitutifs de l’institution19. Les politiques et les dispositifs de coopération que nous avons étudiés se donnent souvent pour objectif explicite de “donner des clés” aux parents afin que ceux-ci comprennent mieux l’école et puissent y agir dans l’intérêt de leur enfant. Il convient cependant d’émettre une réserve sur ce lien souvent fait entre meilleure connaissance de l’institution scolaire par les parents et meilleure participation de ceux-ci dans celle-là. La politologue Annick Percheron, s’appuyant sur des travaux nord américains et français, remarque ainsi que l’augmentation des connaissances dont disposent les enfants des milieux défavorisés (ou afro-américains pour les Etats-Unis) sur l’Ecole favorise davantage leur distanciation que leur investissement20. Cet auteur indique par ailleurs que les recherches montrent que la socialisation politique se fait toujours par une influence bien plus forte de la famille que de l’Ecole sur l’enfant. Mieux comprendre l’institution scolaire peut donc aussi inciter des parents à se retirer du jeu quand ils comprennent qu’ils en sont les perdants. Le dévoilement par les chercheurs des mécanismes sociaux (en particulier dans le cas de la théorie de la reproduction sociale) n’entraîne pas automatiquement une mobilisation de ceux qui les subissent. Cette critique a aussi été portée par d’anciens élèves de Bourdieu21. Dans les situations observées, les rapprochements parents/enseignants, que favorisent les politiques de coopération, ont des effets de familiarisation qui autorisent certains parents à prendre place dans le fonctionnement scolaire. Mais pour d’autres, l’effet le plus direct est de les amener à constater que leur éloignement du monde scolaire 18 Ibid. p. 137 19 Gilles Monceau, «Como as instituições permeiam as práticas profissionais. Sócio-clínica institucional e formação de professores», Pesquisa em educação. Vol 1. Possibilidades investigativas/formativas da pesquisa-ação, Selma Garrido Pimenta et Maria Amélia Franco Santoro (orgs), Ed. Loyola, 2008, pp. 27-73. Voir également: Ahmed Lamihi et Gilles Monceau (dir.), Institution et implication, Syllepse, Paris, 2002. 20 Annick Percheron, La socialisation politique, A. Colin, Paris, 1993, p.148 sq. 21 Nathalie Heinlich, Pourquoi Bourdieu, Gallimard, Paris, 2007.


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est encore plus important qu’ils ne l’imaginaient. Ceci peut les conduire à se protéger de l’emprise des enseignants en simulant délibérément des attitudes de soumission. Se rendre acceptables peut alors conduire à se présenter comme incompétents. Une mère disait ainsi, dans un entretien collectif: “Ici c’est plutôt bien vu de demander conseil” (à propos de la manière de coucher son enfant par exemple). Elle avait auparavant expliqué son refus de voir les enseignants empiéter sur l’éducation familiale tout en insistant sur la nécessité d’avoir une bonne relation avec eux.

6 Conclusion En démocratie représentative, il est connu que si l’égalité formelle des droits est posée par principe, la représentation politique des différentes catégories sociales n’est pas équitable (au sens d’une proportionnalité). De la composition sociologique des assemblées parlementaires à celles des conseils d’école, toutes les enquêtes montrent une sous représentation des catégories les moins dotées socialement, économiquement et culturellement. L’efficacité des dispositifs de coopération comme moyen de favoriser la scolarité des enfants en permettant aux parents de mieux connaître l’école ne passe pas toujours par le respect des principes du système représentatif. L’attribution de droits collectifs nouveaux aux parents d’élèves (attribution possible d’une salle dans les locaux scolaires, meilleure information des représentants aux conseils d’école) n’induit pas, en soi, davantage d’équité. L’effet est même inverse dans la plupart des cas puisque cela apporte encore plus d’opportunités à ceux qui sont déjà les mieux dotés. Ce constat est fait par les équipes des écoles où une pratique de coopération est conduite dans le long terme. Les modalités d’information et de participation y vont dans le sens d’un lien plus direct et diversifié avec les parents: information orale à la porte de l’école,

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sollicitation pour des petites aides matérielles ou des “coups de main” techniques, utilisation des instances représentatives dans un but de formation. La mise en œuvre d’une politique de coopération dans l’établissement n’a donc d’efficacité “automatique” ni sur la pacification des rapports avec les parents ni sur leur participation à la vie collective de l’école en vue d’une meilleure compréhension des implicites de l’institution scolaire. Là où ce dernier effet est produit, nous constatons que les équipes enseignantes, mais plus directement les directeurs d’école, transgressent certains principes de la démocratie représentative pour instrumentaliser le conseil d’école (en faire un instrument) au service de leur politique de coopération. La pression évaluative les y incite également. Là où des parents sont spontanément volontaires pour représenter “les autres”, des tensions variables se manifestent avec les enseignants. Les directeurs se présentent alors souvent comme garants de l’équité de traitement de tous les parents et une triangulation se met en place entre directeur, “parents d’élèves” (élus ou militants) et “autres parents”. Les élus “autonomes” interviennent, selon les situations et les lieux, en appui ou en opposition aux enseignants. Ils peuvent aussi jouer un rôle de médiation entre enseignants et “autres parents” bien qu’ils reconnaissent fréquemment être peu en relation avec ces derniers. L’efficacité d’une politique se mesure à l’atteinte des objectifs qu’elle se fixe. Les projets des écoles où nous avons enquêté partent souvent du constat d’un éloignement d’une partie des parents par rapport à l’école. Ce sont donc ces derniers qui font préférentiellement l’objet de la politique de coopération. Le conseil d’école est alors souvent utilisé comme un outil parmi d’autres. Les notions de représentativité politique et de représentativité sociologique sont souvent mises en opposition dans les stratégies des acteurs bien qu’elles ne s’opposent pas d’un point de vue sémantique.

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Considerações acerca do conceito de Epistemologia da Prática* Silas Borges Monteiro** Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação, Instituto de Educação, Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Avenida Fernando Correa da Costa, s/n, Coxipó, CEP 78060-900, Cuiaba, MT, Brasil, e-mail: silas@terra.com.br Este texto procura levantar a problemática em torno da recepção e uso do termo epistemologia e suas conseqüências para a construção do conceito de epistemologia da prática. Identifica sua gênese em Ferrier, em meados do século XVIII e seu desenvolvimento, no modo como o conhecemos hoje, a partir da virada do século XIX ao XX e mostra alguns caminhos ambíguos pelos quais passou. Entende, conforme compreensão de Heidegger, que epistemologia, de algum modo, remete à idéia de “entender-se com-alguma-coisa”, logo, supõe uma relação vivencial com o objeto da pesquisa. Conclui que pelo fato de que os conceitos são elementos operadores de idéias, e como tais, criam sentido e orientam o pensamento e a prática, essa é uma questão fundamental. Anotam-se no texto as negligências que aparecem, por vezes, no uso inadequado dos conceitos no que concerne ao ambiente conceitual onde eles são germinados: isso pode redundar em certa fragilidade nas abordagens teóricas em educação, por exemplo. Por fim, conceitos são idéias operadoras às quais se vinculam vivências; logo, há vivências que estão vinculadas às idéias. Com isso se quer dizer que epistemologia traz em seu funcionamento uma vivência de entender-se-com-algo. Palavras-chave: Epistemologia. Epistemologia-da-prática. Filosofia da Educação.

Considerations about the concept of Epistemology of Practice This essay tries to raise the problematic question about reception and use of the term epistemology and its consequences for the construction of the concept of epistemology of practice. It identifies its genesis in Ferrier, by the middle of the 18th century and its development, in the way we found today, from the turn of the 19th century to 20th, and displays some ambiguous roads where it passed. It understands, according to Heidegger, that epistemology, therefore, remits to the idea of understanding with-something: it supposes an experiential relationship with the object of research. It concludes from the fact that concepts are operative elements of ideas, and as such, they create sense and guide the thought and practice, that is a fundamental subject. It is written down in the text the negligence that appears, per times, in the inadequate use of the concepts in what concerns to the conceptual atmosphere where they are germinated: this can result in certain fragility in the theoretical approaches in education, for instance. Finally, concepts are operative ideas to which experiences are linked; therefore, there are experiences that are linked to ideas. Thereby this wants to say that epistemology brings in its operation an experience of understanding-with-something. Keywords: Epistemology. Epistemology of Practice. Philosophy of Education. * Este texto é uma versão modificada do trabalho apresentado no XIII Endipe, em abril de 2006, sob o título: “Análise crítica do conceito de epistemologia da prática na produção teórica da educação”. É resultado do projeto de pesquisa “Formação de professores e suas contribuições para a re-invenção da escola”, coordenado pela professora Selma Garrido Pimenta, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - Auxílio financeiro e desenvolvido de 2003-2007. ** Doutor em Educação pela FE-USP. É professor da Universidade Federal de Mato Grosso nos cursos de Pedagogia, Filosofia e Psicologia e no mestrado e doutorado do Programa de Pós-Graduação em Educação do Instituto de Educação da UFMT (PPGE/IE/UFMT). Pesquisa sobre o diálogo entre Didática e Filosofia e as implicações para a Formação de Professores. É Coordenador do GEDFFE/IE-UFMT: Grupo de Estudos e Pesquisas em Didática, Filosofia e Formação de Professores e é membro do GEFEPE/FE-USP coordenado pela professora Dra. Selma Garrido Pimenta.


Considerações acerca do conceito de Epistemologia da Prática

1 Estabelecimento e constituição do problema Michel Fichant nos dá a notícia de que, na França, o termo epistemologia ingressa no cenário acadêmico por meio do livro Identidade e Realidade, de Émile Meyerson, de 1907, que escreve no prefácio: “A presente obra pertence, pelo seu método, ao domínio da filosofia das ciências ou epistemologia, segundo um termo suficientemente apropriado e que tende a tornar-se vulgar”1. Previsão relativamente cumprida, o termo tem se tornado popular em círculos bem definidos. É recorrente no ambiente das chamadas ciências naturais – local de origem de Meyerson, químico de formação –, presente de forma significativa na área da filosofia da ciência, na psicologia, no direito e nas teorias educacionais. Chama-nos a atenção encontrar a presença deste termo em áreas marcadas pelas humanidades, espaço pouco provável para acertos conceituais oriundos do paradigma da física, epistemológico por excelência. Historicamente falando, o neologismo epistemologia, transliterado do grego episteme, para uso em filosofia, foi efetuado pelo escocês James Frederick Ferrier em seu Institutes of Metaphysics, de 1854. Epistemology seria um dos ramos da filosofia. Na compreensão de Ferrier, a filosofia seria dividida em três ramos: a) Epistemology ou teoria do conhecimento; b) Agnoiology ou teoria da ignorância (entendido como não-conhecer); c) Ontology ou teoria do ser2. De influência idealista, talvez oriundo de Fichte e Berkeley, considera que o princípio e fim último do pensar filosófico é o absoluto, enquanto sujeito conhecedor do objeto e objeto conhecido pelo sujeito. Sua tese central compreende que a consciência-de-si é operada a partir do próprio corpo, como objeto; funcionam ao mesmo tempo as idéias de um sujeito e de um objeto, pois são indissociáveis; sujeito e objeto são conjuntamente apresentados à cognição. O correlato ao neologismo “epistemologia” é o termo alemão Wissenchaftslehre, usado por Fichte em seus textos de 1794. O filósofo alemão pretendia pensar a constituição de um saber fundamental para o conhecimento da ciência, afinal “toda ciência 1 Meyerson, Identité et Réalité, p. XIII. 2 Ferrier, Institutes of Metaphysicis, § 61, p. 52.

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tem de ter um princípio”3. Essa espécie de “ciência da ciência”, algo como a cumpridora do papel que a filosofia não realizou, “ela é, como tal, não algo que existisse independente de nós e sem nossa intervenção, mas, pelo contrário, algo que só pode ser produzido pela liberdade de nosso espírito atuando segundo uma direção determinada – se é que há uma tal liberdade de nosso espírito”4. Aqui se entrecruzam dois conceitos para a doutrina-da-ciência: o de fundamento da ciência e o de liberdade; ambos, Fichte pretende resolver com seu sistema. Não deixa de ser intrigante: a relação entre ciência e liberdade. Por quê? Se seguirmos Fichte em suas razões, veremos que a doutrina-da-ciência é o fundamento último de toda ciência. As ciências, livremente criadas pelo espírito humano, assumem cores e contornos próprios ao exercício dessa livre operação racional. Por isso, a liberdade cria as ciências. A doutrina-da-ciência funda-as: “é o lugar de todos os conceitos científicos e indica a estes suas posições em si mesmo e por si mesmo”5. Por isso, a doutrina-da-ciência contém o meramente necessário; se este é necessário sob todos os aspectos, também o é quanto à quantidade, isto é: é necessariamente limitado. Todas as outras ciências visam à liberdade, tanto a de nosso espírito quanto a da natureza pura e simplesmente independente de nós. Se esta é liberdade efetiva e se não está absolutamente sob nenhuma lei, também não se pode prescrever a ela nenhum campo de ação, o que, de fato, teria de ocorrer por uma lei. Portanto, seu campo de ação é infinito6. A liberdade da construção plural das ciências impõe, como tarefa primordial, o estabelecimento de uma “ciência da ciência”, com o apanágio de “demonstrar tudo o que é demonstrável – exceto aquele princípio primeiro e supremo, todas as pressuposições têm de ser derivadas”7. No limite, a doutrina-da-ciência é fundamento de todo saber humano. Esse saber que sustenta todo saber, ou a doutrina-da-ciência, tem na liberdade a capacidade de criar outros saberes ou ciências. Daí podermos seguir Torres Filho no entendimento de que a doutrina-da-ciência possui um programa de três 3.  Fichte, Sobre o conceito da doutrina-da-ciência, p. 13. 4.  Fichte, Sobre o conceito da doutrina-da-ciência, p. 15. 5.  Fichte, Sobre o conceito da doutrina-da-ciência, p. 20. 6.  Fichte, Sobre o conceito da doutrina-da-ciência, p. 25. 7.  Fichte, Sobre o conceito da doutrina-da-ciência, p. 32

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momentos complementares: a reflexão subjetiva – como autoconsciência e liberdade; a reflexão objetiva – como captação da ciência do saber humano; a reflexão absoluta – indo além da distinção entre forma (como o estabelecimento do sistema na filosofia transcendental, a de Kant, por exemplo) e conteúdo (como conjunto das leis do saber). Fichte propõe um saber radical, a reflexão sobre a reflexão, por onde se elabora o saber fundante8. Portanto, de acordo com Torres Filho, “a doutrina-da-ciência como empreendimento científico deve ser: a) uma ciência, isto é, uma construção sistemática a partir de um princípio; b) a ciência suprema, isto é, aquela cuja verdade não depende das outras e que contém os princípios de todas as outras, porque a certeza de seu princípio é incondicionada”9. A gênese do conceito de epistemologia, na filosofia de Fichte, é, na verdade, um programa de trabalho para estabelecimento do saber que se funda a si mesmo e a todos os outros. Não se coloca como crítica das ciências, mas sim como fundamento de todas elas. Aliado a este conceito, vemos o esforço em superar a dicotomia entre sujeito e objeto, além de dar continuidade ao programa de designação do sujeito como pólo consciente da teoria do conhecimento. Em um tempo um pouco mais recente, o termo epistemologia torna-se popular no ambiente acadêmico. Tem sido usado como sinônimo de teoria do conhecimento, assim como foi para Ferrier e para os atuais filósofos analíticos. Na filosofia, o problema do conhecimento está posto desde a sua fundação. Era visto sob uma questão fundamental: é, ou não, possível conhecer? Em um dos extremos dessas questões estava o ceticismo, fundado por Pirro, contemporâneo de Aristóteles, cuja concepção básica pode ser entendida como uma reação ao dogmatismo presente em algumas concepções filosóficas. Apesar de o problema cético residir em questões de decisão moral, o entendimento mais recorrente é que o ceticismo está ligado à impossibilidade do conhecimento. Muito embora tenhamos algumas formas de ceticismo no período grego e helênico, podemos resumir a expressão cética à convicção – em uma espécie de platonismo invertido – da supremacia da aparência em relação 8 cf. Torres Filho, O espírito e a Letra, p. 41. 9 Torres Filho, O espírito e a Letra, p. 41.

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à essência. Uma vez que a verdade está situada para além da aparência dos fenômenos, não temos nenhum dispositivo humano que garanta a superação absoluta dessa aparência. Logo, não temos acesso à verdade. Logo, não temos garantia do nosso conhecimento como conhecimento verdadeiro. Do outro lado, a concepção clássica do conhecimento é que este, apesar dos limites das sensações humanas, naquilo que elas acessam ao que é aparente, a nossa razão, ajudada por procedimentos geometricamente estabelecidos, nos dá segurança de que o resultado das investigações racionais pode ser considerado conhecimento verdadeiro. A partir dessas duas matrizes, a filosofia tem aprendido a lidar com essas concepções em uma espécie de síntese que combina elementos céticos com aqueles que podemos chamar de empírico-racionais. Para Wittgenstein, “Epistemologia é a filosofia da psicologia”10. Parece ser essa a compreensão de Piaget, afinal, em seu texto “A epistemologia genética”, faz a defesa da construção filosófica do desenvolvimento da cognição, área peculiar da psicologia11. 10 Wittgenstein: Notes on logic, p. 106. Essa anotação vem em um conjunto de notas em que o lógico austríaco afirma seu entendimento sobre a filosofia no contexto da produção lógica da ciência. Por isso ele afirma: “Na filosofia não há nenhuma dedução: ela é puramente descritiva. A filosofia não dá nenhum retrato da realidade”. Por isso, ela “não pode confirmar nem refutar proposições científicas”. Por ser “lógica e metafísica”, a filosofia busca sua base na lógica. Daí concluir que, quando se fala em epistemologia, esta deve se referir ao campo da psicologia. Devemos nos lembrar que Wittgenstein foi estudante de Russell. Para ele, a epistemologia não deveria tomar conotação psicológica, como será mostrada neste texto mais adiante. Isso indica a distância entre o lógico inglês e seu discípulo. Para o autor do ­Tractatus, “A filosofia é a doutrina dos formulários lógicos de proposições científicas (não somente de proposições primitivas). A palavra ‘filosofia’ deve sempre designar algo sobre ou sob mas não ao lado das ciências naturais. Julgamento, controle e questionamento estão no mesmo nível; mas todos têm em comum a forma proposicional, que é a que nos interessa. A estrutura da proposição precisa ser reconhecida, o resto vem dela. Mas a língua ordinária esconde a estrutura da proposição; nela, as relações parecem como predicados, predicados como nomes etc. Os fatos não podem ser nomeados”. 11 A epistemologia genética de Piaget procura estabelecer “a construção filosófica do desenvolvimento cognitivo”. Piaget deseja propor uma maneira de entender como o homem conhece. Tem fundamento organicista, entendendo o desenvolvimento humano como processo evolutivo e adaptativo. Tanto que ele fala em assimilação como o encontro do “novo” com “esquemas mentais disponíveis” e a acomodação como a adaptação e a modificação de tais esquemas. Os esquemas são resultantes da maturação do Sistema Nervoso Central e de adaptações decorrentes de sucessivos processos de equilíbrio. Assim o biólogo suíço entende cognição. Seus níveis podem ser mensurados por meio de testes psicométricos. Os níveis cognitivos definem as possibilidades de aprendizagem.


Considerações acerca do conceito de Epistemologia da Prática

Lebrun em seu artigo “A idéia de Epistemologia” inicia com as seguintes questões, que pretende responder: “É o epistemólogo realmente dono de um território próprio? É razoável que a reflexão sobre a natureza e o objeto de uma ciência esteja a cargo de uma disciplina distinta desta? Evidentemente que não, nos será respondido imediatamente, pois é certo que a atividade científica passa sem qualquer comentário filosófico. Vamos supor (na melhor das hipóteses) que o epistemólogo tenha uma competência suficiente relativamente à ciência de que ele trata, o que exatamente a sua investigação pode ter como objeto? Sobre a psicologia da descoberta? Sobre os métodos que dão conta da fecundidade da ciência? Melhor dizer: ou sobre circunstâncias extrínsecas ao trabalho científico ou sobre pressupostos que o científico, se o julgava útil, seria certamente melhor colocado para estipulá-lo... Então, para que serve a epistemologia? (...) A idéia de epistemologia só designaria então uma pequena impostura que a ‘filosofia’ se teria permitido, desde o fim do século XIX, aproximadamente12?”

Se isso não for, há que interrogar: em que a epistemologia nos ajuda a pensar?

2 A construção contemporânea do conceito de epistemologia Pelo que tenho notícias, o termo epistemologia chega ao século XX a partir de duas tradições: a inglesa e a francesa. A francesa pode ser remetida à obra de Émile Meyerson, como já foi visto no início deste texto. Seu método científico sustenta-se na compreensão de que “a causa de um fenômeno é a lei, a regra empírica que governa toda a classe dos fenômenos análogos”13. Apesar da aparência dogmática da afirmação, entende que “com referência ao fenômeno diretamente observado, a lei é sempre, apenas, mais ou menos aproximada; com a ajuda de correções sucessivas, tratamos de adaptar progressivamente o conjunto cada vez mais estreitamente à verdadeira marcha da natureza”14. 12 Lebrun, L’idée d’Épistémologie, p. 7. 13 Meyerson, Identité et Réalité, p. 1. 14 Meyerson, Identité et Réalité, p. 22.

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Por certo, o autor ainda sustenta uma concepção de ciência como resultado da observação empírica dos fenômenos naturais. Em seu livro, Meyerson examina o método de produção do conhecimento. Para ele, compete à epistemologia analisar os métodos usados na produção das ciências, assim como compete à ciência explicar e resolver fenômenos indicando a causa, isto é, a razão pela qual se produz. Entende como sendo a causa de um fenômeno a sua lei, ou regra empírica que o governa; e lei como uma construção ideal que expressa o que poderia acontecer em determinadas condições; com isso, a ciência tem caráter prospectivo e projetivo. A relação estabelecida entre fenômeno e causa é feita com o intuito de prevê-los. Conclui-se, então, que ciência é uma regra de ação que tem êxito, pois é efetiva, não fazendo sentido ação sem previsão. Logo, epistemologia é investigação do método, é filosofia das ciências, pois a fonte é empírica, com o fim de compreender a realidade; intuito da ciência: reconhecer identidades. Na tradição inglesa, o autor de referência é Bertrand Russell. Usa o termo epistemologia em seu livro Um ensaio sobre os Fundamentos da Geometria, escrito em 1897. Nesse texto afirma ser Kant o criador da epistemologia moderna. Para o filósofo alemão, a geometria é uma certeza apodídica (necessária). Logo, esta é a priori (pois independe da experiência) e é subjetiva (da ordem das estruturas da razão). Devemos nos lembrar que a priori é aplicado a qualquer parte do conhecimento que, embora talvez eliciado da experiência, é logicamente pressuposto na experiência; subjetivo é aplicado a qualquer estado mental cuja causa imediata repousa não no mundo exterior, mas dentro dos limites do sujeito. Na visão de Russell, Kant intercambia os termos a priori e subjetivo, dando a ideia de serem sinônimos. Infere-se, assim, que ambos são remetidos ao campo epistemológico e ao campo da Psicologia. Apesar disso, Russell usa a palavra a priori sem qualquer implicação psicológica. Ora, a sustentação do conhecimento científico se dá pela postulação do empírico, assim como ocorre na geometria; logo, todo conhecimento científico é empírico-dedutivo por princípio. Finalmente, epistemologia é a análise lógica de conhecimentos empírico-dedutivos. Entendo ser necessário retornar ao texto de Gérard Lebrun. Ele admite que “a epistemologia Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 1, p. 54-64, jul-dez. 2009


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como saber emancipado só pode nascer sobre um fundo de positivismo – e limitando cuidadosamente o sentido desta palavra ao que se diz e se elabora no Curso de Filosofia Positiva de Comte. Pois é ali, nos parece, que aparece pela primeira vez bem nitidamente a necessidade da tarefa epistemológica”15. Não há muito pudor em dizer isso, ao menos aos frequentes fóbicos dos conceitos tradicionais. Então, é admissível falar em epistemologia, mas nos seguintes termos: “Eis, então, pelo menos duas condições necessárias ao surgimento da epistemologia como disciplina bem fundada. Vamos resumi-las. A primeira: que cada ciência seja considerada em primeiro lugar no que ela tem de diferencial e de insubstituível, que ela seja almejada como um objeto dotado de um funcionamento singular. A segunda: que cada ciência, em vez de aparecer como uma constelação de “verdades”, dê-se como tema possível de um exame histórico ou filológico. A) Histórico: como o deixa entrever, ainda que nebulosamente, o elogio que Kant tece a Tales e a Galileu, as ciências são tantas aventuras contingentes (da razão... se não se pode dispensar uma personagem) e suas proposições podem ser tratadas como eventos. B) Filológico: é permitido conferir a elas o estatuto de um texto e de olhar doravante cada uma como um corpus de fórmulas (enunciados, protocolos, direções de pesquisa...) no qual foi depositado um trabalho coletivo, e de que cada articulação expressa uma escolha ou uma decisão. Vamos enunciar melhor esta segunda condição: que tenha uma ‘história das ciências’ implica que a palavra ‘épistasthai’ designe uma aventura – que tenha uma ‘epistemologia’ implica que ela designe uma estratégia. E nada mais16”.

concluir, penso que Heidegger oferece-nos outra pista, muito mais filológica, ao sentido de episteme: “O que diz epistêmê? O verbo que lhe corresponde é epistasthai, colocar-se diante de alguma coisa, ali permanecer e deparar-se, a fim de que ela se mostre em sua visão. Epistasis significa também permanecer diante de algo, dar atenção a alguma coisa. Esse estar diante de algo numa permanência atenta, epistêmê, propicia e encerra em si o fato de nós nos tornarmos e sermos cientes daquilo diante do que assim nos colocamos. Sendo cientes podemos, portanto, tender para (vorstehen) a coisa em causa, diante da qual e na qual permanecemos na atenção. Poder tender para a coisa significa entender-se com ela. Traduzimos epistêmê por entender-se comalguma-coisa”17.

Se seguirmos Lebrun, encontraremos uma agenda de trabalho do epistemólogo; apoiado nas construções históricas dos conceitos e no trato com os discursos produzidos da ciência. Com isso, a idéia de epistemologia recai sobre exame dos discursos – eventos – produzidos ao longo da história, sustentados em uma forma de pensar essa produção, pensar como crítica da própria produção. Para

Novamente, caímos no campo do discurso compreensivo. Mas que não fiquem de lado as questões metodológicas. Não se entende-algo sem estratégia de aproximação. Faz pouco sentido aprofundar a distância entre essas áreas do saber, pois quaisquer que sejam as diferenças de textura entre essas formações que dividimos grosseiramente entre “ciências exatas” e “humanas”, o epistemólogo, aqui e ali, acha como seu tema apenas quando ele tenta compreender como isso se articula, como isso funciona nessa região teórica para que, desse terreno movediço, surjam às vezes esses maciços de enunciados relativamente estáveis que serão honrados depois com o nome de ciências; ele está em casa somente quando ele “cava” abaixo do que poderia se chamar a cientificidade recebida18. São regras que são estabelecidas. E essas devem ser revisadas com frequência. Uma ciência só se torna objeto epistemológico quando está entendido que cada uma das disciplinas que a compõem só tem uma unidade: a de um trabalho produtivo normalizado por um conjunto de regras revisáveis, e que não são todas obrigatoriamente formuladas claramente. No olhar do epistemólogo, nenhuma disciplina científica poderia ter outra unidade a não ser essa, eminentemente provisória e instável – e não seria um paradoxo sustentar que um epistemólogo, hoje, só pode almejar à cientificidade com a

15 Lebrun, L’idée d’Épistémologie, p. 13. 16 Lebrun, L’idée d’Épistémologie, p. 15.

17 Heidegger, A doutrina heraclítica do logos, p. 204. 18 Lebrun, L’idée d’Épistémologie, p. 20.

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Considerações acerca do conceito de Epistemologia da Prática

condição prévia de eliminar esses monstros de identidade forjados pelos manuais e pela vulgarização: “a ciência”, “uma ciência”...19. Podemos ficar como sendo o entendimento dos discursos que explicam/ interpretam a diversidade de eventos com os quais nos havemos.

3 O conceito de epistemologia na Educação Não tenho argumentos definitivos para afirmar a origem do termo na Educação, mas há indícios de que foram três as trilhas que conduziram o termo ao debate na Educação. A primeira, por leitores de Jean Piaget, principalmente pelo texto Epistemologia genética; a segunda, por leitores de John Dewey, influenciados pelo movimento escolanovista; a terceira trilha é de leitores de Álvaro Vieira Pinto. Jean Piaget foi acolhido no meio como grande renovador das teorias da aprendizagem. Se essa afirmação soa meio dogmática, tão pouco é totalmente infundada, pois o pensamento epistemológico da psicologia alimentou as discussões do ensinoaprendizagem, na fase psicologizante das teorias educacionais, como se vê no trabalho de Maria da Penha Villalobos, Didática e epistemologia: sobre a didática de Hans Aebli e a epistemologia de Jean Piaget, publicado em 196920. Tenho a impressão de que os textos de Piaget ajudaram a consolidar o uso do vocábulo na literatura em Educação. Nota-se também na literatura certo encontro entre o conceito de dialética (usado no contexto do debate acerca do conhecimento) e o termo epistemologia, entendido do seguinte modo: “Epistemologia é a teoria do conhecimento válida e, mesmo que esse conhecimento não seja jamais um estado e constitua sempre um processo, esse 19 Lebrun, L’idée d’Épistémologie, p. 16. 20 Piaget, com sua Epistemologia genética, procurou sustentar a gênese da construção do conhecimento como sendo um processo de interação entre o sujeito epistêmico e o meio onde vive, relacionando esses componentes dialeticamente no desenvolvimento do processo cognitivo. Em suas palavras, “de uma parte, o conhecimento não procede, em suas origens, nem de um sujeito consciente de si mesmo nem de objetos já constituídos (do ponto de vista do sujeito) que a ele se imporiam. O conhecimento resultaria de interações que se produzem a meio caminho entre os dois, dependendo, portanto, dos dois ao mesmo tempo, mas em decorrência de uma indiferenciação completa e não de intercâmbio entre formas distintas” (p. 6).

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processo é essencialmente a passagem de uma validade menor para uma validade superior. Resultado disso é que a epistemologia é necessariamente de natureza interdisciplinar, uma vez que tal processo suscita, ao mesmo tempo, questões de fato e de validade. Se se tratasse apenas de validade, a epistemologia se confundiria com a lógica: o problema, entretanto, não é puramente formal, mas chega a determinar como o conhecimento atinge o real, portanto quais as relações entre o sujeito e o objeto. Se se tratasse apenas de fatos, a epistemologia se reduziria a uma psicologia das funções cognitivas e esta não é competente para resolver as questões de validade. A primeira regra da epistemologia genética é, pois, uma regra de colaboração: sendo o problema o de estudar como aumentam os conhecimentos, temos, então, em cada questão particular, de fazer cooperar psicólogos que estudam o desenvolvimento como tal, lógicos que formalizam as etapas ou estados de equilíbrio momentâneo desse desenvolvimento e especialistas da ciência, que se dedicam ao domínio considerado; acrescentar-se-ão, naturalmente, matemáticos que asseguram a ligação entre a lógica e o domínio em questão e especialistas em cibernética que garantem a ligação entre a psicologia e a lógica. É em função, pois, mas apenas em função, dessa colaboração que as exigências de fato e de validade poderão, umas como outras, ser respeitadas21”.

Devemos ter em conta que Piaget estudou filosofia com André Lalande, que, por sua vez, compartilhava, com certas diferenças, com Émile Meyerson a crença de que todo espírito humano é guiado na sua progressão por único princípio de identidade, chegando a distinguir na história das ciências e da moral uma razão constituída, e feita de múltiplas leis e conceitos de alcance cada vez mais universal, mas que podem nascer e desaparecer durante essa história, e uma razão constituinte, composta da ação permanente desse único princípio. Isso coloca Piaget em diálogo com uma das tradições de construção do conceito de epistemologia: aquela criada por Émile Meyerson, leitor crítico do positivismo, 21 Piaget, Psicologia e epistemologia: por uma teoria do conhecimento. p. 7.

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de que compete à epistemologia ser uma filosofia da ciência. Pode-se ainda anotar uma segunda trilha feita pelo conceito de epistemologia: a reflexão filosófica da Educação produzida por John Dewey. Em sua filosofia da Educação, na única ocorrência do termo no livro (publicado em 1916), ele trata como sinônimas as expressões “epistemologia” e “teoria do conhecimento”22. Isso o coloca – mesmo que não totalmente adequado – na tradição analítica da filosofia23. Usado nessa publicação de 1916, em 1938 publica Lógica. A teoria da investigação. Há indícios – em razão da pouca ocorrência do termo em seus escritos – que o conceito de “epistemologia” vai sendo substituído pelo de “teoria da investigação”, o que significa dizer que conhecer poderia ser entendido por uma aquisição de experiências válidas para a conduta humana. Logo, explicar o conhecimento é explicar os processos pelos quais os seres humanos examinam suas crenças e decidem seu comportamento. Por outro lado, o problema epistemológico põe-se da seguinte maneira: é possível uma ciência da prática? Essa questão é abordada por Mazzotti. Para ele, a Pedagogia seria essa ciência que estuda a prática. Sua pesquisa baseia-se nos estudos de Piaget. Daí, seguindo o raciocínio desses trabalhos, Mazzotti pensa em termos de filosofia da ciência da educação. Podemos encontrar, com algum esforço, proximidade entre Schön e as afirmações de Mazzotti. Schön pensa, com o termo epistemologia da prática, na formação profissional; sua questão de base seria: como formar um profissional, tendo como base um conhecimento profissional, que é eminentemente prático. Propõe o termo epistemologia da prática para se referir àqueles conhecimentos profissionais do mundo da prática. Até aqui, parece aproximar-se de Mazzotti. Contudo, como já foi visto, a referência piagetiana possui contornos diversos da analítica – à qual Schön está vinculado. Uma ópera pelo sentido da filosofia da ciência, ao estilo dos franceses leitores de Meyerson. Schön insere-se na tradição analítica de origem inglesa, tal qual os leitores de Russell; 22.  Dewey, Democracy and Education. p. 293. 23 Devemos ter em conta que o inglês Bertrand Russell foi severo crítico do pragmatismo americano de James e Dewey. Isso pode ser verificado nas obras: Pragmatismo (1909) e A filosofia de William James (1910).

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portanto, pensa em uma teoria do conhecimento, cuja questão central é: como é possível conhecer em determinadas circunstâncias. Esse ponto eu gostaria de enfatizar: uma coisa é questionar acerca da possibilidade do conhecimento prático; outra coisa é interrogar sobre qual a sustentação de determinada prática que almeja ser científica. A terceira trilha percorrida pelo termo epistemologia veio dos trabalhos de Álvaro Vieira Pinto. Em seu texto Ciência e existência ele trata especificamente do conceito, entendido como teoria da ciência (p. 69). De acordo com Dermeval Saviani, na Introdução do livro de Vieira Pinto, Sete lições sobre educação de adultos, escrito em abril de 1982, o educador faz uma relato de como tomou conhecimento de Vieira Pinto e de como seu Ciência e existência foi usado na formação de uma importante geração de intelectuais brasileiros; entre eles destaco o trabalho de Selma Garrido Pimenta que faz frequentemente uso do termo em suas discussões sobre a Didática.

4 A recepção do conceito de epistemologia da prática No livro Didática e formação de professores, Selma Garrido Pimenta traz ao debate “a importância da discussão epistemológica” acerca das ciências da Educação. Aqui, parece dar continuidade ao debate que Mazzotti já havia posto a partir de suas leituras de Piaget24. Contudo, Pimenta25 sustenta sua argumentação sobre Vieira Pinto, de quem tira a seguinte afirmação: “o exame dos problemas epistemológicos que a penetração no desconhecido mundo objetivo suscita, a determinação da origem, poder e limites da capacidade perscrutadora da consciência, (...) não podem ficar à parte do campo de interesse intelectual do pesquisador, que precisa conhecer a natureza do seu trabalho, porque este é constitutivo da sua própria realidade individual”. Vieira Pinto é de tradição marxista, pelo viés fenomenológico, o que lhe dá uma conotação um pouco diferente das duas principais correntes que vimos mostrando neste texto: a francesa e a analítica. Em uma dissertação de Mestrado, defendida em 1996, na Faculdade de Educação da USP, sob orientação 24 Mazzotti, Pedagogia: elementos para sua determinação, 1993. 25 Pimenta, Para uma re-significação da Didática. pp. 27-28.


Considerações acerca do conceito de Epistemologia da Prática

de Antonio Joaquim Severino, a autora, Edjane de Andrade Silva, assim escreve no resumo de seu trabalho: “Álvaro Vieira Pinto entendia que não se deve fazer ciência apenas pela ciência, mas se deve fazer ciência com consciência, ou seja, o papel intrínseco da ciência é o de aperfeiçoar as condições de vida do ser humano, o que ela não vinha fazendo. Para ele, o conhecimento perde significado se não contribuir decisivamente para libertar a humanidade em relação à repressão, ignorância e inconsciência. A ciência tem como finalidade última o melhoramento das condições de vida do homem, em decorrência do fato de ser o mais perfeito conhecimento dos fenômenos da realidade social”.

Se seguirmos essa interpretação, Vieira Pinto tem como tarefa refletir sobre a produção da ciência entendida como um instrumento de melhorar as condições de vida do ser humano, principalmente naquilo que o mantém consciente da situação social em que se encontra, visando à sua autonomia. Assim, ele afirma: “Para o país que precisa libertar-se política, econômica e culturalmente das peias do atraso e da servidão, a apropriação da ciência, a possibilidade de fazê-la não apenas por si, mas para si, é condição vital para a superação da etapa da cultura reflexa, vegetativa, emprestada, imitativa, e a entrada em nova fase histórica que se caracterizará exatamente pela capacidade, adquirida pelo homem, de tirar de si as idéias de que necessita para se compreender a si próprio tal como é e para explorar o mundo que lhe pertence, em benefício fundamentalmente de si mesmo”26.

Parece-me que essa é a principal razão da adesão de Pimenta à leitura de Vieira Pinto – além da influência de seu orientador de mestrado e doutorado, professor Dermeval Saviani –, qual seja: a produção de uma ciência da prática, no caso da Educação, que tenha sentido na transformação social. Em 2000, Pimenta incorpora efetivamente o termo “epistemologia da prática” em um trabalho intitulado “A pesquisa em Didática – 1996 a 1999”. Nesse texto, indica a fertilidade do conceito para aprofundar as 26 Vieira Pinto, Ciência e existência. p. 4.

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análises da prática em sala de aula, com suas importantes contribuições para a Didática. Contudo, alerta para o fato de que, apesar de superar o discurso ideológico da não produção do conhecimento da prática educacional, pode estar limitado “porque não adentra o fenômeno na sua concretude e, por isso, não capta as suas contradições e as suas possibilidades” (p. 94). Se por um lado o conceito de epistemologia da prática afirma a autonomia do sujeito (como ela aprendeu a reconhecer em Vieira Pinto), por outro corre “o risco da tentação psicologizante e/ou da fluidez característica de algumas análises pós-modernas” (p. 94); essa reflexão ela já fazia em ocasião da publicação de seu livro O pedagogo na escola pública, de 1988 (pp. 89-90). Com isso ela tem razão, pois associa o discurso da epistemologia da prática de Donald Schön com a tradição escolanovista de John Dewey. Entrando por outra trilha, em um artigo de 2000, Maurice Tardif escreve sobre a epistemologia da prática (Revista Brasileira de Educação), republicado com alterações em 2002 sob o título: “Saberes profissionais dos professores e conhecimentos universitários – Elementos para uma epistemologia da prática profissional dos professores e suas conseqüências para a formação docente”. No texto procura abordar, sob o ponto de vista histórico, as questões que têm sido suscitadas acerca dos saberes profissionais de professores e as relações entre esses saberes e os conhecimentos universitários. Para essa análise, vale-se do conceito de “epistemologia da prática profissional”, desdobrando-o em suas implicações para o ensino e a pesquisa. Tardif, assim como Pimenta no texto já aludido, entende que a gestação do conceito de epistemologia da prática deu-se no cerne do movimento de profissionalização dos professores, que vem passando a Europa e as Américas a partir da década de 70. Afirma: “Chamamos de epistemologia da prática profissional o estudo do conjunto de saberes utilizados realmente pelos profissionais em seu espaço de trabalho cotidiano para desempenhar todas as suas tarefas27.” Vou analisar essa afirmação. Entretanto, uma palavrinha antes. De acordo com Deleuze e Guattari: “Todo conceito remete a um problema, a problemas sem os quais 27 Tardif, Saberes profissionais dos professores e conhecimentos universitários. p. 255.

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não teria sentido, e que só podem ser isolados ou compreendidos na medida de sua solução”2828. São os componentes do conceito que o qualifica na medida em que se ordenam de modo a dar-lhe originalidade e pertinência ao seu propósito, qual seja, fazer ressoar “problemas que são os nossos, com nossa história e, sobretudo, com nossos devires”29. Com o conceito, um contorno é criado, configura o que está sendo, o que acontece, ou melhor, a edificação de um acontecimento que sobrevoa todo vivido. “Cada conceito talha o acontecimento, o retalha a sua maneira”30. Ora, se epistemologia é estudo – provavelmente porque Tardif entende logos como estudo –, a episteme seria o conjunto (grifo do autor). De certo modo, o autor entende que estes estão dados, pois se estuda o conjunto de saberes. Pela pesquisa – que é a proposta operadora do autor – são estabelecidos os saberes que são “utilizados realmente”. Finalmente, com esse conjunto dos saberes utilizados realmente, os profissionais desempenham todas as suas tarefas. Por essa afirmação, nota-se que o autor pretende, com o conceito de epistemologia da prática profissional, exaurir as possibilidades de práticas docentes. Seria como se fosse uma compreensão última acerca da docência, lembrando, em parte, o projeto filosófico aristotélico realizado na Metafísica. O que quero dizer é que o conceito proposto por Tardif escapa da noção contemporânea de epistemologia estabelecida no final do século XIX, aproximando-se mais do idealismo alemão. A utilização do termo por Tardif, parecendo vincular-se à tradição francesa, na verdade embaralha seu sentido. Sumariamente, entendo que o conceito de epistemologia da prática tem seu vínculo original na tradição analítico-pragmatista, do modo como foi cunhado por Donald Schön. Sua fertilidade permitiu ampliar o debate acerca da profissionalização docente. Ao mesmo tempo, há um esforço teórico em explicar as possibilidades da compreensão da profissão de professor a partir de seu interior; esse suporte poderá vir das análises epistemológicas das ciências da Educação. 28 Deleuze e Guattari, O que é filosofia? pp. 27-28 29 Deleuze e Guattari, O que é filosofia? p. 40. 30 Deleuze e Guattari, O que é filosofia? p. 47.

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5 Conclusão: Em que o debate contribui? Parece ser uma questão menor dedicar-se ao exame conceitual de um determinado termo. Estou convencido do contrário. Os conceitos são elementos operadores de idéias, e como tais, criam sentido e orientam o pensamento e a prática. Quando se fala em pesquisa, em nosso caso, em pesquisa na Educação, o tom acentua-se. Na medida em que a área da Educação tem construído sua pesquisa nos últimos anos, e por ser uma área de pesquisa complexa, por tomar como objeto a prática educativa, debater acerca dos conceitos que são construídos a partir das pesquisas, toma importância crescente. Nóvoa já denunciava o excesso de discurso em contrapartida à carência de práticas efetivas na educação31. A meu ver, parte do problema reside na carência de substância conceitual na construção dos discursos dos pesquisadores; estes são produzidos sem o necessário rigor conceitual. Falam e usam termos sem o compromisso de investigá-los nos platôs32 que os fundam: o disco onde rodam as idéias, o solo onde germinam os pensamentos, as cetras das assinaturas. Com respeito à pesquisa feita neste texto, concluo que o termo epistemologia da prática tem sido negligenciado em relação ao ambiente conceitual onde germinou, qual seja, a filosofia analíticopragmatista. Portanto, quando se fala em reflexão, o conceito operador é o de investigação de Dewey, isto é, a solução de problemas oferecida pelo pensamento lógico. Pouco tem a ver com o sentido de reflexão originário do materialismo dialético. Com isso quero dizer que a prática da epistemologia de Schön não é práxis. Isso, certamente, não diminui a importância das ponderações de Schön, a não ser que tratemos concepções teóricas como códigos de fé. Se a contribuição de Schön tem sido evidente no contexto educacional, basta que ajudemos seus leitores a compreender o que disse para não tomá-lo fora do que ele pretendeu afirmar. 31 Nóvoa, Os professores na virada do Milênio, 1999. 32 Uso com pouco pudor um termo de Deleuze e Guattari: “Chamamos platô toda multiplicidade conectável com outras hastes subterrâneas superficiais de maneira a formar e estender um rizoma” (Mil platôs, p. 33). Para os autores, ideias estabelecem-se tal como rizoma (um tipo de caule subterrâneo, na linguagem botânica), ou seja, como ampliação do ambiente original onde este cresce. Aplico o termo platô a este solo onde se estende o rizoma.


Considerações acerca do conceito de Epistemologia da Prática

Essa questão remete a outra: na medida em que não temos sido cautelosos na utilização dos conceitos, nossas pesquisas podem correr o risco da fragilidade de sustentação. Penso que podemos “sulcar” sobre o caminho arado por Lebrun: a epistemologia remete a um exame histórico e analítico das ideias. Em nosso caso, as pesquisas em Educação devem sustentar-se em princípios operadores dessa natureza. O exame feito no conceito de epistemologia remete a noções que precisam ser consideradas com mais atenção: foi cunhado com fortes signos positivistas, que significa dotar de sentido empírico às suas produções. Isso quer dizer que uma epistemologia da prática não poderá passar ao largo do que exprime o pensamento empírico acerca da prática docente. Com isso, os métodos e procedimentos deverão considerar com mais seriedade essa possibilidade. Se assim não for, a sustentação advirá do preciso uso dos termos, considerando o ambiente conceitual onde germinou e quais as marcas principais de sua assinatura. Aqui me refiro às questões de método de pesquisa. Um terceiro e último ponto: ao considerarmos que os conceitos são ideias operadoras, a partir deles vincula-se uma experiência, que prefiro chamar de vivência, pois se vincula mais à idéia de performance, de Deleuze e Guattari33. Há vivências que estão vinculadas a ideias. Os conceitos são conectivos desses pólos.

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WITTGENSTEIN, L. Notes on logic. CLEAN VERSION © Copyright in this machine-readable text Hans Kaal and Alastair McKinnon, 1989. This text based on Appendix

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I of Notebooks 1914-1916, 2nd ed. G.H. von Wright and G.E.M. Anscombe, eds. Oxford: Basil Blackwell, 1979. © Copyright 1961, 1979 by Basil Blackwell. Past Master.


Saberes de professor com formação européia em Santos (década de 1910) Maria Apparecida Franco Pereira* Coordenadoria de Pós Graduação Stricto Sensu e Pesquisa, Pós Graduação, Universidade Católica de Santos (UNISANTOS), Rua Carvalho de Mendonça, 144, Vila Mathias, CEP 11070906, Santos, SP, Brasil, e-mail: cidafranco@unisantos.br O objeto deste artigo é o estudo dos saberes de um professor que teve formação européia e atuou na cidade de Santos, a partir da primeira década do século XX. Neste momento reflete-se sobre um documento publicado pelo Prof. Alcides Luiz Alves, fruto de sua prática docente na escola da Sociedade União Operária. Foram importantes para a compreensão do texto a contribuição dos estudos de Luzuriaga (1985), Carreño (1985) e Monteiro (2006) nos aspectos dos princípios da Escola Nova, e de Pereira (1996) para a visão da realidade educacional de Santos, na Primeira República. A metodologia utilizada foram as fontes primária e bibliográfica., principalmente nos arquivos da Sociedade União Operária de Santos Levantados os dados, ensaiou-se reflexão sobre o documentos, a partir de categorias temáticas da Escola Nova. Como resultado da pesquisa, ficou esboçada uma ligeira biografia do professor e aspectos do pensamento pedagógico do professor Alcides Luiz Alves. Palavras-chave: Formação docente. Escola Nova. Prática pedagógica.

Teacher’s Instruction based on European education in Santos (1910’s) The subject of this article is the study of a teacher’s instruction based on European education that took part in the city of Santos, since the first decade of the 20th century. At this moment we reflect on the document published by the teacher Alcides Luiz Alves, based on his teaching practice at the school of Sociedade União Operária. To comprehend the text were important the contribution of the studies by Luzuriaga (1985), Carreño (1985) e Monteiro (2006) about the sources of New School, and Pereira (1996) to take a look at the reality of instruction in Santos, at the First Republic in Brasil. The method used was the research on primary and library sources, mainly the archives from the Sociedade União Operária of Santos. By raising the information, we rehearsed to ponder on the documents, from the subject cathegories of New School. As a result, we sketched the teacher’s brief biography and some pedagogical thinking of Alcides Luiz Alves. Keywords: Teacher’s instruction. New school. Teaching practice.

1 Introdução Os textos escritos por professores sobre sua prática educativa nas primeiras décadas do século XX não são tão comuns. Por isso, um achado assim

torna a historiografia mais rica, pois dá oportunidade para se refletir sobre a história da Educação, entrelaçando os aspectos teóricos e pedagógicos.

* Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Católica de Santos (1961), graduação em História pela Universidade Católica de Santos (1972), graduação em Filosofia pelo Centro Universitário Nossa Senhora Assunção (1976), mestrado em História Econômica pela Universidade de São Paulo (1981) e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (1992). Atualmente é professor titular da Universidade Católica de Santos. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação Brasileira, atuando principalmente nos seguintes temas: Santos, História, Educação, escola e mulheres.


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O texto de Alcides Hypolito Luiz Alves, em apreço neste trabalho, refere-se a uma série de pedidossugestão à diretoria da Sociedade União Operária, de Santos, onde atua como professor da seção masculina. Está inserido no contexto da Educação paulista da Primeira República1. Nele faz reflexões, várias delas colocadas na dimensão da Escola Nova. Algumas são ligadas à adequação mais da aprendizagem, porém a grande luz cai sobre o ensino que prepare os jovens para sua inserção na sociedade. Nesta pesquisa estão presentes os estudos dos pensadores espanhóis Lorenzo Luzuriaga e Myryam Carreño. A conceituação utilizada sobre Escola Nova foi extraída de Agostinho Reis Monteiro2, da Universidade de Lisboa: “Chamo Educação Nova a um movimento pedagógico contemporâneo que só é novo porque se adapta às necessidades novas da sociedade de hoje. De modo algum é teórico, mas prático. Afirmou-se tanto na Europa como na América, pela criação de quase cem escolas novas que rompem, todas, com uma rotina secular e tendem a tornar a instrução e a educação ao mesmo tempo mais psicológicas e mais sociais” (p. 84).

E conclui: “Este movimento pedagógico nasceu de uma dupla necessidade e tende para um duplo ideal: 1. adaptar os meios de educação à natureza psicológica da criança; 2. preparar a juventude para a vida social, intelectual e moral contemporânea” (p. 84).

Em 1910, data do documento, o movimento da Escola Nova ainda não está sistematizado e se desdobra nas realizações práticas. A Suíça, onde estudara o autor, já respirava o ar escolanovista. Em 1899, Adolphe Ferrière havia fundado em Genebra a Oficina Internacional das Escolas Novas que vai se firmar um pouco mais tarde com autoridade (1912).

2 O documento Datado de 26 de dezembro de 1910, encontrase arquivado na pasta de correspondência da 1 PEREIRA, Maria Apparecida Franco. Santos nos caminhos da educação popular (1870-1920). São Paulo: Loyola, 1996. 2 História da Educação: do antigo “direito de educação” ao novo “direito à educação”. São Paulo: Cortez, 2006.

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Sociedade União Operária de Santos, Brasil, uma “carta-programa”, autografada por Alcides Hypolito Luiz Alves, na qual, à guisa de conclusão de ano letivo, faz uma série de sugestões aos diretores da instituição. Basicamente, podem ser resumidas em três blocos de questões: a) notas para a elaboração de um currículo de classes mais avançadas para seus concluintes terem acesso a cursos de formação profissional em instituições existentes na cidade (Academia de Comércio, 1908; Liceu Feminino Santista, 1902 – formação de professoras). b) problema de co-educação, privilegiando a instrução das mulheres. c) discussão relacionada à disciplina escolar, uma vez que sugere o desenvolvimento de normas de civilidade.

Secundariamente, aparecem temáticas podem ser aprofundadas em outros estudos:

que

1 importância da pedagogia científica, “pedagogia hodierna”, acusando transformações que podem filiar-se ao movimento renovador escolanovista. “Não ignorais, certo, quaes os desvelos que as nações collocadas na vanguarda da civilisação tem sobre a instrucção, não desconheceis as transformações que nellas [...] se dão em tal terreno – transformações promanadas da experiencia e do estudo feitos não a esmo e sim maduramente, methodicos pelos educadores da juventude” (fl. 1). 2 sua inspiração filosófica está dentro do contexto da época, ou seja, do positivismo: “Progredir é resultante da Ordem, isto é, do bom funccionamento de qualquer Obra em execução ou prestes a ser (...)” (fl. 1). 3 um bloco de elementos ou dispositivos da cultura escolar, como uso de boletins, a organização do horário das aulas e das classes escolares, seleção de conteúdo, material escolar etc. 4 educação x instrução.

O documento, composto de nove laudas, é escrito em caligrafia clara e esmerada, na forma inclinada, e revela na sua estrutura interna o desenvolvimento de um roteiro bem elaborado de ideias.


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3 O autor Alcides Hypolito Luiz Alves (falecido em maio de 1964) é o professor de uma classe da seção masculina da Escola da Sociedade União Operária desde 1908. É licenciado pela Faculdade de Letras de Lausanne, na Suíça, na época em que as idéias da Escola Nova estavam se desenvolvendo nesse país e nos vizinhos. Lá existia o Instituto JeanJacques Rousseau. A Suíça distingue-se também por suas escolas novas fundadas a partir de 1907 (cf . Luzuriaga; Carreño)3. Alcides Alves faz alusão, em seu texto, ao conhecimento do pensamento dos norte-americanos, suíços, alemães e franceses, principalmente na educação da infância. Entendemos que é aí que está sua formação das novas ideias. Por que e como foi parar em Lausanne? São questões ainda sem resposta. As viagens de professores e intelectuais para outros lugares, importantes para o estudo da circulação de ideias, estão no momento sendo pesquisadas na historiografia da Educação brasileira. Anna Crystina Venâncio Mignot e José Gonçalves Gondra, organizadores de Viagens Pedagógicas4, reúnem um grupo de historiadores lusos e brasileiros (e um francês) que trata dessa problemática nova em História da Educação. Teve Alcides Alves atuação docente em outras escolas importantes da cidade como a Academia do Comércio e o Liceu Feminino Santista (1910). Sua participação mais longa foi na Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Santos, desde 1913, cerca de três décadas, como professor e como secretário da Escola de Enfermeiros e Parteiros, depois denominada “Dr. Amâncio da Cunha Mota”. Os dados biográficos desse professor foram colhidos, reunindo “migalhas” aqui e acolá; uma inicial reconstrução de um quebra-cabeça. Apesar de ter nome de rua, hoje é uma personalidade desconhecida até nos meios educacionais. São suas palavras, em um artigo que publicou sobre o pintor Benedito Calixto: “Ante o imperativo da morte, nos tornamos deslembrados dos que nos sucedem”5. Foi possível, 3 LUZURIAGA, Lorenzo. História da Educação e da Pedagogia. 16. ed. São Paulo: Nacional, 1985. pp. 227-241; CARREÑO, Myriam. El movimiento de la Escuela Nueva. In: ___. (ed.) Teorias e instituciones contemporáneas de educación. Madrid: Síntesis, 1985. pp. 13-44. 4 O livro é publicado pela Cortez (São Paulo), 2007. 5 Flamma, Santos, dez. 1953.

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porém, esboçar uma silhueta do importante professor, inspirada nos próprios dizeres de Alcides a respeito de Calixto: “Só os que se alçam entre seus contemporâneos pela cultura, inteligência, virtude ou pelo trabalho construtor, têm o dom de deixar seus nomes perpetuados na lembrança e na admiração”.

4 O entorno social É da participação da Escola da Sociedade União Operária que – como já foi dito – é produzido esse texto, quando a instituição, fundada em 1890, estava na sua segunda década de existência e ainda com experiência educacional titubeante. Seus dirigentes são pessoas com grande militância social, mas não têm formação acadêmica. Nascida em uma cidade portuária, que estava se modernizando, a Sociedade foi fundada por um grupo de operários e mestres-de-obras da construção civil, alguns de inspiração anarquista, com sócios em grande parte imigrantes: portugueses, espanhóis e, em menor escala, italianos. Em 1902, possuía 1.700 sócios6. Entidade de auxílio mútuo e instrução (saúde, funeral, desemprego, crédito, recursos jurídicos), colocava a formação cultural em destaque: “Manter uma bibliotheca para o goso exclusivo dos associados” (art. 6°). “Crear escolas de instrução primaria e secundaria e de artes e officios para os associados e seus filhos, para os filhos dos associados fallecidos e para os dos proletarios e operários que viverem sem recursos” (art. 7°). “Promover conferencias que aproveitem ao adeantamento moral, intellectual e economico dos associados” (art. 8°).

A Sociedade União Operária começa com o curso noturno para os operários e seus filhos maiores, em 1º de agosto de 1890. Em 22 de janeiro de 1906 é inaugurado o curso primário somente para meninos e, dois anos depois (1908), o curso primário feminino. Durante o ano de 1909, funcionava em sua sede própria que ficava na rua Henrique Porchat, n° 29, na Vila Nova. Tinha duas classes diurnas (uma para cada sexo) e uma masculina noturna, num total de 176 alunos. Sua biblioteca possuía 6 Almanach e Annuario do Diário de Santos, 1902-1903, 2ª parte, p. 97.

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1.243 obras e gabinete de leitura – frequentado diariamente – com 72 jornais7. Santos, nessa primeira década do século XX, está vencendo suas epidemias mortíferas, tornando-se uma cidade saneada, passando por um processo radical de urbanização, ocasionado em parte pela ampliação e modernização do porto, a partir de 1890. Desde a 2a metade do século XIX (1867, inauguração da Estrada de Ferro São Paulo Railway), a economia do café comanda a cidade. Sua população aumenta vertiginosamente e a imigração européia e, depois, a japonesa vem compor a vida econômica e social da cidade, abrindo novas exigências e problemas que devem ser enfrentados como a saúde, a habitação e a escolarização. Novos empregos, principalmente do setor terciário (economia de serviços), dão oportunidade para a população conquistar melhor qualidade de vida. A escola torna-se a parceira da cidade na normatização das novas exigências urbanas. “Assim a própria escola passou a ser interpretada como um equipamento urbano e sofreu intervenção técnica, recebendo dispositivos que asseguravam higiene e salubridade ao ambiente”8. E ela será o local onde a população irá buscar a formação necessária para a melhoria da sua condição de vida.

5 As ideias centrais do documento • Elaboração do currículo: Na realidade, o professor Alcides Alves não faz nenhuma inovação nas disciplinas. Ele somente reproduz as sugestões oficiais encaminhadas pelo Dr. Adolfo Porchat de Assis, diretor da Academia do Comércio, propedêuticas e necessárias para os exames de suficiência. Reitera a importância de se instruir eficazmente nos rudimentos do cálculo, da língua materna, da história e da geografia pátria: é necessário tornar mais extensos esses conteúdos, “mais coadunantes com a classe a que grande parte dos nossos educandos pertence”. Desejando já por em prática algumas modificações no ensino dos meninos, diz: 7 Almanak de 1910 para Santos e S. Vicente. p. 101. 8 VEIGA, Cynthia Greive. História da Educação. São Paulo: Ática, 2007. p. 209.

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“[...] eu, com vagar, farei uma combinação das matérias que eu tenho aqui o prazer de ensinar com as que o exame de sufficiencia requer. É muito simples o programma pauta tal fim. Pede elle [...] elementos da língua portuguesa, arithimetica té (sic) frações decimaes e um pouco de metrologia, as principaes phases por que tem passado o nosso país e finalmente a nomenclatura geographica, Estados e suas capitaes, do Brasil” (fl. 5).

O professor reúne na classe alunos de vários graus de adiantamento (séries) e explica para as autoridades da Sociedade como irá atuar. Há uma crítica à história factual: “A História Pátria dou-a exclusivamente aos que já possam por ella se interessar, pois que sendo árida, devido ás datas e ao grande número de personagens que nella figuram, é um pesadíssimo fardo para cérebro de todo ainda não desenvolvidos e igualmente o faço em Cosmographia, Aritmética Progressiva, Elementos de Álgebra, Geometria e Geologia, sciencias de estudo secundário. Restam-me ministrar Francês e Historia Natural” (fls. 5 e 6).

Não fica claro o que o professor faz de diferente ao ensinar a História dos Povos, mas desenvolve um campo de experiência, princípio caro à Escola Nova (escola-laboratório de prática pedagógica): “Eu, neste anno, dei início ao estudo da História dos Povos, por experiência, e satisfez-me de sobejo o seu resultado. Vi que com o seu conhecimento os alumnos intellectualmente mais se desenvolveram, baseando-me eu nas composições que semanalmente me apresentavam” (fl. 5).

Por que haveria mais interesse na história dos povos do que na do próprio país? Haveria alguma relação com o fato de ser uma escola frequentada por alunos pertencentes a famílias de imigrantes? Ao organizar o currículo, o professor Alcides queixase de que, na realidade, a escola funciona com classe de alunos muito numerosa e é preciso desdobrar a seção masculina em duas turmas: “A classe porém que terá de seguir essas matérias não deve attingir a 50 alumnos. Comprendem os senhores não ser possível assumir sem gastos


Saberes de professor com formação européia em Santos (década de 1910)

de forças do organismo, a responsabilidade do preparo de um forte numero de educandos. Fica o serviço mal feito, e a cada passo o desanimo acompanha não somente quem apprende como a quem ensina. Foi o que muitas vêses commigo succedeu, dês que me incumbiram de chefiar a secção masculina” (fl. 6).

O modelo estrangeiro e a inovação dos grupos escolares estaduais aparecem: neles “as classes se formam, no máximo, com 30 alunos”. • Co-educação e educação feminina: A Escola Nova pede a co-educação dos sexos. Entre os 30 princípios do movimento escolanovista, da Oficina Internacional das Escolas Novas de Genebra, apresentados por René Hubert, aparece a co-educação em quinto lugar9. O professor Alcides Alves discute com agudeza seu ponto de vista, adepto da co-educação: “Eu sou dos que enthusiaticamente applaudem o modo com que os norte-americanos, os allemães, suissos e franceses educam a infância, juntando os dois sexos nos mesmos edifícios escolares e fazendo-os sentar nos mesmos bancos”. Argumenta que a convivência dos dois sexos lado a lado nos bancos escolares é um meio de tornar os meninos menos violentos em seu modo de agir, de fazê-los aprender a respeitar o sexo feminino e de ter mais incentivo para estudar: “A moral nada se empana, pois que se torna mais benéfico. Tenho reparado também, senhores directores, em nosso país e alhures, que há mais estímulo, mais vontade de apprender quando os dóis sexos juntamente estudam que separados. Notai-os nas horas de recreação: os meninos como que comprendendo os sentimentos mais requintados e mais delicados das suas collegas, com ellas folgam sem buscar os jogos violentos de grande movimentação e de cujos resultados bastas veses se entendiam os educadores...” (fl. 4).

Ao tratar da educação feminina, Alcides Alves acompanha o pensamento de muitos pensadores sobre a mulher na sua época, com algumas idéias 9 A Profa. Dra. Myriam Carreño, da Universidade Complutense de Madrid, mostra os 30 princípios do movimento escolanovista, da Oficina Internacional das Escolas Novas de Genebra, apresentados por René Hubert. Op. cit. pp. 29-30.

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avançadas. Entretanto, ainda há outros que preferem que à mulher coubessem somente os encargos do lar. Em 1902, a professora normalista Eunice Caldas, irmã de Vital Brasil, fundava em Santos, com um grupo de mulheres, o Liceu Feminino Santista, com o fim de “tirar o elemento feminino da sua inércia”, por meio de uma formação para o Magistério. Já ao final do século XIX, nas cidades, o estrato feminino da classe média, cada vez mais, embora gradativamente, chegava à escola primária, porém em número bem menor nas escolas secundárias. É essa situação que o professor Alcides quer reverter: “Descurada há sido té hoje, senhores directores, a educação da Mulher” (fl. 3). Entretanto, já se multiplicam no Rio de Janeiro e em São Paulo instituições destinadas a cultivar as mulheres e “torná-las mais aptas a lutar pela vida”. Observa que “as alumnas oriundas de lares remediados, de certo conforto e cujos pais não necessitam inda de sua coadjuvação, muito lucrariam se, uma vês preparadas, entrassem no Lyceu Feminino ou mesmo na Academia” (fl. 2). Em Santos, a população imigrante e seus descendentes, que eram a grande clientela da Escola da Sociedade União Operária, embora não miseráveis, passavam por necessidades. Se observarmos os livros de matrícula, diversos lares também eram comandados por mulheres (solteiras ou viúvas), Assim, o viés econômico era poderosa arma para abrir os caminhos para o emprego feminino, principalmente quando as mulheres necessitavam do seu salário para seu sustento ou para completar a renda familiar. Susan Kent Besse10 observa que: “Para as mulheres solteiras e viúvas de classe média cujos parentes não podiam oferecer ajuda econômica, o acesso a bons empregos era também considerado especialmente importante para protegê-las da fome, da queda na prostituição ou de ter que aceitar uma proposta de casamento indesejável. O argumento da necessidade econômica era tão bem aceito socialmente que muitas mulheres o utilizaram para explicar sua participação na força de trabalho, quando podia não ter sido esse o fator decisivo”. 10 Modernizando a desigualdade: reestruturação da ideologia de gênero no Brasil (1914-1940). São Paulo: Edusp, 1999. pp. 147-148. A obra dá excelentes subsídios para discutir o trabalho feminino.

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Alcides Alves critica a educação dada às meninas e propõe um plano especial para as alunas com um estudo mais ou menos idêntico ao da seção masculina. Observa que se lhes restringe, à época, o horizonte intelectual, com noções mais simples somente para que convivam com brio o cotidiano: apenas “dois dedos de sciencia e outro tanto de arte de bem falar e escrever, um pouco de música” para transitarem em locais de sociabilidade (fl. 3). Nada mais da vida prática lhes é dito e, assim, “ficam ellas eternamente sem acção, sem energias, receiosas de qualquer infortúnio, dependentes do Homem”... (ibid.). “Não há dúvida que essa educação que tem sido a característica do sexo feminino na indígena sociedade traz suas vantagens. [...] Si pensarmos todavia que a costura, o bordado e outras que tais coisas ensinadas ás nossas compatriotas não as isentam da fome nem do frio, nos convenceremos que a intellectualidade deve ser mais desenvolvida”. Em Santos, nas primeiras décadas do século XX, mulheres operárias exerciam suas atividades em empregos nos setores da economia cafeeira, colhendo café, costurando sacos de aniagem, nos armazéns, em casa, como operárias da Companhia Santista de Tecelagem ou em pequenos comércios (bares, quitandas etc.). Maria Izilda Santos Matos diz que a mulher imigrante santista foi “elemento de suma importância no espaço da cidade, do porto e dos domicílios, trabalhando e resistindo”. Elas “sempre estiveram muito presentes no universo do trabalho, nas fábricas, nos estabelecimentos comerciais ou em ‘atividades informais’”11. É verdade que o professor Alcides queria uma escola que não apresentasse o divórcio entre cultura e trabalho e dirigia sua proposta para o elemento feminino que tinha possibilidades de continuar o seu estudo; porém, também havia a situação da mulher de pior condição que precisava de uma escola que lhe desse um preparo para enfrentar a vida dentro e fora de casa. As tarefas aceitas para as mulheres eram aquelas que não as tiravam de seus papéis familiares e domésticos, de esposa e mãe, de dona de casa (professora, enfermeira, governanta, empregada doméstica etc.). Não por em risco sua missão e sua feminilidade era frequentemente repetido. O professor Alcides, em seu texto, lembra que 11 História, memória, cotidiano privado: o masculino e o feminino no porto do café (1890-1930). In: PEREIRA, Maria Apparecida F. et al. Café, Santos & História. Santos: Leopoldianum, 1995. pp. 67-88.

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tornar as mulheres aptas para a luta da sobrevivência não quer dizer que “com isso percam as suas emotividades nem os deveres apegados ao seu sexo” (fls. 4 e 5). Outro aspecto que chama atenção na explanação do professor Alcides Alves é a questão da disciplina escolar. No corpo do texto, escreve que a escola tem o dever, segundo os seus Estatutos, de atender aos seus associados, os operários e seus filhos. Ele lembra, porém, que a escola não é uma instituição corretiva de jovens indisciplinados e, portanto, sugere que os alunos devam ser selecionados, a partir do “prévio conhecimento de seus precedentes”. “É o único meio de estarmos affastados de elementos nocivos, inúteis, péssimos” (fl. 7). Essas observações nos fazem crer que a instituição enfrenta problemas de disciplina escolar. A escola tem um Livro de Ocorrências (1904) no qual, entretanto, não há muitas anotações12. Há, no Livro de Atas da Sociedade, por exemplo, o registro, datado de 22 de novembro de 1902, da “insubordinação elevadíssima dos alunos B.F. e M.D.”13, feito pelo professor Luiz Cardozo da Silva, e de “suspensão dos dois alunos por três meses”(!), mantida pela Diretoria da Sociedade e comunicada aos pais. O que eles teriam feito?! Há alunos que são suspensos na escola noturna por estarem dormindo durante a aula! Por outro lado, o texto do professor Alcides não discorre sobre alunos indisciplinados (precisam ser evitados!), mas apresenta uma chamada para o aspecto de formação que envolve as normas de civilidade. Os textos sobre “bom-tom”, cortesia, civilidade, etiquetas, eram comuns na educação brasileira. Um deles está contido na “Encyclopedia Primária” ou “Manual completo e methodico da instrucção primaria”, obra que o Dr. Joaquim Maria de Lacerda14 organizou “para uso das escolas primarias do Brazil”, editada em 1882. Publicando um programa detalhado com mais de 482 páginas, a “Encyclopedia” termina o volume com “Algumas regras de civilidade”, em que se encon12 Inserido em um livro “hibrido” mais amplo ocupa somente as páginas 91 a 96, a partir de 6 de fevereiro de 2004. 13 No Livro de Ocorrências os nomes não estão abreviados. 14 O Dr. Joaquim Maria de Lacerda (1838-1886) é autor de várias obras didáticas: Pequena Geografia da Infância, composta para uso das Escolas Primárias – Curso Primeiro (1928); Pequena história do Brasil por perguntas e respostas (completada por Olavo Bilac, 1906), entre outras.


Saberes de professor com formação européia em Santos (década de 1910)

tram os seguintes itens, após uma introdução: “Do aceio”, “Como se deve estar diante de pessoas de respeito”, “Modo de portar-se na rua e em qualquer logar publico”, “Das visitas”, “Da comida em geral”, “Defeitos que se devem evitar em sociedade”. Nela se encontram as afirmações: “A civilidade foi sempre considerada como prenda indispensável a toda pessoa bem educada” e “A grosseria e falta de polidez nos desagrada em um menino tanto como em um homem feito” (p. 472). O código de civilidade existe para organizar e harmonizar as relações de convivência entre as pessoas. No texto de Lacerda, as regras vão desde as lições de higiene, asseio, até como se comportar na rua ou em qualquer lugar público, à mesa, com visitas, em sociedade etc. (pp. 467-471). A “Encyclopedia” orienta no item “Como se deve estar diante das pessoas de respeito (p. 473): “É contra a civilidade [...] bocejar, adormecer”. “É contra a civilidade limpar com o guardanapo o seu prato, copo ou talher, pois isto offende os donos da casa, de cujo aceio parece duvidar” (p. 473). Outras inúmeras regras sobre o modo de estar à mesa estão lá. Entre elas: “Ao comer a sopa, não se deve encher muito a colher nem assoprar. Convém também não encher demasiado o copo para não entornar por fora”. E também que não se deve beber, quando se tem a boca cheia de comida; lamber os dedos etc. (pp. 475-476). Algumas regras aparecem também na Escola da Sociedade União Operária, manuscritas e coladas em um livro de matrícula (1902). São sete, sendo que duas referem-se ao asseio; três são pedagógicas e duas dizem respeito à urbanidade. Sob o título de “deveres dos alunos”, são: “1. Trajar asseiadamente; 2. Comparecer diariamente à hora marcada; 3. Observar os preceitos de hygiene; 4. Tratar com delicadeza e urbanidade os professores, diretor e demais funcionários; 5. Cumprir as determinações dos professores; 6. Evitar estragos no Edifício e objetos; 7. Tratarem-se com amizade uns aos outros, evitando brinquedos prejudiciaes, denuncias e delações, devendo, entretanto, dizer a verdade quando tiverem conhecimento de algum fato grave que entre elles tenha se dado e sobre o mesmo forem interrogados”. Alcides Hypolito Luiz Alves faz ponderações interessantes sobre as regras de convivência importantes em qualquer lugar onde se comutem relações. A existência de indisciplina leva o professor a sugerir

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que a escola, ajudada pelos pais, pode amainar o caráter e o aluno: “de mau torna-se bom, sem que o educador use de castigos physicos ou moraes” (fl. 7). Como a Escola da Sociedade lida com pessoas de condição mais simples, observa: “Todo homem plebeu ou de nobre estirpe tem que conhecer os deveres sociais, o modo de ser affavel para com o seu próximo, si quizer captar sympathias e agradavel ao meio em que vive” (fls. 7 e 8). “O operário é um cavalheiro de blusa, sempre obsequioso, a cada passo gentil, e as crianças respeitam os anciãos e os infelizes” (fl. 8).

Chama atenção para práticas que devem ser evitadas: “Em França, por exemplo, é raro, raríssimo até, ver-se uma parede com pinturas obscenas, ouvir-se nas ruas palavrões, e as senhoras não terem o respeito merecido. Ellas saem, passeiam, confiadas na educação efficaz dos seus patrícios” (fl. 8). Como podemos observar, algumas manifestações da juventude são repetidas: palavrões, grafitagem... Ao terminar, por ora, essas considerações, pensamos que, seguramente, muitas das sugestões colocadas pelo professor Alcides Hypolito Luiz Alves não foram atendidas; ou porque as sementes não encontravam ainda terreno propício ou porque a escola ainda estava nos seus inícios, ou ainda por outros vários argumentos. Sabemos do apreço que os dirigentes da Sociedade tinham pela cultura letrada, mas seguramente limitada. Transcrevo aqui um trecho de um discurso de formatura, no final de 1931, que é significativo para as primeiras dezenas de anos da instituição: “É sempre considerado um grande dia, nesta casa, o do encerramento das aulas, pois significa mais passo á frente para todos os que aqui trabalham, tanto para os professores e professoras que ensinam quanto para os alunos que aprendem. (...), Homem sem instrução, pois mal me foi dado aprender as primeiras letras, e absorvido pelos afazeres da minha vida de comerciante, não tenho competência para apreciar os resultados do vosso trabalho. Mas a dedicação com que sirvo esta Sociedade, a ponto de não deixar de visitá-la um só dia, me habilita a formar juízo sobre o esforço dos que trabalharam, no correr Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 1, p. 65-72, jul-dez. 2009


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do ano letivo, que hoje se encerra sob tão bons auspícios. Como presidente da Sociedade União Operária, não devo, pois, deixar de declarar que me sinto satisfeito com o trabalho dos professores e professoras, cuja dedicação aos seus deveres me foi grato testemunhar”. Presidente José dos Santos Sobrinho15

O mestre Alcides Alves, parece-nos, tinha boa bagagem cultural. Continuou mais alguns anos na Escola da Sociedade União Operária (que existe ainda hoje). Seu nome circulava de quando em vez pelas notícias de jornal. Autor deste texto, deu-nos oportunidade de conhecer, além de seu pensamento, um pouco das práticas de sua carreira de professor.

Fontes Almanach e Annuario do Diário de Santos, 19021903, 2ª parte. Almanak de 1910 para Santos e S. Vicente. SOCIEDADE UNIÃO OPERÁRIA. • Livro de Atas n.1 e Livro de Ocorrências(1904). • Relatório de 1931.

15 Sociedade União Operária, 1931. p. 9. (Encerramento das aulas.)

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• Carta de Alcides Luiz Alves dirigida aos dirigentes da Sociedade União Operária, 1910 ( documentos avulsos). • Flamma, Santos, dezembro de 1953 (Revista).

Referências Bibliográficas BESSE, S. K. Modernizando a desigualdade: reestruturação da ideologia de gênero no Brasil (19141940). São Paulo: Edusp, 1999. CARREÑO, M. El movimiento de la Escuela Nueva. In: ___ (ed.). Teorias e instituciones contemporáneas de educación. Madrid: Síntesis, 1985. LUZURIAGA, L. História da Educação e da Pedagogia. 16. ed. São Paulo: Nacional, 1985. MATOS, M. I. História, memória, cotidiano privado: o masculino e o feminino no porto do café (1890-1930). In: PEREIRA, M. A. F. et al. Café, Santos & História. Santos: Leopoldianum, 1995. pp. 67-88. MONTEIRO, A. R. História da Educação: do antigo “direito de educação” ao novo “direito à educação”. São Paulo: Cortez, 2006. PEREIRA, M. A. F. P. Santos nos caminhos da educação popular (1870-1920). São Paulo: Loyola, 1996. VEIGA, C.G. História da Educação. São Paulo: Ática, 2007.


Resenha: Formação permanente do professorado, novas tendências (Francisco Imbernón)* Francisca Eleodora Santos Severino** Universidade Católica de Santos (UNISANTOS), Rua Dr. Carvalho de Mendonça, 144, Vila Mathias, CEP 11070-906 - Santos, SP, Brasil, e-mail: frasev@uol.com.br

Esse pequeno livro de Imbernón constitui um importante instrumento de trabalho para as pessoas interessadas em desenvolver uma reflexão crítica sobre o trabalho do professor e suas perspectivas futuras. Compondo-se de 12 capítulos, a obra permite-nos passear por temas que discutem a necessidade de uma delimitação clara das funções dos professores, que são instados a solucionar problemas decorrentes do contexto social e têm de cumprir um número cada vez maior de exigências e competências. Trabalho denso e bem estruturado, discute a necessidade de mudança na formação permanente do professorado no século XXI. Embora o tema da formação do professor tenha conquistado um significativo aprofundamento teórico e outros avanços importantes na última etapa do século XX, sua conceituação ainda carece de mediações e articulações práticas para evitar que esses avanços permaneçam na letra impressa ou “pervertendo-se” em abordagens superficiais, sobretudo na discussão dos papéis no desempenho do professorado. Tal crítica deve ser respeitada. Francisco Imbernón apresenta um currículo consolidado fundamentalmente na abordagem dessa temática. Tem-se destacado na discussão dos temas pertinentes à articulação entre teoria e prática educativas em diferentes âmbitos e níveis. Mestre e doutor em Filosofia da Educação, atualmente é catedrático da Universidade de Barcelona, desempenhando atividades na formação permanente de professores de todos os níveis educacionais, desde o ensino fundamental até a universidade.

A Apresentação, elaborada pelo próprio autor, justifica a necessidade de uma mudança na formação permanente do professorado no século XXI. Por conta de mudanças bruscas que ocorreram nas últimas décadas do século XX, muitos não se deram conta da necessidade de atualizações no âmbito de suas profissões, permanecendo na ignorância ou no desconcerto, de fato, em uma “nova forma de pobreza, material e intelectual”. No campo do professorado, ainda no século XX, tais mudanças foram institucionalizadas no debate sobre a necessária formação permanente, no entanto, elas se mostraram incipientes; observando-se uma falta clara de limite nas funções desses profissionais. Com o aumento de solicitações de que os professores resolvam também problemas derivados do contexto social, aparece também a exigência de novas competências no campo da educação com a consequente intensificação do trabalho educativo. Como resultado, a educação aparece no topo das críticas sociais, perdendo respeitabilidade e hierarquia. A demanda por soluções imediatas legitima cursos padronizados por conferências-modelo e noções ministradas em cursos balizados por ortodoxia na forma de conceber a formação. Ocorre o que Imbernón classifica como “estupidização formativa”, que atrasa ainda mais a percepção de que o método deve fazer parte integrante do conteúdo do que se pretende ensinar. Desse modo, esclarece-se que o desdobramento das tarefas de ensino para o campo social exige nova postura metodológica, haja vista que não se pode pensar a formação perma-

* Tradução: Sandra Trabucco Valenzuela. Editora Cortez, 2009. 118 p. **Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontificia Universidade Católica de São Paulo (1980), mestrado em Pós-Graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1991) e doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (2001). Atualmente é docente concursada da Universidade Católica de Santos, atuando no curso de Pós Graduação em Educação, Mestrado,lecionando Pesquisa em Educação,Educação Cultura e Sociedade e Seminários de Pesquisa, e no Curso de Pedagogia, onde ministra as disciplinas Metodologia da Educação I , II e III. Tem experiência na área de Sociologia da Educação, Teoria Sociológica , Antropologia Cultural Teoria da Comunicação e Metodologia Científica. Atua principalmente nos seguintes temas: educação, educação e temas transversais, educação informal, Educação e Modernização , mudança social e trabalho.


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nente de professores sem antes analisar o contexto político e social, de acordo com a especificidade de cada país, território ou região. “Assim, tudo o que se explica não serve para todos, nem em todo lugar”. Como já anunciado na Apresentação, o capítulo 1 discute os resultados da formação permanente que emerge no momento de mudanças aceleradas. De fato, tais resultados não podiam ser outros que não aqueles que, já no momento em que surgem, se tornam obsoletos e caducos, considerando que trazem em si anunciados os sinais dessa caducidade, dada a rapidez com que são produzidos. Tal situação esclarece a obrigação de uma reconceituação constante da formação permanente de professores; exigência colocada pela aceleração do tempo em função das descobertas da ciência e da tecnologia, das quais a educação é de fato caudatária. A desorientação das pesquisas em educação deriva da não-percepção das mudanças mais gerais no mundo globalizado. “Buscando alternativas, avançamos pouco no mundo das idéias e nas práticas políticas. Não conseguimos ver o que significa uma educação baseada na liberdade, na cidadania e na democracia” (p. 14). Essa visão fica obscurecida pelo pensamento único ainda predominante. Presos ao currículo igual, gestão idêntica, normas iguais, formação igual, fica difícil “desmascarar” o currículo “oculto” que ainda é transmitido na formação do professorado. Frente à nova concepção de tempo e espaço colocada pelas mudanças estruturais, impõe-se à educação e à formação do professorado romper com essa forma de pensar, de ver a educação e de interpretar a realidade. “Amedrontados” diante da crise institucional, o professorado baixa sua motivação para fazer coisas diferentes. “E as administrações educativas não se atrevem a possibilitar novas alternativas de mudança, já que estas hão de partir de pressupostos diferentes” (p. 15). No capítulo 2, Mudanças sociais orientam o caminho, Imbernón faz uma genealogia do conceito de conhecimento e sua relação com a formação, expondo as etapas que se sobrepõem e perduram ao longo do tempo e nas quais o discurso novo concretizou-se ou vai se tornando predominante. Para tanto, é preciso avaliar o que devemos “desaprender” do velho, ao mesmo tempo que, desse mesmo velho, temos de desvelar as possibilidades do novo. É possível reconstruir a partir do velho? É possível Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 1, p. 73-75, jul-dez. 2009

modificar as políticas e as práticas de formação permanente do professorado? Como as mudanças atuais repercutem na formação do professorado? Essas questões são exaustivamente debatidas nesse capítulo e instigam-nos a buscar pistas para gerar novas alternativas. Reconhecendo que as mudanças repercutem muito no âmbito da educação e que a análise do contexto pode desvelar elementos que influenciam na formação do professorado, o autor destaca um rol de possibilidades temáticas, entre as quais, a evolução acelerada da sociedade. Mudanças nos meios da comunicação e tecnologias geram crise nas formas tradicionais de transmissão do conhecimento, exigência de mudança na perspectiva do que ensinar e do que aprender; sociedade multicultural; desregulação do mercado frente à lógica neoliberal, entre outras. O que aprendemos? é a matéria do capítulo 3 que também discute os desdobramentos da reflexão rumo às relações sociais mais abrangentes. A formação permanente de professores requer uma atitude de cooperação e o reconhecimento de que há um clima de contextualização e diversidade entre eles. A formação de professores influencia e recebe influência do contexto histórico social e esse contexto condiciona os resultados que podem ser obtidos. A discussão das dificuldades a transpor é o assunto desenvolvido no capítulo 4, no qual o autor discute e destaca a falta de coordenação eficaz dessa formação inicial em seus vários níveis, predominando a improvisação nas modalidades de formação. A definição ambígua dos objetivos e de procedimentos formativos; a falta de orçamento para atividades de formação coletiva; horários inadequados, intensificando, assim, a tarefa do docente; uma formação retrógrada aplicada sobre princípios generalistas e a formação vista apenas como incentivo salarial são alguns dos obstáculos elencados pelo autor para uma boa formação do professorado. Tudo isso pode provocar uma burocratização mercantilista da formação, comprometendo o processo de reflexão e de descoberta de novos caminhos. Nos capítulos 5, 6 e 7 são discutidas as novas tendências de formação permanente do professorado, e um grande destaque é dado a constatação de que essa nova formação é tarefa coletiva; o que pressupõe, nas instituições formadoras, atividades de formação colaborativa. Mesmo reconhecendo


Resenha: Formação permanente do professorado, novas tendências

que o trabalho colaborativo não é tarefa fácil, o autor deixa clara a necessidade de abandonar a formação individualista. Para ele o contexto social é elemento imprescindível e a forma mais adequada para desenvolver o trabalho de formação permanente é mesmo o trabalho colaborativo. A formação assim entendida assume um conhecimento capaz de promover processos próprios de intervenção, o que é mais adequado ao momento histórico no qual estamos inseridos. A formação não se desvincula do conceito de formação docente, das instituições educacionais de ensino e pesquisa, da análise do perfil de crianças e adolescentes, mas deve ser unida ao conceito de trabalho, promovendo uma inovação institucional. O capítulo 8 articula, então, a necessidade de se traçar o perfil do docente, não apenas com relação à sua identidade pessoal e subjetiva, mas, fundamentalmente, seu perfil profissional de trabalhador coletivo. Compreende que a formação permanente do professorado deve potencializar a identidade docente do trabalhador como produtor de conhecimento e, assim, harmonizar processos muitas vezes contraditórios. O reconhecimento da identidade permite interpretar melhor o trabalho docente. A formação permanente do professorado deve criar comunidades formativas é a matéria de discussão do capítulo 9. Trabalhar conjuntamente com a comunidade pressupõe o desenvolvimento de habilidades ancoradas na cultura profissional que atua como filtro para interpretar a realidade. O capítulo 10 leva-nos a reconhecer a complexidade do pensamento e da prática docente, demonstrando que a educação é um fenômeno social constituinte de uma rede aberta de múltiplas determinações. Assim, constata-se que a formação permanente do professorado deve ser introduzida no desenvolvimento do pensamento concreto para descortinar-se o novo contexto da formação do professor de forma diferente. Concluindo a proposta do livro, o autor discute, no capítulo 11, a necessária atenção ao desenvolvimento atitudinal e emocional do professorado. A formação em atitudes cognitivas, afetivas e de conduta auxilia o desenvolvimento pessoal do professorado, inserido nas relações de uma profissão

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em que a fronteira entre o pessoal e o profissional se desvanece. O capítulo 12 completa a reflexão sobre as mudanças necessárias na formação permanente do professor. Questiona o papel dos “formadores de formadores” na formação permanente do professorado. Destaca que tanto a estrutura organizacional da formação permanente quanto o papel dos formadores teriam que mudar. Seria preciso que eles se transformassem em dinamizadores, auxiliassem e potencializassem a criação de uma estrutura mais flexível para a formação. Desse modo, essa mudança passaria necessariamente pela consciência de que essa formação não pode deixar de lado os aspectos políticos e sociais de uma realidade que se produz fora dos muros da escola. Finaliza o livro com uma mensagem otimista na qual afirma acreditar que uma outra formação de professores é possível. Para ele é possível vislumbrar alternativas como as que não se limitam a analisar apenas a formação como o domínio das disciplinas científicas ou acadêmicas. Aqui reside a qualidade diferenciada do trabalho de Francisco Imbernón: um livro composto de ensaios articulados pela proposta de desconstruir e reconstruir aspectos que, durante muito tempo, permaneceram em uma inércia institucional. A percepção de um novo modelo em constante mutação coloca o tema da formação de professores em uma perspectiva processual na qual a formação deve sempre presumir desequilíbrio, desaprendizagem, mudança de concepções e práticas educativas, às quais caberia resolver situações problemáticas. Embora considere que o autor não deu conta do aprofundamento crítico exigido pela complexidade da proposta, é inquestionável que as qualidades de seu texto superam as redundâncias discursivas. Pelas qualidades destacadas nesta resenha, essa obra torna-se instrumento indispensável, não só para os pesquisadores do campo da educação e formação de professores, como também para todos aqueles que, dos mais diferentes lugares sociais e profissionais, procuram entender os impasses e as “amarras” de uma educação condicionada pelas mudanças estruturais.

Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 1, p. 73-75, jul-dez. 2009


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