79
Editorial A presente Revista Pesquiseduca, em seu número especial “Reflexões e Debates sobre a Conferência Nacional de Educação/CONAE 2010”, foi pensada após a realização da Conferência Intermunicipal de Educação – CONAE/Polo Santos, realizada nos dias 26 e 27 de junho de 2009, na Universidade Católica de Santos/UniSantos. A CONAE/Polo Santos foi um momento histórico de extrema importância, pois mobilizou instituições e organizações de nove municípios da Baixada Santista (Bertioga, Cubatão, Guarujá, Itanhaém, Mongaguá, Peruíbe, Praia Grande, Santos e São Vicente), envolvidas com a educação básica, a educação profissional e a educação superior, para a discussão da temática da CONAE 2010 – Construindo o Sistema Nacional Articulado de Educação: o Plano Nacional de Educação, Diretrizes e Estratégias de Ação. Precedida por inúmeras Conferências Municipais, a CONAE/Polo Santos teve como finalidade refletir sobre o significado/sentido do que se entende sobre o Sistema Nacional de Educação, que passa por um sistema articulado de planejamento e gestão, de avaliação, de financiamento, de formação dos trabalhadores em educação e de garantia das condições de oferta com qualidade social, como aponta um dos objetivos da Conferência Nacional de Educação. Também, é importante assinalar que foram tomados, como base da discussão da Conferência, assim como desta Revista, os eixos temáticos desenvolvidos pelo Documento Referência, tais como: 1º O papel do Estado na garantia do direito à Educação de qualidade: organização e regulação da Educação Nacional; 2º Qualidade da Educação, Gestão Democrática e Avaliação; 3º Democratização do Acesso, Permanência e Sucesso Escolar; 4º Formação e Valorização dos Profissionais da Educação; 5º Financiamento da Educação e Controle Social; e 6º Justiça Social, Educação e Trabalho: Inclusão, Diversidade e Igualdade. Nesta perspectiva, o conteúdo que aqui se expressa foi organizado a partir das reflexões e debates que ocorreram durante a CONAE/Polo Santos por alguns dos autores que participaram do evento, compondo, assim, os nove artigos da primeira parte da Revista. A segunda foi delineada por quatro entrevistas realizadas com educadores que têm contribuído para ampliar este debate em torno da construção de um Sistema Nacional de Educação. O primeiro artigo, “Gestão da educação básica: dilemas no regime de colaboração”, de autoria de Angela Maria Matins, pesquisadora da Fundação Carlos Chagas/FCC e professora do Programa de Mestrado em Educação da UniSantos, ao discutir o Eixo I do Documento Referência, intitulado “Papel do Estado na Garantia do Direito à Educação de Qualidade: Organização e Regulação da Educação Nacional”, apresenta uma reflexão teórica sobre a gestão da educação básica, colocando o acento nos dilemas do regime de colaboração. Segundo a autora, tais processos de colaboração delegam poder às instâncias locais para priorizarem objetivos, definirem projetos e negociarem sua realização com parceiros já definidos; mas, por outro lado, podem instaurar processos de cooptação de práticas democráticas alternativas, por meio da burocratização da participação, reintroduzindo formas de clientelismo e fisiologismo, manipulando, assim, interesses locais em âmbito partidário. O segundo texto, “Qualidade da educação, gestão democrática e avaliação”, de Sandra Zákia Sousa, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, introduz algumas reflexões a respeito do Eixo II do Documento Referência, cujo título é o mesmo. A autora indica que a concepção
80
de gestão e a visão de avaliação se inserem na compreensão da qualidade da educação que se assume como referência e que se deseja para a educação brasileira. Os destaques anunciados, ainda que de forma esquemática, visam indicar referências para a elaboração do Plano Nacional de Educação. O terceiro artigo, “Questionando o acesso, a permanência e o sucesso escolar, de Alda Junqueira Marin e José Geraldo Silveira Bueno, do Programa de Estudos Pós-graduados em Educação: História, Política e Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC/SP, pretende debater o Eixo III do Documento Referência “Democratização do Acesso, Permanência e Sucesso Escolar”. Nesta direção, os autores analisam algumas situações relatadas por pesquisas diferentes, que indicam limites e possibilidades para democratização do acesso ao conhecimento e a permanência do aluno na escola, assim como seu sucesso. Assinalam, também, aspectos da organização interna da atividade educativa e das relações entre origem e destinação social e educacional de crianças oriundas de camadas mais desprivilegiadas, permitindo, assim, uma reflexão sobre questões em torno da inclusão, da igualdade e da diversidade – conceitos tão discutidos nos dias de hoje. A seguir, Maria Amélia Santoro Franco, professora do Programa de Pós-graduação em Educação da UniSantos e pesquisadora do CNPq, ao discutir o Eixo IV “Formação e Valorização dos Trabalhadores em Educação”, em seu texto “Formação e valorização do docente: por onde começar?”, destaca que não se pode desvincular o processo de formação do professor das condições de trabalho, de carreira e de salário, revelando a necessidade de se levar em conta a escola, enquanto local de trabalho e da formação e do desenvolvimento profissional dos docentes. Argumenta, também, que as reformas educacionais só produzirão transformações concretas na prática, quando contarem com a adesão e apoio dos professores. Além disso, finaliza pontuando que as condições para a formação é que podem desencadear, efetivamente, os processos de valorização docente. O quinto texto “Formação e valorização dos profissionais da educação: superar a lógica do mercado”, de Nereide Saviani, que foi docente-pesquisadora nos Programas de Pós-graduação em Educação da PUC-SP e da UniSantos, e que, atualmente, é Diretora de Formação da Fundação Maurício Grabois, tece uma análise sobre a natureza e a especificidade do trabalho docente frente à lógica do mercado. Defende a idéia de que a profissão docente exige saberes específicos e, que, portanto, requer sólida formação inicial e condições de aperfeiçoamento contínuo. Ressalta, ainda, que a formação docente não se restringe à escolarização, mas supõe jornada de trabalho compatível, concentração num único estabelecimento, com tempo para estudo, atividades complementares e, obviamente, com plano de carreira e salário condignos, e que é necessário que o Estado assuma plena responsabilidade quanto a esta questão. Uma outra contribuição relevante para esta Revista refere-se ao texto “Financiamento da educação e controle social: algumas anotações”, de Cleiton de Oliveira, professor da Universidade Metodista de Piracicaba/UNIMEP. Ao discutir o Eixo V “Financiamento da Educação e Controle Social”, o autor apresenta uma análise do Documento Referência, contextualizando a situação atual, avaliando o PNE vigente, a Reforma Tributária, o FUNDEB, o ensino superior e o Sistema Nacional de Educação. Indica, também, entre outros aspectos, a necessidade de: regulamentação do regime de colaboração; explicitação da ambígua relação entre o público e o privado; implementação da gestão democrática; definição de parâmetros que estabeleçam a qualidade da educação; e critérios para a determinação do “custoaluno-qualidade”. Por fim, ao registrar alguns “silêncios” ou “a necessidade de maior ênfase” por parte do Documento Referência, o autor assinala sua importância à medida em que levantou pontos cruciais
81
para a elaboração do Plano Nacional de Educação e para a construção de um Sistema Nacional de Educação. Outras contribuições importantes dizem respeito aos três últimos textos que compõem o Eixo VI “Justiça Social, Educação e Trabalho: Inclusão, Diversidade e Igualdade”. O primeiro deles, “Inclusão: entre os direitos civis, econômicos, sociais e a injustiça histórica”, de Niminon Suzel Pinheiro, professora do Centro Universitário de Rio Preto/UNIRP, destaca a importância de compreender o significado de inclusão, que passa pela valorização dos direitos civis, econômicos, sociais em detrimento das injustiças que, historicamente, temos vivenciado. Segundo a autora, compreender a relevância da educação brasileira significa, sobretudo, considerar a nossa formação histórica constituída pela diversidade entre os interlocutores. E, nesse sentido, a construção de um Sistema Nacional de Educação não pode deixar de considerar o direito à diversidade e à inclusão, para levar adiante um projeto social emancipador e transformador das relações sociais e excludentes. O segundo texto, “Desigualdades raciais em educação no Brasil”, de Mary Francisca do Careno, professora aposentada da UNESP e mestranda em Educação da UniSantos, discute o Eixo VI sob um outra prisma, abordando a importância de se considerar a inserção da história e da cultura de África e dos afro-descendentes no currículo escolar. Indica, também, que a Lei 10.639 traz um grande benefício à sociedade, pois coloca o tema na agenda nacional, fazendo com que todos reconheçam que é preciso realizar algo para diminuir a desigualdade na educação de ricos e pobres ou de negros e brancos. Por fim, aposta na perspectiva de uma pedagogia que compreenda as diferenças, buscando estimular os educadores locais por meio de um conhecimento ampliado em áreas como cultura, história e, em especial, em relação aos direitos humanos. E o terceiro artigo relacionado ao Eixo VI, “Educação inclusiva: subsídios para discussão sobre a educação especial no Brasil”, de Arimar Martins Campos, professora da Unip e da Unimonte, e membro da Comissão Executiva do Fórum Permanente de Educação Inclusiva/SP, analisa um outro lado da educação inclusiva, representada pela inclusão escolar de alunos com deficiência aos sistemas de ensino comum. Destaca o Decreto n° 6.571, de 17 de setembro de 2008, que determina que as políticas públicas devem garantir condições políticas, pedagógicas e financeiras para uma Política Nacional de Educação Especial Inclusiva, assegurando o acesso à escola aos alunos com deficiência, bem como atendimento educacional especializado em salas de recursos multifuncionais ou centros de atendimento educacional especializado. Finalizando, a autora considera fundamental garantir ações educativas que possibilitem instrumentos coletivos de superação de barreiras impeditivas ao exercício da cidadania, enfatizando ambientes heterogêneos em que todos possam aprender sem qualquer discriminação. Na segunda parte da Revista, concentram-se as entrevistas, realizadas no segundo semestre/2009, por Maria de Fátima Barbosa Abdalla, professora do Programa de Pós-graduação em Educação da UniSantos, coordenadora da CONAE/Polo Santos e membro da Comissão Organizadora da CONAE/ SP, como representante da Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação/ANPEd e da Associação Nacional pela Formação dos Profissionais em Educação/ANFOPE. A primeira entrevista, realizada com o Prof. Dermeval Saviani, professor emérito da UNICAMP e coordenador geral do Grupo Nacional de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil”, acentua a importância da CONAE, em especial, devido ao seu tema central em torno da construção de um sistema nacional de educação. O Prof. Saviani assinala que, para consolidá-lo, é necessário superar, pelo menos, dois obstáculos: os de ordem financeira e aqueles de natureza política. E, neste sentido, é preciso, por um lado, duplicar o percentual do Produto Interno Bruto destinado à educação;
82
e, por outro lado, romper com a lógica da descontinuidade, organizando a política educativa em torno de um projeto de desenvolvimento da educação nacional de médio e longo prazo. A segunda entrevista, realizada com o Prof. Carlos Roberto Jamil Cury, professor emérito da UFMG e, atualmente, professor da PUC/MG, toca em uma série de questões que permeiam a educação brasileira, destacando a oportunidade da CONAE 2010 encontrar caminhos para resolvê-las e/ou superá-las. Afirma, também, que o maior problema de um Plano é a articulação entre metas, condições e recursos que viabilizem as finalidades do mesmo, e que a grande meta para a educação será a forma de articular as etapas e níveis em regime de colaboração, com recursos suficientes e por meio de eixos significativos. A entrevista realizada com o Prof. José Carlos Manzano, professor do SENAI/SP e membro da Comissão Organizadora da CONAE/SP, além de destacar a importância da CONAE na mobilização dos delegados para a discussão dos problemas locais e regionais, aponta para a necessidade de que o poder público transforme a preocupação com a educação em um problema nacional. A última entrevista, realizada com a Profa. Iria Brzezinski, professora da Universidade Católica de Goiânia, presidente da ANFOPE e membro suplente da ANPEd na Comissão Nacional Organizadora da CONAE, apresenta uma série de subsídios para a construção de um Sistema Nacional de Educação e do futuro Plano Nacional de Educação a vigorar em 2011. Em relação ao significado da CONAE, a Profa. Iria destaca, principalmente, que se trata de um espaço político e de mobilização, marcado por avanços democráticos de participação de todos os segmentos e setores da sociedade civil. Salienta, ainda, que a maior expectativa da ANFOPE em relação à CONAE, historicamente reivindicada, é a construção de um Sistema Nacional de Formação e de Valorização dos Profissionais da Educação, entendido, em especial, como política de Estado e não apenas de Governo, que faça a regulação e a avaliação das instituições públicas e privadas, sendo, todavia, os recursos públicos destinados exclusivamente às instituições formadoras públicas. Consideramos, ainda, que as reflexões e os debates apresentados traduzem apenas o início do percurso, portanto, ponto de partida para o aprofundamento das questões em torno da implementação do Sistema Nacional de Educação e da construção do Plano Nacional de Educação que atendam, da melhor forma, os anseios daqueles que vivem a nossa Educação Brasileira. Santos, dezembro de 2009
Maria de Fátima Barbosa Abdalla Editora Responsável
Gestão da educação básica: dilemas no regime de colaboração Angela Maria Martins* Departamento de Pesquisas Educacionais, Fundação Carlos Chagas, Av. Prof. Francisco Morato, 1565, 3º andar, Jd. Guedala, CEP 05513-900, São Paulo, SP, Brasil, e-mail: ange.martins@uol.com.br
Este artigo discute a relação estabelecida entre as diferentes esferas governamentais no Brasil, sobretudo no que tange à análise do regime de colaboração. Em países de tradição autoritária fundada em relações prebendalistas, como no caso brasileiro, esse regime pode ampliar a possibilidade de reforço das elites locais, acentuando-se, de um lado, os padrões oligárquicos de exercício de poder, e de outro lado, a vulnerabilidade do poder municipal para assumir programas de governo com características abrangentes. Nesse sentido, o Brasil, país federativo que apresenta desigualdades regionais intensas, enfrenta questões complexas no que diz respeito às possibilidades e limites para que a gestão das políticas de educação seja bem sucedida. Palavras-chave: Regime de colaboração. Políticas da educação básica. Poder local.
Elementary education management: dilemmas in the collaboration system This article discusses the relationship that has been established among the different government spheres in Brazil, particularly insofar as the analysis of the collaboration system is concerned. In countries of authoritarian tradition founded on probendalist relationships, such as is the Brazilian case, this system can enhance the possibilities of reinforcing the local elites, accentuating, on one hand, the oligarchic patters of power, and, on the other, the vulnerability of the municipal power to take-on wider-ranging government programs. In this regard, Brazil, a federative country marked by intense regional inequalities, faces complex issues so far as the possibilities and limits imposed on successfully managing educational policies are concerned. Keywords: Collaboration system. Basic education policies. Local power.
1 A educação no contexto recente: breve cenário Como assinalei anteriormente (MARTINS, 2006), desde meados dos anos de 1970, a economia internacional vem sofrendo profundas modificações, ocasionadas por diferentes fatores. O surgimento de novas tecnologias, tais como a microeletrônica, a microinformática, a robótica, bem como os novos materiais e as fontes alternativas de energia,
promoveu novas formas de organização e gerenciamento do trabalho. Muitos autores afirmam que essa etapa recente do capitalismo está estruturada em bases mais flexíveis, contrapondo-se, portanto, ao período anterior no qual a organização do mundo do trabalho estava fundamentado – particularmente nos países de economia mais avançada –, no modelo
* É pesquisadora da Fundação Carlos Chagas/FCC e professora pesquisadora do Programa de Mestrado em Educação da Universidade Católica de Santos/UNISANTOS.
84
Angela Maria Martins
denominado taylorista-fordista. De modo geral, essa nova forma de organizar a produção recebeu a denominação de Terceira Revolução Industrial e provocou profundas modificações nas relações sociais do trabalho. As novas tecnologias atingiram rapidamente o sistema financeiro internacional, permitindo que seus mecanismos funcionem de forma interligada, o que propicia grande velocidade às suas ações. Evidentemente, o trabalho produtivo não desapareceu completamente. Porém, essas mudanças provocaram, dentre outras questões sociais graves, taxas preocupantes de desemprego e o fechamento de postos de trabalho. É neste contexto de transformações complexas, com consequências políticas e econômicas, que a educação e, por decorrência, a escola, assume uma posição estratégica. No processo de modificações, consolidou-se a ideia de que o Estado deveria focar sua atuação e, para isso, envidar esforços para reformar sua estrutura e formas de gestão. Nessa perspectiva, a partir de meados dos anos 1980, a maioria dos países implementou um processo de privatização das empresas estatais e reformou, principalmente, os sistemas de previdência social, saúde e educação, sob a justificativa da necessidade de otimizar seus recursos, tendo em vista a perda da capacidade de arrecadação fiscal. As políticas desenhadas para a educação consolidadas ao longo dos anos 1990 e financiadas por organismos multilaterais têm enfatizado a necessidade de se redirecionar as prioridades e os eixos da área, com o objetivo de atender as novas demandas do mundo do trabalho, baseadas na justificativa de que há uma crescente inadequação na formação e qualificação da mão-de-obra1. As relações entre as mudanças do mundo do trabalho e a agenda formulada nas diretrizes internacionais têm sido a pauta de discussão do mundo acadêmico, político e sindical. Entretanto, é inegável que muitos estudos vêm apontando a diminuição da qualidade e consequente perda de eficiência dos sistemas de ensino para preparar a população jovem rumo ao mercado de trabalho. Não são poucas as pesquisas que têm assinalado que os sistemas de ensino, ao invés de oportunizarem chances de acesso ao mercado de trabalho, 1 Estas questões foram discutidas em Martins (2001; 2002; 2003 ) e foram adaptadas para este texto.
Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 83-88, jul.-dez. 2009
começam a reproduzir e aumentar as desigualdades econômicas e sociais, tendo em vista as transformações da economia mundial, desde os anos 1970. Ressalte-se que a estrutura vigente das redes de escolas reflete o modelo das sociedades industriais transposto para os países em desenvolvimento, cuja concepção está mais ligada ao século XIX, do que, efetivamente, ao nascimento do século XXI. Dessa forma, há consenso na necessidade de se redirecionar as funções dos sistemas de ensino, de se modificar as políticas de currículo e de se ampliar os investimentos na formação inicial e continuada dos profissionais da educação, o que vem aumentando significativamente as parcerias realizadas entre Ministérios, Secretarias, Universidades e outros organismos da área para implementação de programas de grande envergadura com vistas a qualificar e reorientar a formação docente e de gestores. As diretrizes postas desde meados dos anos de 1980 – descentralização; autonomia das instituições escolares; flexibilidade dos programas de currículo; liberdade de escolha de instituições docentes; importância da participação dos atores escolares nos órgãos colegiados –, encontram correspondência, de certa forma, no conceito de descentralização das grandes corporações industriais; na autonomia relativa de cada empresa em função do processo de desterritorialização das unidades de produção, de montagem e/ou de administração e, finalmente, na flexibilidade da organização produtiva para ajustarse à variabilidade de mercados e consumidores. No entanto, a escola não é uma organização prestadora de serviços, como defendem os adeptos das leis de mercado, mas uma instituição construída no processo de consolidação da democracia, no mundo ocidental. Nesse sentido, o redirecionamento das diretrizes contemporâneas que embasam as políticas educacionais se reveste de especial complexidade, sobretudo no que tange aos países semi-periféricos.
2 O Brasil nesse contexto: dilemas no regime de colaboração No período de transição do regime militar para o regime civil, a participação intensa da sociedade civil no debate político trouxe à tona por meio dos meios de comunicação questões até então
Gestão da educação básica: dilemas no regime de colaboração
restritas aos meios sindicais e acadêmicos e que corporificavam verdadeiros jargões na política institucionalizada. Dentre os que mais apareceram na mídia, destacavam-se a recuperação do prestígio dos poderes locais, estaduais ou municipais através da descentralização e participação democrática. Nesse contexto, ampliava-se a ideia de legitimação dos canais institucionais por onde escoariam parte das insatisfações dos movimentos populares, de um lado. De outro lado, ocultava-se a transferência de responsabilidades por parte de um poder fortemente centralizado e proporcionalmente desgastado. É importante assinalar, no entanto, que na história política brasileira a tensão entre centralização/descentralização sempre esteve presente desde o momento de constituição da nação, expressando emblematicamente a questão federativa. Porém, o lema da descentralização e da participação democrática, defendido como condição sine qua non para a democratização dos processos decisórios do Estado e conquista de equidade nos resultados dos programas implementados, tornouse definitivamente o mote de praticamente todos os governos de oposição eleitos pós-1982. Enfim, diante das interveniências da máquina administrativa emperrada, onerosa e ineficiente, medidas de redirecionamento da ação do Estado vêm sendo propostas e realizadas com vistas a superar uma relação político-institucional sacralizada culturalmente no país. Nesse sentido, as estratégias governamentais delineiam novas formas de provisão e de gestão dos serviços públicos sob justificativa de racionalização da organização estatal. Nessa perspectiva, o Estado não deveria ser mais o provedor direto, promovendo-se a transferência de parte de suas funções a instâncias não-estatais na busca de aproximar a população usuária dos serviços ofertados. Assim, a preocupação com a gestão democrática e equânime do Estado se alia à ênfase na busca da qualidade, da eficácia e eficiência dos gastos públicos na área social. De um lado, a proposta de redução da máquina administrativa brasileira pode até ser vista com bons olhos, considerando-se os intervenientes burocráticos que provocam graus indesejáveis de ineficácia e ineficiência dos serviços prestados. De outro lado, porém, o processo de implementação das políticas públicas no Brasil tem sido sistematicamente permeado pela tradição prebendalista,
85
pela ausência de limites entre os interesses privados e o setor público; enfim, por relações de cunho clientelista que interferem na operacionalização de programas sociais. Nesse sentido, não há como diminuir a participação de um Estado cuja presença maciça na economia teve como contrapartida o descaso em relação às políticas sociais, ocasionando uma participação tímida e permeada pela cultura de distribuição de favores. É importante sublinhar que, entre 1982-1990, houve três eleições para governadores, “(...)‘casadas’ com as eleições proporcionais definidoras de legislaturas com papéis importantíssimos: o de referendar a transição pactuada (1982-1986), o de fazer a Constituição (1986-1990) e o de ser o Congresso Nacional do primeiro presidente diretamente eleito após o fim do regime militar (1990-1994). Entretanto, houve apenas uma eleição para presidente e ‘solteira’”. O pleito para governador foi, portanto, o mais importante elo com as eleições para deputado federal e senador, promovendo o que alguns pesquisadores denominaram de ultrapresidencialismo estadual, pois essa relação intrínseca entre política estadual e controle do legislativo federal, permitiu que os governadores eleitos a partir de 1982 tivessem fortíssimo poder de negociação em âmbito nacional (ABRUCIO, 1998, p. 87). De qualquer forma, o discurso do poder executivo, centrado na necessidade de se instaurar novos procedimentos descentralizadores para gestão dos serviços prestados, encontrava respaldo no período de revigoramento do federalismo: “o pacto da lealdade”, sedimentado entre governadores e deputados federais a partir das eleições de 1982, “fortaleceu os ‘chefes estaduais’ diante do ‘chefe da nação’”, sobretudo, “nos assuntos com impacto federativo”. Em função dessa influência, os governadores conseguiram manter a “distribuição de recursos dentro da federação, permitindo-lhes construir sólidas coalizões fisiológicas de governo nos Estados” (ABRUCIO, 1998, p. 97). Nesse sentido, descentralizar responsabilidades às instâncias regionais e locais e centralizar recursos permaneceram sendo a tônica dos governos estaduais eleitos no período pós-1982, independentemente do fato de a Constituição de 1988 ter redistribuído a tributação, beneficiando, teoricamente, estados e municípios. Em análise realizada sobre a fragilidade dos municípios nas negociações com o poder executivo Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 83-88, jul.-dez. 2009
86
Angela Maria Martins
estadual, Costa e Oliveira (1998) ressaltam que, após a Constituição, os “estados mais ricos foram proporcionalmente mais bem aquinhoados”. Esse fortalecimento financeiro, no entanto, não mudou a dependência de pequenos e médios municípios quanto aos recursos estaduais. Efetivamente, “a gradual independência dos municípios em relação ao executivo estadual (poderia ocorrer) apenas mediante o aumento de arrecadação de recursos próprios aos municípios, prática ainda bastante evitada pelos prefeitos” (COSTA e OLIVEIRA, 1998, p. 126). O período posterior a 1988 foi fortemente marcado pelo aumento do poder de barganha na esfera estadual com a criação de novos municípios, embora esta não seja prerrogativa dos governadores de estado. Porém, incentivando grupos ligados a deputados estaduais com interesses emancipacionistas, a maioria dos governadores, no período em pauta, conseguiu negociar a criação de municípios pelas assembleias legislativas de seus Estados (ABRUCIO, 1998). No contexto dessa complexa relação clientelista e fisiológica devem ser discutidos os padrões interativos na relação executivo-legislativo para que se compreendam os usos feitos desses termos. Segundo Couto (1998), a política programática, em princípio, é aquela que se reveste de caráter mais universal, pois instaura entre as duas instâncias de poder um padrão de barganha programática, isto é, um padrão a partir do qual se negociam pontos de um programa de governo coerente, voltado para amplas camadas da população. Resguardandose os princípios democráticos e universais que o informam, entretanto, é possível, ao mesmo tempo, que após a aprovação de um programa de governo com o apoio da maioria da população, segmentos dessa mesma população sejam excluídos de prováveis benefícios (como as minorias étnicas, religiosas e os segmentos absolutamente marginalizados das políticas sociais), o que não significa a perda das prerrogativas universais na gestão da res publica. Há, ainda, o padrão estabelecido pela barganha alocativa setorial, a partir do qual interesses e necessidades particulares de uma sociedade são atendidos, estando a ação política, porém, fundamentada em princípios universais. Outro padrão interativo é o relativo ao clientelismo, a partir do qual a destinação de recursos públicos está arbiPesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 83-88, jul.-dez. 2009
trariamente dirigida a determinados setores da população e/ou a segmentos da própria burocracia de escalão, que se constituem como a base de apoio eleitoral e de sustentação das medidas de governo. De qualquer forma, os recursos, nesse padrão, não se destinam aos próprios policy makers, mas a seus clientes. Finalmente, há o padrão interativo fisiológico, a partir do qual os recursos públicos são destinados aos próprios policy makers, ou seja, os tomadores de decisão nas políticas públicas deles se apropriam. Faz-se necessário salientar, ainda, que a linha divisória entre esses diferentes padrões de interação é absolutamente tênue, constituindo muito mais um continuum do que nítidas diferenças nos padrões de negociação que definem as relações entre o executivo e o legislativo (COUTO, 1998). Ao que tudo indica a relação estabelecida entre as diferentes esferas governamentais no Brasil, historicamente, vem se fundamentando muito mais nos dois últimos padrões interativos. De qualquer forma, é sempre bom assinalar que o regime de colaboração em países de tradição autoritária fundada em relações prebendalistas (como no caso brasileiro), pode ampliar a possibilidade de reforço das elites locais, acentuando-se, de um lado, os padrões oligárquicos de exercício de poder, e, de outro lado, a vulnerabilidade do poder municipal para assumir programas de governo com características abrangentes. Em suma, a Constituição de 1988 estabeleceu princípios descentralizadores/municipalistas, transferiu recursos fiscais para estados e municípios, definiu a competência dos municípios nas áreas de educação pré-escolar e fundamental e saúde (cooperação técnica e financeira do Estado e da União), conferiu centralidade das câmaras municipais em processos decisórios, e configurou estratégias indutoras de criação dos conselhos locais. Da mesma forma, a LDB (em parágrafo único - artigo 11) definiu que “os Municípios poderão optar, ainda, por se integrar ao sistema estadual de ensino ou compor com ele um sistema único de educação básica”. Entretanto, destaquem-se os problemas a serem superados: ainda não há ganho de receitas a estados e municípios sem a contrapartida de encargos; as esferas subnacionais de governo aumentaram sua capacidade financeira e assumiram maiores encargos de maneira descoordenada e diferenciada entre as regiões; o sistema
Gestão da educação básica: dilemas no regime de colaboração
presidencialista multipartidário nunca tem maioria o que provoca uma coalização fisiológica de governo ou baseada em negociação pontual. De acordo com Cury (2009), o modelo de colaboração recíproca (estabelecido para dar conta de normas gerais, diretrizes, bases e autonomia federativa), não regulamentado por lei complementar (conforme previa a Constituição), promoveu a dispersão de iniciativas, configurando um federalismo mais doutrinário do que metodológico. Diante da ausência de um projeto político nacional para que as propostas do regime de colaboração entre as diferentes esferas signifiquem, efetivamente, a superação do desequilíbrio e da subsunção das esferas locais a um poder centralizado, esse processo vem ocorrendo de acordo com as circunstâncias que cercam as negociações, infelizmente nem sempre transparentes ou baseadas em princípios programáticos universais. O Brasil, país federativo que apresenta desigualdades regionais intensas, enfrenta questões complexas no que diz respeito às possibilidades e limites para que as políticas de educação sejam bem sucedidas. Os problemas que permeiam o sistema educacional no Brasil têm sido exaustivamente analisados e difundidos: 96% das crianças estão no ensino fundamental, mas sua qualidade é discutível; o ensino médio e o ensino técnico e profissional ainda não estão ao alcance da grande maioria dos jovens que poderiam dele se beneficiar; o ensino superior vem sendo sistematicamente ampliado, porém, sua qualidade também é discutível. Para superar tantos limites faz-se necessário que as diferentes esferas executivas (federal, estadual e municipal) articulem esforços na busca de encaminhar soluções que possam, no menor espaço de tempo possível, encontrar saídas a problemas tão candentes. No âmbito federal quatro eixos vêm sendo insistentemente apontados: estabelecimento de um pacto de qualidade pelo ensino básico e redefinição de seu financiamento; articulação entre inclusão educacional e alfabetização; redefinição da educação profissional e tecnológica, e, finalmente, a reforma no ensino superior. No entanto, o déficit histórico é muito grande e as ações de operacionalização dos princípios, diretrizes e eixos, que têm fundamentado a agenda brasileira para a educação, deixam muito a desejar. Apenas para citar alguns: o problema da demo-
87
cratização do acesso e da permanência de crianças e jovens nas escolas não está resolvido, embora a cobertura tenha se expandido razoavelmente. Porém, é preciso ampliar o atendimento em todos os níveis da educação básica e estabelecer ações articuladas e dinâmicas com estados, municípios e sociedade civil organizada e demais setores sociais. Há necessidade, ainda, de se estabelecer vínculos maiores entre as políticas educacionais e programas alternativos que viabilizem sua sustentabilidade: implementação de políticas de transporte, material e merenda escolar; programas de renda mínima; programas de geração de emprego e renda. Há que se repensar, também, dentre outras questões prementes: a garantia de aprendizagem das camadas majoritárias que frequentam a escola pública, superando-se a atual situação de analfabetismo escolarizado; a expansão de anos da escolaridade obrigatória, sem considerar como tal, a antecipação de ingresso para crianças de 6 anos; a expansão do tempo de permanência, com carga horária curricular adequada e coerente às necessidades de sólida formação das crianças e jovens; a expansão de cobertura do ensino médio e profissional; investimentos na formação inicial e continuada dos educadores, bem como no desenvolvimento de sua carreira; implementação de condições dignas de trabalho e salário a todos os profissionais da educação. No que diz respeito à democratização da gestão, também ainda há muito para ser conquistado. Faz-se necessário aperfeiçoar os mecanismos de participação dos profissionais do ensino e da comunidade escolar, em geral, visando a instauração de processos que levem à qualidade social da educação e que estimulem o pleno funcionamento de órgãos colegiados (conselhos escolares; APM’S; conselhos municipais; conselhos de fiscalização) O aperfeiçoamento desses mecanismos redundaria no fortalecimento do próprio regime democrático, pois incentivaria a sociedade civil a se organizar, de um lado, para garantir o efetivo direito à educação e, de outro, para buscar a consolidação de canais institucionais democráticos no âmbito das escolas. É preciso, ainda, reconhecer a heterogeneidade das redes de ensino, pois, nas cidades maiores, há cobertura da rede estadual, municipal e privada, esta última, nicho de emprego para os professores que, muito provavelmente, dobram ou triplicam sua Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 83-88, jul.-dez. 2009
88
Angela Maria Martins
jornada de trabalho. Acrescente-se que os municípios não podem arcar sozinhos com a ampliação das redes de ensino, sua qualidade e respectiva valorização dos profissionais. Em suma, é fundamental: priorizar a educação no orçamento, pois o PIB, em 2006, foi de 2 trilhões e 322 bilhões de reais, sendo que o Brasil gasta 4,3% do PIB em educação; de acordo com Saviani (2009), os gastos para 2007, portanto, deveriam ser de 99 bilhões e 846 milhões de reais (foram destinados ao Fundeb 43 bilhões e 100 milhões de reais); implementar o PDE atacando o problema qualitativo revelado pelo IDEB, com apoio aos municípios que apresentam os piores índices (tanto nas questões de suporte técnico e pedagógico quanto no piso do magistério); instaurar estratégias indutoras destinadas aos municípios (de parceria/aceitação dos programas do governo federal ou estadual) baseadas em programas cujos princípios estimulem a adesão voluntária, evitando-se as adesões clientelistas e fisiológicas; constituir fóruns regionais de discussão e trocas de experiências para os dirigentes regionais visando a ampliar as parcerias locais com entidades do magistério (UNDIME; CNTE; sindicatos locais) e instituições de ensino superior, com vistas a elaborar diagnósticos conjuntos das redes escolares para tornar equânime a cobertura e a qualidade do atendimento. Finalmente, no atual contexto, temos assistido reversões das expectativas e das lutas de setores mais progressistas e democráticos, e a instauração de processos de cooptação de práticas democráticas alternativas, através da burocratização da participação e da reintrodução de formas de clientelismo e fisiologismo, com base na manipulação dos interesses locais em âmbito partidário. Os processos de colaboração se restringem à delegação de poder às instâncias locais para priorizarem objetivos, definirem projetos e negociarem sua realização com parceiros, que já estão definidos (ou por recomendações das esferas centrais ou por características das necessidades postas pelos próprios projetos). É preciso destacar, ainda, que a esfera federal vem ampliando significativamente os programas e projetos realizados em parcerias
Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 83-88, jul.-dez. 2009
diretamente com os municípios. Entretanto, num país com dimensão continental - configurado por um federalismo híbrido - os mecanismos de funcionamento e de negociação das esferas estaduais não podem ser desprezados quando se trata de implementação de políticas educacionais, tendo em vista a necessidade de se evitar a sobreposição de medidas da área.
Referências ABRUCIO, F. L. O Ultrapresidencialismo estadual. In: ANDRADE, R. de C. (org.). Processo de Governo no Município e no Estado. São Paulo: Edusp/Fapesp, 1998. p. 87-117. COSTA, V. M. F., OLIVEIRA, C. T. C. de. A Fraqueza da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. In: ANDRADE, R. de C. (org.). Processo de Governo no Município e no Estado. São Paulo: Edusp/Fapesp, 1998. p. 117-147. COUTO, C. G. Negociação, decisão e governo: padrões interativos na relação executivo-legislativo e o caso paulistano. In: ANDRADE, R. de C. (org.). Processo de Governo no Município e no Estado. São Paulo: Edusp/ Fapesp, 1998, p. 41-72. CURY, Carlos Roberto Jamil. Os desafios da construção de um Sistema Nacional de Educação. www. mec.gov.br/ conae/, acessado em 18 e 19 de maio, 2009. MARTINS, A. M. A agenda da educação nos tempos atuais: considerações sobre o cenário e as políticas de formação docente. Revista Iberoamericana de Educación., v. 39, p. 1-12, 2006. ________. A descentralização como eixo das reformas dos sistemas de ensino: uma discussão da literatura. Educação & Sociedade, Campinas, v. 22, n. 77, p. 28-49, 2001. ________. Autonomia da escola: a (ex) tensão do tema nas políticas públicas. São Paulo: Cortez Editora, 2002. ________. A política educacional paulista: controvérsias em torno dos conceitos de descentralização e autonomia (1983/1999). Educação & Sociedade, Campinas, v. 24, n. 83, p. 527-552, 2003. SAVIANI, D. Sistema de Educação: subsídios para a Conferência Nacional de Educação. www.mec.gov.br/ conae/, acessado em 24 de maio de 2009.
Qualidade da educação, gestão democrática e avaliação* Sandra Zákia Sousa** Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), Av. da Universidade, 308, Cidade Universitária Armando Salles de Oliveira, CEP 05508-040, São Paulo, SP, Brasil, e-mail: sanzakia@usp.br Com o propósito de contribuir com subsídios sobre os temas qualidade da educação, gestão democrática e avaliação, que são propostos para discussão no eixo n. 2 do documento-referência da Conferência Nacional de Educação, organizei minha exposição, cujo esboço é registrado no presente texto, de modo a explicitar, inicialmente, sua articulação. Em seguida, destacam-se aspectos nucleares acerca de cada um deles, visando contribuir com o encaminhamento de propostas pelos participantes, com vistas a indicação de referências para a elaboração do Plano Nacional de Educação. Palavras-chave: Qualidade da educação. Gestão democrática. Avaliação.
The quality of evaluation, democratic management and of assessment It was aiming to provide subsidies about the issues that surround the quality of education, democratic management, and assessments, which are proposed for discussion in axis 2 of the reference document for the National Conference on Education, that I organized my report, the outline of which is shown in this text, in order, initially, to make its articulation explicit. Nuclear aspects regarding each of them are then highlighted in order to assist in forwarding participant proposals to be used as references in the preparation of the National Education Plan. Keywords: Quality of evaluation. Democratic management. Assessment.
1 Introdução A oportunidade de debate com diversos interlocutores, representantes de escolas, de movimentos sociais, da gestão pública, de estudantes, de entidades acadêmicas e científicas, dentre outros, se constitui em espaço privilegiado para discussão da educação brasileira a partir do tema central da Conferência Nacional de Educação (CONAE): “Construindo o Sistema Nacional Articulado de Educação: o plano nacional de educação, diretrizes e estratégias de ação”.
A CONAE, para além da avaliação das políticas públicas de educação básica e superior, tem como alvo construir subsídios para a formulação de políticas que se constituam em referência para a elaboração do Plano Nacional de Educação. O documento-referência, que serve de base para as conferências municipais, intermunicipais e estaduais, aponta dentre outros desafios, para o Estado e para a sociedade brasileira, “a construção de um Sistema Nacional de Educação, responsável pela
* Este texto registra o esboço utilizado como referência para exposição feita na Conferência Intermunicipal – Polo Santos, em 27 de junho de 2009. ** Professora da Universidade de São Paulo, Membro de corpo editorial da Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos e Membro de corpo editorial da Revista Brasileira de Educação. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Planejamento e Avaliação Educacional. Atuando principalmente nos seguintes temas: Avaliação Escolar, Ensino.
90
Sandra Zákia Sousa
institucionalização de orientação política comum e de trabalho permanente do Estado e da sociedade na garantia do direito à educação”. A construção de um Sistema Nacional de Educação no Brasil é um desafio histórico que impõe o enfrentamento de diferentes obstáculos. Dermeval Saviani (2009), em texto que elaborou tratando do tema, para subsídio a CONAE, indicou obstáculos econômicos, políticos, filosóficos e legais. Sem dúvida, a superação de tais obstáculos supõe transformações estruturais na educação brasileira, com implicações na relação e articulação dos entes federados com vistas a garantia do direito à educação com qualidade para todos. Torna-se, portanto, imprescindível a regulamentação do regime de cooperação. Com a perspectiva de se buscar uma Política de Estado na área de educação para o Brasil, vamos ter a oportunidade, nesta Conferência Intermunicipal, de dialogar sobre os seis eixos temáticos apresentados no documento-referência, que abarcam aspectos estruturantes da educação. Cabe-nos, neste subgrupo, a discussão do Eixo II, qual seja, “Qualidade da Educação, Gestão Democrática e Avaliação”. A CONAE possibilita analisar a educação nacional com o intuito de indicar proposições, suscitando debates sobre maior articulação das políticas públicas em prol do aprimoramento da qualidade da educação. As proposições serão por vocês apontadas. Espero, com esta breve exposição, trazer elementos que contribuam para os encaminhamentos e decisões que competem a este coletivo. A partir de uma explicitação de como compreendo a articulação entre os três temas que são objeto do Eixo II, indico, em relação a cada um deles, aspectos que considero essenciais de serem debatidos e apresento alguns destaques, que suscitam o encaminhamento de propostas.
2 No eixo II, cabe-nos tratar: • do principal desafio da educação brasileira, qual seja, a promoção de sua qualidade; • dos processos de gestão, remetendo ao debate sobre mecanismos capazes de viabilizar a constituição de um espaço público de direito, por meio da gestão democrática, dimensão esta, em meu Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 89-92, jul.-dez. 2009
entender, constitutiva da própria noção de qualidade da educação; e • da avaliação, que entendo como atividade que tem seu sentido garantido na medida em que se coloca a serviço do contínuo aprimoramento da qualidade da educação.
Portanto, a concepção de gestão e a visão sobre avaliação se inserem em dada compreensão de qualidade da educação, que seja assumida como referência. Ou seja, o tema qualidade perpassa todos os eixos em debate nesta Conferência, norteando, desse modo, não apenas os encaminhamentos relativos aos temas gestão e avaliação.
3 Sobre qualidade da Educação Falar sobre qualidade da educação significa, no limite, tornar realidade o direito à educação, como condição para a participação social, nas dimensões econômica e política. Econômica, ao viabilizar a inserção das novas gerações no processo produtivo, que têm no trabalho assalariado a alternativa de sobrevivência, com dignidade. Política, ao contribuir para a convivência social pautada no respeito à dignidade humana, que supõe a capacidade de viver juntos a partir das diferenças e a não conformação com as desigualdades. 3.1 Como aponta o documento: Qualidade da Educação: • condicionada por fatores macroestruturais do Estado brasileiro, decorrentes das relações econômico-financeiras vigentes. Refletindo o modelo excludente de desenvolvimento econômico, temos um dos mais injustos índices de distribuição de renda entre todas as áreas do mundo, com amplos contingentes da população que não têm tido sequer atendido seu direito à vida e ao trabalho. Ou seja, não têm atendidos seus direitos básicos de cidadão, dentre os quais o direito à educação. • condicionada por fatores internos aos sistemas e instituições educacionais, que contribuem para que se perpetue um nível de escolaridade baixo e desigual da população brasileira.
91
Qualidade da educação, gestão democrática e avaliação
Destaques: Relevância e urgência de se construir e estabelecer acordos sobre PARÂMETROS DE QUALIDADE (insumos indispensáveis, nº de alunos por turma, tipo de contrato de trabalho do professor etc.). Tais parâmetros representam condição para se estabelecer um CONCEITO-CHAVE: CUSTO ALUNO-QUALIDADE para tal, o financiamento público é fundamental.
4 Sobre Gestão Democrática da Educação Ter-se como alvo a gestão democrática, impõe a organização e fortalecimento de colegiados em todos os níveis da administração da educação implica participação, no sentido de partilhar poder de decisão. No caso dos sistemas de ensino, tal perspectiva deve permear não apenas as escolas, mas todos os níveis da administração pública. Destaques: • Regulamentar o artigo 206 da Constituição Federal/1988 – princípio da gestão democrática - guardadas as especificidades para os sistemas públicos e para o setor privado da educação. • O Conselho Nacional de Educação, os Conselhos Estaduais de Educação e os Conselhos Municipais de Educação caráter normativo e deliberativo. • Constituição do FÓRUM NACIONAL DE EDUCAÇÃO. • CONCEITO-CHAVE: controle social.
5 Sobre Avaliação • A avaliação vem ocupando lugar central nas políticas educacionais em realização no Brasil, particularmente a partir da última década do séc. XX. É tal a sua importância que, ao invés de ser tratada como um meio de subsidiar a formulação e implementação de políticas educacionais, ganha status de políticas de avaliação – invertese, usualmente, o papel da avaliação, de meio passa a ser fim. • Certamente, a avaliação das políticas educacionais é um dever dos gestores públicos e um direito da sociedade em uma perspectiva de gestão democrática, como valioso instrumento
para promoção da qualidade da educação. Deve, portanto, ser tratada como inerente à política educacional para que tenha potencial de subsidiar as diferentes instâncias responsáveis pela oferta da educação básica e superior na formulação e implementação de propostas e ações, não se caracterizando, assim, como atividade fim. • Tendências das iniciativas em implementação: restringem-se a mecanismos de regulação de sistemas e instituições; difundem como principais valores o mérito, a competição e a excelência; responsabilizam os níveis operacionais pelos resultados obtidos; uso dos resultados para premiar e sancionar performances. (SOUSA; FREITAS, 2004, p. 182). • Avaliação: para além de resultados, serem julgados insumos e processos. • Avaliação: não pode ser confundida com Exame.
Destaques: • Construção de propostas de avaliação que sirvam à democratização da educação e, nesse sentido, que se revistam de características que possibilitem subsidiar: • a análise da implementação das políticas educacionais e do papel e função desempenhados pelas instâncias governamentais, em direção à construção de uma educação de qualidade para toda a população; • as instituições educacionais na definição de prioridades e encaminhamento de decisões que possibilitem o aprimoramento de seu trabalho. • Sistema Nacional de Avaliação contemple níveis de ensino, diferentes instâncias e modalidades de avaliação.
Sistema Nacional de Educação > articulação dos entes federados > regulamentação do regime de cooperação.
Referências CONAE- Construindo o Sistema Nacional Articulado de Educação: O Plano Nacional de Educação, suas Diretrizes e Estratégias de Ação. Documento-referência. Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 89-92, jul.-dez. 2009
92
Sandra Zákia Sousa
SOUSA, Sandra M. Zákia L.; FREITAS, Dirce Nei Teixeira de. Políticas de avaliação e gestão educacional no Brasil, década de 1990 aos dias atuais. Educação em Revista. Belo Horizonte, n. 40, p. 165-185, 2004.
Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 89-92, jul.-dez. 2009
SAVIANI, Demerval. Sistema de Educação: subsídios para a Conferência Nacional de Educação. www.mec.gov.br/ conae/, acesso em maio de 2009.
Questionando o acesso, a permanência e o sucesso escolar Alda Junqueira Marin* e José Geraldo Silveira Bueno* Programa de Estudos Pós-graduados em Educação: História, Política, Sociedade, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/São Paulo) Rua João Ramalho, 295, Perdizes, CEP 05008-000, São Paulo, SP, Brasil, email: aldamarin@pucsp.br
No percurso das últimas décadas detectamos diversos limites ao acesso, à permanência e ao sucesso escolar apontados por estudos e também retomados pelo documento referência preparado pelo MEC para a Conferência Nacional de Educação. Neste texto abordamos, como eixo analítico, o acesso ao conhecimento, e não meramente às vagas escolares, apontando limites e possibilidades no interior de escolas como resultados de pesquisas. Palavras-chave: Acesso. Permanência. Sucesso escolar.
Questioning access, permanence and success in school In the past few decades, we have noticed several limits imposed on accessing, remaining, and attaining success in school. Such limits have been pointed out not only by studies, but also by the reference document the Ministry of Education and Culture (MEC) prepared for the National Conference on Education. In this paper, we cover, as an analytical axis, access to knowledge, not merely to school vacancies, and single out limits and possibilities there are inside schools as a result of research. Keywords: Access. Permanence. Success in school.
1 Introdução A leitura do Documento Referência da Conferência Nacional de Educação (CONAE) permitiu, a todos, a consciência do tamanho dos problemas enfrentados pelo Brasil em todos os seus âmbitos e com todas as intersecções reunidas em um só texto. Na apresentação do referido documento, o coordenador da Comissão Organizadora Nacional estipula o tema central e vai além ao enfatizar que a partir da publicação de tal documento ele se tornaria objeto de estudo e consequente deliberação com vistas a elaboração de novas diretrizes que regulem a educação na “perspectiva da inclusão, igualdade e diversidade”.
O seu conteúdo trabalha com seis eixos, dentre os quais o III, qual seja, “Democratização do acesso, permanência e sucesso escolar”, nosso foco mais detalhado na análise do documento. A análise desse eixo nos permite verificar a extensão e a profundidade do tema com os dados já disponíveis nos órgãos de governo, em todas as instâncias com o reconhecimento do atendimento insuficiente e a ausência da consecução de metas do Plano Nacional da Educação prestes a findar. Mas os problemas também estão na mídia e nas exigências postas aos agentes educativos do interior das redes de ensino e das escolas, sobretudo responsabilizando pesadamente os professores.
* Professor e pesquisador do Programa de Estudos Pós-graduados em Educação: História, Política, Sociedade da PUC/SP.
94
Alda Junqueira Marin e José Geraldo Silveira Bueno
Esses trinta e três tópicos com dados de avanços e problemas levaram a equipe a estabelecer dezenove (19) itens (p. 35 a 39) que constituem desafios nesse eixo temático, em clara fixação de relações entre o que se tem e o que é necessário. Esse eixo, como os demais com suas necessidades que também constituem outros inúmeros desafios, contém, em nossa opinião, a riqueza do amplo espectro adequado para esta etapa, porém excessivos focos e frentes a serem implantados e implementados que exigirão, sem dúvida, definição de prioridades. Nosso ponto de vista é o de que a prioridade zero para o país ainda é a universalização da escolarização a toda a população. Evidentemente se busca a qualificação dessa expansão e a decisão a ser tomada é a de por qual roteiro obtê-la. Diante dessa síntese introdutória restou a nós, como certamente a todos os que estão participando desse movimento em torno da Conferência, decidir sobre o que e a partir do que falar. Assim sendo, nossa opção foi a de tomar uma expressão do próprio documento presente no item 118 (p. 31) em que se aponta: “Se, de um lado, acesso, permanência e sucesso caracterizam-se como aspectos fundamentais da democratização e do direito à educação, de outro, o modo pelo qual essa prática social é internamente desenvolvida pelos sistemas de ensino e escolas torna-se a chave mestra para o seu entendimento”. O grifo aqui é de nossa autoria posto que corresponde muito a um dos focos que estamos perseguindo, sobretudo nas duas últimas décadas. Percebe-se, então, que estamos partindo da análise por meio da pesquisa, com e sobre a escola e seus agentes. Nesse percurso das últimas décadas detectamos limites de natureza diversa ao acesso, à permanência e ao sucesso escolar, entendidos no que tange à função primordial para as populações mais necessitadas: o conhecimento e o desenvolvimento da Humanidade de que todos devemos ser portadores. Entretanto também foi possível encontrar possibilidades, brechas por onde é possível avançar, sobretudo para atender às milhões de crianças que não estão sendo focalizadas, como as que se encaixam nos estudos e políticas de atenção às diversidades (afrodescendentes, deficientes, educação no campo e indígenas). Nosso eixo analítico, portanto é o do acesso do alunado ao conhecimento ministrado nas escolas Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 93-100, jul.-dez. 2009
que deve ser fornecido de modo efetivo, profundo e duradouro, garantidor do sucesso do mesmo alunado em todas as instâncias de sua vida e não apenas o acesso e a permanência física no interior das instituições e sua certificação formal. Serão apresentados dados de análise, num primeiro bloco, com os limites a partir de três situações relatadas de pesquisas diferentes e, num segundo bloco, as possibilidades detectadas, também a partir de casos para, ao final, apontar o que consideramos urgências para priorizar.
2 Dos limites Os estudos elaborados sobre a escola e, também a partir de ações políticas das instâncias governamentais em diferentes âmbitos, apontam dados que reforçam estudos nacionais (ZAGO, 2000; PATTO, 1996; SAMPAIO, 2004; FERRARO, 1999) e internacionais (BOURDIEU, 1998a, b; CHARLOT, 1996; LAHIRE, 2004) sobre seletividade escolar, relacionando-a à seleção e classificação social, destacando origem social e destino social, obtendo-se suas relações com sucesso e fracasso escolar do alunado. Dentre os resultados desses dados oficiais do país encontra-se a seletividade no que se refere a retenções e evasões – os mais comumente citados há décadas – e, nos últimos anos, a seletividade ocasionada pelas ações internas das escolas, apontando-se, sobretudo, os macrodados trazidos pelas estatísticas com baixos índices de aprendizagem do alunado. Não é necessário apresentá-los por serem sobejamente veiculados nas extensas e constantes avaliações regionais e nacionais (SÃO PAULO, 2007; BRASIL, 2001). No que tange às pesquisas realizadas no âmbito dos grupos de pesquisas e instituições universitárias, o foco privilegiado tem sido o das análises de políticas e da ação da escola e, menos, os aspectos e práticas que relacionem tais ações com os resultados de alunos (BUENO, 2005). Neste item do texto focalizamos os alunos por meio das medidas tomadas pelas escolas em sua organização e a interferência nas ações de sala de aula e sobre o (não)acesso e insucesso escolar do alunado.
95
Questionando o acesso, a permanência e o sucesso escolar
Situação 1 O estudo de Dias (2008) teve como objetivo a compreensão das ações pedagógicas de duas professoras nas aulas que implementavam a ação política educativa do reforço escolar para crianças que não sabiam ler nas 4as séries de uma escola da rede estadual. Foram feitas observações diretas em salas de aula duas vezes por semana, após testes de leitura de palavras simples com correspondência a desenhos, verificação de condições para aprendizagem e novo teste ao final das observações. Eram 307 alunos ao todo, nas 4as séries, todos submetidos ao diagnóstico. Verificou-se, ao final, que as questões relativas à superação da condição de não leitor são de ordem variada, incluindo as de sala de aula. A primeira dessas condições se referiu à ação seletiva que enviou para o reforço um número de alunos bem abaixo daqueles que permaneceram no grupo classe, sem ter o domínio em leitura esperado para essa série. Ou seja, o critério de composição das turmas é variado, com isso, interditando o acesso
a esse conhecimento básico por parte de muitas crianças não atendidas por esse tipo de atividade. Além disso não havia contato das professoras com a direção e nem com as professoras das classes de origem dos alunos, assim como não havia mediação da coordenação. Acresça-se a esses pontos a rotatividade de crianças nas turmas de reforço, fato que revelou vários alunos com frequência de apenas um semestre, mesmo sem o domínio da leitura. Os dados sintetizados no Quadro 1 apontam os resultados obtidos na atividade teste de leitura ao final do ano, revelando a inocuidade da ação política agravada pelas ações organizativas da escola. Verifica-se o baixo desempenho dos alunos inclusive dos cinco que frequentaram e foram acompanhados o ano todo pela pesquisadora: Emer, Gi, Max, Fran e Ig. Apenas um aluno – Mai L – teve o desempenho esperado de ler palavras e o texto com compreensão. São crianças com a continuidade da escolaridade comprometida e com enormes dificuldades
Quadro 1. Resultado final de todos os alunos que participaram do reforço. Série/ nº de alunos 4ª A / 40 alunos
Relação de alunos convocados KL
Relação de resultados
Leu 4 palavras. Na palavra “telhado” leu “gato”. Confunde “d” com “b”. EMER* Leu com dificuldade. Onde era “camarão” leu “macarrão”. 4ª B / 40 alunos MAG Não conseguiu ler as palavras. Reconhece letras. GI* Leu com dificuldade. Reconhece letras. TA Leu com dificuldade. Reconhece letras. MAX* Não leu. Reconhece letras. 4ª C / 41 alunos DIO Não conseguiu ler. Reconhece letras. WI Não conseguiu ler. Reconhece letras. 4ª D / 41 alunos AL Não conseguiu ler “aquário”, “galinheiro”, “telhado”. Confunde “ga” com “já”. DEI Leu todas as palavras sem hesitar. Leu o primeiro parágrafo do texto, mas não entendeu. KEVI Leu 4 palavras. Não conseguiu ler “telhado”. Não conhece o “lh”. Leu primeiro parágrafo, mas não entendeu. MAI L Leu as palavras e o texto muito bem. Compreensão ótima. PIE Leu as palavras. Leu o texto e não compreendeu. STEF Não conseguiu ler. Reconhece letras. WES Não conseguiu ler. Reconhece a primeira letra. * Alunos acompanhados desde o primeiro semestre.
Frequência Frequentou 1º e 2º semestres Frequentou 1º e 2º semestres Frequentou 1º e 2º semestres Frequentou 1º e 2º semestres Frequentou 1º e 2º semestres Frequentou 1º e 2º semestres Frequentou 1º e 2º semestres Frequentou 1º semestre Frequentou 1º semestre Frequentou 1º semestre Frequentou 1º e 2º semestres Frequentou 1º e 2º semestres Frequentou 1º e 2º semestres Frequentou 1º semestre Frequentou 1º semestre
Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 93-100, jul.-dez. 2009
96
Alda Junqueira Marin e José Geraldo Silveira Bueno
Série/ nº de alunos 4ª E / 39 alunos
Relação de alunos convocados B FI L FRAN*
Relação de resultados
Leu as palavras. Leu as palavras com dificuldade. Não conseguiu ler. Reconhece as sílabas simples. PA Leu as palavras. Não conseguiu ler o texto. TIO R Leu as palavras com dificuldade. Não conseguiu ler o texto. DAV Não conseguiu ler. 4ª F / 39 alunos BIA Leu as palavras. Leu o primeiro, segundo, terceiro parágrafos, mas não conseguiu explicar. ESTE Leu as 5 palavras. Não conseguiu ler o texto. ROD Leu as 5 palavras. Leu o primeiro parágrafo do texto, mas não conseguiu explicar. ISAC Leu as palavras com dificuldade. JUL Leu as palavras. Leu o primeiro parágrafo do texto, mas não conseguiu explicar. AD Não conseguiu ler as palavras. LEO Leu as palavras e o texto. Não compreendeu o que leu no texto. LAR Não conseguiu ler as palavras. 4ª G / 39 alunos ALEX Leu as palavras. Leu o texto, mas não compreendeu. AP Reconhece letras, mas não lê. AND Leu as palavras com dificuldade. BH Leu com dificuldade. EV Leu as palavras e não quis ler o texto. GAB Leu as palavras com dificuldade. SAR Leu com dificuldade as palavras. NAT Não conseguiu ler. Reconhece algumas letras; vogais. 4ª H / 38 alunos TEL Leu as palavras. Leu o texto, mas não compreendeu. LU Não leu as palavras. Reconhece letras. FER Leu as palavras e não leu o texto. MAY Leu as palavras. Não conseguiu ler o texto. IG* Leu as palavras. Não leu o texto. * Alunos acompanhados desde o primeiro semestre.
de sobrevivência digna. Esta é uma diversidade perversa. Situação 2 Para detectar o modo pelo qual a Secretaria da Educação do estado de São Paulo e as escolas a ela subordinadas operavam com a seleção e recrutamento de professores que atuavam no ensino médio, Reis (2006) realizou um estudo buscando identificar a presença do professor não habilitado. Pelo percurso da pesquisa, o primeiro dado organizacional percebido foi o de uma rede que Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 93-100, jul.-dez. 2009
Frequência Frequentou 1º e 2º semestres Frequentou 1º semestre Frequentou 1º e 2º semestres Frequentou 1º semestre Frequentou 1º e 2º semestres Frequentou 1º semestre Não frequentou Frequentou 2º semestre Frequentou 1º e 2º semestres Frequentou 1º e 2º semestres Frequentou 1º e 2º semestres Frequentou 1º e 2º semestres Frequentou 1º e 2º semestres Frequentou 1º semestre Frequentou 1º semestre Frequentou 1º semestre Frequentou 1º e 2º semestres Frequentou 1º e 2º semestres Frequentou 1º semestre Frequentou 1º e 2º semestres Frequentou 1º semestre Frequentou 1º semestre Frequentou 2º semestre Frequentou 1º e 2º semestres Frequentou 1º semestre Frequentou 1º semestre Frequentou 1º e 2º semestres
se desconhece pelo desencontro de informações, extravio de papéis, demora nos prazos de atendimento às solicitações de informação e ausência de registros sobre situações de professores e da atribuição de aulas. Ao se aproximar do corpo docente das escolas, a pesquisadora não só identificou a presença de professores não habilitados como denominoua de marcante (p. 156), com professores críticos, angustiados, com anseios e expectativas quanto à qualificação para adentrar a sala de aula ao consi-
Questionando o acesso, a permanência e o sucesso escolar
derar a possibilidade de levar atendimento de baixa qualidade aos jovens. Essa situação decorre, em parte, da legislação, porém há uma larga margem de atuação organizativa da escola que opera com normas diversas. Tal situação se deve a limitações das prescrições formais e à necessidade de “flexibilização” da legalidade, da agilidade na chamada dos professores para resolver problemas de faltas; da atribuição de função à inspetora de alunos que era a responsável por designar o substituto; aos diretores que podem aceitar, ou não, o professor eventual encaminhado à escola; a presença do “QI”, ou seja, das relações pessoais de “quem indica” para conseguir aulas; inserção de professores sem nenhuma habilitação ou outra habilitação muito diversa, como foi o caso de profissional com curso de Pedagogia, que veio a ministrar aulas de qualquer componente onde houvesse falta de professores. Não é impossível, nem difícil avaliarmos as consequências dessas formas de organização do ensino médio em relação ao conhecimento sobretudo por se tratar de etapa importante em que o alunado tem a oportunidade de acesso a áreas científicas específicas com professores que devem ter formação especializada para tanto. Situação 3 Ao procurar entender a diferença de rendimento escolar dos alunos do Ciclo II do ensino fundamental em São Paulo, Lara (2008) se dedicou a investigar oitavas séries de uma escola pública municipal. No decorrer da coleta das informações identificou a organização dos alunos em três turmas: as 8as A, B e C. Desde logo obteve, na escola, a informação sobre a diferença entre elas, algo que perpassa a história e a cultura da escola, qual seja, a organização escolar das turmas pelo rendimento dos alunos na busca pela homogeneidade. A manifestação da professora de Matemática é exemplar das manifestações presentes em toda a escola. Você irá observar somente as turmas de 8ª série? A 8ª C é a sala mais fraca e difícil. Eles não acompanham a matéria e poucos estão interessados. Muitos já desistiram, não aguentaram. A melhor turma da escola é a 8ª A, que apesar de conversarem bastante eles conseguem acompa-
97
nhar as aulas e fazem todas as atividades. Você logo irá perceber a diferença entre eles.
A pesquisadora iniciou as observações das aulas e, ao mesmo tempo, foi coletando outras informações sobre a escola, seus agentes educacionais, sobre os alunos e a vida escolar deles anterior às oitavas. Dentre tais informações obteve as fichas dos alunos no momento da transição do Ciclo I para o Ciclo II do ensino fundamental e a organização das turmas ao passar de um ciclo a outro. Verificou, então, a origem da situação vigente, pois ao se organizarem as turmas o fator do rendimento foi decisivo para a busca das classes homogêneas, mascarando, desde então, esse grupo de alunos. Tais características se mantiveram ao longo dos anos, com todos na escola sabendo que a 8a A era a “boa”, a 8a B era a “média” e a 8a C era a “dos mais fracos da escola”. A rotulação (ROSENTHAL; JACOBSEN, 1986), em si mesma, revela o mecanismo criado pela escola para a seletividade e hierarquização. Porém vai além da sala de aula, pois o Conselho de Classe opera da mesma forma nas reuniões de avaliação coletiva dos alunos, uma vez que são os mesmos agentes. A observação das aulas permitiu, ainda, detectar como essa organização opera sobre a parte didática, pois havia desigualdade na distribuição do conhecimento entre as turmas com diferença, tanto na quantidade das noções, quanto no tipo das atividades organizadas e no relacionamento entre professores e alunos. Verifica-se a desigualdade de acesso ao conhecimento decorrente do modo de organização das turmas e a manutenção da hierarquia interditando tais alunos aos seus direitos, jogando um jogo que conta com a desistência. Não aguentam mesmo, pois não se prepara um trabalho a ser feito por e para eles, apesar da diminuição nas exigências.
3 Possibilidades A presença das contradições no interior das escolas, tal qual na vida fora dela, permite que apontemos possibilidades ao lado dos limites, às vezes nas mesmas situações já relatadas, às vezes em outras pesquisas. Neste item são descritas e analisadas, sucintamente, situações demonstrativas de possibilidades Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 93-100, jul.-dez. 2009
98
Alda Junqueira Marin e José Geraldo Silveira Bueno
de organizações adequadas ou de condutas diversas em relação ao que já estava estabelecido há anos. Situação 1 Na mesma pesquisa anteriormente relatada, de Lara (2008), observou-se, no decorrer do semestre, uma situação particularmente inusitada da 8ª C. Ao observar as aulas de Geografia ministradas em sequencia nas três séries, a pesquisadora verificou similaridade de tratamento com a mesma matéria, com relacionamento cordial e respeitoso entre professor e alunos, sem brincadeiras, com dedicação ao trabalho. Percebeu-se que a atividade didática não tinha o mesmo peso das rotulações quando comparada às dos demais professores. Lara aponta, nesse caso, o contraponto da resposta dos alunos quando a atitude do professor muda, inclusive na 8a C. Intrigada com esse tipo de situação, a pesquisadora procurou saber as razões da diferença acabando por identificar, entre os dados coletados, que o professor era novo na rede municipal, recém contratado para atuar em História e Geografia e, portanto, não “contaminado” com a rotulação vigente, ignorando o critério de organização anterior, incentivando os alunos para fazerem as atividades, demonstrando interesse por eles, permitindo perguntas e explicando adequadamente as noções. Há que se pensar que, nem sempre a socialização, que ocorre entre os professores novatos nas instituições (FERREIRINHO, 2004), é favorável aos alunos, pois neste caso o que favoreceu foi a ausência da difusão de informações. Situação 2 Analisando-se os resultados da pesquisa de Dias (2008), verifica-se que apenas um dos alunos, dentre os quarenta e dois que frenquentaram o reforço durante o ano todo, conseguiu o sucesso esperado de leitura e compreensão tanto de palavras quanto de um pequeno texto. Verifica-se que ocorreu a presença de fatores fora do controle da escola, considerando que nenhum tratamento diferençado foi dedicado a ele. Esta é uma situação que inspira a necessidade de outros estudos. Alguns conseguiram resultados positivos parciais, porém ficaram na esfera do reconhecimento e não da compreensão. O resultado final, entretanto, foi Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 93-100, jul.-dez. 2009
pífio. Porém, a possibilidade se deu exatamente pela realização da pesquisa, a percepção pela escola do que ocorria e das necessidades de alteração dos modos de enfrentar essas dificuldades na alfabetização das crianças. Situação 3 Marum (2008) investigou trajetórias acidentadas de alunos do ensino médio noturno da rede estadual paulista, assim considerados aqueles que reiteradas vezes se evadem, mas tempos depois retornam novamente aos bancos escolares. Entre seus sujeitos havia um rapaz de 18 anos , repetente pela segunda vez na 2ª série, considerado como um aluno desinteressado e pouco frequente tanto por professores, quanto pela direção. Ao investigar mais detalhadamente a sua situação, verificou-se que seu pai tinha uma história de alcoolismo reiterado, que levou a família a perder quase tudo o que tinha. Por circunstâncias sociais, que não vem ao caso detalhar, o pai conseguiu uma oportunidade de abrir um pequeno negócio e estava há dois anos sem beber, sendo que o jovem trabalhava com ele, o que parecia dar ainda mais ânimo, tanto para fazer com que o negócio desse certo, quanto no combate ao alcoolismo. Foi nesse momento que ele decidiu retornar aos estudos, depois de algumas desistências, tendo escolhido essa escola pela fama que tinha de ser uma “boa escola”. Ocorre que, muitas vezes, a atividade comercial se estendia até mais tarde e ele, procurando dar todo o apoio ao pai, faltava às aulas ou chegava muito atrasado, o que já lhe havia custado o primeiro ano de reprovação por faltas. Nas entrevistas realizadas o rapaz parecia mostrar muito empenho para concluir o ensino médio, mas se angustiava por achar que não poderia abandonar seu pai. O que nos interessa, para fins desta apresentação, é a constatação de que nenhum professor e nem a equipe técnica tinham conhecimento dessa situação (com algumas semelhanças com situações de outros sujeitos pesquisados), o que parece ser um paradoxo: o ensino noturno foi idealizado para o jovem trabalhador, mas não há qualquer iniciativa para, em primeiro lugar, verificar como se dá a relação entre escola e trabalho com o intuito de se estudar e implementar alternativas para jovens que ficam entre a necessidade de trabalho e o anseio pelos estudos.
Questionando o acesso, a permanência e o sucesso escolar
No caso em tela, após a comunicação do problema do aluno pela pesquisadora, a escola resolveu que montaria uma grade horária alternativa todo ano, com distribuição diferenciada das disciplinas nas primeiras aulas, de tal forma que o aluno, mesmo que em prazo maior, pudesse concluir o ensino médio, possibilitando não só a ele, mas a outros alunos, evitarem reprovação por falta de frequência às aulas.
4 Considerações finais O destaque feito neste texto foi para aspectos de organização interna da atividade educativa mantenedora das relações entre origem e destinação social e educacional de crianças oriundas de camadas mais desprivilegiadas, demonstrando como aspectos pouco percebidos jogam papel fundamental em relação às questões focalizadas neste eixo. Os estudos e análises internas das escolas não constituem foco novo, posto que desde o início da década de 1930 já tínhamos estudos, nessa direção, publicados em 1932 com várias re-edições (WALLER, 1961). Partilhamos da ideia de que compreender a educação é, necessariamente, compreendê-la por meio da escola, descrevendo e analisando suas práticas na trama das relações sociais em que se desenvolve o trabalho educativo. As situações aqui selecionadas se multiplicam pelo país afora, conforme dados relatados no documento que dá origem a esta conferência, ou seja, casos de fracasso escolar contabilizados pelos órgãos oficiais. Entretanto resultam de facetas internas que as escolas podem ter ações sutis ou consideradas normais pelos educadores e suas famílias, pesquisas como as que se vêm revelando. Esses dados vão na direção da elucidação do modo pelo qual a prática social educativa se desenvolve e, de fato, constitui a chave mestra de seu entendimento como limite ao acesso ao conhecimento e aos direitos ou como possibilidade de onde alterar para o mesmo acesso e sucesso escolar. Tão ou mais grave do que não ter vagas para todos e segurá-los na escola é a necessidade urgente de não interditar o acesso ao conhecimento ou fazê-lo de modo que ele permaneça incorporado para poder usufruir dele nos momentos em que se fizer necessário, sob pena de não se efetivar a tão
99
pregada “inclusão, igualdade e diversidade” que todos desejamos.
Referências BOURDIEU, P. A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. In: NOGUEIRA, M. A. e CATANI, A. Pierre Bourdieu. Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1998a, p. 39-64. _________. Os excluídos do interior. In: NOGUEIRA, M. A. e CATANI, A. Pierre Bourdieu. Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1998b, p. 217-227. BRASIL. Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica – SAEB. Brasília, 2001. Disponível em http://www.inep. gov.br/relatorionacionalsaeb2001.pdf. BUENO, J. G. S. Alunos e alunos especiais como objetos de investigação: das condições sociais às condições pessoais adversas. In: FREITAS, M. C. (Org.). Desigualdade social e diversidade cultural na infância e na juventude. São Paulo: Cortez, 2005, p. 333-359. CHARLOT, B. Relação com o saber e com a escola entre estudantes de periferia. Cadernos de Pesquisa. São Paulo, n. 97, p. 47-63, 1996. DIAS, E. D. As ações – contribuindo para o sucesso e fracasso – nas aulas de reforço para alunos da 4ª série que não sabem ler. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica. Dissertação (Educação: História, Política, Sociedade), 2008. FERRARO, A. R. Diagnóstico da escolarização no Brasil. Revista Brasileira de Educação, n. 12, 1999. FERREIRINHO, V. C. Começar de novo: práticas de socialização do professor em início de carreira. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica. Dissertação (Educação: História, Política, Sociedade), 2004. LAHIRE, B. Sucesso escolar nos meios populares – as razões do improvável. São Paulo: Ática, 2004. MARUM, D. J. Evasão escolar no ensino médio: um estudo sobre trajetórias escolares acidentadas. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica. Dissertação (Educação: História, Política, Sociedade), 2008. PATTO, M. H. S. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: T. A. Queiroz, 1996. REIS, R. R. O professor do ensino médio público estadual de Santos (SP), sua formação e seleção. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica. Dissertação (Educação: História, Política, Sociedade), 2006. ROSENTHAL, R. e JACOBSEN, L. Profecias autorealizadoras em sala de aula: as expectativas dos professores como determinantes não intencionais da competência intelectual. In: PATTO, M. H. S. Introdução Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 93-100, jul.-dez. 2009
100
Alda Junqueira Marin e José Geraldo Silveira Bueno
à Psicologia Escolar. São Paulo: T. A. Queiroz, 2ª ed., 1986, p. 258-295.
WALLER, W. The sociology of teaching. New York: Russell & Russell, 1961.
SAMPAIO, M. M. F. Um gosto amargo de escola: relações entre currículo, ensino e fracasso escolar. São Paulo: Iglu, 2004.
ZAGO, N. Quando os casos contrariam as previsões estatísticas: os casos de êxito escolar nas camadas socialmente desfavorecidas. Paidéia, Ribeirão Preto, 2001.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria do Estado da Educação. Sistema de avaliação do rendimento escolar do Estado de São Paulo, 2007. Disponível em: http://www.saresp. edunet.sp.gov.br.
Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 93-100, jul.-dez. 2009
Formação e valorização do docente: por onde começar?* Maria Amélia Santoro Franco** Universidade Católica de Santos, Mestrado em Educação (UNISANTOS), Rua Carvalho de Mendonça, 144, Vila Mathias, CEP 11070-906, Santos, SP, Brasil, e-mail: ameliasantoro@uol.com.br
O texto é uma síntese de palestra proferida no Encontro Intermunicipal realizado em Santos, preparatório à Conferência Nacional de Educação, CONAE 2010. Nele reafirmo três posicionamentos, que considero fundamentais para a análise da questão da valorização e formação docente: a) O processo de formação não pode ser discutido desvinculado das condições de trabalho; das condições de carreira e das condições concretas de salário; b) a escola, local de trabalho do professor, para cumprir seu papel de formadora, deve revestir-se de condições que fomentem o desenvolvimento profissional dos docentes e c) as reformas educacionais só produzirão transformações concretas na prática, quando contarem com a adesão e apoio dos professores. As análises focalizadas são fruto de pesquisa que venho realizando junto ao Observatório da Prática Docente e indicam que: a) discursos não formam um professor; b) teorias, apesar de necessárias, sozinhas não formam o professor. Teorias funcionam na interlocução com os confrontos e contradições que a realidade impõe à prática, desta forma, funcionam como ferramentas a iluminar o sujeito e o contexto das práticas; c) receitas prescritivas que indicam um modo de fazer não formam um sujeito; no entanto a prática requer técnicas, não receitas; técnicas como teorias da ação e/ou ação em teoria; d) bônus, avaliações externas, cartilhas também não formam o professor, enfim, considera-se que a formação não se resume a cursos ou pacotes de capacitação; mas a formação é, acima de tudo, condições para formação e são essas condições os desencadeadores dos processos de valorização docente. Palavras-chave: Formação dos Profissionais da Educação. CONAE 2010. Valorização e Formação Docente. Condições para Qualificação. Processo de Valorização Docente.
Título em Inglês This paper is a summary of a speech made during the Intermunicipal Gathering held in Santos in preparation for the National Conference on Education (CONAE 2010). In it, I reassert three positions that I consider fundamental to analyze the issue of valuing and qualifying teachers: a) The qualification process cannot be discussed disconnected from work conditions, from career conditions and from concrete wage conditions; b) in order to fulfill its role as a qualifier, the school - the teacher’s workplace - must line itself with conditions that drive the teachers’ professional development; and c) educational reforms will only bring about concrete transformations if teachers not only join in, but support them. The focused analyses are the fruit of research I have been carrying out with the Teaching Practice Observatory that indicates that: a) speeches do not qualify a teacher; b) theory, although necessary, in isolation does not qualify a teacher. Theories work in the interlocution with the confrontations and contradictions that reality imposes on practice, and, as such, they
* Síntese da palestra proferida em Santos no Encontro Intermunicipal antecedente à CONAE 2009. Dia 27/06/2009. ** Pesquisadora CNPQ. Professora/Pesquisadora da Universidade Católica de Santos/UniSantos.
102
Maria Amélia Santoro Franco
are tools that are useful to guide the subject in the context of practice; c) prescriptive recipes that show a way to do things to not qualify a subject; however, practice requires techniques, not recipes; techniques as theories of action and/or action in theory; d) bonuses, outside assessments, and primers do not qualify teachers either. In sum, we believe training cannot be not limited to courses or qualification packages, rather, above all, it requires conditions for qualification, and it is these conditions that trigger the processes of valuing teachers. Keywords: Qualifying Education Professionals. CONAE 2010. Valuing and Qualifying Teachers. Conditions for Qualification. Processes of Valuing Teachers.
1 Questões iniciais Por que estou aqui falando de formação e valorização do docente? Que vivências tive que me autorizam fazer essas reflexões aqui com vocês, professores e professoras da Baixada Santista? Quero realçar três lugares de onde falo: 1) Como pedagoga, há quarenta anos, sempre vinculada a cursos de Pedagogia e de formação de docentes; 2) Como ex-diretora de escola pública, onde atuei por onze anos consecutivos numa mesma escola; 3) Como pesquisadora da prática docente, no momento desenvolvendo o projeto “Observatório da Pratica Docente”, financiado pelo CNPQ.
Meu olhar de pedagoga está sempre buscando os conhecimentos da Pedagogia, como ciência da Educação, para fundamentar a construção de saberes pedagógicos. Considero que tais saberes são fundamentais na capacidade que o professor vai adquirindo, para articular o aparato teórico-prático, de forma diferenciada, inovadora e criativa, mobilizando-o a cada momento que sua prática requer e solicita readaptações, reajustes, novas posturas e procedimentos. Assim afirmo que a prática docente precisa da Pedagogia como fundadora de seus atos. A prática docente sem os fundamentos pedagógicos é vazia e limitante; é desprovida de sentido e não transforma as circunstâncias, nem é transformada por ela. A prática precisa dos fundamentos da ciência pedagógica e esse é o desafio da Pedagogia hoje: fundamentar e construir significados à prática. Falar de formação docente é falar dos saberes que o professor precisa construir; é falar de como o professor se coloca em condições de construir tais saberes; é falar ainda, de que natureza são constituídos esses saberes? Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 101-108, jul.-dez. 2009
O saber pedagógico só pode se constituir a partir do próprio sujeito (FRANCO, 2003; 2005; 2006; 2008), que deverá ir se formando como alguém capaz de construção e de mobilização de saberes. Se quisermos ter bons professores, teremos que formá-los como sujeitos capazes de produzir ações e saberes, a partir de seu compromisso social e político de bem formar as gerações futuras. Cabendo, por certo, a discussão do que seja formar bem. De meu ponto de vista significa perceber o papel da educação na democratização das relações sociais; na equalização das oportunidades, na inclusão dos excluídos; no olhar crítico e emancipatório às classes sociais em desvantagem econômica, social, cultural e política. Significa, portanto, investir em condições de formação; significa superar modelos de formação que investem apenas no treinamento de habilidades e competências, instaladas de fora para dentro, sob forma de fazeres desprovidos de sentido, que nada significam na hora da prática e assumir modelos mais humanísticos e críticos. Como realça Imbert: o movimento em direção ao saber e à consciência do formador não é outro senão o movimento de apropriação de si mesmo (IMBERT, 2003, p. 27). Esta é a direção de sentido de processos formativos: criar condições para que o sujeito aproprie-se de si mesmo, dialogue com suas circunstâncias, transforme-as e seja por elas transformado. Disse a vocês que falo também a partir de vivências que tive como diretora de escola pública. Estive ali junto a professores, alunos, nesta comunidade, carente e excluída. Ali aprendi a tecer as minhas narrativas pedagógicas com o sangue da luta cotidiana de uma instituição em permanente tensão, absorvendo e transformando, às vezes de forma tranquila, às vezes dramática, as contradições da sociedade na qual se acha inserida. Redescobri nas
Formação e valorização do docente: por onde começar?
trilhas e dramas da escola o necessário papel da Pedagogia, dando direção de sentido às práticas ali desenvolvidas. Revi e ressignifiquei o papel da escola como mediadora na formação dos docentes: escola lócus de formação? Sim; mas essa relação não é automática; a escola precisa se munir de certas condições de forma a se tornar um espaço de formação pedagógica na direção pretendida pelo coletivo. Sem essas condições, a escola estruturase como espaço de anti-formação, como espaço de manipulação, o que impede seu exercício de formar-se para sua finalidade essencial: ensinar bem; produzir aprendizagens relevantes; formar valores e posturas saudáveis frente à democracia, à tolerância, à convivência coletiva. Falo como pesquisadora da prática docente. Cada vez mais me espanto de perceber a complexidade desta prática; compreender como se aninham e se digladiam, no momento da prática, situações tão diferentes. No momento da prática, o sujeito não está vazio, pronto a executar um programa préestabelecido. Neste momento, há uma dinâmica tensional convivendo com o sujeito: suas convicções e suas circunstâncias; seu desejo e sua impossibilidade. Ainda ali, coexistem imagens e representações antigas de vivências como aluno; expectativas e processos de representação social da docência; saberes disciplinares, muitas vezes, não saberes, que se transmudam em inseguranças e medos; saberes pedagógicos, muitas vezes não saberes, que engessam e dificultam posturas espontâneas e criativas; saberes de experiência que, às vezes, são não saberes, que podem ter criado obstáculos para um exercício feliz da docência; e há as condições institucionais; administrativas; o clima do coletivo naquela instituição; há as condições pessoais do dia, do momento; há a classe, os alunos, nem sempre os mesmos, nem sempre em condições favoráveis. E há muito mais... e, é assim, nesse terreno instável e movediço, que o professor, nem sempre bem formado, tem que se fazer professor! Pautada nessas circunstâncias quero circunscrever minha fala reafirmando três posicionamentos, que considero fundamentais: a) Não acredito que se possa discutir o processo de formação desvinculado das condições de trabalho; das condições de carreira e das condições concretas de salário;
103
b) A escola, local de trabalho do professor, deve revestir-se de condições que fomentem o desenvolvimento profissional dos docentes; c) Reformas educacionais só produzirão transformações concretas na prática, quando contarem com a adesão e apoio dos professores.
2 Formação: processo e circunstância Historicamente os cursos de formação de professores no Brasil organizaram-se sob a perspectiva de uma formação tecnicista, pautada em formas de fazer, numa dimensão aplicacionista. Esse sentido impregnou os procedimentos utilizados no processo formativo e, mesmo os estágios supervisionados, utilizados para oferecer aos futuros professores subsídios à prática, eram (e são, ainda hoje, na maioria das vezes) realizados na perspectiva de “recorte e cola”, ou seja, o aluno, na maioria das vezes, deveria observar e fazer igual. O pressuposto é que este sujeito é incapaz de criar sentido à sua atividade produtiva, no caso o seu fazer docente. Essa situação, decorrente da concepção de prática como treinamento do fazer, é um dos componentes que pode ajudar a compreender o desconforto de formandos, futuros professores, nos primeiros confrontos com as atividades da prática docente. São situações sempre angustiantes, pois as receitas de fazer, que receberam no processo formativo, não lhes permite colocar em prática as expectativas que haviam construído a respeito de um ensino melhor. Essa realidade é permeada por dissonâncias, o que pode demonstrar que o sujeito não está totalmente “engessado” por suas condições formativas, pois ainda é capaz de estranhar. Esse estranhamento, essa perplexidade é um espaço da possibilidade pedagógica: o estranhamento, a angústia, as dissonâncias demonstram que há ainda um espaço para a construção de um fazer significativo. Há um espaço para que as práticas comecem a falar, a informar, a formar. Há um espaço para transformação das práticas em instrumentos pedagógicos de formação. Mas há também um espaço para a negação dessa possibilidade. Na dissonância, o sujeito pode optar por deixar de lado suas expectativas e desejos e conformar-se com o usual; o sujeito abre mão do estranhamento em favor de uma segurança com o familiar. Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 101-108, jul.-dez. 2009
104
Maria Amélia Santoro Franco
Quero realçar o que todos já sabemos: que o processo formativo inicia-se muito antes do primeiro momento da primeira aula; e que esse processo continua para além da formatura na licenciatura. Ou seja, o processo formativo pode ir se realizando em todas as etapas de vida do sujeito. Mas, no caso da docência, não falamos da formação natural, espontaneísta, mas formação para o desempenho de uma prática social. Portanto essa formação é um espaço pedagógico, um tempo pedagógico; uma tarefa pedagógica, ou seja, intencional e planejada coletivamente. A formação é um processo, facilitado ou não por circunstâncias específicas. Para tanto, influem o contexto institucional, as condições de trabalho; as circunstâncias de carreira e salários; que vão dando contorno ao ser, estar e saber do professor na profissão. É a construção de sua profissionalidade. Contreras (2002, p. 74) considera que a profissionalidade refere-se às qualidades da prática profissional dos professores em função do que requer o trabalho educativo. Assume-se que o conteúdo desse conceito possibilita considerar a profissionalidade, não só através do desempenho com o trabalho de ensinar, ou seja, o visível das práticas, mas, fundamentalmente, expressa valores e pretensões que se pretendem alcançar e desenvolver com essa prática. Podemos assim reforçar que ninguém oferece formação a ninguém. A formação é um processo individual e coletivo, mas que depende do engajamento do sujeito nesse processo; implica que esse sujeito esteja disposto a se formar na perspectiva proposta. A formação deve ser buscada e construída pelo sujeito, a partir das condições dadas. Formação não se resume a cursos ou pacotes de capacitação; mas a formação é, acima de tudo, condições para formação. Isso não significa dizer que o professor é o único responsável por sua formação. Significa que a formação não se dá sem o envolvimento emocional e cognitivo do próprio sujeito. Não adianta oferecer ao professor atividades de formação que ele não deseja, ações em que ele não se envolve; no entanto o professor precisa de condições para buscar sua formação; condições de tempo, de espaços institucionais; de infra-estrutura para estudos e pesquisas. Nessa perspectiva fica fácil perceber que uma boa condição de formação induz condições de valoPesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 101-108, jul.-dez. 2009
rização do próprio professor; de valorização do contexto de seu trabalho; de valorização das condições de formação. A valorização não se expressa somente através de condições de salário, mas fundamentalmente das condições de se sentir bem na profissão. O professor que não foi bem formado; que trabalha em uma instituição que não lhe oferece condições de formação continuada; que não lhe oferece condições dignas de trabalho em sala de aula; esse professor não tem condições de se sentir bem em seu trabalho. Nesta circunstância, o salário sozinho não transforma as condições da prática. Concordo com Sacristán (1999, p.72), quando realça que o vazio mais preocupante é quando se esquece a necessidade de transformar as situações de trabalho como condição para mudar a prática de ensino. Não há milagres, se queremos uma prática mais adequada, mais relevante e pertinente, teremos que investir em condições de trabalho que ajudem o professor a entrar em processo de formação continuada e permanente.
3 Pesquisa e formação Imbernón, em seu mais recente trabalho (2009), enfatiza que a um professor mal remunerado, sem condições dignas de trabalho, não é possível exigir criatividade, nem inovação e nem entusiasmo. E sem esses componentes a atividade docente não se realiza. Há que se realçar que um país que paga mal seus docentes terá sempre um corpo de professores incapazes do exercício crítico e criativo da profissão. Sabe-se que a docência não é uma atividade meramente cognitiva; a docência é uma atividade que envolve o sujeito e seus desejos, paixões e afetividades. Hargreaves (1995), há mais de dez anos, já alertava que o bom ensino implica num trabalho emocional. É preciso que o professor esteja imbuído de prazer, paixão, criatividade, desafios e alegrias, de forma a criar, nas salas de aula, um clima propício à formação de alunos. Em pesquisa recente que realizei (FRANCO 2008) junto a professores de escola pública, pude verificar que estes não estão tendo condições de transformar produtivamente as condições de trabalho a que estão submetidos. Isso ocorre por diferentes fatores, mas os professores queixam-se que se sentem sozinhos
Formação e valorização do docente: por onde começar?
para enfrentar os graves problemas decorrentes de salas de aula lotadas; alunos dispersivos, desatentos, violentos e que não respeitam o professor; ausência de orientação pedagógica; excesso de trabalho; falta de tempo para pensar e agir coletivamente. São complexos os caminhos que organizam a lógica das práticas e percebi que essa lógica não muda por decreto, talvez mude por compreensão, por confronto ou por superação. Tenho também observado que os modelos de formação, muito comuns em processos de formação continuada, que pretendem a alteração mecânica das práticas, sob forma de treinamento de habilidades e competências, têm conseguido, quando muito, alterar a espontaneidade do saber fazer intuitivo, conduzindo o professor a mecanismos de insegurança e apatia na busca de novas propostas de organizar seu saber fazer. Conversando e pesquisando com professores, arraigamos nossas convicções de que: a) discursos não formam um sujeito; b) teorias, apesar de necessárias, sozinhas não formam um sujeito. Teorias funcionam na interlocução com os confrontos e contradições que a realidade impõe à prática, aí sim, funcionam como ferramentas a iluminar o sujeito e o contexto das práticas; c) receitas prescritivas de como fazer não formam um sujeito; no entanto a prática requer técnicas, não receitas; técnicas como teorias da ação e/ou ação em teoria; d) sabem também os professores e os pesquisadores que bônus, avaliações externas, cartilhas também não formam o professor.
4 O que forma um professor? Através de pesquisa com professores pudemos evidenciar que os professores apresentam melhoras em seu desempenho profissional quando: a) Passam a ter acesso e diálogo (pesquisa) com a produção cultural/educacional, especialmente vinculada a sua área de formação, mas também influi muito a interlocução com os equipamentos/bens culturais vistos de modo amplo, como cinema, teatro, viagens culturais, leituras críticas de obras clássicas, etc.; ou seja, inserção na produção cultural da sociedade. Um realce se faz a uma demanda específica dos docentes: queremos poder fazer mestrado, cientificizar
105
nossas práticas; coletivizar e ressignificar nossas possibilidades de profissionalização. Esse sentimento de docentes brasileiros é corroborado pelos estudos de Diniz-Pereira (2002) ao comentar o crescente movimento dos educadores-pesquisadores, nos EEUU. Pautado nos estudos de Anderson e Herr (1999), o autor atribui esse aumento ao fato do crescente número de professores do ensino fundamental com mestrado e, em alguns casos, doutorado, o que tem produzido um aumento de publicações, composta por pesquisa dos educadores1. Diniz-Pereira (2002, p. 19) informa que há outras condições que tornaram esse movimento mais expressivo nos EEUU, dentre as quais: o próprio desenvolvimento da pesquisa colaborativa, em que professores são convidados a trabalhar junto a especialistas, com o fim de melhorar suas práticas; a inclusão da investigação docente nos programas universitários de formação docente; bem como o movimento de reestruturação das escolas prevendo espaços e tempos para fomentar a pesquisa dos professores e a reflexão da prática. O importante é realçar que: o envolvimento com pesquisa e bens culturais é um elemento formativo fundamental. Ou seja, o professor precisa alimentar-se com as águas da cultura circundante, dialogando, refletindo, pesquisando, sempre no coletivo, em espaços próprios para isso: a escola e a universidade. b) Têm condições dignas de vida e trabalho: o professor quer estudar, fazer mestrado, mas precisa de tempo e condições para isso. Considero que deveria fazer parte do contrato de trabalho do professor a necessidade e o dever de buscar sua formação, mas para isso é preciso que tenha condições de tempo e de espaço. c) Compartilham o poder da transmissão/produção de conhecimentos. O professor traz saberes de 1 É interessante lembrar que os docentes efetivos do estado de São Paulo têm se beneficiado da bolsa-mestrado oferecida pelo governo estadual. O mestrado da Universidade Católica de Santos atende em grande parte esses docentes da rede pública de ensino. Em avaliações prévias com supervisores desta rede, verifica-se o aumento de publicações desses docentes-pesquisadores sendo apropriadas nas escolas, o que tem produzido um aumento de interesse na discussão desses trabalhos, especialmente, nas horas de trabalho pedagógico coletivo. Um supervisor afirmou-me que, nas escolas onde há docentes ou administradores pedagógicos fazendo mestrado, percebe-se uma melhoria nas práticas coletivas e um interesse maior por inovações nas práticas docentes.
Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 101-108, jul.-dez. 2009
106
Maria Amélia Santoro Franco
sua prática, mas nem sempre tem condições de teorizar sobre esses saberes e transformálos em conhecimentos que serão socializados e incorporados ao corpo de conhecimento da área educacional. Esse diálogo das universidades, da academia, dos pesquisadores com os professores precisa ser constantemente alimentado. d) Aprensentam condições de crítica diante das contradições do próprio sistema educacional. O professor não tem participado das decisões das políticas públicas que recaem sobre ele. A cada momento os legisladores criam estratégias de ação, que os professores devem aplicar em sua prática. Essa situação é uma violência simbólica, que vai, aos poucos, minando a autoestima profissional, humilhando o papel social do docente, passando a imagem de que o professor não sabe decidir, por si mesmo, o rumo de suas práticas pedagógicas. Esse estado de pauperização profissional tem produzido efeitos danosos nos docentes, desde a apatia, sintomas de desinteresse, de falta de vontade para mudar, até doenças e abandono de cargo. Mas eu pergunto: o que fala o professor que se cala? O que pensa o professor que não participa? O que gostaria de transformar aquele professor que resiste às mudanças impostas? O professor se formará à medida que puder participar das decisões que afetam a sua classe profissional, o seu fazer cotidiano. e) Os cursos de formação inicial de docentes podem produzir um bom início de carreira. Esses cursos precisam ser ressignificados; não se pode banalizar e apequenar a formação inicial. O discurso de que a formação se faz na prática é falacioso. Só se formará com a prática aquele docente que teve uma boa formação inicial, em que desenvolveu a capacidade de pesquisar a própria prática; a capacidade de ler e discutir com pesquisadores da área; as habilidades necessárias a um bom desempenho de suas funções. O professor mal formado, em cursos abreviados ou em cursos a distância, não tem condições de adentrar em processos de autoformação continuada. Isso se agrava, considerando-se que, com raras exceções, a escola ou escolas onde trabalhará, não tem condições de funcionar como espaço de formação. Esse professor mal formado também não tem condições de transformar as não condiPesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 101-108, jul.-dez. 2009
ções que a escola oferece, pois seu curso de formação inicial não o empoderou para tal fim.
Suojanem (1999) tem um trabalho especificamente denominado “a pesquisa-ação como estratégia para o empoderamento”, em que analisa que o exercício criativo e transformador de uma prática profissional só pode ser exercido pelos sujeitos que têm o sentimento de controle de sua vida e de suas decisões, o que lhes dá a capacidade de sentirem-se encorajados para mudar, rever, transformar. “Empoderar”, para a autora, é um ato de construção de capacidades, de desenvolvimento pessoal e coletivo, de apreensão de crescente poder de conhecimento e controle, que vai se incorporando através do exercício da cooperação, do compartilhamento de saberes e do trabalho coletivo. A autora apóia-se em Wilson (1996, p. 3), para afirmar que o empoderamento significa comprometer-se com os objetivos comuns, assumindo riscos e demonstrando iniciativa e criatividade. Realça também que o empoderamento sempre implica numa direção ética advinda do compromisso social coletivamente assumido. Após essas reflexões coloco como considerações finais aquelas condições que podem ser vistas como condições necessárias para caminharmos na direção de uma melhor articulação dos conceitos formação e valorização, vistos como práticas políticas de empoderamento dos docentes: • 1) Alocação de um professor por escola; • 2) Professores contratados por concurso; • 3) A escola como um espaço decente de convivência coletiva; • 4) A escola equipada pedagogicamente (rich staff): Diretor, Vice, Orientador educacional, coordenador pedagógico e coordenadores de área; • 5) A escola como espaço investigativo: experimentação coletiva ao invés de espaço de intervenção; • 6) Cursos de formação de docentes presenciais, organizados com rigor científico e pertinência pedagógica; com viva articulação das teorias educacionais com a prática pedagógica; a partir de ações colaborativas entre as escolas e a Universidade;
Formação e valorização do docente: por onde começar?
• 7) Presença da pesquisa educacional como eixo da formação, da docência e da produção de conhecimentos pedagógicos; • 8) Criação de redes de inovação; de comunidades de prática entre escolas e professores; • 9) Processos de formação continuada desenvolvidos na escola, pela equipe pedagógica, a partir dos confrontos com a prática; em substituição aos pacotes de cursos avulsos e sem sentido que têm sido cotidianamente impostos aos docentes; • 10) É preciso tempo, as mudanças do professor implicam em mudanças na cultura profissional. São lentas, complexas e difíceis. Cada professor precisa de tempo para apreender e significar as mudanças. Lembrando: as mudanças dos outros nem sempre desencadeiam nossas próprias mudanças.
Cada um desses itens acima colocados precisaria de uma análise mais detalhada de sua pertinência. Afirmo que tais sugestões à Conferência Nacional de Educação 2010 decorre de exaustivos estudos e pesquisas, com o professor, a partir de seu local de trabalho. Pesquisas essas mediadas por estudos investigativos de outros profissionais, entre ele os que citei: Imbernón, Contreras, Sacristán, Pimenta, Diniz-Pereira, dentre outros.
Referências ANDERSON, G. L: HERR, K. The new paradigm wars: Is there room for rigorous practitioner knowledge in schools and universities? Educacional Researcher, v 28, n 5, 40, 1999. p. 12-21.
107
CONTRERAS, J. Autonomia de professores. São Paulo: Cortez, 2002. DINIZ-PEREIRA, J; ZEICHNER, K. A pesquisa na formação e no trabalho docente. Autêntica, 2002. FRANCO, M. A. S. ; PIMENTA, S. G. Pesquisa em Educação: possibilidades investigativas e formativas da pesquisaação. Volumes 1 e 2. Editora Loyola. 2008. FRANCO, M. A. S. A Pedagogia como ciência da Educação. Campinas. Papirus. 2003. FRANCO, M. A. S. A Pedagogia da pesquisa-Ação. Educação e Pesquisa. Revista da Faculdade de Educação da USP. v. 31, fascículo 3. p. 483-502. Dez. 2005. São Paulo 2005. FRANCO, M. A. S. Saberes Pedagógicos e Prática docente. Livro de Anais do XIII ENDIPE: Educação Formal e não formal, processos formativos e saberes pedagógicos. V. 1. p. 27-50, Edições Bagaço. Recife, 2006. HARGREAVES, A. Beyond Collaboration: Critical Teacher Development in the Postmodern Age. In: SMYTH, J. Critical Discourses on Teacher Development. London: British Library. 1995. p. 149-179. IMBERNÓN, F. Formação Permanente do Professorado: novas tendências. São Paulo. Cortez. 2009. IMBERT, F. Para uma práxis pedagógica. Brasília: Plano Editora. 2003. SACRISTÁN, G. Consciência e ação sobre a prática como libertação profissional de professores. In: NÓVOA, A. (Org.). Profissão Professor. Porto Editora. 1999. p. 63-92. SUOJANEN, U. Action Research – a strategy for empowerment. In: K. Turkki (Ed.). New approaches to the study of everyday life. Part II. Helsinki, Finland Publications 4, 1999. p. 81-88. WILSON, P. Empowering the self-directed team. Great Britain: Gower Publishing Limited, 1996.
Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 101-108, jul.-dez. 2009
Formação e valorização dos profissionais da educação: superar a lógica do mercado Nereide Saviani* Fundação Maurício Grabois, Rua Rego Freitas, 192, Sobreloja, Vila Buarque, CEP 01220-010, São Paulo, SP, Brasil, e-mail: nereide.saviani@uol.com.br O texto corresponde à transcrição, revista pela autora, de sua exposição na Conferência Intermunicipal de Educação da Baixada Santista, na mesa redonda que debateu o Eixo IV do Documento Referência da Conferência Nacional de Educação (CONAE). Reflete sobre tendências da formação dos profissionais da educação, à luz de uma concepção de formação profissional voltada para a superação da lógica do mercado. Palavras-chave: Formação Profissional. Formação dos Profissionais da Educação. Formação Docente.
Qualifying and valuing education professionals: overcoming the logig of the market The text is the transcription, revised by the author, of a presentation she made in the Baixada Santista Intermunicipal Education Conference, during the round table that debated Axis IV of the Reference Document of the National Education Conference (CONAE). It reflects on the trends to qualify education professionals under the light of a professional qualification aimed at overcoming the logic of the market. Keywords: Professional Qualification. Qualifying Education Professionals. Qualifying Teachers.
É um imenso prazer participar da Conferência Intermunicipal de Educação da Baixada Santista, retornando a esta instituição, a Unisantos, onde trabalhei durante cerca de sete anos. Prazer por rever colegas de trabalho e alunos, compor esta mesa com Maria Isabel Noronha, Helena de Freitas, Maria Amélia Santoro Franco e compartilhar algumas reflexões com educadores de diversos níveis e diversas categorias. Uma presença tão qualificada – em auditórios assim lotados, num sábado, quando normalmente se espera ter algum descanso ou, pelo menos, cuidar de tarefas para as quais não se tem tempo durante a semana – mostra que é possível ter esperança de transformar a educação em nosso país.
O tema Formação e Valorização dos Profissionais da Educação, o Eixo IV do documento da CONAE (Conferência Nacional de Educação), suscita importantes reflexões, a começar pelo seu próprio enunciado. A rigor, poderíamos formulá-lo simplesmente como Valorização dos Profissionais da Educação, pois a valorização comporta, necessariamente, a formação. Valorizar um profissional supõe cuidar de pelo menos três aspectos, intimamente relacionados e interdependentes: a) a formação (inicial e continuada); b) o plano de carreira, jornada e salário; c) as condições de trabalho. No entanto, não creio ser necessário apresentar uma emenda ao documento-referência da
* Doutora em História e Filosofia da educação pela PUC-SP. Atuou como docente-pesquisadora no Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade, da PUC-SP. E no Mestrado Stricto Sensu da Universidade Católica de Santos. Atualmente é Diretora de Formação da Fundação Maurício Grabois.
110
Nereide Saviani
CONAE, pois é possível tomar o conectivo “e” não como adição, mas como ênfase, ou destaque. Quer dizer, no processo de valorização dos profissionais da educação merece destaque a sua formação (não somente a inicial, aquela requerida para o ingresso na profissão, mas também a contínua, aquela que deve se realizar permanentemente, durante seu exercício). Ressalte-se, nessa discussão, a distinção estabelecida entre os termos trabalhadores e profissionais da educação. A noção de “trabalhadores” refere-se a uma categoria geral: numa sociedade dividida em classes exploradoras e exploradas, a maioria se torna trabalhadora, no sentido de que tem de vender sua força de trabalho, mas não, necessariamente, estar no trabalho melhor remunerado, no trabalho para o qual tem mais talento, competência, pelo qual se interessa mais. As pessoas não, necessariamente, são trabalhadoras porque querem trabalhar, mas porque precisam cuidar do seu sustento. Trabalham onde existe oferta de trabalho, submetendo-se às regras estabelecidas pelos dominantes, os donos dos meios de produção. Mesmo que gostem mais de um determinado trabalho ou tenham capacitação para ele, se não encontram emprego, vão trabalhar em outra atividade. É comum uma pessoa ser profissional de determinada área e submeter-se a um trabalho que não tem nada a ver com sua profissão. É o caso da professora que passa a vender perfumes ou roupas, por exemplo, por não encontrar aulas ou para complementar o salário. Profissão, ao contrário, implica formação específica. E “formação profissional” significa preparar sujeitos que dominem os fundamentos científicos e técnicos, teóricos e práticos, políticos e éticos das atividades relacionadas aos ramos da sua atuação, seja na produção material ou na produção imaterial, isto é, nas artes, nos esportes, na comunicação, na literatura, no magistério. Sujeitos formados profissionalmente são especialistas no seu campo e, por isso mesmo, são dotados de uma formação geral que os torna capazes de se aprofundar em tais fundamentos, respondendo aos novos desafios e necessidades da área. Uma formação que os torne dispostos e aptos a estudar a vida toda. Daí, a importância da pesquisa em cada área. É uma formação incrementada nos vários Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 109-112, jul.-dez. 2009
níveis de escolarização e que se forja na atividade prática, ou seja, no exercício da profissão. Note-se, aqui, algo que parece contraditório: a formação profissional é uma formação específica, uma especialização; mas, para que se efetive como tal, é imprescindível a formação geral. Então, o profissional é aquele que tem uma formação específica completamente associada, inter-relacionada à formação geral. Só é profissional de fato aquele que tem uma formação geral, que lhe fornece os fundamentos da sua profissão. Uma formação assim concebida, ainda que relacionada com as demandas do mercado, não pode submeter-se à lógica do mercado: o custo mínimo, a competitividade desenfreada, a redução de tudo à mercadoria. Tratando-se do nosso tema específico, são trabalhadoras da educação todas as pessoas que atuam em alguma instituição educacional, qualquer que seja a função ali exercida. E profissionais da educação são os professores, especialistas, gestores, funcionários de apoio e técnico-administrativos. Considerando-se a natureza e a especificidade da educação escolar, cabe distinguir, nessa categoria, o seu núcleo, composto por aqueles que lidam com o processo pedagógico propriamente dito: os professores, que precisam ter habilitação para atuar diretamente no ensino, para ingressar e evoluir na carreira docente. Todavia, para que o processo pedagógico atinja adequadamente seus objetivos, todas as pessoas que atuam nos estabelecimentos de ensino precisam ser conscientes da natureza da educação escolar. Faz diferença, por exemplo, exercer atividades ligadas à merenda, limpeza, secretaria, vigilância numa escola ou noutro tipo de instituição. O trabalho implica não somente as tarefas específicas, mas também as suas finalidades e as relações humanas estabelecidas no seu exercício; portanto, é imperioso considerar os critérios e cuidados na admissão e no acompanhamento de todos os trabalhadores da educação. O que requer atenção à formação e às condições de trabalho. Na lógica do mercado, as políticas de formação profissional, em geral, apresentam um conjunto de contradições e ambiguidades – falsos dilemas – para justificar a busca da “melhor relação custo-benefício” e a não aplicação de recursos: na dicotomia formação geral versus formação espe-
Formação e valorização dos profissionais da educação: superar a lógica do mercado
cífica está contida a oposição ensino propedêutico versus ensino profissionalizante (preparação versus terminalidade). A formação profissional, no caso, é reduzida a adestramento técnico, que se opõe ao domínio dos fundamentos das técnicas de produção contemporâneas, supostamente por se prescindir disso, considerá-lo desnecessário. Defende-se, exclusivamente, a preparação para tarefas específicas demandadas pelo mercado de trabalho. Este cada vez mais restritivo: demandando altos técnicos, altos funcionários; porém, para poucos postos. Isto, obviamente, traz implicações para a Educação. Uma delas é a disseminação do discurso ideológico de que é necessário aprender somente aquilo que será utilizado em ocupações imediatas: aquelas às quais, supostamente, os educandos terão acesso assim que se formarem. Em matéria de formação de professores, trata-se da visão de “treinamento” – num processo que esvazia o trabalho docente, limitando-o à mera execução de receitas elaboradas por especialistas. Notam-se, também, nas políticas de formação de educadores, dicotomias, pares que se antagonizam e se excluem: professores versus funcionários de escola; professores versus especialistas; ensino básico versus superior; formação versus salário. Sob a alegação da necessidade de priorizar, argumenta-se que, se forem atendidas as reivindicações dos funcionários de escola, não sobrarão recursos para atender as dos professores; justificase a necessidade de promover, prioritariamente, os especialistas para que eles possam contribuir melhor na formação continuada dos professores; submete-se o investimento em salário a programas de formação; ou se cuida da formação de profissionais do ensino básico ou se cuida da formação dos do ensino superior. E, ainda: educação de crianças versus educação de adultos; formação administrativa versus pedagógica; saber geral versus saber pedagógico; conhecimento do professor versus aprendizado do aluno; formação inicial versus continuada; ação do professor versus tecnologia educacional; necessidades dos professores versus necessidades dos currículos e das reformas educacionais; educação presencial versus a distância. Em todas elas, o distanciamento escola ideal versus escola real, com a ausência dos professores na definição de políticas e programas. São falsos dilemas, porque, quando a Educação é, de fato, prioridade,
111
busca-se investir em todos esses quesitos. A superação da lógica do mercado supõe abandonar a ideia de gasto mínimo e assumir a visão de destinação dos recursos necessários. As políticas de formação de educadores inseremse no quadro das políticas educacionais que, por sua vez, fazem parte das políticas para a área social e são intimamente relacionadas com questões econômicas, culturais etc. Para a discussão sobre a formação dos professores é necessário refletir sobre a natureza e a especificidade do trabalho docente. Defendo a ideia do magistério como profissão – que exige saberes específicos e, que, portanto, requer sólida formação inicial e condições de aperfeiçoamento contínuo. Na lógica do mercado, isto não tem lugar. Veja-se o que prima nas políticas neoliberais, recomendadas pelos organismos internacionais: preparação pedagógica mais breve, menos acadêmica, com ênfase nos programas de capacitação a distância; prioridade à contratação de especialistas com experiência no setor produtivo; regime de dedicação exclusiva, sem a contrapartida salarial; liberdade para os centros educativos na determinação total ou parcial dos salários dos docentes, de acordo com o projeto educativo. E o estado de São Paulo é exemplar em seguir a cartilha neoliberal, como demonstram as medidas tomadas pela Secretaria de Educação, nos últimos anos. Em contraposição a essa lógica, temos a defesa de ampla e profunda formação, em nível superior, a todos os professores. Superior entendido não como o mais alto degrau da escolaridade (como era considerado o 3º grau, na linguagem da legislação da ditadura militar), mas no real sentido de Universidade: o caráter múltiplo, diverso, amplo, abrangente de abordagem no campo das ciências, letras, artes, tecnologias – dos diversos elementos da cultura – com a produção e difusão do conhecimento nesses campos; a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Assim, o principal locus da formação de professores deve ser a universidade. Tanto a formação inicial, com a oportunidade de ligação com os diversos campos – na perspectiva de quem se prepara para lecionar (relação teoria e prática, saber geral e saber pedagógico, gestão pedagógica e gestão administrativa). Quanto à formação continuada: oportunidades de repetidas voltas à universidade, com licenças remuneradas (o período Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 109-112, jul.-dez. 2009
112
Nereide Saviani
sabático, por exemplo) – para pós-graduação, especialização, cursos de curta duração, seminários, e, principalmente, participação em grupos de pesquisas para usufruir das (e interferir nas) investigações sobre problemas educacionais. Para concluir, cabe ressaltar que a formação docente não se restringe à escolarização. Supõe jornada de trabalho compatível, concentração num único estabelecimento, com tempo para estudo, atividades complementares e, obviamente, com plano de carreira e salário condignos. As políticas para o setor devem, portanto, considerar tais aspectos. É preciso nos posicionar firmemente contra a visão de que o magistério pode ser exercido por
Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 109-112, jul.-dez. 2009
qualquer pessoa que simplesmente tenha algum domínio dos conteúdos de determinada área. Combater, igualmente, a ideia de magistério como sacerdócio. Defendê-lo como profissão, com todas as características que esse termo comporta. Por fim, não é demais insistir que a formação dos Profissionais da Educação deve contemplar todos os níveis e modalidades de ensino e desenvolver-se prioritariamente nas instituições públicas, com regulamentação e fiscalização das particulares. Isto exige plena responsabilidade do Estado e remete para a imprescindível construção do Sistema Nacional de Educação – o eixo central e desencadeador dos debates da CONAE.
Financiamento da educação e controle social: algumas anotações Cleiton de Oliveira* Faculdade de Educação, Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP), Rod. do Açúcar, km 156, Taquaral, Caixa postal 68, CEP 13400-911, Piracicaba, SP, Brasil, e-mail: cleolive@unimep.br
O artigo analisa o Eixo V – “Financiamento da Educação e Controle Social” do documento CONAE – 2010. Construindo o Sistema Nacional Articulado de Educação: o Plano Nacional de Educação, Diretrizes e Estratégias de Ação. Para tanto, vale-se da análise documental, da legislação e de bibliografia sobre a temática. O documento foi analisado a partir de seis categorias: Constatação da situação, Avaliação do atual PNE, Reforma Tributária, FUNDEB, Ensino Superior e Sistema Nacional de Educação. O texto é avaliado ressaltando seus pontos fortes, silêncios e aspectos que merecem maior ênfase. Palavras-chave: CONAE. Financiamento da Educação. Controle Social. FUNDEB. Plano Nacional de Educação.
The funding of education and social control: a few notes The article analyzes Axis V – “Funding of Education and Social Control” of the 2010 CONAE document. Building the National Articulated Education System: the National Education Plan, Action Guidelines and Strategies. To do so, it is based on the analysis of documents, laws and literature on the theme. The document was analyzed based on six categories: Determination of the situation, Assessment of the current NEP, Tax Reform, FUNDEB, Higher Education, and the National Education System. The text is assessed emphasizing its strengths, omissions, and aspects that require more emphasis. Keywords: CONAE. Funding of Education. Social Control. FUNDEB. National Education Plan.
1 Introdução A criação de sistemas nacionais de educação tornou-se realidade, ainda no século XIX, em vários países da Europa e da região. No Brasil não faltam vozes que clamaram por sua instituição, porém, por fatores vários, ainda hoje tal intento é perseguido. Daí a temática “Construindo o Sistema Nacional Articulado de Educação: o Plano Nacional de Educação, suas Diretrizes e Estratégias de Ação”, em debate no ano de 2009 em nível local, regional
* Professor pesquisador da Universidade Metodista de Piracicaba.
e estadual e, em 2010, na Conferência Nacional de Educação – CONAE – em nível nacional. A discussão em torno da questão povoa o universo educacional brasileiro desde os anos de 1930, com a divulgação do “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”, bem como por outros movimentos e iniciativas em nível nacional, ocorridas, mais recentemente, a partir da década de 1980, considerando a redemocratização do país.
114
Cleiton de Oliveira
Em sendo uma questão, que há décadas está presente, é de se perguntar por que a mesma não se materializa? Saviani (2008) responde a esta questão, apontando quatro obstáculos: de ordem econômica, tendo em vista a “resistência à manutenção da educação pública” registrada ao longo da história; de ordem política, considerando as descontinuidades nas ações públicas; de ordem filosófico-ideológica, considerando as mentalidades pedagógicas que prevaleceram ao longo da história; e os obstáculos legais, representados pelas marchas e contra-marchas das forças no legislativo nacional. Os obstáculos levantados explicam historicamente a situação. Os mesmos devem ser explicitados e enfrentados uma vez que a questão do sistema nacional de educação está em pauta tendo em vista a elaboração do novo Plano Nacional de Educação (2011-2020). Em relação à elaboração do Plano Nacional de Educação, Cury (2009) levanta cinco desafios: 1 – a questão do pacto federativo e a elaboração de leis complementares que o regulamente; 2 – a questão dos recursos e do financiamento, tendo em vista o consignado na legislação e a demanda por ampliação da cobertura e pela qualidade do ensino; 3 – a rotatividade administrativa e a necessidade da existência de conselhos de educação com condições de garantir a continuidade das políticas educacionais; 4 – a participação de diferentes atores na elaboração do Plano, o mesmo não pode se restringir à “autoridades acadêmicas, científicas ou profissionais” (p. 26); 5 – relação público-privado, questão que exige “a elaboração de um marco regulatório, claro, transparente e que conte com a participação do segmento ligado à liberdade do ensino” (p. 27). Considerando o exposto, é de se prever que a tarefa, de iniciativa do MEC com a participação de diferentes entidades, reveste-se de fundamental importância. Como ponto de partida foi elaborado um documento-referência a ser discutido, emendado/substituído nas conferências realizadas em diferentes espaços, culminando, conforme já citado, na Conferência Nacional. O documento, redigido em linguagem acessível, é constituído do nº 1 ao nº 287, por seis Eixos, os quais são subdivididos por itens, numerados sequencialmente, muito provavelmente com a intenção de facilitar a análise e eventual alteração. Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 113-120, jul.-dez. 2009
Neste artigo analisamos itens do “Eixo V – Financiamento da Educação e Controle Social”; correspondente aos itens de nº 210 a 250; dependendo do aspecto analisado, fizemos referências a itens de outros Eixos. A análise foi elaborada a partir do documento-referência, da legislação educacional, dos subsídios do Conselho Nacional de Educação, bem como de autores que nos forneceram luzes para que pudéssemos concluir a empreitada. Para a realização da análise agrupamos os assuntos em seis categorias: Constatação da situação, Avaliação do atual PNE, Reforma Tributária, FUNDEB, Ensino Superior e Sistema Nacional de Educação. A determinação destas categorias deu-se a partir de nossa experiência e sem a pretensão de esgotar todos os pontos elencados; outros autores, encarregados da mesma empreitada, poderiam realizar outras categorizações.
2 Constatação da situação O Eixo V, em análise neste artigo, se inicia citando as vinculações orçamentárias para a educação nas três instâncias federativas, conforme o disposto constitucional (item 210); faz referências a avanços no estabelecimento “de ações coordenadas com vistas à elaboração de uma agenda mínima de fortalecimento da educação básica” (item 215); registra, ainda, a legislação após 1988 (item 216). Apesar de constatar avanços, o documento reconhece que, para garantir a cobertura na educação básica e ampliar o atendimento público no ensino superior, os atuais recursos são insuficientes (item 211). Propõe que os mesmos devam ser vinculados ao Produto Interno Bruto – PIB – (item 228), ampliando-os “de forma a atingir no mínimo 7% do PIB até 2011 e, no mínimo, 10% até 2014” (item 230, c). Interessante observar que o documento produzido pelo Conselho Nacional de Educação (2009), ao tratar dos “dez maiores desafios da Educação Nacional”, cita o mesmo percentual do PIB quanto a 2011, silenciando em relação ao período posterior. O documento propõe a reforma tributária e, uma vez esta efetivada, é de fundamental importância a “vinculação de recursos e, no mínimo, os atuais percentuais” (item 245). Porém, contraditoriamente, no item 231, propõe a ampliação destes
Financiamento da educação e controle social: algumas anotações
percentuais, estabelecendo no mínimo 20% para a União e 30% para os demais entes públicos. O documento-referência reconhece que o financiamento do ensino brasileiro parte do estabelecimento de “um quantum possível de recursos (e) a partir dele, identificavam-se quais setores, níveis, modalidade e segmentos sociais seriam priorizados”, não se operando o inverso, ou seja, partindo das necessidades para se chegar ao montante necessário (Eixo I, item 16). É interessante registrar que o mesmo foi proposto há quase cinquenta anos por Anísio Teixeira (1961), continuando a ser perseguido em nossos dias.
3 Avaliação do atual PNE O documento-referência reconhece a “necessidade de se efetivar e plubicizar uma avaliação do (atual) PNE...” (item 219). Reconhece que, para o alcance das metas estabelecidas no atual Plano fazem-se necessárias as seguintes medidas: revogação dos vetos que incidiram sobre os recursos financeiros, quando da promulgação de Lei 10.172/01, que aprovou o PNE; reitera a necessidade de criação “de um sistema nacional de educação articulado”; e, para a operacionalização do Plano, faz-se necessária a regulamentação “do regime de colaboração entre as instâncias federadas” (item 220). Ainda sobre o tema, relaciona, além dos pontos citados, quatro outros aspectos que necessitam ser superados: “estabelecimento de referências de qualidade”; “o papel da educação superior pública no processo de desenvolvimento do país”, o “estabelecimento da autonomia universitária” e seu financiamento”, e o “acompanhamento e avaliação da sociedade no que tange ao financiamento” (item 221). A necessidade de avaliar o atual PNE é igualmente reforçada por Cury (2009, p. 22), que apresenta para tal sete questões, e completa afirmando que “cabe ao CNE, dentro de suas atribuições específicas, responder (às questões) antes de passar para a discussão de um novo Plano”. O documento do CNE (2009), por sua vez, recupera quatro avaliações do PNE, realizadas no período de 2004 a 2006, apontando problemas detectados e apresentando-os genericamente. É de se registrar que as avaliações foram realizadas no mínimo há 3 anos,
115
que não respondem plenamente ao questionamento pelo Cury (2009), bem como são citados alguns programas federais como respostas às indagações, sem que se apresente uma avaliação específica dos mesmos.
4 Reforma Tributária A Reforma Tributária é citada “como primeiro passo rumo à superação da (atual) realidade educacional” (item 212). Aquela deverá rever a ampliação de recursos para a educação (item 246) e “um modelo mais justo que o atual” na tributação de determinados setores - capital especulativo, grandes fortunas, latifúndio improdutivo e capital-financeiro - “além de reduzir as disparidades regionais na distribuição da receita tributária”. Acrescenta o documento que “a reforma tributária deve estabelecer que não só os impostos, mas todos os tributos (impostos, taxas e contribuições) do orçamento fiscal façam parte da vinculação de recursos à educação” (item 245). Uma primeira observação cabe quanto às taxas: estas não podem concorrer para tal finalidade, uma vez que são estabelecidas como contrapartida a serviços executados e/ou fornecidos. Em relação às contribuições, acertadamente o documento se manifesta contra, uma vez que as mesmas são assim denominadas por constituírem meios de burlar as vinculações orçamentais. O documento se posiciona de maneira inequívoca em relação à revogação da DRU - Desvinculação das Receitas da União. Por este instrumento, 20% das receitas da União eram desvinculadas antes dos cálculos destinados às vinculações e repasses para outras esferas de governo. Neste sentido, o documento é contra a DRU “para todas as áreas sociais” (item 231, b). Cabe acrescentar que o Congresso aprovou a Emenda Constitucional 59, em 11 de novembro de 2009, reduzindo gradativamente a DRU para a educação. Assim, ainda no exercício deste ano a DRU corresponderá a 12,5%, no exercício de 2010, a 5% e será extinta a partir de 2011.
5 FUNDEB O financiamento do ensino básico brasileiro dá-se pelo FUNDEB - Fundo de Manutenção e Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 113-120, jul.-dez. 2009
116
Cleiton de Oliveira
Desenvolvimento da Educação e de Valorização dos Profissionais da Educação -, criado pela Emenda Constitucional nº 53, de 28 de dezembro de 2006, a qual, após a sua tramitação no Congresso Nacional, foi aprovada como a Lei 11.494, de 20 de julho de 2007. A política de fundos, em sua formatação atual, teve início com a Emenda Constitucional 14, de 12 de setembro de 1996, regulamentada pela Lei 9.424, de 24 de dezembro de 1996. Considerando que a vigência do FUNDEB vai até 2020, perfazendo assim um total de 24 anos, considerando os 10 anos de vigência do FUNDEF, a discussão sobre a adoção ou não de fundos para o financiamento da educação (Oliveira, 2004) deixa de ser assunto prioritário, considerando não só as referências positivas presentes no documento-referência como também a proposta de sua criação para o ensino superior, conforme o citado no documento. Durante a vigência do FUNDEF, de 1997 a 2006, 31 PECs - Projetos de Emenda Constitucional foram apresentados ao Congresso Nacional visando a continuidade, modificação ou criação de fundos específicos para os diferentes níveis de ensino, culminando com a criação do Fundo que englobou o ensino básico (ROSSINHOLI, 2008). A criação do FUNDEB é reconhecida pelo documento por ter “ocorrido com forte participação da sociedade civil organizada” (item 232), e são ressaltados dois de seus aspectos: a ampliação dos compromissos da União, bem como a ampliação dos recursos (item 233). O documento valoriza a “diferenciação dos coeficientes de remuneração” (item 235), conforme etapas, modalidades e tipos de estabelecimento de ensino, porém não faz referência ao colegiado que o determina: Comissão Intergovernamental de Financiamento da Educação Básica de Qualidade. Dentre as inovações incorporadas ao financiamento da educação básica, o documento cita a creche conveniada, justifica a inclusão da mesma pela conjuntura atual (item 235), não apresentando críticas que, ao nosso entender, tal incorporação merece. O documento valoriza também os mecanismos de acompanhamento, fiscalização e avaliação dos recursos (item 230, d), bem como a transparência da utilização destes (item 230, h). O documento silencia quanto aos avanços que o FUNDEB trouxe em relação ao colegiado de acompanhamento, fiscaPesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 113-120, jul.-dez. 2009
lização e controle, sua composição e garantias de funcionamento. Em relação aos Conselhos Estaduais e Municipais de Educação, o documento apoia a criação e/ ou consolidação dos mesmos (item 242, g), aprova a política de formação continuada de conselheiros (Eixo IV, item 191, d) e incentiva “os conselhos municipais de educação” para que se tornem órgãos normatizadores (item 230, k), silenciando-se quanto às demais possibilidades de sua natureza. Considerando que a determinação do custoaluno a partir dos recursos existentes não atende aos padrões de qualidade e de cobertura, surgiu a proposta do Custo-Aluno-Qualidade (CAQ). A adoção deste conceito partiu do consenso “que a qualidade do ensino, em um sistema de educação de massa, está associada à qualidade dos processos de ensino e de aprendizagem e que a qualidade desses processos está associada à qualidade dos insumos (recursos fiscais e pessoal) neles utilizados” (PINTO, 2006, p. 211). O documento-referência toma, como ponto de partida, “o mecanismo do custo-aluno-qualidade” (item 213). Este custo deve ser estabelecido com a participação da sociedade civil (itens 229 e 240) deixando de ficar adstrito à tecnoburocracia. Assim, a determinação do valor mínimo “deve garantir a presença, em todas as escolas públicas do país, dos parâmetros de qualidade previstos no PNE e na LDB, além de outros que precisam ser definidos no regime de colaboração” (item 241).
6 Ensino Superior O documento refere-se à ampliação de vagas e de recursos para o ensino superior, cita programas recentes do MEC – ProUni 2005, expansão dos campi em 2006 e o Reuni, realizado em 2007/2008 (item 217). A expansão de matrículas no ensino superior implica na necessidade de “elaboração de indicadores de acompanhamento da qualidade das universidades federais”, na ampliação dos cursos de pós-graduação “stricto sensu”, no “apoio ao desenvolvimento de pesquisas” e no provimento de condições para “a permanência de estudantes na instituição” (item 214).
Financiamento da educação e controle social: algumas anotações
Enfatiza-se a “efetivação da autonomia universitária constitucional”, provendo as de condições para tanto, “de modo a alterar o ambiente heterônomo em que as instituições se encontram” (item 227). Em relação ao financiamento do ensino superior, o documento propõe estudos para a criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Superior Pública (item 243, a). Esta proposta é anunciada como garantia da efetivação da autonomia universitária. Mais uma vez o documento incorre em falha ao relacionar as taxas dentre as fontes para constituir tal Fundo. O CNE, em sua manifestação sobre o PNE, igualmente se mostra favorável à existência do Fundo para o ensino superior, dando-lhe a mesma denominação. O Fundo proposto não se restringe às instituições federais; assim, o documento refere-se à necessidade da definição de “condições a serem satisfeitas por estados, distrito federal e municípios” para que possam participar do mesmo (243, c). O documento cita, ainda em relação ao financiamento do ensino, as seguintes ações, que devem ser asseguradas: estabelecimento de “parâmetros para a distribuição de recursos entre as instituições públicas federais” (item 243, d), que estes recursos possam garantir o desenvolvimento da pesquisa (243, d), igualmente a expansão da graduação no período noturno igualmente “ao número de vagas do período diurno” (item 243, e); a definição de parâmetros para o “volume mínimo de recursos financeiros a ser alocado”, para que se garantam as atividades de ensino, pesquisa e extensão (item 243, f); e o estabelecimento de “programas de apoio à permanência de estudantes nas instituições públicas” (item 243, g).
7 Sistema Nacional de Educação O movimento preparatório para a CONAE – Conferência Nacional de Educação – se assenta na imperiosa necessidade de construção do “Sistema Nacional Articulado de Educação”. O emprego dos termos “sistema” e “articulado” dão ideia de redundância, muito provavelmente foram empregados para marcar finalmente a necessidade de superarmos a mera junção de diferentes estruturas que têm marcado a organização da educação.
117
Historicamente foram construídas duas redes de ensino, após o Ato Adicional de 1834: a central, ocupando-se do ensino superior, da normatização do ensino secundário e do ensino em todos os níveis no Município da Corte; a provincial, responsabilizando-se pelo ensino elementar e profissional. A primeira instância com maiores recursos se encarregou do ensino da elite; a segunda, com poucos recursos teve a incumbência à educação popular. A divisão administrativa continuou no regime republicano e, conforme o Estado, com maior ou menor participação dos municípios. A esta dualidade, acrescentou-se outra: o ensino propedêutico que se completava no superior e destinado à elite; de outro lado, o ensino popular e o profissionalizante destinado à população em geral. Do ponto de vista formal, a equiparação entre os cursos deu-se no início da década de 1950; empregamos a expressão “formal”, uma vez que o sonho da escola única, pública e de boa qualidade continua sendo objetivo almejado. A criação do sistema nacional vem ao encontro destes esforços no sentido de proporcionar ensino de qualidade a todos. Na introdução do documentoreferência está explícita a necessidade de construção “de um Sistema Nacional de Educação, responsável pela institucionalização de orientação política comum e de trabalho permanente do Estado e da sociedade na garantia do direito à educação (item 9) (grifos dos autores). No Eixo I – “Papel do Estado na Garantia do Direito à Educação de Qualidade: Organização e Regulação da Educação Nacional” – a questão do sistema nacional – seus requisitos, atribuições e competências – é retomada em diferentes itens. No Eixo V, que analisamos no presente artigo, há referências à necessidade da construção do sistema, bem como de alguns de seus requisitos e atribuições. O documento afirma a necessidade de problematizar o papel de cada instância federativa no que concerne ao oferecimento do ensino básico e superior (item 222). A necessidade de regulamentação do regime de colaboração, já tratada neste trabalho, é retomada, reservando à União o papel de liderança junto às demais esferas administrativas no sentido de ampliar os recursos destinados à educação, tendo como referência o PIB, bem como os marcos constitucionais de responsabilização/atribuição dos entes federados Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 113-120, jul.-dez. 2009
118
Cleiton de Oliveira
(item 223). Ademais, as disparidades regionais apontam para a necessidade e “importância do estabelecimento de políticas nacionais” (item 224). O documento-referência, ao tratar do financiamento da educação, explicita pontos que tornam complexa a temática: necessidade da regulamentação do regime de colaboração; “ambígua relação entre o público e o privado”; a necessidade de implementação da gestão democrática; a “definição de parâmetros que estabeleçam a qualidade da educação”; e critérios para a determinação do “custo-aluno-qualidade”.
8 Considerações finais É de se registrar a importância de viabilizar a realização da Conferência Nacional de Educação, sonho acalentado desde os anos de 1990. Esta Conferência deverá fornecer subsídios para a elaboração do novo Plano Nacional de Educação (2011-2020). Igualmente é importante resgatar a necessidade de construção de um sistema nacional de educação, pelas razões por demais conhecidas e tratadas neste texto, incorporando esta discussão à elaboração do referido Plano. Por último, é de se destacar a importância do papel desempenhado pelo MEC neste processo todo. O documento-referência está bem estruturado, levantou pontos essenciais na discussão sobre educação, estando em consonância com a pauta atual. No entanto, o mesmo poderia ter apresentado uma quantidade maior de dados sobre a cobertura e principais problemas, apresentando resultados mais precisos sobre as avaliações de políticas educacionais, bem como poderia mostrar-se mais distanciado das ações governamentais. Em outras palavras, observa-se um certo embevecimento quanto às políticas recentes. Quanto ao financiamento do ensino abordado no Eixo V, tema de nossa análise, o documento aborda as principais questões da área. Mais uma vez registramos a crítica sobre a disponibilização maior de dados, por exemplo, porque propôs um Fundo para o ensino superior. Registramos alguns silêncios ou necessidade de maior ênfase: a formação de conselheiros dos Conselhos de Acompanhamento, Controle Social, Composição e Fiscalização dos Recursos; a natureza Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 113-120, jul.-dez. 2009
dos Conselhos Municipais de Educação não se limita à normatividade; não há referências aos Conselhos Regionais de Educação, considerando experiências não só de regiões metropolitanas como também iniciativas várias no país; silenciou quanto à legislação recente – ensino fundamental a partir dos seis anos e com nove anos de duração e obrigatoriedade da educação a partir dos quatro anos de idade; em relação à autonomia administrativa, financeira e pedagógica, limitou-se a citá-las sem comentários outros que as qualificasse. Os silêncios e a necessidade de ênfases serão, certamente, preenchidos nos diferentes espaços e tempos em que o documento foi/será analisado/ emendado. Por último, é de se ressaltar o momento ímpar de poder participar da elaboração de subsídios para o Plano Nacional de Educação.
Referências BRASIL. Emenda Constitucional 14, de 12 de setembro de 1996, cria o FUNDEF. ________. Emenda Constitucional 59, de 11 de novembro de 2009, aprova a extinção da DRU. ________. Emenda Constitucional 53, de 28 de dezembro de 2006, cria o FUNDEB. ________. Lei 9.424, de 24 de dezembro de 1996, regulamenta o FUNDEF. ________. Lei 10.172, de 9 de janeiro de 2001, aprova o Plano Nacional de Educação. _______. Lei 11.494, de 20 de julho de 2007, regulamenta o FUNDEB. ________. CONAE – 2010. Construindo o Sistema Nacional Articulado de Educação: o Plano Nacional de Educação, Diretrizes e Estratégias de Ação, 2009. ________. Portaria CNE/CP, nº 10, de 6 de agosto de 2009, Indicações para subsidiar a construção do Plano Nacional de Educação (2011-2020). CURY, C. R. J. Por um Plano Nacional de Educação: nacional, federativo, democrático e efetivo. Porto Alegre. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. 25, n. 1 jan/abr. 2009, p. 13-30. OLIVEIRA, C. de. Algumas observações sobre o financiamento do ensino. In: MARTINS, A. M.; OLIVEIRA, C. de.; BUENO, M.S. Descentralização do Estado e municipalização do ensino: problemas e perspectivas. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. PINTO, J. M. de R. Uma proposta de custo-aluno-qualidade na educação básica. Porto Alegre, RS: Revista Brasileira de
Financiamento da educação e controle social: algumas anotações Estudos Pedagógicos, v. 22, n. 2, jul/dez. 2006, p. 197-227. ROSSINHOLI, M. Política de Financiamento da Educação Básica no Brasil: do FUNDEF ao FUNDEB. Tese de Doutorado. UNIMEP, Piracicaba, SP: 2008.
119
SAVIANI, D. “Sistema Nacional de Educação: conceito, papel histórico e obstáculos para sua construção no Brasil”. Trabalho apresentado na 31ª Reunião Anual da ANPED, Caxambu, MG, 2001. TEIXEIRA, A. Custo mínimo da educação primária por aluno. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. RJ, v. 35, n. 82, abr./jun., 1961. Disponível em: www. bvanisioteixeira.ufba.br.
Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 113-120, jul.-dez. 2009
Inclusão: entre os direitos civis, econômicos, sociais e a injustiça histórica Niminon Suzel Pinheiro* Centro Universitário de Rio Preto (UNIRP), Rua Yvette Gabriel Atique, 45, Boa Vista, CEP 15025-400, São José do Rio Preto, SP, Brasil, e-mail: niminon@unirp.edu.br Enquanto país historicamente colonizado, que durante séculos voltou-se apenas para a satisfação das necessidades da metrópole, nesse momento, ouvir os movimentos sociais, torna-se imprescindível pois as necessidades colocadas em pauta nem sempre partem dos grupos sociais. São necessidades da globalização, do sistema financeiro internacional, colocadas como necessidades nossas: brasileiras e latino-americanas. Compreender a relevância da educação no Brasil e no contexto internacional, na atualidade, significa analisar nossa formação histórica e considerar, politicamente, a diversidade entre os interlocutores: índios, negros, portugueses, seus descendentes, povos tradicionais, povos da floresta, mulheres, GLBTs. A garantia do direito à diversidade se dará por meio da prática social e política que garanta outros direitos, tais como, à cultura, à dignidade na moradia, na saúde, na alimentação. Incluir significa valorizar os direitos civis, econômicos, sociais em detrimento das injustiças que, historicamente, temos vivenciado. Palavras-chave: Educação. Inclusão. Direitos Sociais. Direitos Econômicos. Direitos Civis.
Inclusion: between civil, economic and social rights and the historical injustice While a historically colonized country, that for centuries dedicated itself only to satisfying the needs of the metropolis, at this moment, listen to social movements becomes vitally important because the needs that are broached not always come from these social groups. They are needs of globalization, of the international financial system, set as our needs: Brazilian and Latin American. Understand the relevance of education in Brazil and in an international context, at the present, means analyzing our historical formation and consider, politically, those who form it: Indians, Africans, Portuguese, their descendants, traditional tribes, forest tribes, GLBTs. The guarantee of the right to diversity, will come by means of social and political practice the will guarantee other rights such as, culture, dignity in the home, in health, food. To include means to value civil economical and social rights, as opposed to the injustices we have suffer historically. Keywords: Education. Inclusion. Social rights. Economic rights. Civil rights.
1 Introdução O objetivo dessa mesa é expressar a participação e contribuição de segmentos da sociedade civil e dos municípios para a reflexão sobre a construção do Sistema Nacional (Articulado) de Educação e para o Plano Nacional de Educação, suas diretrizes e estratégias de ação, discutindo o Documento Referência,
elaborado pelo MEC, principalmente, aspectos do Eixo VI - Justiça Social, Educação e Trabalho: Inclusão, Diversidade e Igualdade. Acredito que fui convidada para contribuir para esse debate, por meio de uma conferência, em decorrência de minha prática educacional que tem
* Doutora em História e Sociedade pela UNESP e Professora do Centro Universitário de Rio Preto – UNIRP.
122
Niminon Suzel Pinheiro
sido, até o momento, pautada pelo compromisso com os setores acadêmicos, sociais e políticos de forma expressiva na articulação da teoria e prática no ensino, pesquisa e extensão, entre os níveis básico e superior da educação brasileira, sempre lutando pela possibilidade da justiça e da liberdade. A garantia do direito à diversidade, respeito às diferenças, formal e informalmente, tendo como referência a legitimidade das ações políticas e sociais, a qualidade na educação, inclusão, gestão democrática e sustentabilidade baseada no respeito às formas tradicionais de relação com o meio ambiente só se dará por meio da prática social e política e da garantia de outros direitos, tais como, à cultura, à dignidade na moradia, na saúde, na alimentação. Ao analisar o Documento Referência, ficou nítido que justiça, direito à diversidade, ao trabalho, e, respeito às diferenças, compreendida em sentido antropológico (o que inclui a possibilidade de revisão do que entendemos como sendo direitos humanos universais, e a inclusão de diferentes formas sócioeconômicas de relacionamento tais como, por exemplo, viver em comunidades solidárias, não capitalistas, apropriar-se coletivamente da terra, bem como a qualidade social da educação e a gestão democrática) constitui-se em fundamentos e alicerces de todo o processo em andamento, sendo, portanto, particularmente, bases inspiradoras de ações e de práticas políticas e pedagógicas para a educação brasileira. Portanto, a consulta aos diferentes segmentos sociais são parâmetros para a avaliação das ações educacionais, do Plano Nacional de Educação, das metas e diretrizes no sentido de responderem ou não às necessidades atuais da sociedade brasileira, dos movimentos sociais, e de uma democracia que reflita sobre o sentido da inclusão no contexto da sociedade atual, individualista, capitalista e competitiva. Entendemos por democracia inclusiva a própria democracia, isto é, sistema político que “exige a ampliação da representação pela participação, o que leva ao surgimento de novas práticas que garantam a participação como ato político efetivo, o qual aumenta a cada criação de um novo direito” (CHAUI, 2006, p. 140). O processo que iniciamos com a Constituinte e a Constituição Federal/1988 e os posteriores avanços e retrocessos nos conduziu até o momento atual. Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 121-128, jul.-dez. 2009
Segundo Chauí, “só há democracia com a ampliação contínua da cidadania (...) cidadania, que nas chamadas democracias liberais se define pelos direitos civis, abre um campo de lutas populares pelos direitos econômicos e sociais, opondo-se aos interesses e privilégios da classe dominante” (idem). Entendemos como democracia e inclusão os avanços do movimento social em ações concretas, em marcos legais e ordenamentos jurídicos tais como os mencionados – CF/88 - a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB/1996, a Lei 10.639/2003, Lei 11.645/2008, e outros marcos, tais como: o atual movimento de construção do Sistema Nacional de Educação, e práticas efetivas que prevêem o fim da exclusão e da marginalização das minorias pela sua efetiva participação, problema histórico no Brasil e recorrente nos sistemas políticos de muitos países da atualidade. Esse processo avança historicamente na medida em que é construído com políticas e ações concretas, responsabilidade, de forma a estimular a sociedade civil aberta, participativa e responsável. A participação dos diferentes segmentos sociais da classe trabalhadora, para além da reivindicação, garante a possibilidade de que fiquem no passado, injustiças e misérias que certas democracias, conhecidas por “democracia restrita” e “democracia excludente”, também trouxeram para o Brasil1. Como influir politicamente? É necessário compreender o lugar onde se está, os problemas da conjuntura atual, dentre os quais se destaca o caráter, ainda excludente, de nossa sociedade, sua origem histórica, nossa formação como povo e nação. Nesse sentido são necessárias transformações que levem em consideração a diversidade e o respeito aos interlocutores sociais, dentre os quais índios, negros, mulheres, pessoas com deficiência, jovens analfabetos, idosos moradores de rua, agricultores sem terra, grupos heterogêneos, que têm uma história particular e que se articulam separadamente. No entanto, todos estes elementos, segundo o Documento Referência, necessitam serem articulados sob uma política ampla, no sentido de ser inclusiva, com educação de qualidade e solidária, e desenvolvimento sustentável. 1 Para maiores esclarecimentos, sobre a influência e estratégias de democracia excludente na questão da política educacional no Brasil, consulte: SAVIANI, Dermeval. Política e Educação no Brasil. 4ª ed, Campinas, SP, Autores Associados, 1999.
Inclusão: entre os direitos civis, econômicos, sociais e a injustiça histórica
Política ampla que abarque o quê? Quem? Como? Enquanto país historicamente colonizado, que durante séculos voltou-se apenas para a satisfação das necessidades da metrópole, nesse momento, ouvir os movimentos sociais torna-se imprescindível, pois as necessidades colocadas em pauta nem sempre partem dos grupos sociais, mas são necessidades da globalização, do sistema financeiro internacional, que se colocam como necessidades nossas, brasileiras e latino-americanas. No Brasil ainda vemos, na atualidade, de um lado, a cultura da elite, dominante, com sua concepção de sociedade, de história, de economia e de direitos humanos e, do outro lado, toda essa população, historicamente excluída, lutando e exigindo mudanças. População das quais destacamos os índios, exilados em sua própria terra, provenientes de grupos comumente excluídos dos registros e dos referenciais escritos, excluídos da realidade econômica e sóciocultural institucionalizada porque diferentes, porque se constituem na negativa real à legitimidade da propriedade privada dos meios de produção, porque trazem no corpo a escrita de seu lugar no grupo, porque durante milênios souberam conviver equitativa e sustentavelmente com o meio ambiente, nunca necessitaram de título de posse, porque em seu comportamento, na sua comunidade, ainda há lugar para solidariedade, justiça, sustentabilidade e, sua existência, por si só, é uma denúncia e uma crítica às injustiças e arrogâncias capitalistas. A diversidade problematiza a questão dos direitos humanos. Conforme o próprio “Documento Referência” destacou, não é “qualquer concepção de direitos humanos” que se propõe. É uma reflexão sobre direitos humanos trazida a público pelos movimentos sociais “que problematizem a noção abstrata de humanidade ainda reinante em muitos discursos, políticas e práticas”. Paralela à reflexão sobre direitos humanos existe uma outra que é sobre o poder, sobre o lugar e o uso do poder, e que coloca a importância e o valor de se fortalecerem a organização e os canais de expressão das minorias. E isso não está claro no movimento ora levado a efeito com a CONAE/2010. Principalmente porque, nessa sala, não se encontram presentes representantes de todas as minorias mencionadas, o que inviabiliza o debate abrangente.
123
Segundo o Documento Referência, ao introduzir a reflexão sobre a importância dos movimentos sociais e a questão dos direitos humanos, descreve o seguinte: (...) os movimentos sociais explicitam para o Estado, a sociedade e as escolas de educação básica e as universidades, o jogo de forças e de relações de poder nos quais se apoiam, historicamente, algumas discussões hegemônicas sobre os direitos humanos. Denunciam que, por detrás de muitos desses discursos, prevalece a concepção de humanidade que nega a diversidade e reforça um determinado padrão humano: branco, masculino, de classe média, heterossexual e ocidental (DOCUMENTO REFERÊNCIA, 2009, p. 271).
A humanidade é igual e diferente. Esse é o dilema humano colocado pela antropologia. Roque de Barros Laraia, antropólogo brasileiro, explica o dilema humano como a conciliação entre a unidade biológica e a grande diversidade cultural da espécie humana. Para ele, a cultura, criada pela espécie humana, condiciona a visão de mundo dos seres humanos e os diferencia na sua realização. Somos todos iguais na capacidade de abstrair a realidade, de produzir cultura. Esse fato nos humaniza. Mas essa capacidade, que nos unifica enquanto espécie, é também aquela que, na sua realização histórica e social, nos separa, pois, ao realizá-la nos singularizamos. Nesse contexto, como explicar que as diferenças culturais não têm sido vistas como contribuições valiosas para a humanidade? Como explicar a submissão a um único padrão humano? Qual tem sido o papel da educação? A educação tem preparado um cidadão crítico, livre, para viver dignamente? Seu saber e o controle desse saber pertencem aos segmentos sociais? Atenta para as demandas da sociedade na qual se faz presente, enquanto parâmetro para o desenvolvimento de conteúdos e atividades, consciente dos conflitos de interesses e das influências da globalização. Quem é a sociedade? Quais as suas demandas? A sociedade de que se trata nesse debate são indivíduos com interesses antagônicos, são os povos tradicionais, povos da floresta, indígenas, negros, mulheres, GLBTs, trabalhadores. Mas são também Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 121-128, jul.-dez. 2009
124
Niminon Suzel Pinheiro
os usineiros, os latifundiários, os banqueiros, proprietários. Quem é a sociedade internacional? São também grupos com interesses antagônicos: países “ricos”, etnocêntricos, que compram produtos da natureza a preços por eles estipulados e vendem tecnologias a preços supervalorizados, gerando lucros, população alfabetizada, ocupando postos de trabalho de gestão e consumindo produtos de qualidade; e os países “pobres”, excluídos das elaborações de regras do convívio internacional, apresentam baixa autoestima, comumente vendem produtos da natureza e compram tecnologias sucateadas, nos preços estipulados pelo subjetivo “mercado”, população com baixos salários, sobretrabalho e consumo ostentatório de uma elite. Observe-se que são lugares diferentes, com interesses diferentes e, portanto, deve-se atentar para as falas e os discursos, para o lugar do poder e quem o ocupa, para o jogo de forças e a tendência articuladora do continuísmo da injustiça, da miséria e da doença sob a retórica da inclusão, do aprender a viver juntos e do respeito às diferenças. Retórica que pode ser a expressão pós-moderna de redefinições da secular exploração dos países ricos sobre os países pobres, do “fim do trabalho” para alguns poucos e do desemprego ou do sobretrabalho para muitos outros. Conforme o próprio “Documento Referência” ressalta, “as questões que envolvem a justiça social, a educação e o trabalho e que tenham como eixo a inclusão, a diversidade e a igualdade (...), na prática social, todas essas dimensões se realizam no contexto das relações de poder, das redefinições do capitalismo e das lutas sociais” (Documento Referência, p. 251). Desde o século XVI, vivem e convivem aqui, produzindo conhecimentos e transformando a realidade, povos indígenas, africanos e afrodescendentes, europeus e, mais recentemente, árabes e asiáticos. Esse convívio e o processo histórico que o definiu marcou para sermos quem somos: lugar de enormes injustiças sociais, econômicas, políticas, fiscais; mas também da solidariedade, da tolerância e da diversidade. Graças aos movimentos populares, à educação popular, aos movimentos sociais, especialmente dos negros e indígenas, graças às pesquisas cienPesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 121-128, jul.-dez. 2009
tíficas, foram garantidas, legalmente, importantes conquistas, especialmente na educação. Ao fazer um balanço da década de 1990 e de um ano do Governo Lula, Pablo Gentili, professor da UERJ e pesquisador do Observatório Latino-americano de Políticas Educacionais, finaliza seu artigo: (...) aos desafios que apresenta a herança recebida, devemos somar outro: a necessidade imperiosa de gerar instâncias efetivas de participação e mobilização que impeçam que a sempre poderosa tendência à reprodução do passado freie, de forma definitiva, a mudança e a transformação democrática da escola pública brasileira. Uma mudança e uma transformação que, deixando de serem as promessas de um passado cada vez mais remoto, possam se fortalecer na construção efetiva de um presente de justiça e dignidade” (GENTILI, 2003, p.8).
A construção efetiva da realidade justa e digna e o papel da educação para que isso ocorra tem sido tema de debates no Brasil e no exterior. Jacques Delors, político europeu, de nacionalidade francesa, em relatório encaminhado à UNESCO, que, segundo Shiroma (2007, p. 55), é “fundamental para compreender a revisão da política educacional de vários países na atualidade”, destaca a importância da educação básica de qualidade, do ingresso de todos os países no campo da ciência e da tecnologia, de “aprender a viver junto”, descobrir o outro, tender para objetivos comuns como sendo os “paradigmas para o novo milênio e, pilar da educação cidadã” (DELORS, 2003). Essas são transformações sociais importantes, bandeiras às quais os educadores poderiam se aliar no caminho educativo. Hoje essa é uma questão que deixa de ser opção, tendo em vista que os seres humanos e o planeta terra podem entrar em colapso. Portanto, é o momento de repensar as relações sociais, a participação do Estado de forma descentralizada e, financeiramente, parceira; valorizar as experiências individuais e sociais que caminhem para a efetivação do direito à diversidade e respeito às diferenças, experiências libertárias, realizadas dentro ou fora dos sistemas públicos de educação, e valorizar o lazer. Questões que, pela sua importância, devem ser incorporadas, normatizadas e institucionalizadas.
Inclusão: entre os direitos civis, econômicos, sociais e a injustiça histórica
Reconhece-se a relevância dos fatos levantados no Relatório para a UNESCO, por isso se deve olhar com atenção quando o Relatório destaca os encaminhamentos, especialmente no terceiro grande desafio, no qual propõe a “adaptação das várias culturas e modernização das mentalidades à sociedade da informação”. Para isso, o Relatório Delors propõe que a educação se responsabilize pela implementação de uma “sociedade educativa”, viabilizando os valores e preocupações fundamentais “sobre os quais já existe consenso no seio da comunidade internacional e no sistema das nações unidas: direitos humanos, tolerância e compreensão mútua, democracia, responsabilidade, universalidade, identidade cultural, busca de paz, preservação do meio ambiente, partilha de conhecimento e luta contra a pobreza, regulação democrática” (apud SHIROMA, p. 56). Segundo Shiroma, Morais e Evangelista (2007, p. 59): (...) o Relatório Delors articula recomendações práticas a um forte viés moralista. Prescreve orientações precisas aos vários níveis de ensino e revela uma concepção bastante nítida de educação, de seu papel e possibilidades para garantir a sobrevivência dos valores consensuais da sociedade, inculcando um novo respeito às crenças culturais do Ocidente. Além disso, endossa as recomendações para a formação docente, em orquestração afinada com as demais agências e organizações multilaterais.
Nesse contexto, há que se questionar: quais seriam as bases do consenso, considerando-se a justiça social como critério inspirador de política? Como concretizar o direito à diversidade dos segmentos sociais para a realização das reformas do sistema? Como será a inserção de todos? Quais os significados para a sociedade local dos “valores e preocupação fundamentais” terem prévio consenso da sociedade internacional? O que nós, latinoamericanos, teremos que, mais uma vez, na história da humanidade, abrir mão para que seja realizado o consenso proposto? Qual o significado dos direitos humanos universais? Assim, há que se problematizar a questão, do ponto de vista do respeito à diversidade e da valorização das diferenças. No caso indígena e dos
125
afrodescendentes, por exemplo, a modernidade trouxe genocídios e etnocídios paralelos à promessa do colonizador, de elevar os latino-americanos ao patamar dos países centrais. Celso Furtado, na década de 1970, já alertava para a “ilusão do desenvolvimento econômico”. Nas palavras do autor: “a ideia de que os povos pobres podem um dia chegar a ter os padrões de consumo dos povos ricos é irrealizável, não passa de uma ilusão”. E explica, “se isso acontecesse, a pressão sobre os recursos não renováveis seria tal que o sistema econômico entraria em colapso”. Essa ideia, ele vai dizer, “serve para levar os povos pobres a aceitar grandes sacrifícios em nome de um futuro que nunca vai acontecer”. Até que ponto o consenso, ora discutido, ora proposto pelas agências internacionais, apresenta semelhanças e diferenças com a situação analisada pelo pensador brasileiro? O desenvolvimento proposto é ilusão, por ser inatingível e político-ideológico, porque desvia a atenção do que, segundo ele, deveriam ser as nossas prioridades. Nas palavras do autor Celso Furtado: Essa ideia serve também para desviar as atenções das necessidades básicas da vida humana – alimentação, saúde, habitação, educação – para cuja satisfação devem orientar-se os esforços de cientistas, economistas, políticos e de todos os cidadãos. O desenvolvimento de um povo só será possível por meio do atendimento a essas necessidades, para as quais precisam ser orientados os investimentos (apud OLIVEIRA, p. 209).
2 As necessidades básicas e a alfabetização Sobre experiências de execução de um Sistema Nacional de Educação, historicamente, observa-se que, na década de 1950, foi consolidado em países da Europa e nos EUA. A experiência prática nesses países mostra que, se bem articulado, pode diminuir gastos e otimizar os resultados para a educação. Sua consolidação possibilitou, aos países que o realizaram, erradicar o analfabetismo, entre outras conquistas. Note-se que, paralela à alfabetização, houve “outras conquistas”. Esse fato é importante pois pode-se focar a atenção aos índices de alfabetização Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 121-128, jul.-dez. 2009
126
Niminon Suzel Pinheiro
como critério de qualidade de vida das pessoas ou de políticas de governo e deixar de lado outros importantes quesitos de qualidade de vida. Vejamos o que nos diz Gentili sobre as reformas educacionais na década de 1990. Segundo ele, tão “profundas quanto autocráticas”, definiram-se da seguinte forma: A falta de consulta e participação popular foi uma de suas marcas mais notórias. Neste contexto, o significativo avanço nos índices de escolarização contrastava com dois dados pouco alentadores e, certamente, desestimulantes, em termos democráticos. De um lado, durante a década de noventa os pobres ampliaram suas oportunidades de acesso à escola ao mesmo tempo em que se tornavam mais pobres. De outro, o processo de segmentação e diferenciação do sistema escolar brasileiro, longe de diminuir, tinha aumentado. Uma fórmula já conhecida: escolas pobres para os pobres e ricas para os ricos (OLPED, 2003, p. 2).
Presenciando, no Brasil, o processo de construção desse Sistema Nacional de Educação, do Plano Nacional de Educação e das Diretrizes e Estratégias para a sua implementação, no governo Lula, quase oito anos de mandato, é o momento de nos perguntarmos: como têm chegado às populações pobres ações desse governo? São ações que, partindo de orientações de órgãos internacionais, tomam forma nacional e emanam do governo federal chegando assim até a sociedade, quando deveria haver, pelo menos, um processo dialético de consultas e debates sobre o que realmente interessa às sociedades brasileiras, ou estamos caminhando para a democracia e o socialismo? Há diferenças sobre as políticas da década de 90 e do início do novo milênio? Certamente! Mas, ainda temos muito que avançar, especialmente na questão de desenvolvermos uma consciência crítica que respeite e lute pelos direitos civis, econômicos, políticos e sociais e não por uma inclusão à sociedade informática, ao mercado, como consumidor virtual, alfabetizado.
3 A contribuição do movimento social indígena e algumas questões sobre o respeito à ciência e cultura desses povos Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 121-128, jul.-dez. 2009
O movimento social indígena tem caráter identitário sendo, portanto, fundamental sua contribuição para as transformações sociais que se propõe. São atores políticos que problematizam a realidade exclusiva visando “à superação das desigualdades em uma perspectiva que articula a educação e os direitos humanos” (Cf. Documento Referência, p. 269 e 270). A identidade dos povos indígenas é ampla, fundada no passado comum que os congrega e no futuro de luta que ainda têm pela frente. Não sem esforços, a identidade histórica dos grupos indígenas tem sido preservada com registros orais, na sua língua nativa, e esse fato coloca a questão do respeito à transmissão da memória, da sabedoria e conhecimentos imensuráveis. Quem são “os índios”? Como vivem? Quais suas contribuições para o Sistema Nacional de Educação? Como tem sido a sua participação nos fóruns de decisão? Como o movimento social indígena tem contribuído para a construção de uma concepção de educação ampla, que considere a articulação entre níveis e modalidades de ensino e, processos educativos, que ocorrem além do âmbito escolar nos diversos momentos da prática social educativa? Um dos direitos básicos para a realização do respeito à diversidade, para os povos indígenas, em relação ao cumprimento de seus direitos constitucionais, e que o Estado e a sociedade civil brasileira ainda não considera, é “a consulta prévia aos povos interessados, sempre que se tenham em vista medidas legislativas ou administrativas capazes de afetá-los direta ou indiretamente”. Apesar das garantias legais, convenções e recomendações da OIT (desde 2003, o Brasil é signatário da Convenção 169 da OIT), esse princípio básico da inclusão e do respeito à diversidade não é cumprido. O trabalho pedagógico desse conteúdo de conhecimentos étnicos milenares, relacionados com uma natureza específica, requer a inclusão e o estudo de novos materiais pedagógicos, introdução de objetos, danças, músicas, narrativas, formas de relacionamento com a natureza. Uma gama de patrimônio histórico, cultural e científico que deverá se transformar em instrumentos de construção do saber histórico escolar e da própria escola diferenciada. Valorizar as formas tradicionais de transmissão do passado? Os relatos dos mais velhos sobre o passado das aldeias, seus mitos, suas festas; as
Inclusão: entre os direitos civis, econômicos, sociais e a injustiça histórica
pesquisas com ervas e raízes e as curas dos pajés. Como serão estabelecidas relações entre o saber indígena, tradicional e científico, transmitido, com o saber desenvolvido pela cultura escolar? A construção da nossa Educação, brasileira, hoje, passa por questões culturais e ambientais. Desafio de proporções imensuráveis. Talvez tenhamos que transformar a cultura das escolas para que se convertam em comunidades de aprendizagem e de participação nas quais o saber comumente rotulado como tradicional seja revisto numa ótica da etnociência. Daí serem necessárias Universidades Étnicas. Saber fazer essa transposição poderá gerar grandes benefícios e avanços rumo à justiça social e à sociedade sustentável.
4 Que a escola seja um projeto coletivo e assim seja assegurado o compromisso de todos (professores, alunos, pais, especialistas) Apesar das dúvidas e ansiedades da comunidade educacional, do caráter historicamente excludente da nossa sociedade, das injustiças sociais daí decorrentes, observa-se sensata concordância no que tange à necessidade da inclusão. Graças aos processos de globalização, essa necessidade é percebida em nível mundial, inclusive. A garantia de que os direitos sociais e humanos sejam garantidos, no entanto, não deveria se encontrar na escrita da lei, apenas deveria se expressar em práticas políticas claras, articuladas a uma visão da sociedade que se deseja. Para isso é necessário perguntar: que tipo de sociedade se deseja? Sociedade na qual a política social não se desvincule da econômica, pois ambas têm a mesma preocupação: o ser humano livre, crítico e saudável. Como sistematizar as necessidades mencionadas acima? Como construir um sistema nacional articulado de educação? Segundo Saviani (2009), sistematizar é “dar, intencionalmente, unidade à multiplicidade”. Para se ter um sistema educacional além do requisito da intencionalidade, conjunto e coerências, há que se formular uma teoria educacional que “indique os objetivos e meios que tornem possível a atividade comum intencional”. A consciência dos problemas, conhecimento da realidade e “formulação de uma pedagogia (teoria educacional), que integrará tanto os problemas como os conhecimentos na totalidade
127
da práxis histórica na qual receberão o seu pleno significado humano” (2009). Assim, conhecer a situação histórica, determinada pela conjuntura e estrutura, é passo fundamental. Para que a sociedade caminhe para a democracia e a inclusão, a educação deve dialogar com outras interfaces sociais, tais como: política, economia e cultura. Além de financiamento responsável, obedecendo estritamente, por meio da gestão democrática, os interesses e prioridades dos grupos minoritários e excluídos.
5 Interfaces A construção do Sistema Nacional de Educação enfatiza articulação e interfaces entre os temas abordados. Na construção de um sistema nacional de educação, a diversidade, constituinte das relações sociais e humanas, deve ser respeitada por meio de um sistema democrático que não negue e nem se oponha ao direito à diversidade, enquanto direito social e econômico, mas a incorpore como elemento formador da sociabilidade humana, se posicione também na luta pela superação do trato injusto dado à pessoa humana e aos grupos humanos, em nome de padrões humanos vinculados aos europeus, ao longo da nossa história. Assumir o compromisso social, político e ético com um projeto social emancipador e transformador das relações sociais e excludentes e com o processo de formação profissional, com ênfase na concepção sócio-histórica de educador é lutar pela transformação da direção geral (política e cultural) da sociedade. Neste contexto, a diversidade deixa de ser recurso de retórica e se constitui em uma construção posta pelas relações sociais concretas. Afinal o que todos querem é qualidade de vida: trabalho, educação, saúde, alimentação e moradias dignas. Assim, acredita-se que se está caminhando pela trilha da inclusão, necessitando fortalecer as ações concretas, as lideranças, os movimentos sociais, os canais de expressão e de participação das minorias nos órgãos de decisão.
Referências CHAUI, M. “Cultura, Democracia e Socialismo”. In: Cidadania Cultural. O direito à cultura. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2006. Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 121-128, jul.-dez. 2009
128
Niminon Suzel Pinheiro
CLASTRES, P. A Sociedade contra o Estado. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1978. CURY, C. R. J. Legislação educacional brasileira. 2o. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. DELORS, J. et al. Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI. FURTADO, C. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. GENTILI, P. Entre a herança e a promessa: o Governo Lula e a política educacional. OLPED, 2003. www.lpp-uerj. net/olped/documentos/0811.pdf . LARAIA, R. de B. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro, Zahar, 1986. MUNANGA, K. (Org.). Superando o racismo na escola. Brasília, MEC, 2001 OLIVEIRA, C.; MARTINS, A. M.; BUENO, M. S. S. (Orgs.). Descentralização do Estado e municipalização do ensino: problemas e perspectivas. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. PINHEIRO, N. S. “Educação Indígena - Oeste e Noroeste Paulista”. Revista UNORP. São José do Rio Preto, v. 8, p. 51-76, 2004. SANTILLI, P. As fronteiras da república. São Paulo, USP/ Fapesp, 1994. SANTOS, M. Espaço e Sociedade. Petrópolis, Vozes, 1979. SAVIANI, D. Política e educação no Brasil. Campinas: Autores Associados, 1999.
SAVIANI, D. “Sistema de Educação: Subsídios para a Conferência Nacional de Educação”. http://portal.mec. gov.br/conae/index.php?option=com_content&view=ar ticle&id=68&Itemid=66, acessado em 17/6/2009 SHIROMA, E. O; MORAES, M. C. M. de; EVANGELISTA, O. “Os arautos da reforma e a consolidação do consenso: anos 1990”. In: Política Educacional. 4o. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2007. SCHAFF, A. A sociedade informática: as consequências sociais na Segunda Revolução Industrial. São Paulo: Editora da UNESP: Brasiliense, 1990. TOMASSI, L.; WARDE, M. J.; HADDAD, S. (Orgs.). O Banco Mundial e as políticas educacionais. 3o. ed. São Paulo: Cortez, 2000. Sites/Links consultados http://pib.socioambiental.org/pt/c/politicas-indigenistas/ o-que-e-politica-indigenista/na-atualidade 9/6/2009 http://fazervaleralei.blogspot.com/2009/06/lei-dahistoria-da-africa-ganha-plano.html acesso em 14/06/2009. http://www.espacoacademico.com.br/040/40pc_diretriz. htm acesso em 14/6/2009 http://portal.mec.gov.br/index.php 14/06/2009 http://www.mma.gov.br/estruturas/agenda21/_arquivos/ carta_terra.doc 18/62009 http://pib.socioambiental.org/pt/c/politicas-indigenistas/ o-que-e-politica-indigenista/na-atualidade 20/06/2009 http://www.republicart.net/disc/aeas/fotopoulos01_ pt.htm 20/06/2009
Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 121-128, jul.-dez. 2009
Desigualdades raciais em educação no Brasil* Mary Francisca do Careno** Pontifícia Universidade Católica de Santos (UNISANTOS), Rua Dr. Carvalho de Mendonça, 144, Vila Mathias, CEP 110070-906, Santos, SP, Brasil, e-mail: mcareno@uol.com.br Embora o eixo VI da CONAE agregue número razoável de temas, como questão étnico-racial, indígena, do campo, das pessoas com deficiência, educação ambiental, crianças, adolescentes e jovens em situação de risco, educação de jovens e adultos e educação profissional, este artigo, vai se ater à questão negra. Inicialmente, objetivava oferecer alguns dados históricos e recentes para abrir o debate sobre a necessidade de se ter um olhar diferenciado sobre o segmento negro e procurar fazer com que os professores partissem da perspectiva de uma pedagogia que compreende e incentiva as diferenças e busca sempre estimular os educadores locais, através do conhecimento ampliado em áreas como cultura, história, direitos humanos, a tomarem o próprio bairro como campo de pesquisa.O trabalho pode ser dividido em uma introdução e três partes. Na primeira, expõe alguns episódios da história brasileira cuja temática é o segmento negro e também apresenta informações sobre a África e suas africanidades inseridas no cotidiano e na cultura brasileira. Na segunda parte, relata um pouco sobre as consequências de fatos da história do Brasil para dar a dimensão de quem somos e por que estamos vivendo a realidade atual. Na terceira, aborda a importância da inserção da história e da cultura de África e dos afro-descendentes no currículo escolar. Palavras-chave: Desigualdades raciais. Educação no Brasil. História e Cultura da África e dos afro-descendentes.
Racial inequalities in education in Brazil Although the axis of the 6th CONAE brings together a reasonable amount of themes, such as the ethnic-racial issue, the indigenous, rural, and the people with disabilities issues, environmental education, and matters related to children, adolescents and young people in situation of risk, youth and adult education, and professional education, this article will focus on the black issue. It initially sought to offer some historical and recent data to drive the debate on the need to have a differentiated view of the black segment and to cause teachers to begin from the perspective of an education that understands and encourages differences and seeks to always stimulate local educators, by means of enhanced knowledge in areas such as culture, history, human rights, to consider their own districts as field for research. The paper can be divided in three parts. In the first, it showcases a few episodes of the Brazilian history, the theme of which is the black segment, and presents information about Africa and the inserted Africanness that expresses itself in Brazilian daily life and culture. In the second, it discusses the consequences of facts that occurred in the history of Brazil that shaped who
* Palestra pronunciada em 30/05/2009, na UNAERP, durante a Pré-Conferência Municipal de Promoção da Igualdade Racial, promovida pela COEPPIR (Coordenadoria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial) e, com algumas alterações, em 2/06/2009, durante a Conferência Intermunicipal de Educação – Baixada Santista – Eixo IV: Justiça social, Educação e Trabalho: inclusão, diversidade e igualdade. Para este artigo, os dados foram atualizados. ** Mestranda em Educação da Universidade Católica de Santos/UNISANTOS.
130
Mary Francisca do Careno
we are and why we are experiencing our current reality. In the third, it approaches the importance of inserting the history and culture of Africa and of afro-descendants in school curricula. Keywords: Racial inequalities. Education in Brazil. History and Culture of Africa and of afrodescendants. School curricula.
1 Introdução Quero iniciar minha fala com um cumprimento muito especial à mesa, por terem aceitado o convite e proporcionado o prazer e a honra de estarmos juntos. Cumprimento muito especial à Profa. Maria de Fátima Barbosa Abdalla, por ter-me convidado para coordenar esta mesa. Meus cumprimentos a todos e a todas, aos professores e alunos da EDUCAFRO, à mesa e a todas as pessoas presentes neste auditório. Quero abrir este debate convocando a todos os presentes para uma reflexão sobre a democratização do acesso à saúde, ao trabalho, à educação, especificamente à última. Entendo que estamos só iniciando as discussões que deverão ser ampliadas para além das fronteiras dessa sala. Ainda há muito o que se falar e o que se fazer. A primeira colocação que gostaria de fazer é estabelecer: de que lugar eu falo? Falo, em primeiro lugar, como mulher negra, comprometida com o meu povo. Em segundo lugar, falo como professora universitária. Em terceiro, falo como aluna do curso de Mestrado em Educação, da Universidade Católica de Santos-UNISANTOS. Por último, falo também como estudiosa de remanescentes de quilombos do Vale do Ribeira e atualmente de diversidade racial com uma pesquisa sobre relações raciais em escolas da Zona Noroeste de Santos/SP. Minha fala pode ser dividida em três partes e esta introdução. Na primeira, tenho que me remeter a alguns episódios da história porque sem o passado, não temos futuro e muito menos presente. Nós somos produtos dos nossos antepassados e dos fatos que nos fizeram inteiros como somos e estamos hoje. Quem renega seu passado, renega a si mesmo, está sem identidade. Logo, falarei sobre o que somos e fomos, sobre a contribuição dos nossos antepassados para a constituição da sociedade brasileira. Na segunda parte, falarei um pouco sobre as consequências de fatos da história do Brasil para Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 129-134, jul.-dez. 2009
dar a dimensão de quem somos e por que estamos vivendo a realidade atual. Na terceira, sobre a inserção da história e da cultura de África e dos afrodescendentes no currículo escolar. Embora o eixo agregue número razoável de temas, como questão étnico-racial, indígena, do campo, das pessoas com deficiência, educação ambiental, crianças, adolescentes e jovens em situação de risco, educação de jovens e adultos e educação profissional, neste artigo, vou me ater à questão negra. A minha tese é que em tudo perpassa a educação que liberta com uma condição de não libertar. Ela é uma condicionante processual para a formação do que denomino de identidade(s) possível(is), mas é um sistema propício para condicionamento das mentalidades, e, também, o meio pelo que é possível “descondicioná-las” e possam ser, assim, consideradas “autônomas”. A mudança, via educação, para a formação de uma identidade possível, só ocorre se projetarmos sua finalidade e especificarmos a que princípios ela estará condicionada e o que se pretende com os indivíduos submetidos ao processo de (trans) formação, em que se resume o ideário operacional condicionante de uma nova educação. Assim, a educação engendra dinamicamente um caráter dialógico e dialético, para o qual até a insônia torna-se favorável vigiar.
2 Relembrando alguns episódios da história Todos sabem que: 2.1 - O Brasil foi composto, no início de sua colonização, por três povos: o índio, o português e africano. Hoje, a sociedade brasileira é formada por uma multiplicidade de povos, vindos das mais diversas regiões do globo terrestre. Essa multiplicidade de pessoas soma quase 192 milhões de habitantes e a cidade de São Paulo, a mais populosa do país, superou a marca de 11 milhões de
Desigualdades raciais em educação no Brasil
moradores, informou o IBGE, em 14/09/2009.1 (exatos, em set 2009: 191,5 milhões de pessoas). Atualmente, mais da metade da população brasileira é formada de afro-descendentes (50,6% de indivíduos pardos e pretos = censo 2008); 2.2 - O Brasil é o segundo país em população negra do mundo, só perdendo para a Nigéria e essa população encontra-se nas camadas mais pobres da sociedade, situação resultante das condições em que foi deixada após a assinatura da Lei Áurea, sem direito a emprego, educação, saúde e moradia. Todavia, o debate sobre a premente necessidade de encontrar soluções para tirar esse segmento populacional das condições miseráveis em que se encontra, com políticas públicas, e a discussão sobre as relações étnicas em território brasileiro são sempre temas complexos, polêmicos, pois a construção sócio-política é sempre forjada nas tensões que se estabelecem nas ligações de interesses entre brancos e negros; 2.3 - Quando se pensa na África, imagina-se um pedaço de terra distante, do outro lado do Oceano Atlântico. A África, entretanto, é um continente muito grande, com mais de 30 milhões de quilômetros quadrados (exatos 30,28 milhões de Km; só o Deserto do Saara ocupa 8,6 milhões de Km2). O território é dividido em 53 países, onde se falam mais de 2000 idiomas e dialetos e é povoado por quase 800 milhões de habitantes.
Países Africanos: África do Sul, Angola, Argélia, Benin, Botsuana, Burkina Faso, Burundi, Cabo Verde, Camarões, Chade, Comores, Congo, Costa do Marfim, Djibouti, Egito, Eritreia, Etiópia, Gabão, Gâmbia, Gana, Guiné, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Lesoto, Libéria, Líbia, Madagascar, Malaui, Mali, Marrocos, Maurício, Mauritânia, Moçambique, Namíbia, Níger, Nigéria, Quênia, República Centro-Africana, República Democrática do Congo, Ruanda, São 1 Notícia divulgada no site: http://www.redebrasilatual.com.br/temas/ cidadania/populacao-brasileira-chega-a-191-5-milhoes-diz-ibge Acesso em 18/10/2009. Segundo o site: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20090919/ not_imp437615,0.php. Acesso em 18/10/2009, “ A Pnad 2008 apontou que no ano passado, pela primeira vez, mais da metade da população brasileira - 50,6% dos habitantes, ante 50% em 2007 - se declarou parda ou preta.
131
Tomé e Príncipe, Senegal, Serra Leoa, Seichelles, Somália, Suazilândia, Sudão, Tanzânia, Togo, Tunísia, Uganda, Zâmbia e Zimbábue. Territórios Africanos: Canárias, Ceuta, Melilla e outras possessões espanholas, Mayotte, Reunião, Santa Helena e Saara Ocidental.2
3 Da contribuição dos povos africanos para a constituição da sociedade brasileira A contribuição dos povos africanos para a constituição da sociedade brasileira não foi tão simples como está expresso em diversos periódicos e mesmo nos livros didáticos veiculados nas escolas. Os povos de origem africana trouxeram consigo, para o território americano, seus costumes, crenças, línguas (hoje de uso litúrgico como o yorubá, o bakongo e o kimbundo), léxicos incorporados ao nosso falar (línguas bantas), danças, ritmos, instrumentos musicais, culinária, bem como seus deuses e seus ritos de culto. Tiveram também uma grande contribuição para o conhecimento científico e tecnológico universal da época, como as técnicas de agricultura, mineração, ourivesaria e metalurgia (bronze, ferro e aço),3 o comércio, a arquitetura e a engenharia, a sofisticação da organização política, a prática da medicina4. Esses fatos não são quase nunca encontrados nos textos que tratam do tema. Embora as forças de poder tenham procurado mantê-los dispersos no território brasileiro e, por vezes, misturados para não se rebelarem, esses grupos étnicos retiveram parte de sua cultura original e conseguiram preservar sua identidade. Esta identidade que sempre constituiu fator fundamental para resistir durante o período da escravidão e que hoje é importante ser conhecida pela popu2 Esses dados a respeito da África foram retirados do site: www.casadasafricas.org.br. 3 “Os diversos povos que habitavam o continente africano, muito antes da colonização feita pelos europeus, eram bambambãs em várias áreas: eles dominavam técnicas de agricultura, mineração, ourivesaria e metalurgia; usavam sistemas matemáticos elaboradíssimos (...), a contabilidade do comércio de mercadorias; e tinham conhecimentos de astronomia e de medicina que serviram de base para a ciência moderna.” (cf. em http://revistaescola.abril.com.br/edicoes/0187/ aberto/mt_ 98578.shtml.) Ler também MOURÃO, 1995-6:17-18. 4 Cf. Nascimento, 2006, p. 35.
Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 129-134, jul.-dez. 2009
132
Mary Francisca do Careno
lação brasileira, principalmente pelos alunos das redes pública e privada. A necessidade de aprofundar o estudo sobre a questão étnica no Brasil ficou mais subsidiada com a promulgação da recente Lei n° 10.639 (em anexo, texto integral), de 9 de janeiro de 2003, que altera a Lei 9394/96 e torna obrigatória, nos currículos dos níveis fundamental e médio, em estabelecimentos oficiais e particulares do país, a inclusão da temática História e Cultura Afro-Brasileira.
4 Por que história e cultura africanas na educação básica? Hoje, no mundo todo, já existe um consenso de que o elemento central para assegurar o desenvolvimento econômico e social de um país é o nível de escolarização de seu povo e, neste aspecto, o Brasil tem ainda um longo caminho a percorrer. Nossos índices de cobertura no âmbito da Educação Infantil (creche e pré-escola), Ensino Médio e Educação Superior estão abaixo daqueles apresentados por países de renda per capita equivalente. No Ensino Fundamental, embora as matrículas já superem em 30% a população na faixa etária ideal (7 a 14 anos), ainda temos mais de 2 milhões de crianças de 7 a 14 anos fora da escola. Este último fato se explica pelas altíssimas taxas de reprovação e repetência, o que provoca um fluxo lento de passagem do aluno pelo sistema de ensino. A razão: ensino de baixa qualidade. Considerando-se o fato, segundo dados estatísticos, de que os negros formam mais da metade da população brasileira, tanto esse quadro de evasão e repetência, quanto os graves problemas de aprendizagem apresentados pelas crianças oriundas das camadas populares que, em sua maioria, são compostas por negros, trazem um desafio aos educadores: promover uma educação que garanta o sucesso escolar deste significativo número de alunos que ocupa, principalmente, os bancos escolares das escolas públicas. Essa concepção remete a dois elementos essenciais para um ensino de qualidade que contemple o profissional da educação e o segmento que é atingido diretamente pela situação caótica em que se encontra o ensino no Brasil: a qualificação dos professores e a concepção ideológica que se dá ao currículo escolar. Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 129-134, jul.-dez. 2009
Somente um levantamento de determinantes sócio-históricos, econômicos e culturais do segmento negro pode influenciar a prática dos professores locais e pode também ajudá-los a encontrar subsídios para o conhecimento de novas estratégias de “ensinagem” diante da população escolar existente. Historicamente, a política educacional brasileira traz a exclusão já em seu bojo, pois não só o preconceito de classe, mas também o preconceito de raça e as propostas curriculares voltadas para as classes populares constituem-se em falácias e fortalecem o mito da democracia racial. Na medida em que não inclui a História da África e da cultura afro-brasileira nos currículos escolares do país, nossa política educacional não leva em conta a identidade dos negros, não respeita seu modo de ser e pensar o mundo, resiste a considerar a imensa influência que a cultura africana sempre exerceu sobre o modo de ser do brasileiro, com seus mais de 50% de população negra e mestiça. Esse segmento, com escolaridade insuficiente e padrão de vida bem abaixo da média, precisa conhecer a história brasileira sob o ponto de vista não dos vencedores europeus, mas a partir de pesquisas históricas mais reais e a partir da ótica daqueles que realmente foram protagonistas.
O professor e os pais, nesse sentido, são elementos básicos do ato pedagógico e podem ser aliados extremamente importantes para romper os elos dessa cadeia de alienação referente ao tema. O professor tem, contudo, uma formação elitista e preconceituosa. Fato que advem ou por desconhecimento do assunto, ou por falta de oportunidade em discutir essa temática, já que desde os cursos de formação de professores é quase nula a inclusão de alguma disciplina que trate da cultura afro-brasileira. A Lei 10.639 traz uma contribuição de fundamental importância nessa relação/formação e atuação docente. O debate sobre ela já trouxe um grande benefício à sociedade: colocar o tema na agenda nacional e fazer todos reconhecerem que é preciso realizar algo para diminuir a desigualdade na educação de ricos e pobres ou de negros e brancos.
Desigualdades raciais em educação no Brasil
Com essa lei, estabelecem-se o embate e as posições sobre o tema. Por meio de discussão e de reflexão sobre os diversos eventos do cotidiano escolar, e da organização e da participação efetiva em cursos e seminários, estaremos forçando o debate, ampliando o horizonte conceitual e difundindo práticas educativas. Estaremos indo na direção de tomada da consciência da existência ampla de uma cultura e do seu tratamento possível e necessário na educação. Para tanto, cada um de nós, que queremos formar uma sociedade mais humanitária, precisaremos nos despojar dos velhos ranços culturais, nos apoderarmos desse novo saber e anunciarmos a boa nova, tecendo e tecendo as informações sobre África, sobre os avanços históricos, no entremeio dos silêncios dos nossos alunos, como arautos desse novo conteúdo curricular.
5 Considerações Finais A nossa fala, inicialmente, pretendia oferecer alguns dados históricos e recentes para abrir o debate sobre a necessidade de se ter um olhar diferenciado sobre o segmento negro e procurar fazer com que os professores partissem da perspectiva de uma pedagogia que compreenda e incentive as diferenças e busque sempre estimular os educadores locais, através do conhecimento ampliado em áreas como cultura, história, direitos humanos, a tomarem o próprio bairro como campo de pesquisa. Os dados obtidos sobre a existência da manutenção de africanidades no cotidiano de bairros onde se localiza sua escola é, portanto, um convite aos educadores para que mestres redescubram a cultura afro dos locais onde lecionam, discutam as diferenças regionais e intra-regionais e instituam a necessidade de incluir efetivamente a formação e a contribuição também dos povos africanos na cultura brasileira dentro do currículo escolar. As experiências vão resultar num enriquecimento das relações entre crianças/família/escola e todos terão a oportunidade de conviver com a diversidade cultural e a criatividade de parcela significativa do povo brasileiro. Resgatam-se, nos traços dessa população, vestígios de um modo de viver próprio, materializado no labor cotidiano, no ritual, na gestualidade de corpos que vibram à batida de um batuque,
133
na solidariedade – formando uma cosmogonia das suas africanidades. No exercício de suas ancestralidades, esses grupos urbanos ou rurais tornam-se polos de resistência que sustentam todo o patrimônio cultural existente.
Referências CARENO, M. F. A Lei 10.639, a diversidade cultural e racial e as práticas escolares. Jornal: Bolando Aulas de História. GRUHBAS - Projetos Educacionais e Culturais. Santos/ SP. Ano 07, nº 46, set. 2004, p. 3-4. CUNHA JR, H. A Inclusão da História Africana no Tempo dos Parâmetros Curriculares Nacionais. HAMPÂTÉ BA, A. A Educação Tradicional na África. Disponível em:http://www.casadasafricas.org.br/site/ index2.php?id=banco_de_textos&sub=01&id_texto=6>. Acesso em 16/06/2008. HAMPATÉ BÁ, A. A tradição viva In: KI-ZERBO, J. (Org.). História Geral da África. Vol. I, Metodologia e PréHistória da África. São Paulo: Ática-UNESCO, 1980. MOURÃO, F. A. A. Múltiplas Faces da Identidade Africana. ÁFRICA: Revista do Centro de Estudos Africanos/USP. São Paulo, 18-19(1), p. 05-21, 1995/1996. MUNANGA, K. Identidade Étnica, Poder e Direitos Humanos.THOT, São Paulo, no 80, p. 19-30, abr. 2004. MUNANGA, K. A Identidade Negra no Contexto da Globalização. ETHNOS BRASIL ( NUPE), São Paulo, Ano 1- no 01, p. 11-20, mar. 2002. NASCIMENTO, E. L. Introdução à história da África. In: Educação africanidades Brasil. MEC – SECAD – UnB – CEAD – Faculdade de Educação. Brasília. 2006. p. 33-51. REVISTA NOVA ESCOLA. África de todos nós. Disponível em: http://revistaescola.abril.com.br/edicoes/0187/ aberto/mt_ 98578.shtml. Acesso em 22/03/2008. (Texto publicado na edição 187 - nov/2005)
ANEXO LEI No 10.639, DE 9 DE JANEIRO DE 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura AfroBrasileira”, e dá outras providências. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1o - A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 129-134, jul.-dez. 2009
134
Mary Francisca do Careno
vigorar acrescida dos seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B: “Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. § 1 O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. o
§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura AfroBrasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras. § 3o (VETADO)”
Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 129-134, jul.-dez. 2009
“Art. 79-A. (VETADO)” “Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’.” Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, 9 de janeiro de 2003; 182o da Independência e 115o da República. LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Educação inclusiva: subsídios para discussão sobre a educação especial no Brasil Arimar Martins Campos* Prefeitura Municipal de Santos, Secretaria da Educação Seduc, Rua Assis Corrêa, 20, Gonzaga, CEP 11055310, Santos, SP, Brasil, e-mail: arimarcampos@yahoo.com.br
Este artigo apresenta proposituras dos documentos que formam os pilares da Educação Inclusiva, segundo a perspectiva do direito à educação para todos. Em todas as instâncias sociais de debate, evidencia-se a necessidade de integração de análises e propostas vinculadas à educação em todos os níveis de ensino, bem como a de garantir neste processo maior participação dos diversos segmentos sociais e uma atuação pedagógica voltada para a inclusão, enfatizando a importância de ambientes heterogêneos em que todos podem aprender sem qualquer discriminação. Palavras-chave: Educação Inclusiva. Inclusão. Diversidade e Igualdade. Justiça Social.
Inclusive education: subsidies for the discussion of education in Brazil This article presents propositions included in the documents which constitute the pillars of Inclusive Education, as a means of everyone’s constitutional right to education. In all social instances of debate, the need of integration between analyses and proposals is pointed out in connection with all teaching levels, as well as assuring in this process larger participation of the several social segments, in a pedagogic performance meant for inclusion, with emphasis on the importance of heterogeneous atmospheres in which everybody is quite able to learn, without any discrimination. Keywords: Inclusive Education. Inclusion. Diversity and Equality. Social Justice. Há momentos na vida em que a questão de saber se podemos pensar de outro modo que não pensamos e perceber de outro modo que não vemos é indispensável para continuar olhar e refletir. Michel Foucault
1 Introdução Os cinquenta artigos da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU/06), incorporada à Constituição Brasileira de 1988, tratam dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais das pessoas com deficiência, e as definem em seu artigo 1º como portadoras de impe-
dimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. O artigo 23, no Capítulo II desta Constituição, como competência comum da
* Mestre em Educação Inclusiva, Supervisora de Ensino, Professora Universitária Unip/Unimonte, Membro da Comissão Executiva do Fórum Permanente de Educação Inclusiva - SP.
136
Arimar Martins Campos
União, Estados, Distrito Federal e Municípios, determina cuidar da saúde e assistência pública, proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiências. O entendimento sobre “pessoa com deficiência” evidencia, cada vez mais, a necessidade de mudanças para que se alcancem plena cidadania, respeito e inclusão. Para se tornar inclusiva, a sociedade contemporânea deve atender às necessidades de todos os seus membros. Assim, “incluir” significa rejeitar preconceitos, discriminações, barreiras sociais, culturais ou pessoais e respeitar as necessidades próprias das pessoas com deficiência, possibilitando-lhes acesso a serviços públicos, bens culturais e artísticos e produtos decorrentes do avanço social, político, econômico, científico e tecnológico.1 Algo novo e extremamente multifacetado, a inclusão (a despeito do desgaste do termo: escolar, educacional, social, digital) envolve, sobretudo, o acesso à educação digna e de qualidade. Constituindo-se como uma das grandes possibilidades de correção de desigualdades históricas, a Educação Inclusiva (doravante EI) realiza atendimento educacional especializado, disponibiliza serviços e recursos e orienta os alunos e professores quanto à sua utilização no processo de ensino e aprendizagem nas turmas comuns do ensino regular. Em todas as instâncias de debate sobre EI (escolas e associações educativas, ONGs etc.), sobressai a necessidade de integração entre análises e propostas vinculadas à educação em todos os níveis de ensino (Fundamental, Médio, Superior e Pós-Graduação), bem como a de garantir neste processo maior participação dos diversos segmentos sociais. Neste sentido, o presente artigo apresenta proposituras contidas nos documentos basilares da EI,2 1 http://189.28.128.100/portal/saude/ visualizar_texto.cfm?idtxt=30053 (a) Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008); (b) A Educação Inclusiva e a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (set. 2008); (c) Conferência Nacional da Educação Básica/CONEB (Educação Especial) (abril 2008); (d) Apresentação do eixo temático VI, Justiça Social, Educação e Trabalho: Inclusão, Diversidade e Igualdade, da Conferência Nacional de Educação (CONAE). 2 Embora as definições quanto ao público alvo da EI devam ser contextualizadas, não se esgotando na mera categorização e especificações atribuídas a um quadro de deficiência, transtornos, distúrbios e aptidões, podem receber atendimento educacional especializado alunos com: (1) transtornos globais do desenvolvimento, com alterações qualitativas das interações sociais recíprocas e na comunicação, um repertório de interesses e atividades restrito, estereotipado e repetitivo (autismo, síndromes do espectro do autismo e psicose infantil); (2)
Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 135-142, jul.-dez. 2009
configurando-se como um dos suportes para a Conferência Nacional de Educação, Eixo VI, Justiça Social, Educação e Trabalho: Inclusão, Diversidade e Igualdade, a ser convocada pelo MEC em abril de 2010, bem como uma contribuição para a elaboração do Plano Nacional de Educação para o período 2011-2020, a ser submetido pelo MEC ao Congresso Nacional.
2 A Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva Por muito tempo perdurou o entendimento de que a educação especial organizada de forma paralela à educação comum seria mais apropriada à aprendizagem de alunos com problemas de saúde ou qualquer inadequação quanto à estrutura instituída pelo sistema escolar. Essa concepção exerceu impacto duradouro na história da educação especial, resultando em práticas que enfatizavam aspectos relacionados à “deficiência”, em contraposição à dimensão pedagógica. O desenvolvimento de estudos no campo da educação e a defesa dos direitos humanos vêm modificando conceitos, legislações, práticas pedagógicas e de gestão, promovendo a reestruturação do ensino regular e especial. Assim é que, em 1994, a Declaração de Salamanca estabelece como princípio que as escolas do ensino regular devem educar todos os alunos, em repúdio à exclusão escolar das “diferenças” (cognitivas, linguísticas, étnicas, culturais, de superdotados, ou em desvantagem social, dos que vivem nas ruas ou que trabalham). O processo de Educação Especial pode se fazer na perspectiva da integração, em que o acesso de alunos com necessidades educacionais especiais no ensino regular é admitido aos que podem acompanhar as atividades curriculares programadas do ensino comum no mesmo ritmo que os ditos normais, ou na perspectiva da inclusão, em que os sistemas de ensino devem organizar condições de acesso a espaços, recursos pedagógicos e comunicação possibilitadores de aprendizagem e altas habilidades/superdotação, com potencial elevado em quaisquer das seguintes áreas, isoladas ou combinadas (intelectual, acadêmica, liderança, psicomotricidade e artes), elevada criatividade, grande envolvimento na aprendizagem e realização de tarefas em áreas de seu interesse; (3) transtornos funcionais específicos (dislexia, disortografia, disgrafia, discalculia, transtorno de atenção e hiperatividade).
Educação inclusiva: subsídios para discussão sobre a educação especial no Brasil
137
valorização das diferenças, de forma a atender as necessidades educacionais de todos os alunos. O conceito de “necessidades educacionais especiais” faz sobressair a interação das características individuais dos alunos com o ambiente educacional e social, chamando a atenção do ensino regular para o desafio de encarregar-se também das diferenças e assegurar a inclusão escolar pelo atendimento, tal como explicita o Capítulo V das Diretrizes Nacionais da Educação Especial, de alunos com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades/superdotação, ou casos que implicam transtornos funcionais específicos.3 Cabe ressaltar que, analisada sob o modelo médico, “deficiência” reflete condição anômala e fardo social pela redução da capacidade produtiva, tema da mídia apenas em “celebrações”, assunto de política especial, raramente contemplado nas políticas gerais. Em contrapartida, analisada sob o modelo social, como condição humana vinculada a qualquer outra, pré-requisito para políticas públicas inclusivas e coalizões intersetoriais, tema cotidiano da mídia, tal como economia, cultura, esporte ou lazer, prioridade na abordagem dos problemas enfrentados pelas populações em situação de vulnerabilidade, a concepção de “deficiência” torna-se fator de mudança de paradigma para a escola e a sociedade, de inclusão para a autonomia, de ruptura de barreiras de preconceito, discriminação e invisibilidade. Na perspectiva da EI, a educação especial passa, desta forma, a constituir a proposta pedagógica da escola, atuando de forma articulada com o ensino comum, orientando os sistemas de ensino, tal como consta no Capítulo IV das Diretrizes Nacionais da Educação Especial.4 Em todas as etapas e
modalidades da educação básica, o atendimento educacional especializado, cujas atividades desenvolvidas se diferenciam daquelas realizadas na sala de aula comum, não sendo substitutivas à escolarização, é organizado para apoiar o desenvolvimento dos alunos, constituindo oferta obrigatória dos sistemas de ensino, devendo ser realizado no turno inverso ao da classe comum, na própria escola ou centro especializado a esse serviço educacional. Tendo-se em conta que os indivíduos se modificam continuamente transformando o contexto no qual se inserem, tal dinamismo exige uma atuação pedagógica voltada para alterar a situação de exclusão, em ambientes heterogêneos que promovam a aprendizagem de todos os alunos.5 A inclusão escolar tem início na educação infantil, na qual se desenvolvem as bases necessárias para a construção do conhecimento e desenvolvimento global. Nessa etapa, do nascimento aos três anos, o atendimento educacional especializado se expressa por meio de serviços de intervenção precoce que objetivam otimizar o processo de desenvolvimento e aprendizagem em interface com os serviços de saúde e assistência social, em atividades favorecendo relações interpessoais, respeito e valorização da criança, privilegiando o lúdico, acesso às formas diferenciadas de comunicação, estímulos físicos, emocionais, cognitivos, psicomotores e sociais e a convivência com as diferenças. No que se refere à educação de jovens e adultos e educação profissional, as ações da educação especial possibilitam a ampliação de oportunidades de escolarização, formação para a inserção no mundo do trabalho e efetiva participação social. Já, com relação à interface da educação indígena, do campo e quilombola, a educação especial deve assegurar que os recursos,
3 A educação especial deve garantir: (a) acesso ao ensino regular, com participação, aprendizagem e continuidade nos níveis mais elevados; (b) transversalidade da modalidade de educação especial desde a educação infantil até a educação superior; (c) oferta de atendimento educacional especializado; (d) formação de professores e demais profissionais da educação para atendimento educacional especializado à inclusão; (e) participação da família e da comunidade; (f) acessibilidade arquitetônica nos transportes, nos mobiliários, nas comunicações e informação; e (g) articulação intersetorial na implementação das políticas públicas (Capítulo IV das Diretrizes Nacionais da Educação Especial). 4 O atendimento educacional especializado: (a) identifica, elabora e organiza recursos pedagógicos e de acessibilidade, eliminando barreiras para a plena participação em função das necessidades específicas dos alunos; (b) complementa e/ou suplementa a formação dos
alunos com vistas à autonomia e independência na escola e fora dela; (c) disponibiliza programas de enriquecimento curricular, ensino de linguagens e códigos específicos de comunicação e sinalização, ajudas técnicas e tecnologia assistiva, dentre outros; (d) deve estar articulado, ao longo de todo processo de escolarização, com a proposta pedagógica do ensino comum (Cap. VI, Diretrizes da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva). 5 Devido à diferença linguística, na medida do possível, o aluno surdo deve estar com outros pares surdos em turmas comuns na escola regular. Cabe aos sistemas de ensino, ao organizar a educação especial para surdos na perspectiva da educação inclusiva, disponibilizar as funções de instrutor, tradutor/intérprete de Libras e guia intérprete, bem como de monitor ou cuidador aos alunos com necessidade de apoio nas atividades que exijam auxílio constante no cotidiano escolar, entre outras, de higiene, alimentação, locomoção.
Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 135-142, jul.-dez. 2009
138
Arimar Martins Campos
serviços e atendimento educacional especializado estejam presentes nos projetos pedagógicos construídos com base nas diferenças socioculturais desses grupos. A inclusão de alunos surdos nas escolas comuns se faz pela educação bilíngue, isto é, em Língua Brasileira de Sinais (Libras) e Língua Portuguesa (LP) como segunda língua na modalidade escrita para alunos surdos, com tradutor/intérprete de Libras e LP e ensino de Libras para os demais alunos da escola. O atendimento educacional especializado, ofertado tanto na modalidade oral e escrita, quanto na língua de sinais, é realizado mediante a atuação de profissionais com conhecimentos específicos no ensino de Libras, de LP na modalidade escrita como segunda língua, do sistema Braille, do soroban, da orientação e mobilidade, das atividades de vida autônoma, da comunicação alternativa, do desenvolvimento dos processos mentais superiores, dos programas de enriquecimento curricular, da adequação e produção de materiais didáticos e pedagógicos, da utilização de recursos ópticos e não ópticos, da tecnologia assistiva e outros.6 Quanto à educação superior, a transversalidade da educação especial se efetiva por meio de ações promotoras de acesso, permanência e participação dos alunos. Estas ações envolvem planejamento e organização de recursos e serviços para acessibilidade arquitetônica, nas comunicações, nos sistemas de informação, nos materiais didáticos e pedagógicos, que devem ser disponibilizados nos processos seletivos e no desenvolvimento de todas as atividades de ensino, pesquisa e extensão. Para atuar na educação especial, o professor deve ter como base da sua formação, inicial e continuada, conhecimentos gerais para o exercício da docência e conhecimentos específicos sobre o sistema educacional inclusivo. No atendimento educacional especializado, interativo e interdisciplinar nas salas comuns do ensino regular, nas salas de recursos, nos centros de atendimento educacional especializado, nos núcleos de acessibilidade das instituições de educação superior, nas classes hospitalares e nos ambientes domiciliares, este professor atua tendo em vista o desenvolvimento de projetos em parceria com outras áreas, para a oferta de serviços 6 Publicação nº 160, Diário Oficial da União, 20 de agosto de 2008.
Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 135-142, jul.-dez. 2009
e recursos de educação especial, visando ações de assistência social, trabalho e justiça. Os direitos a um sistema educacional inclusivo em todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida, das pessoas com deficiência estão previstos no artigo 24 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência,7 com base na igualdade de oportunidades, que prevêem as pessoas com deficiência: (a) pleno desenvolvimento do potencial humano, senso de dignidade e autoestima, fortalecimento do respeito pelos direitos humanos, liberdades fundamentais e diversidade humana; (b) desenvolvimento máximo possível da personalidade e talentos e criatividade, habilidades físicas e intelectuais; (c) participação efetiva em uma sociedade livre. Para tanto, os Estados Partes devem assegurar que crianças e pessoas com deficiência, em igualdade de condições com as demais pessoas na comunidade em que vivem, sejam incluídas no sistema educacional de qualidade, gratuito e compulsório, compatível com a meta de inclusão plena, adotadas medidas individualizadas de apoio em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social, e com acesso a adaptações de acordo com as necessidades de cada um.8
3 A Construção do Sistema Nacional Articulado de Educação A luta em prol de uma educação com qualidade social que reconheça e valorize os profissionais da 7 Devem ser tomadas medidas apropriadas para (1) garantir a possibilidade de aprendizagem de habilidades necessárias à vida e ao desenvolvimento social, facilitando a plena e igual participação na educação, ministrada nas línguas e nos modos e meios de comunicação mais adequados e em ambientes possibilitadores do máximo desenvolvimento acadêmico e social (braile, escrita alternativa, Libras, modos, meios e formatos de comunicação aumentativa e alternativa, habilidades de orientação e mobilidade, apoio e aconselhamento de pares); (2) empregar professores (inclusive com deficiência), habilitados ao ensino de Libras e/ou braile; (3) capacitar profissionais e equipes atuantes em todos os níveis de ensino, pela utilização de apropriados modos, meios e formatos de comunicação, técnicas e materiais pedagógicos; (4) assegurar a provisão de adaptações propiciando acesso à educação comum nas modalidades de ensino superior, treinamento profissional, educação de jovens e adultos e aprendizado continuado, sem discriminação e em igualdade de condições com as demais pessoas. 8 Foram apresentados os seguintes eixos: (I) Desafios da Construção de um Sistema Nacional Articulado de Educação; (II) Democratização da Gestão e Qualidade Social da Educação; (III) Construção do Regime de Colaboração entre os Sistemas de Ensino, tendo como um dos instrumentos o Financiamento da Educação; (IV) Inclusão e Diversidade na Educação.
Educação inclusiva: subsídios para discussão sobre a educação especial no Brasil
educação básica e vise a superação das desigualdades sociais, raciais, de gênero, idade e orientação sexual tem sido enfatizada em colóquios, debates e plenárias. Neste sentido, em todos os estados da Federação e no Distrito Federal, por meio de conferências estaduais, distritais e em alguns municípios, a CONEB (III Conferência Nacional da Educação Básica) cumpriu importante papel ao propiciar amplas oportunidades para deliberação coletiva sobre questões educacionais relativas à educação básica, cuja convergência se efetivou por meio da Conferência Nacional realizada em Brasília, em abril de 2008, tendo por temática central a Construção do Sistema Nacional Articulado de Educação.9 Imprescindíveis para garantir a função social da educação e da escola com qualidade, parâmetros, metas e proposições deliberados na CONEB9 consolidam-se como objeto das decisões coletivas e se dispõem como documento de referência para os movimentos sociais, gestores, sociedade civil e política, na perspectiva da construção de um amplo acordo nacional sobre as prioridades educacionais, constituindo-se, pois, em instrumento político importante a uma educação cada vez mais democrática em nosso país. 9 Problematizadas nas plenárias da CONEB, temáticas fundamentais da educação básica brasileira mostram a necessidade de enfrentamento de, pelo menos, cinco grandes desafios para o Estado e para a sociedade brasileiros: (1) promover a construção de um sistema nacional de educação, instituindo uma orientação política comum e de trabalho permanente do Estado e da sociedade na garantia do direito à educação; (2) manter constante o debate nacional, estimulando e orientando a mobilização de diferentes segmentos sociais pela qualidade e valorização da educação básica, por meio da definição de referências e concepções fundamentais de um projeto de Estado abrangente, visando a consolidação de uma educação efetivamente democrática; (3) garantir que os acordos e consensos produzidos na Conferência Nacional de Educação redundem em políticas públicas, que se consolidarão em planos, programas, projetos e proposições pedagógicas e políticas, capazes de fazer avançar o panorama educacional da educação básica no Brasil; (4) propiciar condições para que as políticas educacionais, concebidas e implementadas de forma articulada entre os sistemas de ensino, promovam: (a) direito do aluno à formação integral com qualidade; (b) respeito à diversidade; (c) definição de parâmetros e diretrizes para a qualificação dos profissionais da educação; (d) condições salariais e profissionais imprescindíveis ao trabalho dos docentes e funcionários; (e) educação inclusiva; (f) gestão democrática e desenvolvimento social; (g) regime de colaboração, de forma articulada, em todo o país; (h) financiamento e controle social da educação; e (i) instituição de uma política nacional de avaliação; (5) garantir fundamentos alicerçados na garantia da universalização e da qualidade social da educação básica, bem como da democratização de sua gestão.
139
Com referência ao tema Inclusão e Diversidade na Educação Básica, tratado no Eixo IV, o documento ressalta a construção histórica, cultural, social e econômica das diferenças, na adaptação ao meio social e no contexto das relações de poder. Contemplando a diversidade para além do aspecto social, a noção abrangente e politizada de inclusão tem como eixo o direito ao trato, ao convívio democrático e público das diferenças, em contextos marcados, entre outros, pela desigualdade e exclusão étnica e racial, social, geracional, de religiosidade, gênero e orientação sexual, de pessoas com deficiências. Já incorporada à agenda social e política do País, essa reflexão sobre a articulação intersetorial na implementação das políticas públicas precisa integrar a agenda educacional, de modo a assegurar a inclusão escolar de alunos com deficiência aos sistemas de ensino comum. Apesar de os eixos temáticos da CONAE agregarem número razoável de temas, é importante destacar que cada um deles ocupa lugar distinto na constituição e consolidação das políticas educacionais e possui especificidades históricas, políticas e de lutas sociais. Além disso, realizam-se de forma diferenciada, no contexto das instituições públicas e privadas da educação básica e da educação superior. Quanto à Educação Especial, pelo Decreto n° 6.571, de 17 de setembro de 2008, determinam-se que as políticas públicas devem garantir condições políticas, pedagógicas e financeiras para uma Política Nacional de Educação Especial Inclusiva, assegurando o acesso à escola aos alunos com deficiência, bem como atendimento educacional especializado em salas de recursos multifuncionais ou centros de atendimento educacional especializado, no contraturno do ensino regular, por meio de recursos pedagógicos e de acessibilidade que eliminem as barreiras para a participação e aprendizagem, considerando as necessidades específicas dos alunos.
4 Considerações finais A cobrança hoje feita de valorização da diversidade tem a ver com as estratégias por meio das quais grupos humanos e sociais diferentes passam a destacar politicamente as suas singularidades e identidades, demandando equidade de tratamento, Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 135-142, jul.-dez. 2009
140
Arimar Martins Campos
desmistificando a ideia de inferioridade iminente às diferenças sociais e culturalmente construídas. Esses grupos questionam as políticas de inclusão, buscando superar a visão assistencialista e preconceituosa sobre elas incidentes, reivindicam a adoção de políticas afirmativas, objetivando garantir o respeito às diferenças. Resultado da luta e esforço de vários segmentos sociais, o movimento mundial pela Educação Inclusiva se consolida em defesa do direito constitucional de todos a um ensino de qualidade, sem discriminação. Este processo vem sendo construído numa dinâmica democrática de respeitar e preservar as expectativas e as experiências dos educadores da educação especial, das entidades representativas comprometidas com a transformação do paradigma da assistência para a inclusão escolar, demarcando, deste modo, o papel pedagógico. Enquanto política, a partir de princípios éticos no cenário dos Direitos Humanos, esse movimento se fundamenta em pressupostos que reconhecem e valorizam a diversidade como característica inerente à constituição de qualquer sociedade, sinalizando a necessidade de se garantir o acesso e a participação de todos independentemente de suas peculiaridades. Nesta perspectiva, a educação especial no contexto de um sistema educacional inclusivo se insere no modelo social que valoriza capacidades e habilidades de alunos com e sem deficiência, por meio do acesso e permanência de todos. Para tanto, torna-se fundamental garantir ações educativas que possibilitem instrumentos coletivos de superação de barreiras impeditivas ao exercício da cidadania, romper rótulos ultrapassados e concepções arraigadas sobre a deficiência, que passa então a ser compreendida não como limitação, mas como uma característica da diversidade humana e a partir do contexto da comunidade em que se vive.
Referências
BRASIL. Ministério da Educação. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. LDB 9.394, de 20 de dezembro de 1996. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999. BRASIL. Ministério da Educação. Lei nº 10.172, de 09 de janeiro de 2001. Aprova o Plano Nacional de Educação e dá outras providências. BRASIL. Decreto nº 3.956, de 8 de outubro de 2001. Promulga a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência. Guatemala: 2001. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Lei nº. 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS e dá outras providências. BRASIL. Ministério Público Federal. O acesso de alunos com deficiência às escolas e classes comuns da rede regular de ensino. Fundação Procurador Pedro Jorge de Melo e Silva (orgs). 2ª ed. ver. Brasília: Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, 2004. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei Nº 10.436, de 24 de abril de 2002. BRASIL. Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Ministério da Educação, Ministério da Justiça, UNESCO, 2006. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Direito à educação: subsídios para a gestão dos sistemas educacionais – orientações gerais e marcos legais. Brasília: MEC/SEESP, 2006. BRASIL. IBGE. Censo Demográfico, 2000. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/ home/estatistica/populacao/ censo2000/default.shtm>. Acesso em: 20 de jan. 2007. BRASIL. INEP. Censo Escolar, 2006. Disponível em: <http:// http://www.inep.gov.br/basica/censo/default. asp >. Acesso em: 20 de jan. 2007. BRASIL. Ministério da Educação. Direito à Educação: subsídios para a gestão dos sistemas educacionais. Orientações gerais e marcos legais. Brasília: MEC/ SEESP, 2004.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente no Brasil. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990.
CARVALHO, R. E. A nova LDB e a Educação Especial. 2ª ed. Rio de Janeiro: WVA, 2000.
BRASIL. Declaração Mundial sobre Educação para Todos: plano de ação para satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem. UNESCO, Jomtiem/Tailândia, 1990.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade (trad. T. T. da Silva e Guacira L. L.) Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
BRASIL. Declaração de Salamanca e linha de ação sobre necessidades educativas especiais. Brasília: UNESCO, 1994.
Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 135-142, jul.-dez. 2009
MANTOAN, M. T. E. Caminhos Pedagógicos da Inclusão. Disponível em: <http://www.educacaoonline.pro.br/ art_caminhos_pedagogicos_da_inclusao.asp>. Acesso em: 10 junho de 2009.
Educação inclusiva: subsídios para discussão sobre a educação especial no Brasil
141
_________. Ensinando a Turma Toda: as diferenças na escola. Disponível em: http://intervox.nce.ufrj. br/~elizabet/turma.htm.
SANTOS, B. de S. Entrevista com Prof. Boaventura de Souza Santos. 1995. Disponível: http://www.dhi.uem.br/ jurandir/jurandir-boaven1.htm.
MITTLER, P. Educação Inclusiva: contextos sociais. (Trad.W. B. Ferreira). Porto Alegre: Artmed, 2003.
SARLET, I. W. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 4ª ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004.
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. O Acesso de Alunos com Deficiência às Escolas e Classes Comuns da Rede Regular. 2ª ed. Brasília: Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, 2004. MORIN, E. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, 2008. PIERUCCI, A. F. As ciladas da diferença. São Paulo: Editora 34, 1999.
SERRES, M. Filosofia Mestiça: le tiers-instruit. (Trad. M. I. D. Estrada). Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1993. SILVA, T. T. da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis/RJ: Vozes, 2000. WERNECK, C. Sociedade Inclusiva: Quem cabe no seu todo? Rio de Janeiro: WVA Editora, 1999; _________. Ninguém mais vai ser bonzinho na sociedade inclusiva. 2ª ed. Rio de Janeiro: WVA Editora, 2000.
Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 135-142, jul.-dez. 2009
Entrevista com o Professor Dermeval Saviani*
Maria de Fátima Barbosa Abdalla Coordenadoria de Pós-Graduaçao Stricto Sensu e Pesquisa, Universidade Católica de Santos (UNISANTOS), R. Carvalho Mendonça, 241, Vila Mathias, CEP 05508-900, Santos, SP, Brasil, e-mail: mfabdalla@uol.com.br ***
Maria de Fátima Barbosa Abdalla: Prof. Dermeval Saviani, qual o significado da Conferência Nacional de Educação/CONAE 2010, quando se discute a Educação neste país? Professor Dermeval Saviani: A realização de uma Conferência Nacional de Educação tendo como tema central a questão da construção de um sistema nacional de educação, por iniciativa do MEC, é importante porque sinaliza o reconhecimento da relevância desse tema por parte da instância governamental que, reiteradamente, negligenciou ou até mesmo se opôs à organização da educação brasileira na forma de um sistema nacional. Dessa forma as oportunidades anteriores que tivemos, com a aprovação das duas Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, foram perdidas. Agora abre-se uma nova possibilidade. Oxalá não se perca mais essa oportunidade. MFBA: Qual a importância das conferências nos estados e municípios? PDS: O MEC arquitetou um esquema que não deixa de ser racional. Projetada a Conferência Nacional para 2010, programou-se uma fase de preparação representada pelas conferências municipais ou regionais no primeiro semestre de 2009, seguidas das conferências estaduais no segundo semestre desse mesmo ano para culminar com a realização da CONAE no primeiro semestre de 2010. A expectativa seria, então, que todo o país fosse mobilizado nessa fase preparatória com uma ampla discussão
* Entrevista realizada em 30/09/09.
a partir do documento produzido pela área técnica do MEC, o que permitiria que chegássemos à Conferência Nacional com plenas condições de aprovar uma proposta consistente de organização do sistema nacional de educação. No entanto, o que estamos observando é que essa expectativa não está se realizando. Além do cronograma apertado, o tema não vem empolgando a nação. A mídia não está dando divulgação, haja vista que a cerimônia de lançamento da CONAE, realizada em Brasília em 23 de abril deste ano, não mereceu nenhum destaque nos meios de comunicação. Pelo que pude perceber as conferências municipais e estaduais vêm sendo realizadas com muitas dificuldades, não se delineando a perspectiva de uma discussão minimamente consistente sobre a temática da CONAE. Assim, corremos o risco de que a CONAE simplesmente reitere o que está contido no documento de referência, abrindo-se uma dupla possibilidade de conclusão: 1. O documento é aprovado, mas a construção do sistema nacional de educação permanece como uma carta de intenções, cuja implantação é postergada para os futuros governos; 2. Tomamse medidas legais formalizando a implantação do sistema o que, entretanto, não passará de uma medida burocrática com pequeno influxo no desenvolvimento real da educação brasileira. Claro que devemos procurar, por todos os meios, evitar que essas duas possibilidades, igualmente frustrantes, configurem a única alternativa da CONAE. De minha parte, considerando a importância dessa questão, aceitei participar da CONAE e lá estarei procurando contribuir para evitar o risco apontado.
144
Maria de Fátima Barbosa Abdalla
MFBA: O que precisa mudar no PNE vigente? Quais são seus principais problemas? PDS: De fato, além do Sistema Nacional de Educação, o MEC incluiu na programação da CONAE a questão do Plano Nacional de Educação. Penso que essa decisão se deveu a dois motivos. O primeiro é de ordem prática e conjuntural, ligada ao cronograma político, uma vez que o prazo de vigência do atual PNE se encerra em 9 de janeiro de 2011. Assim, é preciso que, em 2010, seja encaminhado ao Congresso Nacional o projeto do novo PNE para vigorar, por dez anos, a partir de janeiro de 2011. O segundo motivo é de caráter substantivo e diz respeito à ligação lógica entre o sistema nacional de educação e o plano nacional de educação. Com efeito, o sistema, porque implica em intencionalidade, supõe uma ação planejada. Segue-se, pois, que o sistema educacional se constitui como um conjunto de elementos intencionalmente reunidos e articulados que devem ser mobilizados praticamente tendo em vista a realização dos objetivos e metas da educação nacional. Implica, portanto, o Plano Nacional de Educação que, a partir do diagnóstico das condições de funcionamento do sistema, estabelece os objetivos e metas assim como os meios para atingi-los. Na formulação do novo PNE penso que é preciso mudar sua própria concepção no que se refere à definição das metas. O plano atual adotou a sistemática de enunciar as metas de forma detalhada e dispô-las gradualmente ao longo dos dez anos de vigência. A profusão dos objetivos e metas, que atinge um total de 295, dificulta o acompanhamento e controle por parte da sociedade, o que é agravado pelo fracionamento das metas a serem atingidas ano a ano. Se essa técnica de formulação do plano o torna inócuo, no caso do PNE atual os vetos à ampliação de recursos o reduziram a mera carta de intenções. Penso que seria necessário concentrar o foco em aspectos substantivos da educação traduzidos em umas poucas metas fundamentais a serem cumpridas integralmente em prazos razoáveis. MFBA: Quais devem ser as principais metas para traçar um novo rumo para a educação brasileira? Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 143-146, jul.-dez. 2009
PDS: Entendo que as principais metas devem incidir sobre: 1. Os recursos financeiros que devem ser ampliados substantivamente e de forma imediata, colocando a educação num novo e elevado patamar na hierarquia das prioridades políticas do país; 2. A infraestrutura dos estabelecimentos de ensino, assegurando-se as condições satisfatórias de seu funcionamento; 3. As condições de trabalho e de salário dos docentes tornando o magistério uma profissão compatível com seu alto valor social. MFBA: O que é preciso para o país consolidar um sistema nacional de educação de qualidade? Quais os principais obstáculos a serem superados? PDS: Para consolidar um sistema nacional de educação de qualidade é necessário superar os principais obstáculos que podem ser resumidos em duas modalidades: 1. Os obstáculos de ordem financeira, representados pela histórica resistência de nossas elites econômicas e políticas em investir na manutenção da educação pública; 2. Os de natureza política, expressos na descontinuidade das políticas educacionais, o que impede que se imprima uma orientação orgânica e continuada à atividade educativa, exigência inerente ao próprio conceito de sistema nacional de educação. Em oposição simétrica a esses obstáculos deve-se, pois, tomar as seguintes medidas: 1. Investir fortemente em educação duplicando imediatamente o percentual do Produto Interno Bruto destinado à educação e envolvendo as três instâncias federativas (União, Estados e Municípios) na manutenção, em regime de colaboração, do sistema nacional de educação; 2. Romper com a lógica da descontinuidade, ordenando a política educativa em torno de um projeto de desenvolvimento da educação nacional de médio e longo prazo. MFBA: Quais as perspectivas que poderemos ter para os próximos anos a partir da Conferência e do novo PNE? PDS: Eu diria que são imponderáveis as perspectivas que deverão se abrir para a educação após a realização da CONAE. Com efeito, já assinalei os riscos que corremos de perder mais essa oportunidade de chegarmos a implantar um sistema
Entrevista com o Professor Dermeval Saviani
nacional de educação. Além disso, 2010 é ano de eleições gerais que envolvem mudanças nos governos da República e dos Estados, além da renovação da Câmara e do Senado. Isso interfere no cronograma educacional e na própria realização da CONAE, além de nos colocar uma interrogação
145
sobre os rumos que o país tomará a partir de 2011. Minha expectativa, que acredito seja a da imensa maioria dos educadores e da população brasileira, é a de que consigamos implementar as duas medidas propostas na questão anterior vencendo, em consequência, os obstáculos apontados.
Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 143-146, jul.-dez. 2009
Entrevista com o Professor Carlos Roberto Jamil Cury* Maria de Fátima Barbosa Abdalla Coordenadoria de Pós-Graduaçao Stricto Sensu e Pesquisa, Universidade Católica de Santos (UNISANTOS), R. Carvalho Mendonça, 241, Vila Mathias, CEP 05508-900, Santos, SP, Brasil, e-mail: mfabdalla@uol.com.br ***
Maria de Fátima Barbosa Abdalla: Prof. Cury, qual o significado da Conferência Nacional de Educação/CONAE 2010, quando se discute a Educação neste país?
qualquer um desses elementos, o plano fracassa. No atual PNE, além de 295 metas, houve os vetos do FHC não revistos pelo governo Lula. Ficou uma casa sem alicerces.
Professor Carlos Roberto Jamil Cury: A educação nacional tem sido pauta de muitas questões: federalismo não resolvido, articulação entre níveis e etapas da educação escolar, privatização oligopólica e pouco qualificada do ensino superior, um ensino médio distante dos desejos da maioria que o procura, a ausência de ações concretas em prol da educação infantil e o salário dos professores. Uma Conferência Nacional como essa, determinada pelo atual PNE e convocada pelo governo é uma oportunidade rara para passar a limpo tudo isso e ver se se encontram melhores caminhos de resolução e de efetivação. Não são problemas fáceis e nem simples.
MFBA: Quais devem ser as principais metas para traçar um novo rumo para a educação brasileira?
MFBA: Qual a importância das conferências nos estados e municípios? PCRJC: O federalismo, sob o princípio da gestão democrática, e o adjetivo nacional obriga a um processo de consulta ao cidadão que vive no Município e no Estado. Esse sentir federativo, se bem feito, trará uma visão mais realista de um país tão continental, diverso e complexo como é o nosso país. MFBA: O que precisa mudar no PNE vigente? Quais são seus principais problemas? PCRJC: O maior problema de um Plano é a articulação entre metas, condições e recursos que viabilizem as finalidades do mesmo. Na ausência de * Entrevista realizada em 11/10/2009.
PCRJC: A grande meta será a forma de articular as etapas e níveis em regime de colaboração e com recursos suficientes por meio de eixos significativos e que deságuem em um plano nacional de educação com poucas metas factíveis, realistas e com recursos suficientes. MFBA: O que é preciso para o país consolidar um sistema nacional de educação de qualidade? Quais os principais obstáculos a serem superados? PCRJC: Em artigo publicado na Revista Educação e Sociedade, no 105, eu exploro esses obstáculos em torno do “medo” de um sistema nacional de educação. MFBA: Quais as perspectivas que poderemos ter para os próximos anos a partir da Conferência e do novo PNE? PCRJC: As perspectivas em educação dependem do próximo governo. Se ele der continuidade às questões estruturantes que esse governo está tateando levar adiante, serão boas. Se se repetir a tradição brasileira de continuidade da descontinuidade, seremos eternas Fênix mas já cansadas de tantos vai-e-vem.
Entrevista com o Professor José Carlos Manzano (SENAI-SP)* Maria de Fátima Barbosa Abdalla Coordenadoria de Pós-Graduaçao Stricto Sensu e Pesquisa, Universidade Católica de Santos (UNISANTOS), R. Carvalho Mendonça, 241, Vila Mathias, CEP 05508-900, Santos, SP, Brasil, e-mail: mfabdalla@uol.com.br ***
Maria de Fátima Barbosa Abdalla: Prof. Manzano, qual o significado/sentido da Conferência Nacional de Educação/CONAE 2010, quando se discute a educação neste país? Professor José Carlos Manzano: A Conferência Nacional de Educação CONAE, a exemplo de outras conferências anteriores, não recebeu a adesão devida. Prova disso é o fato de que, no próprio meio educacional, um contingente muito significativo de vários segmentos não participou, nem tampouco se mobilizou. O efeito negativo referido, no entanto, com o esforço das comissões locais e da nacional, dos delegados e dos demais participantes, foi bastante minimizado, como foi o caso da Conferência Nacional de Educação, etapa do Estado de São Paulo. Assim, respondendo mais diretamente à pergunta, o significado da CONAE, é o de algo que, inserido num contexto mais amplo, mobiliza, de forma democrática, parcela significativa daqueles que acreditam na importância da educação e permite a saudável troca de ideias sobre a melhor forma de incluir todos nos benefícios proporcionados pelo ensino. MFBA: Qual tem sido a importância das conferências nos municípios e nos estados? PJCM: A importância das conferências nos municípios e nos estados é a possibilidade de serem discutidas as necessidades e os problemas locais e regionais que, por meio da participação dos dele-
* Entrevista realizada em 02/11/2009.
gados, poderão repercutir em âmbito nacional. Ou seja, questões paroquiais, que jamais seriam pensadas, têm grande chance de serem levadas em consideração graças à forma que foi estruturada e tem funcionado a CONAE. MFBA: Qual foi a sua participação na CONAE-SP? Conte um pouco sobre a preparação e execução deste evento no Estado de São Paulo. PJCM: A minha participação, representando o SENAI-SP, se deu na comissão estadual, desde o início. Fiz parte da Comissão Executiva e da Comissão de Sistematização. Foi um grande aprendizado ter feito parte da comissão. Houve oportunidade de ampliação das minhas relações pessoais e de contribuição para os debates, principalmente no que se refere à educação profissional. A comissão, desde o início, se constituiu democraticamente. Durante todo o período de preparação para o evento os temas eram submetidos à apreciação de todos, que tinham liberdade para opinar concordando ou divergindo. Penso que essa característica deu à comissão um caráter eclético e altamente positivo, fazendo com que a organização pudesse avançar. Como havia respeito mútuo entre os seus membros o objetivo de todos era a mobilização para que os debates pudessem ocorrer da melhor forma possível. Na minha avaliação a maior parte dos obstáculos foram superados e a Conferência ocorreu a contento. Fiquei responsável, ainda, pela revisão do regimento da Conferência e pela elaboração do regimento das sessões, o que permitiu uma maior
150
Maria de Fátima Barbosa Abdalla
integração com todos os segmentos representados na comissão. Finalmente, como membro da comissão de sistematização, colaborei na ordenação e estruturação do documento final, principalmente durante o período de realização da Conferência. Durante todo o período que a precedeu, defendi e me posicionei com relação à sua realização, enaltecendo seus méritos: alta capacidade de mobilização e defesa intransigente da democratização. MFBA: O que é necessário para o país consolidar um sistema nacional de educação de qualidade? Quais os principais obstáculos a serem superados? PJCM: Para a questão, tenho uma resposta simples: o poder público transformar a preocupação com a educação em um problema nacional; e o principal
Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 149-150, jul.-dez. 2009
obstáculo a ser superado decorre da aceitação da premissa inicial. MFBA: Quais as perspectivas que poderemos ter para os próximos anos a partir da Conferência e do PNE? PJCM: Esperar que o alto grau de mobilização que a organização e o funcionamento da CONAE proporcionarão possa refletir efetivamente na melhoria do ensino e na universalização do acesso. A construção de um sistema nacional articulado de educação não é necessariamente uma solução mágica para resolver todos os problemas. Na medida em que a preocupação com a educação se transforme em um problema nacional, superar divergências entre os sistemas de ensino passa a ser um ato republicano e a desarticulação em um crime de lesa-pátria.
Entrevista com a Professora Iria Brzezinski (ANFOPE)* Maria de Fátima Barbosa Abdalla Coordenadoria de Pós-Graduaçao Stricto Sensu e Pesquisa, Universidade Católica de Santos (UNISANTOS), R. Carvalho Mendonça, 241, Vila Mathias, CEP 05508-900, Santos, SP, Brasil, e-mail: mfabdalla@uol.com.br ***
Maria de Fátima Barbosa Abdalla: Profa. Iria, qual o significado, para a ANFOPE, da Conferência Nacional de Educação/CONAE 2010 quando se discute a Educação neste país? Professora Iria Brzezinski: Em primeiro lugar, desejo agradecer a oportunidade dada por você, Maria de Fátima, de manifestar-me acerca da relação da Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE) com a Conferência Nacional de Educação (CONAE). Em segundo lugar, ao ser indagada por você sobre a realização da CONAE, em BrasíliaDF (2010) e o significado desta para a ANFOPE, é preciso recuperar, ainda que de forma sucinta, a trajetória de nossa Entidade de Estudos e Pesquisas em Educação, seus compromissos com o campo educacional e com a defesa da formação e da valorização de professores. A ANFOPE é originária do Comitê Próformação do Educador, criado em 02/04/1980, durante a reunião que congregou cerca de 200 participantes da I Conferência Brasileira da Educação (CBE). Esta foi convocada pelos educadores brasileiros que aspiravam subverter a tradicional ordem governamental “de cima para baixo” nas decisões sobre as políticas educacionais. A I CBE foi realizada na PUC-SP, sob a organização da Associação Nacional de Educação (ANDE), da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa da Educação (ANPEd), do Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES) e do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC).
* Entrevista realizada em 24/11/2009.
Limoeiro Cardoso e Saviani (1986) afirmam que um dos fatos mais significativos engendrados durante a ditadura militar brasileira foi o surgimento e o fortalecimento de formas autônomas de organização dos trabalhadores. Na verdade, é o plano político que oferece condições propícias ao aparecimento das diferenças e das contradições entre as categorias corporativas. É a prática e a consciência coletiva, forjadas nas lutas concretas dessas categorias que constituiem a identidade de cada movimento, neste caso a ANFOPE. É lícito destacar que o marco histórico do Movimento dos Educadores, que veio a se articular na forma de Comitê, foi o I Seminário de Educação Brasileira, realizado na UNICAMP, em 1978. O Comitê, impulsionado por uma força mobilizadora de ideias e práticas que se baseavam no ideário das teorias críticas da educação: a) partia do pressuposto de que a formação pedagógica do professor mantém seu suporte teórico-epistemológico no campo educacional; b) defendia os princípios de que a base da identidade do profissional da educação encontra-se na docência: todos são professores e que os currículos dos cursos de formação de professores deveriam se sustentar em uma base comum nacional; c) buscava superar a “esterilização intelectual” provocada pelas práticas tecnicistas que impregnavam as políticas educacionais do governo militar; d) lutava pela retomada da redemocratização do país. Em 24/11/1983, o Comitê Pró-formação do Educador foi transformado em Comissão Nacional de Reformulação dos Cursos de Formação de
152
Maria de Fátima Barbosa Abdalla
Recursos Humanos da Educação (CONARCFE) e, em 26/07/1990, em Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação/ANFOPE. Nos dias atuais, a ANFOPE se articula, praticando ações conjuntas em parceria com outras quatro entidades também reconhecidas pela sua autonomia face ao Estado e que são distintas entre si: a ANPEd, a ANPAE, o CEDES e o FORUNDIR. O Movimento Nacional formado atualmene por essas entidades se organiza em rede, ideia explicitada por Boaventura Santos (1994, p. 94), como uma forma de reorganização alternativa chamada “globalização solidária” que se contrapõe à “globalização neoliberal”. A organização em rede, ao mesmo tempo, fortalece a legitimidade de cada associação e garante especificidades próprias. Com efeito, as cinco entidades conseguem se articular e caminhar em conjunto, porque estão unidas por objetivos comuns. Essa unidade na diversidade, todavia, não se faz sem conflitos, mas ela garante o avanço do processo de construção de uma identidade mais profunda da rede, para além da diversidade e da particularidade. Diante de seus compromissos com a formação e valorização dos profissionais da educação, orientada por seus princípios, a ANFOPE participou como membro titular da Comissão Organizadora da Conferência Nacional da Educação Básica (2007) e na Comissão Nacional organizadora da CONAE nossa entidade é participante na condição de suplente da ANPEd. A CONAE, consoante o Documento Referência (2009), tem por objetivo uma mobilização nacional que se constitua na trajetória das bases educacionais dos municípios, estados e Distrito Federal para a União, colhendo subsídios que contribuam para a construção de um Sistema Articulado da Educação Nacional e do futuro Plano Nacional de Educação, a vigorar em 2011. Nesta caminhada de construção, a ANFOPE se colocou como parceira das Entidades de Estudos e Pesquisas em Educação, visando a colaborar, e atribui à CONAE um significado sobretudo de: a) espaço político e de mobilização, marcado por avanços democráticos de participação de professores, gestores, estudantes, pais de todos os níveis de ensino quer sejam de Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 151-156, jul.-dez. 2009
caráter público ou privado, de entidades da sociedade civil, entre outras; b) mecanismo instigador do debate a respeito do regime de colaboração entre a União, os estados, municípios e o Distrito Federal; c) lócus de coleta de subsídios, com vistas à construção de um Sistema Nacional de Educação e, circunscrito a este, a construção de um Sistema Nacional de Formação e de Valorização dos Profissionais da Educação, bem como de consolidação de subsídios de avaliação do PNE, em vigor, e de um projeto de PNE, que contemple as expectativas do poder executivo, do poder legislativo, porém que ao mesmo tempo reconheça a grande contribuição que a sociedade civil organizada tem para a construção de um PNE viável; d) tomar por base os dois maiores pilares do sucesso de elaboração e implementação de um Plano Nacional de Educação: o prever ─ no sentido de planejar objetivos que possam ser proclamados e verdadeiramente executados com uma acepção realista das desigualdades sociais e regionais de nossos diversos “Brasis” e que promovam o acesso e o sucesso de crianças, jovens e adultos nos diferentes níveis de ensino da escola pública ─; o prover ─ com recursos financeiros destinados à Educação que ultrapassem os aplicados 4,6% do PIB e atinja, até final de 2010, o mínimo de 10% do PIB para execução de metas e proposições reais e não utópicas ou superdimensionadas, como ocorreu com o PNE vigente.
Cabe salientar que a maior expectativa da ANFOPE em relação a CONAE, historicamente reivindicada, é a construção de um Sistema Nacional de Formação e de Valorização dos Profissionais da Educação: • entendido como política de Estado e não apenas de Governo, que faça a regulação e a avaliação das instituições públicas e privadas sendo, todavia, os recursos públicos destinados exclusivamente às instituições formadoras públicas; • concebido como um conjunto orgânico de formação e de profissionalização do magistério, que abrange condições dignas de
Entrevista com a Professora Iria Brzezinski (ANFOPE)
trabalho, garantia da qualidade social na formação inicial e continuada, tendo em vista o desenvolvimento pleno da educação pública; e que: • supere a ideia simplista do MEC de propor soluções para a área de formação de professores sustentada na equação entre oferta e demanda, articuladas em regime de colaboração. É preciso ir além, e construir outras relações, entendendo o referido Sistema como uma articulação orgânica entre ações, programas e políticas que contemplem desde a formação dos formadores até os componentes de valorização e profissionalização docente, como, por exemplo, a formação contínua como direito do profissional e dever da agência contratante de implantar a licença remunerada para este fim, a carreira do magistério; assim como o atendimento aos dispositivos legais concernentes ao piso salarial nacional; • assegure a assunção e a responsabilização pelo Estado e entes federados da garantia dos direitos das crianças, jovens, adultos e idosos à educação de qualidade, descartando, desse modo, a análise equivocada da situação educativa, que tende a atribuir ao professor as mazelas da educação; • expresse claramente a defesa dos princípios da base comum nacional concebida ao longo dos anos pela ANFOPE, desafiando a entidade a apresentar propostas que se contraponham à formação aligeirada e desqualificada ainda frequente em nosso país; • venha fortalecer o papel das Faculdades e Centros de Educação na formação científica, pedagógica e política de todos os licenciados e pós-graduados; • reafirme a importância de que a formação continuada de profissionais do magistério dar-se-á pela indução da oferta de cursos por instituições universitárias públicas. • aponte a definição dos critérios de avaliação da qualidade da formação, explicitando a que conceito de qualidade se refere. Essa definição de critérios impõe que se assegure uma coerência entre o processo avaliativo das atividades desenvolvidas nos cursos
153
de graduação, que formam professores, e os critérios avaliativos dos programas de pós-graduação definidos pela Capes e compatíveis aos cursos de graduação; • seja capaz de englobar a formação do magistério para o ensino fundamental e médio, bem como para as diversas instituições educativas, como creches e pré-escolas, consideradas lócus da Educação Infantil e para os espaços educativos não escolares; • configure, em regime de cooperação, as ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios relativas à formação de professores para a primeira licenciatura. E que essa seja realizada nas universidades, na modalidade presencial e que a formação a distância seja admitida excepcionalmente. (os princípios definidos pela Conferência Nacional da Educação Básica/2008); • garanta, na composição dos Fóruns Estaduais Permanentes de Apoio à Formação Docente (Art. 4º do Decreto no 6.755/2009), as representações das diversas entidades que tratam da formação de profissionais do magistério, a exemplo da ANFOPE, na condição de membros titulares; • proponha a constituição de um Conselho Gestor do Sistema Nacional de Formação e de Valorização da Educação (a exemplo do Conselho do FUNDEB), com ampla participação da sociedade e entidades da área, coordenado por um Comitê Nacional formado pelo MEC (CAPES), CONSED, UNDIME, CNTE, ANFOPE, FORUMDIR e demais entidades do campo da formação e valorização de professores.
É preciso insistir que não exclusivamente na prática e no conhecimento tácito, presente nas soluções que os profissionais encontram no ato pedagógico, encontra-se a referência de um processo qualificado de formação. O conhecimento advindo da atividade laboral é importante, mas não é suficiente. Uma sólida formação teórica deve compor a base da formação de todo profissional do magistério. Os cursos de licenciatura, portanto, precisam ser ofertados por instituições qualificadas, que articulem os processo de ensino, pesquisa e Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 151-156, jul.-dez. 2010
154
Maria de Fátima Barbosa Abdalla
extensão, características implicadas e reconhecidas na constituição das universidades brasileiras. MFBA: Qual a importância das Conferências nos estados e municípios? PIB: A importância das Conferências Nacionais de Educação recai, particularmente, na possibilidade de mobilização e sensibilização de todos os cidadãos brasileiros. Por exemplo, tem possibilidade de despertar até os que habitam o mais longínquo município da Capital Federal, para as grandezas e misérias da Educação Brasileira, parafraseando Maria José Werebe que denunciou, nos anos 1960, o que se aplica, até hoje, em relação às questões das políticas educacionais: As desigualdades econômicas e sociais se refletem no sistema educacional. Assim, ao lado de uma elite bem educada, formada em boas escolas, encontra-se uma população analfabeta ou semianalfabeta que não conseguiu ingressar no sistema escolar ou foi dele excluída precocemente (WEREBE, 1963, p. 283).
Creio que a sociedade política de nosso país tem clareza das grandezas e misérias do campo educacional. Respaldo-me, no entanto, nas ideias da obra “A escola e a desigualdade”, de Juan Cassassus (2007), para ressaltar que a constatação das desigualdades é evidente nos diversos dados censitários da educação e índices quantitativos do IDH e do IDEB, mas não é suficiente constatá-las, faz-se urgente superá-las. Um bom indicador para superá-las sugerido por Cassassus é materializar propostas políticas que compreendam as dinâmicas que conduzem às desigualdades. Historicamente, essa desigualdade tornou-se sistêmica e, como referenda Cury (2009a, p.14) “é congênita ao sistema capitalista ainda que dentro de um movimento contraditório”. A meu ver, a sociedade política em articulação com a sociedade civil, um dos propósitos da CONAE, deve agir e reagir sobre os processos que impuseram tais desigualdades sociais a partir de uma compreensão multidimensional e da participação de todos, desde o município, os estados, o Distrito Federal e a União. Acredito que mudanças estruturais no modelo capitalista, adotado cegaPesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 151-156, jul.-dez. 2009
mente pelo Estado Mínimo brasileiro em uma sociedade de classes como a nossa, propiciarão o entendimento das dinâmicas que determinam as desigualdades sociais e econômicas da população brasileira. Outro aspecto significativo das conferências da educação para municípios e estados é a possibilidade de encaminhar a regulamentação do que consta do Parágrafo único do art. 23 da Constituição Federal, que determina fixar normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. Trata-se, portando, de regulamentar o regime de colaboração entre os entes federados, com transferências regulares e contínuas de recursos financeiros, com vistas a que este regime promova justiça e equidade, para todos os cidadãos, relativas ao primeiro de todos os direitos sociais – o direito à Educação Fundamental, gratuita e obrigatória – e oxalá conquistem os brasileiros o direito à Educação Básica, integral, gratuita e obrigatória. Lembra-se que o Brasil é uma República Federativa e “isto supõe um pacto federativo no qual coexistam a diversidade de entes federados e a união federativa”, recomenda Cury (2009a, p. 20). Ainda outro aspecto importante da realização de conferências nacionais para os municípios e os estados da Federação será, a longo prazo, organizar o Sistema Único de Educação, do qual decorreria a Escola Única idealizada pelos pioneiros da Escola Nova, em que a educação de qualidade é reconhecida como direito de todos, independentemente da classe social do estudante; sendo banido a ainda remanescente organização do ensino dual no sistema educacional brasileiro, que dicotomiza ensino para ricos e ensino para pobres, ensino público e ensino privado. No campo da Formação de Profissionais da Educação, a importância das conferências nacionais para os municípios é também a oportunidade de divulgar amplamente no território nacional, que não exclusivamente na prática e no conhecimento tácito, presente nas soluções que os profissionais encontram no ato pedagógico, encontra-se a referência de um processo qualificado de formação e valorização de professores. O conhecimento advindo da atividade laboral é importante, mas não é suficiente. Uma sólida formação teórica deve compor a base da formação de todo profissional do magistério. Todos os representantes da sociedade
Entrevista com a Professora Iria Brzezinski (ANFOPE)
política dos entes federados e os responsáveis pelas instituições formadoras devem reconhecer que os cursos de Formação de Professores precisam ser ofertados por instituições qualificadas, que articulem os processos de ensino, pesquisa e extensão, características próprias e marcos regulatórios das universidades brasileiras (Cf. Documento Final do XIV Encontro Nacional da ANFOPE, 2008). MFBA: O que se precisa mudar no PNE vigente? Quais são seus principais problemas? PIB: Confesso a você, Maria de Fátima, que preferiria apontar alguns acertos do PNE vigente que são poucos, segundo avaliações feitas a esse respeito, porque os problemas são muitos. Como você perguntou pelos principais problemas, vou me deter em um e apontar alguns desafios para a construção de um outro PNE. No meu entendimento, o problema crucial na organização e implementação do PNE (20012010) reside nos vetos do Presidente da República ao projeto de PNE, “consertado e concertado por consensos” no processo de tramitação legislativa no Congresso Nacional. Tal ato condenou o PNE a ser um “gigante de pés de barro”. Encontro explicações para usar esta expressão, em razão de que: o planejamento, como já afirmei – o ato de prever, foi um bom exemplo de avanço no planejamento educacional participativo, chegou-se a um plano nacional global de educação, com perspectivas de mobilização dos estados, do Distrito Federal e dos municípios para construírem seus planos decenais. Embora esses últimos não passaram de expectativas, confirmado pelo irrisório número de planos estaduais aprovados que ainda não atingiu uma dezena. Com efeito, metaforicamente, o gigante a que reporto tem “uma cabeça e um corpo grandes”, considerando o diagnóstico e objetivos (a cabeça) e metas traçados. Essas consistem no robusto corpo do gigante, contam 295 metas, distribuídas pelos dois níveis educacionais, Básico e Superior. Outra razão que justifica a expressão “gigante de pés de barro” recai – no ato de prover. Os vetos do Presidente foram sustentados por argumentos da área econômica do governo neoliberal, que se pautava pela premissa radical do Estado Mínimo “tudo para o capital, nada para o social”.
155
Neste sentido, recorro a Monvelade para confirmar minha análise: “Os argumentos que sustentam os vetos são frágeis, mas a vigilância e a vontade política do governo Federal mostram intransigência e predomínio dos planos econômicos sobre o social” (MONLEVADE, 2002, p. 35). É verdade que os pés de barro do gigante simbolizam a desresponsabilização do Estado com o financiamento da educação pública, uma vez que não houve provimento e destinação de recursos financeiros compatíveis com o que previam as 295 metas. Em relação aos desafios compartilho com aqueles apontados por Cury (2009b). Antes, porém, manifesto minha compreensão sobre os desafios. Eles consistem em movimentos que servem para encorajar sujeitos e grupos organizados a fazerem algo que demonstre ir além das possibilidades concretas circunscritas a um espaço-tempo determinado. Para Cury o pacto federativo é um grande desafio na construção do novo PNE, considerando que o regime de colaboração, constante da Constituição Federal de 1988 “exige entendimento mútuo entre os entes federativos e a participação supõe a abertura de novas arenas públicas de deliberação e, mesmo, de decisão”. Ocupam o segundo lugar, nos desafios apontados pelo autor, as questões de alocação de recursos compatíveis com a metas propostas no PNE e o financiamento da educação nacional. Em sequência, considera-se um desafio o rompimento com a cultura brasileira da “rotatividade administrativa posta pela alternância democrática dos governos” (CURY, 2009b), que carrega em si a descontinuidade de ações. Ainda que o PNE se configure como plano decenal, esse instrumento de políticas educacionais se presta a ser mais um plano de governo do que um plano de Estado. O quarto desafio requer o envolvimento de toda a sociedade para a construção do PNE. Para tanto essa construção deve concitar a participação do cidadão brasileiro em geral. Não basta a participação de alguns segmentos sociais ou parcelas da sociedade civil organizada e da sociedade política Por último, Cury destaca, como desafio, a polêmica entre o ensino público e privado. Afirma o autor que o setor privatista não pode estar ausente do PNE, retomando que a liberdade de ensino, Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 151-156, jul.-dez. 2010
156
Maria de Fátima Barbosa Abdalla
assegurada constitucionalmente e referendada em dispositivos da LDB/1996: [...] é uma forma de atuação do setor privado na educação escolar que, atendendo às exigências legais, pretende oferecer uma diferença específica a determinados segmentos sociais. Ela não pode fazer da educação escolar e o seu ensino correspondente um objeto qualquer de mercado. Há uma função social a cumprir porque ela presta a oferta de um bem público por meio de uma instituição privada (CURY, 2009b).
A estes desafios, sob a perspectiva de Cury, acrescento um primordial que se trata da restauração do Plano Nacional da Educação da Sociedade Brasileira elaborado mediante um processo altamente participativo no I e II Congressos Nacionais da Educação (CONEDs), realizados em 1996 e 1997. Tenho clareza de que as bases do novo PNE (2011-2020) estarão lançadas com a restauração e atualização do Plano Nacional de Educação da Sociedade Brasileira. Este projeto foi descartado pela “depuração política” (MONLEVADE, 2002, p.30), que prefiro denominar “artimanhas dos bastidores do Congresso Nacional, guiadas pelo relator do Projeto do PNE na Câmara dos Deputados, na ocasião, filiado ao partido político do Presidente da República e do Ministro da Educação.
Pesquiseduca, Santos, v. 1, n. 2, p. 151-156, jul.-dez. 2009
MFBA: Quais devem ser as principais metas para traçar um novo rumo para a educação brasileira? PIB: Questão muito provocativa. Para ser respondida com a seriedade acadêmica e o compromisso político que a indagação exige, quero crer, que merece ser escrito um livro, cujo objeto seja a política educacional brasileira. Arrisco, sem medo de cometer equívocos, em começar a introdução deste livro, trazendo a público as informações veiculadas na mídia pela equipe econômica da recuperação quase instantânea da Nação brasileira, diante da crise do capitalismo mundial que assolou o planeta, provocada pelo abalo no sistema financeiro dos Estados Unidos da América (2008). Os dados oficiais apresentados levaram os brasileiros a acreditar que nosso país está muito mais rico do que educado, em virtude de que ao mesmo tempo foram explorados pela mídia os sofríveis índices de desempenho da educação brasileira. Além desta consideração, valer-me-ia de outra frase de impacto na introdução do livro. Frase reiteradamente pronunciada por Cristóvam Buarque em sua campanha à presidência da República: para traçar novo rumo para a educação brasileira é indispensável “incluir no sistema educacional público, gratuito e de qualidade os excluídos e educar os incluídos”, o que confirma que o Brasil ainda não é considerado um país educado.