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// Reflectir a Imagem Design de Diana Vila Pouca Publicação realizada no âmbito da disciplina Estudos de Design na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto 1º Edição Junho 2011 Impressão Sempre Imagem Digital


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Helena Almeida, Negro Agudo/Sharp Black, Narrativa Fotogrรกfica, 1981


// Joana Ascenção Entre movimento e narratividade: paradoxos da sequência fotográfica.

// Lúcia Marques A contrução fotográfica da imagem da cidade: A partir da Lisboa, cidade triste e alegre de Victor Palla e Costa Martins.

// Margarida Medeiros Revisitar Olho de vidro – uma história da fotografia, um breve comentário.


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Joana Ascens達o


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// Entre movimento e narratividade: paradoxos da sequência fotográfica.

No final da década de 80, Raymond Bellour escreve que a sequência fotográfica não é uma ideia clara, encontrando o seu lugar de eleição num tempo que retira a sua força da desagregação das especificidades, mesmo quando estas ainda são garantidas pelo afastamento entre as suas condições técnicas, como é o caso da fotografia e do cinema. Vinte anos depois, ao afirmarmos que a sequência fotográfica é uma figura paradoxal, na medida em que reintroduz a experiência da duração no registo da imagem fixa e aproxima a fotografia do cinema, não podemos deixar de concordar com Bellour. Todavia, devemos acrescentar que, se a posição de destaque ocupada pela sequência fotográfica se prolonga até hoje, as origens da sua utilização em larga escala remontam aos anos 60, momento em que a fotografia é apropriada por campos como a performance e a arte conceptual. Período conturbado em que se começa a questionar a especificidade dos meios e em que se assiste ao desenvolvimento de uma sensibilidade em tudo contrária ao paradigma do “instante decisivo” formulado por Henri Cartier-Bresson, a qual se traduz por uma tendência para a expansão da temporalidade das obras, expressa, entre outras formas, no recurso à série e à sequência de imagens. Não obstante a multiplicidade de configurações assumidas pela sequência fotográfica, se as suas utilizações recentes desenvolvem em grande parte o legado taxinómico característico do século XIX, como o demonstram os trabalhos de Christian Boltanski, e se se verifica uma revisitação esporádica do modelo histórico da crono fotografia, tem-se evidenciado um outro tipo de sequência, não tanto assente em princípios seriais ou de movimento, mas sobretudo em questões narrativas. Divisão que se tem reflectido em várias tipologias que analisam esta forma particular do fotográfico, entre as quais as elaboradas por Philippe Dubois e por Perin Emel Yavuz.


Desenho Habitado, Fotografia a preto e branco e colagem de fio de crina, 1977

Philippe Dubois, na sua procura das relações entre o cinema e a fotografia contemporânea, que o conduziu à concepção da exposição L’effet-film, matières et formes du cinéma en photographie, distingue basicamente estes mesmos dois tipos de sequência: aquelas que lidam com a questão do movimento e aquelas que, sem relação directa com as diferentes fases do movimento. Perin Emel Yavuz, por seu lado, descreve outros dois tipos de sequência que, embora englobem os descritos por Dubois, não os recobrem. O primeiro, que associará à monstration du temps, baseia-se no princípio serial e na exibição do fluxo temporal na sua duração, e consiste na sucessão ordenada de imagens com uma ligação muito forte entre si, captadas com intervalos mais ou menos regulares. Compreendendo as sequências de movimento apresenta-se, no entanto, como uma categoria mais abrangente. A segunda dessas formas, que Yavuz relacionará com a configuration du temps, assenta no desenvolvimento de uma lógica narrativa como princípio orientador da organização e montagem das imagens, que, por não estar subordinada a uma ordem predefinida, possibilita a criação de uma nova temporalidade. Embora a distinção entre as categorias propostas por Dubois radique na representação do movimento, e a divisão de Yavuz na representação do tempo, as duas tipologias são em parte coincidentes, pois ambos os autores opõem o que definem como formas elementares de representação do tempo e do movimento à construção narrativa. Ultrapassando as diferenças entre as duas perspectivas, estas tipologias ajudar-nos-ão a pensar a pertinência da bipolarização da sequência fotográfica e a esclarecer algumas das suas características essenciais, entre as quais as várias modalidades do seu relacionamento com o fílmico e com a ideia de filme. Se, por um lado, as sequências que reproduzem as fases sucessivas de um movimento, se inscrevem claramente no território onde se cruza a imagem fotográfica e o fotograma cinematográfico, incorporando a sua tensão, por outro lado, as sequências fotográficas, assentes não tanto no princípio do movimento mas sobretudo em questões narrativas, embora manifestem uma relação menos clara com o cinema, não deixam de revelar um explícito “efeito-filme”.


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Mas enquanto nestas últimas o sentido se constrói pela aplicação do princípio da montagem à organização das imagens que as compõem, a conexão entre as sequências de movimento e o cinema é tanto mais evidenciada quanto maior a regularidade dos intervalos com que são captadas as suas imagens. Facto testemunhado pelas primeiras experiências científicas de registo do movimento em sequências de instantâneos equidistantes, desenvolvidas por Eadweard Muybridge e por Étienne-Jules Marey, que anteciparam o próprio cinematógrafo, sem contudo abandonarem a condição de conjuntos de imagens. Se Marey recusa explicitamente a síntese das imagens registadas através da cronofotografia, pois não acredita que a ilusão do movimento possa acrescentar algo de benéfico a uma análise atenta das imagens isoladas, Muybridge, ao utilizar um zoopraxinoscópio para animar as fotografias com que ilustrava as suas conferências sobre locomoção animal, será aquele que mais se aproxima do cinematógrafo, sem contudo ultrapassar o que poderemos classificar como um “cinema fotográfico”. Mas, observando mais detalhadamente o caso particular de Muybridge, são vários os aspectos que contrariam a visão estritamente científica e documental do projecto associada à neutralidade e à equidistância das várias poses, pois, para além da frequente omissão de imagens pertencentes a uma sequência em virtude do seu menor interesse estético, nos seus últimos trabalhos questão do movimento parece surgir como um pretexto para a apresentação de vários temas com uma forte componente narrativa. A tendência para a ficção e para a narrativização destes conjuntos de imagens, em que a definição de sequência de movimento parece assumir uma das suas formas mais puras e um grau mais elevado de identificação com o cinema, não apontará para o questionamento da divisão entre sequência de movimento e sequência narrativa? Interessa-nos de seguida abordar esta questão a partir do caso particular das séries e sequências fotográficas realizadas por Helena Almeida. Imagens que sugerem o registo de uma sucessão de movimentos, mas cujo objecto se distingue da representação desse mesmo movimento.Sequências aparentemente cronofotográficas que se revelam longe da cronofotografia, apontando para uma imbricação das duas tendências. O caso particular das sequências de helena almeida. Ao longo de mais de 40 anos Helena Almeida tem desenvolvido uma obra que experimenta incessantemente os limites dos

diferentes meios que envolve, sejam eles a pintura, o desenho, o vídeo ou a fotografia, na qual a auto-representação e a sequência fotográfica assumem um papel determinante. Para além da utilização ocasional de imagens isoladas, a artista recorre, de forma sistemática, a conjuntos de imagens fotográficas que aparentam documentar momentos sequenciais de uma acção, em que deparamos invariavelmente com Helena a pintar, a desenhar ou a interagir com o espaço e com os objectos que a rodeiam. Dentro de mim (1998), sequência composta por dezoito fotografias em que o seu corpo roda em torno de si próprio, ou um trabalho sem título, realizado em 1999, em que a artista se representa em diferentes posições de corrida, são exemplos de séries com uma componente cronofotográfica muito acentuada, na medida em que apreendemos em contínuo o movimento de um corpo que aparece e desaparece entre as várias imagens. Se o movimento e a sua aparente decomposição parecem surgir como uma vertente essencial de uma obra onde domina a sequência fotográfica, esta indicia obedecer a um propósito distinto da representação desse mesmo movimento. Enquanto na sequência de movimento, considerada em termos genéricos, o instante fotográfico corresponderá a uma fase qualquer do movimento que, por não ter de obedecer aos princípios de regularidade e de equidistância exigidos pelo cinema ou pela sequência cronofotográfica, poderá ser objecto de selecção posterior, nos trabalhos de Helena Almeida deparamos com uma sucessão de instantes verdadeiramente privilegiados que correspondem à eleição de um conjunto de poses e à sua apresentação em séries narrativas.

// Ao longo de mais de 40 anos Helena Almeida tem desenvolvido uma obra que experimenta incessantemente os limites dos diferentes meios que envolve.


Sem título, Instalação (pormenor), 20 Fotos a preto e branco com pintura vermelha, 1995


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Poses que, na sua aparente simplicidade, são cuidadosamente esboçadas e preparadas pela artista, e que só pela sua exposição em sequência nos conduzem a uma ilusão de movimento. Esta imobilidade de base é tanto mais paradoxal quanto maior a instabilidade dos gestos que Helena Almeida auto-encena, como exemplificam as séries Voar (2001), em que o seu corpo, após um voo simulado, sucumbe à queda. E é tanto mais clara quanto maior o nível de elaboração cénica envolvido pelas suas obras, o que é particularmente evidente nas sequências que incluem a utilização de pigmento, pois a concretização de cada uma das imagens apresentadas em sucessão exige um longo trabalho prévio associado à reconfiguração da disposição do pigmento com que a artista interage. Tarefa invisível que só pode ser realizada à custa da dilatação dos intervalos que separam as várias fotografias. Mas se a expressividade e o poder de condensação destas séries decorrem em grande medida da força das imagens individuais que as compõem, estas só adquirem pleno sentido na totalidade da sequência em que se inscrevem, pois cada fotografia não pode deixar de ser considerada como parte de um conjunto de poses fixas inseridas em construções ficcionais que se sucedem, citando e interrompendo o ritmo do cinema. Recorrendo a uma afirmação de Giorgio Agamben a propósito do projecto Mnemosyne de Aby Warburg, poderemos dizer que, no interior destas sequências, «chacune des images est envisagée moins comme une réalité autonome que comme photogramme» (1), embora não tanto no sentido da produção da impressão de movimento, mas devido à importância assumida pela contextualização e pela montagem. Ao convocar a sequência como forma de conciliar a instantaneidade da fotografia com a continuidade do tempo para o desenvolvimento de uma história, Helena Almeida concebe verdadeiras micro-narrativas cujo sentido se deduz por montagem. Ficções manifestamente autobiográficas que não caem no auto-retrato, nem na teatralização de várias personagens, mas na reafirmação da sua presença, participando assim de uma tradição fotográfica próxima da prática performativa, que incorpora a experiência subjectiva de quem a realiza. Se toda a sequência fotográfica possui um carácter elíptico e descontínuo ditado pelos intervalos entre as suas imagens, nestas sequências esses intervalos assumem um papel particularmente relevante, pois insinuam-se ainda no interior de cada

uma das imagens que as compõem. Terceiro modo de identificação com o cinema, não já pela representação do movimento, ou pela montagem associada a questões de ordem narrativa, mas pelas características que aproximam cada uma destas imagens das propriedades do fotograma cinematográfico quando extraído da sequência em que se insere. Imagem por definição instável, atravessada por qualidades como o tremido, a mancha, o desfocado, ou um modo particularmente dinâmico de composição e de enquadramento. Não obstante a natureza cinematográfica destes trabalhos, complementada por esta associação ao fotograma, não poderemos deixar de referir que Helena Almeida, ao contrário de muitos artistas plásticos e fotógrafos que se aproximam da forma e do pensamento cinematográfico, não ultrapassa verdadeiramente a fronteira entre a sequência de imagens e o fílmico. Em 2006, quando a interrogámos sobre a sua relação com o cinema, Helena Almeida mencionou-nos o interesse que desde sempre votou às fotografias publicitárias expostas nos átrios dos cinemas, em virtude do seu carácter metonímico e poder de condensação. Afirmação reveladora da sua clara preferência pela sequência fotográfica em relação ao cinema, através da qual procurará conciliar a expressividade e o poder de condensação do instantâneo com a exploração das possibilidades narrativas da sucessão de imagens. Na fronteira entre movimento e narratividade, as séries de Helena Almeida contradizem esta mesma divisão, apontando para a necessidade do abandono das categorias estáveis a favor de uma contaminação, que reproduz o estatuto paradoxal da própria sequência fotográfica. Estas são sequências pontuadas por grandes vazios que contradizem aquilo que aparenta repetir-se, fixando estados e posturas corporais cujos intervalos devemos preencher. Envolvem «une répétition qui serait l’intensification simultanée d’une présence et d’une absence» (2), revelando verdadeiras “histórias” cujo protagonista é um corpo em metamorfose permanente que, cristalizando-se numa multiplicidade de poses fixas muito construídas, se oculta e se prolonga de modo intermitente no espaço.

(1) Giorgio Agamben, “Notes sur le geste”, Moyens sans fins: Notes sur la politique, Paris, 1995 (2) Definição de “síncope”, proposta por Louis Marin em De la représentation, Paris, 1993


Voar, SĂŠrie de quatro fotografias em tons de azul, (4x) 124x180cm, 2001





Pintura Habitada, Acrílico sobre fotografiaa preto e branco, Coleção Módulo, 46x40cm, 1976



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LĂşcia Marques


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// A contrução fotográfica da imagem da cidade: A partir da Lisboa, cidade triste e alegre de Victor Palla e Costa Martins.

(...) Outra vez te revejo, Cidade da minha infância pavorosamente perdida... Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui... (...) Lisboa e Tejo e tudo. Álvaro de Campos, Lisbon Revisited (1926) Eis o excerto do poema que abre o projecto fotográfico publicado em 1959. Trinta anos depois do poema de Fernando Pessoa, a dupla de arquitectos-fotógrafos Victor Palla (1922) e Costa Martins (1922-1996) começa a sua deambulação pela cidade de Lisboa, fotografando dia e noite, durante cerca de três anos, os diferentes quotidianos dos seus habitantes e transeuntes, procurando um registo pessoal e comprometido dos seus espaços, cartografando pela luz uma urbanidade mais realista que pitoresca. Seriam os primeiros honorários da produção arquitectónica inicial de Palla e Martins que financiariam este mapeamento afectivo da cidade, tomando como mote um dos versos da Lisboa revisitada pelo heterónimo pessoano Álvaro de Campos, glosando uma Lisboa, cidade triste e alegre em imagens de grande cumplicidade com os seus actores, realçadas por um envolvimento autobiográfico assumido em cada imagem. Filho de um fotógrafo amador, Victor Palla (e Carmo) nasceu em Lisboa em 1922 e desde cedo que se iniciara na fotografia para ajudar o pai. Concluído o curso de arquitectura em meados dos anos 40, após frequência da Escola de Belas-Artes de Lisboa e de uma breve incursão na do Porto, acaba por se fixar por alguns anos nesta última cidade, onde dirige a Galeria Portugália a partir de 1944. Foi, aliás, um dos principais organizadores das “Exposições Independentes”. Mas foi nas “Exposições Gerais de Artes Plásticas”, que mostrou pela primeira vez as suas provas, entre 1946 e 1956, altura em que a inovadora abertura à fotografia no certame é suspensa.


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Mas é a partir de 1956 que se dedica de um modo mais sistemático, com Costa Martins, ao projecto fotográfico em torno de Lisboa. Aliás, o projecto integraria imagens ainda de finais dos anos 40, que ambos os autores haviam feito separadamente sobre Lisboa e cuja coincidência de olhares viria precisamente a motivar o projecto abraçado por ambos em 1956. Em 1979, Palla obteria uma Bolsa da Gulbenkian para estudar e fotografar “O Grafismo na Cidade”, concentrando-se, cerca de 20 anos depois, na dinâmica da paginação amplamente explorada no projecto colectivo com Costa Martins. (Manuel) Costa Martins, também nascido em Lisboa em 1922, e falecido em 1996, frequentara também o ensino superior das Belas-Artes em Lisboa e no Porto, e concluiria o curso de arquitectura só em 1948. Tornar-se-á logo depois funcionário público, nomeadamente na função de arquitecto-projectista para o Ministério das Obras Públicas, paralelamente a uma dedicação mais sistemática, a partir de 1956, ao projecto fotográfico sobre Lisboa, que entretanto iniciara com o seu colega e amigo Victor Palla. Num país onde a fotografia se aninhava em regulamentos ditados pelos concursos dos Salões, e se hegemonizava através das actividades promovidas pelo Grupo Câmara, pelo Fotoclube 6x6 e pela Associação Fotográfica do Porto, a presença dos arquitectos Francisco Keil Amaral e Victor Palla _ que foi também um dos organizadores das “Exposições Gerais” _, com fotografias, na viii Exposição Geral de Artes Plásticas (snba, 1954), reflectira um alarg mento fatidicamente pontual à fotografia, que logo terminaria na sua décima edição (1956), coincidindo com o arranque do projecto da Palla/ Martins em torno da capital lisboeta.

A EXPOSIÇÃO, LISBOA/ PORTO (1958) É em 1958 que estas imagens se dão a conhecer numa primeira selecção de Palla/Martins, exibindo-se numa montagem surpreendente de tão arrojada no seu desenho no espaço, quer na Galeria Diário de Notícias, em Lisboa, quer ainda na Divulgação, no Porto (actual Livraria Leitura), também no mesmo ano. Dispostas em sequência e perspectiva claramente referenciadas no cinema italiano de Fellini, Rosselini, ou até mesmo de Antonioni, estas fotografias propunham um percurso imagético que negava a visão globalizante do plano e exponenciava a natureza subjectiva do fragmento, do editing. Era uma outra cidade aquela que então se mostrava, a

cidade habitada, em renovado crescimento arquitectónico e humano, sintomaticamente com particular atenção às mulheres e às crianças. As ousadias experimentais de Palla/ Martins na devolução de um retrato desfocado, recortado, disruptivo, da capital tiveram, no entanto, um reduzido impacto nos seus contemporâneos, passando praticamente despercebidas no provinciano contexto português dos anos 50 (recordem-se os Verdes Anos que Paulo Rocha viria a reflectir de modo tão inesquecível e pertinente, pouco tempo depois da publicação do livro).

O LIVRO (1959) A continuação desse empreendimento fotográfico, socialmente empenhado e revelador da expectativa de abertura democrática e de combate à arquitectura do “regime” através do modelo internacional, resultaria depois na publicação do livro homónimo, que prossegue e radicaliza o ensaísmo gráfico, fotográfico e cinematográfico das duas exposições de 1958, incluindo também imagens captadas depois da realização dessas mostras. De um total de cerca de seis mil clichés, os seus autores escolheram trabalhar cerca de duzentos, paginando-os em profícua relação com excertos de poesia da autoria de Fernando Pe ssoa (et Álvaro de Campos, Ricardo Reis), António Botto, Almada Negreiros, Camilo Pessanha, Mário de Sá-Carneiro, Alberto de Serpa, Cesário Verde, Gil Vicente, e inéditos de Eugénio de Andrade, David Mourão-Ferreira, Alexandre O’Neill, Jorge de Sena, entre outros nomes da cena literária portuguesa de então, com destaque ainda para o texto de abertura de José Rodrigues Miguéis (1). Apenas José Borrêgo dedicou especial atenção à edição do livro, que mereceu uma crítica extensa e positiva na revista cinéfila Imagem, em 1960. O livro foi editado em sete fascículos mensais, de modo a possibilitar o financiamento dos seus custos através do sistema de assinatura, e assim tornar também mais acessível ao leitor a aquisição da publicação, sendo esta, aliás, uma estratégia editorial bastante comum na época. Na “Advertência” que acompanhou o 10º fascículo do álbum, Costa Martins e Victor Palla comentam esta opção dando-lhe a seguinte justificação: “...foi sobretudo a vantagem da maior acessibilidade da obra (ao leitor e aos autores- editores) que nos levou a reduzi-la a tomos parciais.

(1) Nos materiais de apoio do curso foi distribuída a transcrição integral dos 32 trechos literáriosdo Livro, dos quais 9 são poemas inéditos.


Costa Martins, Victor Palla – Página 47, Lisboa: Círculo do Livro, 1956-1959

Em boa verdade, cremos que, por muito interesse que possa ter esta bizarra experiência de desvendar mensalmente e passo a passo, as excelências ou defeitos dum livro estudado como um todo, experiência a que a edição em fascículos nos habituou e obriga, ela tem pelo menos a importuna contrariedade de apresentar o pormenor antes do conjunto, de enevoar as razões do plano e, parafraseando uma citação famosa, permitir ver que, por causa das árvores, o leitor não veja a floresta. Afortunadamente, sete fascículos depressa passam. Que se perdoe este processo de publicar um livro a um livro que sem este processo não teria sido publicado.” Aliás, os escritos do cunho dos próprios autores acerca do álbum constituem as fontes mais preciosas para o seu entendimento, como se pode verificar no suplemento técnico intitulado “Índice” que fecha o livro com comentários à paginação. O “Índice” do livro Lisboa foi redigido pelos próprios autores e assinado colectivamente, tal como as fotografias que dele fazem parte. É nessa secção do livro que se reproduz em pequena escala e num formato uniforme todas as imagens que foram seleccionadas dos cerca de seis mil clichés

//...foi sobretudo a vantagem da maior acessibilidade da obra que nos levou a reduzi-la a tomos parciais. que compunham o corpus inicial do projecto editorial. E a acompanhar cada par dessas reproduções, mostrando-se duas páginas do livro aberto em cada imagem, encontramos então os comentários ecléticos e empenhados de Victor Palla e de Costa Martins. As suas notas à margem versam sobre os mais variados aspectos das fotografias para as quais remetem: desde po menores técnicos de execução, ao local onde a fotografia foi tirada, até às suas reflexões pessoais e bastante informadas, sobre “o interesse humano” de uma “boa fotografia”, as propostas estéticas e éticas de outros fotógrafos e, principalmente, referenciados nos escritos e ditos de alguns dos mais reputados cineastas, tanto americanos quanto europeus.


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Costa Martins, Victor Palla – Página 76/77, Lisboa: Círculo do Livro, 1956-1959



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Daí que o elencar dessas referências mais significativas clarifique o empenho e entusiasmo da dupla Palla/ Martins na criação de uma edição, tratando-se neste caso da edição de um livro de fotografias extremamente cuidado em todos os seus pormenores. Essa listagem de algum modo “tutelar” também torna mais explícita a amplitude internacional em que o livro se inscreve, seja pelas influências que assume e assimila, seja ainda pelas propostas inovadoras com que avança enquanto produto editorial. Aliás, o livro foi antecedido, inclusive, por uma pré-apresentação em formato expositivo, revelando-se nas suas diferentes componentes como uma espécie de ensaio fotográfico aplicado. E em última instância, podemos mesmo considerá-lo um ensaio fotográfico a partir de uma ideia subjectiva de Cidade, uma cidade vista a partir do seu interior, dos seus habitantes, e, neste caso, não apenas naturais da própria cidade mas também arquitectos por formação e ofício. Então que Lisboa é essa que se dá a ver pelas imagens da poesia e da fotografia? Para enquadrar devidamente as motivações e escolhas desta visão humanizada da cidade partimos das remissões mais significativas do “Índice” de Lisboa. 1. Os escritos “de penn a wayne miller” (relativos à página 1); De Penn a Wayne Miller, uma antologia dos escritos dos grandes fotógrafos de hoje seria na verdade, além dum grande livro, um livro muito grande. À sombra de tantos grandes bem se pode desculpar neste passeio ao longo de Lisboa o nosso tagarelar, que não é mais do que o “shop-talk” de quem mostra provas a um colega. Pois a quem mais senão a um fotógrafo poderia interessar, por exemplo, que esta fotografia tivesse sido feita pela tard nha, no verão, com uma eica equipada com Elmar 50 mm e filme Tri X, a 1/ 30 f. 4.5? 2. “O povo, as pessoas”, como principal estímulo do projecto, ali nha n do com a posição de richard avedon (relativos à página 4 e às páginas 60 e 61); Como Richard Avedon, poderíamos dizer que o que sempre nos estimulou “foi o povo, as pessoas, nunca, ou quase nunca, as ideias”. A técnica não é senão o instrumento; e por vezes apetece concluir, como Avedon, que “a máquina é quase sempre um estorvo. Se eu pudesse fazer o que quero com os olhos apenas, seria feliz”. [...] Por esta altura já deve ter-se tornado claro que este livro não quis retratar acontecimentos espectaculares ou sensacionais mas antes o espírito do ordinário, do quotidiano, das

pessoas a serem elas próprias (e não transtornadas pelo excepcional) movendo-se dentro dum ambiente familiar, conhecido. 3. A demarcação da ortodoxia do “momento decisivo” de cartier- bresson face ao “cropping” (relativos às páginas 16 e 19); Retratos de crianças de vários bairros de Lisboa. Factor importante deste conjunto: o corte. Os negativos originais dariam numerosos rectângulos diferentes. Pese a Cartier Bresson (que não só considera sempre definitivos os seus 24x36mm, como ameaça processar o editor de revista que lhos enquadrar diversamente), persistimos em encarar como um dos elementos fundamentais do labor fotográfico o “cropping”, arma que manejada imprudentemente pode não passar de simples artimanha, mas que nem por isso deixa de ser um direito verdadeiro e fecundo do fotógrafo. 4. O equipamento mínimo do fotógrafo (referido a propósito da página 22); Tentámos reduzir o nosso equipamento ao mínimo. Tripés, estojos, correias, são outros tantos obstáculos à mobilidade e à naturalidade e “invisibilidade”do fotógrafo. A máquina nua na mão, as restantes objectivas nas algibeiras; tudo o mais se aprende a dispensar. Os amadores mais evoluídos escandalizar-se-ão talvez se aqui dissermos que ganhámos um despreso considerável pelos filtros e que só em casos especialíssimos e muito deliberados os usámos. Ao fim de milhares de exposições, também o fotómetro perde decididamente importância, quando muito, uma única leitura inicial dá o Lá, para toda a tarde ou manhã, das afinações eventuais que os assuntos e as variações luminosas exigirem. 5. A sintonia com o alerta de cornell capa face à “desumanização” do fotógrafo Cornell Capa disse: “Há um problema importante: deve o fotógrafo sofrer, dado que o seu trabalho é antes de mais nada observar? Observar continuamente e nunca participar é deixar de ser humano.”Os autores deste livro, que trabalham em Portugal e não são repórteres profissionais, julgam encontrar nesse facto antidoto suficiente contra essa desumanização que Capa receava e que é afinal o mal de toda a especialização desenfreada. Há além desse remédio caseiro, um outro muito importante, que se acrescenta ao respeito pela pessoa humana de que falávamos há pouco: a ternura, a ternura pura e simples.


6. Defesa do profissional “amador”, tal como proclamada por eisenstaedt; _ Mas a melhor solução para este problema _ humanização da tarefa de utilizar sistemàticamente um instrumento mecânico como o fotográfico _ talvez possa ser a de Eisenstaedt: “Todo o profissional deveria permanecer, no fundo do coração, um eterno amador”. 7. Referência a lhote, numa articulação da fotografia com a pintura [...] aqui temos outra vez muita coisa de pintura: a organização plástica, com um “quadro” dentro doutro quadro; as “passagens” do claro-escuro de que fala Lhote. 8. Sintonia conjuntural com “um cinema a que os italianos deram a expressão mais completa” (páginas 40 e 41); Nenhum intuito imitativo aqui tampouco, ou influência sofrida conscientemente. Mas todos os que vêem estas fotografias (mais sublinhadamente a da direita) nos apontam a semelhança do seu clima e atributos físicos com os dum cinema a que os italianos deram a expressão mais completa. Não nos parece que dessa semelhança de resultados venha algum dano; ela é natural, dados os parentescos circunstanciais; além disso, estamos em crer que só pode haver vantagens na inter-influência das artes do nosso tempo, que têm muito que aprender umas com as outras. 9. Contraproposta ao “esteticismo de salon”, mediante actualização de referências internacionais (páginas 56 a 59); Indispensável se torna nestes comentários abordar o problema da composição do livro. Temos insistido em que o ofício de fotógrafo se deve afastar muito do obter “bonitas” provas isoladas, pequenos quadros de cavalete auto-suficientes e válidos por si. Hoje tudo tende a separá-lo desse esteticismo de “salon”: o novo idioma da reportagem fotográfica, as grandes revistas ilustradas, os livros documentais ou de “picture-stories”. E o simples facto de uma fotografia se destinar a ser incluída num conjunto, gravada, impressa, vista por milhares de leitores, tem por força de originar características especiais, determinar uma estética, talvez até toda uma filosofia.

Costa Martins, Victor Palla – Página 62/63, Lisboa: Círculo do Livro, 1956-1959


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Costa Martins, Victor Palla – Página 62, Lisboa: Círculo do Livro, 1956-1959

10. Dimensão experimental e processual do projecto fotográfico,nomeadamente na planificação de um segundo volume dolivro (relativos às páginas 56 a 59, 62-63-64, 127 a 136); e que se pôde vislumbrar apenas em 1982, com o cartaz-exposição Lisboa e Tejo e tudo na Galeria ether, que incluiu imagens não publicadas no primeiro volume, bem como desenhos preparatórios do respectivo arranjo gráfico; a que o catálogo publicado em 1989 pela Fundação de Serralves, precisamente por altura de nova remontagem da exposição, também deu destaque. O negativo é cada vez mais um passo intermédio. O que conta é o conjunto final; o ampliador torna-se tão importante como a câmara, o cilindro do gravador torna-se tão importante como o ampliador. E o campo de experimentação, que já era con siderável, alarga-se. Talvez agora mais legitimamente ainda, porque se apoia em meios de larga comunicação e saiu das narcisistas e quase sempre estéreis aventuras do quarto escuro, baixos relevos, pequenas crises de adolescência que não há que evitar, mas que o fotógrafo maduro ultrapassa ràpidamente. Não fugimos ao experimental: e não presumimos sair airosos de todos os ensaios. 11. Semelhança da metodologia adoptada pelos autores à do cineasta robert flaherty e à “disciplina do cientista” segundo david riesman (páginas 68 e 69); O nosso método foi inconscientemente muito semelhante ao de Robert Flaherty, que coligia material para cada um dos seus filmes sem grandes pré-concepções, e que, ao contrário do cineasta vulgar, que pensa primeiro e filma depois, “filmava primeiro e depois pensava”. Essa espécie de abandono, em que a personalidade do artista se rende àquilo que é maior do que ele, para que isso que é maior possa ser trazido para a luz, essa espécie de abandono é, segundo David Riesman, a disciplina do cientista, a sua humildade, a sua busca de verdade. Era com o material que colhia dia a dia que Flaherty construia finalmente os seus filmes. A montagem torna-se assim como que o substituto duma pré-planificação.


12. Afinidade com o conceito de “montagem” de fellini (também relativo às páginas 68 e 69); Fellini pensa de maneira muito semelhante. E o que ele diz sobre a montagem pode aplicar-se a este livro, e acrescentar-se ao nosso comentário das páginas 57 e 58: “A montagem é um dos aspectos mais emocionantes de fazer filmes. Nada há mais excitante do que ver uma fita começar a respirar; é como vermos crescer um filho nosso. O ritmo pode não estar ainda estabelecido, a sequência inteiramente definida. Mas nunca filmo uma segunda vez. Acredito que uma boa fita tem de ter defeitos. Tem de ter erros como a vida, como as pessoas. O mais importante é conseguir que o filme se torne uma coisa viva”. 13. Aproximação à posição de Jean Renoir a propósito de cinema; (2) Diz Jean Renoir, falando de cinema: “Todos os refinamentos técnicos me desencorajam. Perfeição fotográfica, écrans maiores, alta fidelidade de som, tudo isso torna possível aos medíocres a reprodução servil da natureza; e esse género de reprodução aborrece-me. O que me interessa é a interpretação da vida por um artista”.

14. Chamada de atenção para as “inúmeras variações de registo possibilitadas pela reprodução fotográfica e rotográfica”, segundo cecil beaton; Disse Cecil Beaton que não compreendia por que razão o fotógrafo não trabalhava em mais estreita colaboração com o gravador. 15. Relação entre a génese do livro lisboa e a montagem de “a paixão de joana d’arc” por carl dreyer; Quando Carl Dreyer, em Paris, em 1928, acabou a montagem de “A Paixão de Joana d’Arc”, os gerentes da companhia cinematográfica resolveram exibir a cópia final, perante um grupo de setenta a oitenta intelectuais, escolhidos especialmente para o efeito, e imparciais escritores, historiadores e directores de revistas de várias especialidades. O fim dessa exibição era descobrir cenas ou sequências capazes de criar dificuldades, levantar atritos ou faltar à verdade histórica, porque havia ainda tempo de fazer alterações antes de passar ao grande público.

(2) Dreyer (que conta esta história em Film, n.1), “os directores da companhia já não podiam ter dúvidas: a fita tinha de ser exibida com a forma que eu lhe dera.”


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Costa Martins, Victor Palla – Página 46, Lisboa: Círculo do Livro, 1956-1959

16. Crítica à desumanização do grafismo “abstracto” e à “experimentação”essencialmente formal, e reequacionamento do regresso a um “naturalismo mais documental”; Numa época em que um grafismo cada vez mais abstracto desumaniza a comunicação e em que a experimentação incide primordialmente sobre o formal, até mesmo na fotografia (seja esse formal, em dois polos, o dos Salons ou o dos creative methods americanos), apetece por vezes voltar ao naturalismo mais documental.

já hoje nos é difícil reconstituir o que se passou, e onde, como e por que lado começou a ilustração. Tudo justificava uma nova arquitectura gráfica. Não era necessário colher mais imagens, mas escolher, cortar e dispor elementos existentes, dando corpo a um “divertissement” visual que espelhasse o espírito e a forma do poema. A introdução de objectos reais, com a sua sombra projectada na página, acrescentaria à picante vivacidade pretendida. O que se publica é um de muitos ensaios e tentativas.

17. Da ilustração à obra gráfica: interacção entre fotografia e poesia (páginas 94-95, páginas 98 e 101 e páginas 116-117); O que aproximou estas duas imagens foi o excerto de Armindo Rodrigues. Na construção de um livro como este é impossível manter um processo de trabalho rígido; e se, na maior parte das vezes, a poesia veio ilustrar sequências gráficas existentes, não pouco frequentemente aconteceu dar-se o contrário, e dois ou três versos nos impressionarem a ponto de procurarmos seguir a sua sugestão e escolhermos entre as nossas fotografias as que a concretizassem melhor. Este é um exemplo muito claro desse facto; nalgumas outras páginas

18. O papel original da revista lilliput nas “justaposições” de fotografias (páginas 104-105); Foi a velha revista Lilliput que inaugurou na história da fotografia as “justaposições”, a mais elementar maneira de compor conjuntos de fotografias, forma binária que consiste no simples colocar lado a lado de duas cenas que qualquer parentesco (habitualmente formal) une, e cuja aproximação provoca efeitos trágicos ou pícaros. Nesses tempos heróicos e ingénuos a relação era acentuada por uma legenda que a sophistication de hoje consideraria insuportável.


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19. O “realismo poético” e a “ironia da realidade” da fotografia, na esteira de sonthonnax, seguido da “autenticidade” de doisneau, izis e brassaï (páginas 114-115); Perante estes documentos apetece-nos citar Sonthonnax: “Em toda a escrita simbólica cada sinal exprime duas coisas: o objecto representado e uma ideia abstracta. Toda a reunião de dois ou mais sinais representa uma ideia abstracta. No choque provocado por uma fotografia convenientemente realizada há o mesmo processus psicológico. O espe tador vê o objecto e outra coisa atrás do objecto que não é parte integrante dele e que, todavia, se impõe pela maneira como nos é mostrada. Isto ultrapassa a noção de “assunto” e nada tem a ver com o “símbolo”. No entanto, sem a fotografia, pela simples visão do objecto, não se produziria isto. Esta ambiguidade pode também ser realizada, pela fotografia no domínio do sentimento. Está, talvez, na origem de efeitos dificilmente concebíveis antes dela: o realismo poético e a ironia da realidade, em particular. 20. Da cumplicidade do “acaso” com o resultado compositivo:fotografia, poesia e cinema; A perfeita composição de cada uma destas fotografias, em que tudo está colocado onde é preciso, cientado o leitor desprevenido. O livro aí está. Chama-se “Lisboa”, mas é o retrato de homens, mulheres, crianças que nela habitam, traçado por dois homens que nela nasceram e vivem. Visão parcial? Evidentemente. Incompleta, tendenciosa? Pois claro. Não tivemos a ambição de fazer um documentário total. Um soneto pode dizer mais do que um poema épico, um hai-kai mais do que um soneto; um romance passado em Dublin num só dia pode explicar melhor o homem do que uma História Universal. O documento em si pouco interessava; para isso ficam os jornais, as revistas, os arquivos. Deixem-nos terminar com uma última citação, esta de Irving Penn, que nunca acharemos demais repetir: “... O fotógrafo moderno não pensa na fotografia como uma forma artística, nem na sua prova final como um objecto de arte. Mas, de vez em quando, neste meio de criação como em todos os meios de criação, alguns de entre os que o praticam são artistas. Na fotografia moderna tudo o que é arte é-o como subproduto dum trabalho sério e útil, feito com honestidade e amor.” O objecto, a cena, têm um número infinito de aspectos; exprimindo-o por um só deles, o fotógrafo termina desse modo a pe quisa das aparências que movimenta o espectador na vida prática. Mas para conseguir essa expressão o fotógrafo tem ainda de dominar numerosos facto-

res que estão no polo oposto do acaso: a escolha de máquina, do filme, de exposição; a revelação e impressão; o corte. E, sobretudo, a escolha do famoso “momento decisivo”, de que já falámos no início, o reconhecimento de que tudo está onde e como deve. O que não é obra do acaso; Cartier Bresson chega a dizer: “O viver requer tempo, as raízes crescem lentamente; por isso, o momento decisivo pode ser o produto final de longa experiência.” Isto arruma uma parte da questão. Mas há mais: aceitemos a parte do acaso, e lembremo-nos do acaso controlado dos cientistas, instrumento de trabalho legítimo e valioso. Além de tudo isto não há arte em que o acaso não tenha um papel fundamental. [...] Porque a conclusão é sempre a mesma: o resultado é que conta. Ninguém se lembrará de ir regatear ao poeta a parte que o acaso teve na felicidade das suas rimas, ou ao cineas ta tudo o que de acidental tenha acontecido durante a filmagem e ele aproveitado. 21. Posicionamento face a escolas e reportagens de referência: da nova escola naturalista (documental), e da candid camera, a bert hardy, passando pela “aldeia espanhola” de eugene smith e pela “naked city” de weegee, numa aproximação do fotógrafo ao realizador de cinema (página 142); Desta página em diante só aparecerão fotografias conseguidas de noite, dentro ou fora de casa, mas sempre à luz ambiente, aproveitando as situações sem qualquer espécie de ensaio ou encenação. Se acentuamos estes pontos é porque eles não são tão incontroversos como a nova escola naturalista, documental, parece indicar. É costume, por exemplo, catalogar Eugene Smith, o Smith da “Aldeia Espanhola”, como um especialista do 35mm e da luz ambiente. A realidade é que ele próprio tem uma opinião muito diversa: “... sinto que não pertenço realmente a nenhuma escola de fotografia. O meu equipamento inclue tudo, desde as Leicas às máquinas de estúdio. Usarei flash ou tudo o que necessário for para conseguir determinada fotografia que me interessa [...] Quando tal é preciso, rearranjo os elementos duma situação da maneira que julgo mais correspondente à verdade , fotogràficamente falando; mas não tenho o direito de desviar-me do espírito da verdade.


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... Corre, olhar, em roda! O que te intimida? A vida? S贸 toda Pode amar-se, a vida. Alberto de Serpa, RUA


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Para além dos já citados no “Índice”, como Brassaï (autor de Paris de Nuit, com Paul Morand em 1933), Weegee (e a sua Naked City de 1945), de Robert Doisneau e de Henri Cartier-Bresson, e que constituem influências assumidas por Victor Palla e Costa Martins, destacam-se ainda outras referências de ordem conjuntural, como o impressionante livro de William Klein sobre a cidade de Nova Iorque (Life is good and good for you in New York) e o não menos fulgurante Love on the left bank de Ed Van der Elsken, ambos editados em 1956, data de arranque do projecto de Victor Palla e Costa Martins. Les Américains de Robert Frank, com a sua visão deceptiva da sociedade americana, seria um primeiro álbum publicado em Paris, em 1958, e só um ano depois na América, dada a dificuldade em encontrar um editor que o perfilhasse, à semelhança do que acontecera em 1956 com o livro de Klein. Mas não esquecemos a pista pioneira de António Sena, que filia o livro-exposição dedicado a Lisboa no emblemático livro-exposição que Edward Steichen realizou para o Museum of Modern Art (MOMA) de Nova Iorque em 1955. Sabemos por António Sena, na sua incontornável História da Imagem Fotográfica em Portugal, que a exposição The Family of Man (em português, A Família do Homem), organizada em 1955 pelo fotógrafo Edward Steichen enquanto director do Departamento de Fotografia do MOMA de Nova Iorque, não chegou a vir a Portugal, mas o seu convite-programa foi publicado na revista Fotografia ,em Março de 1954 e o respectivo filme-documentário divulgado pela embaixada americana nalguns clubes. Já o livro-catálogo teve alguma projecção, merecendo por parte do Boletim do Grupo Câmara um comentário depreciativo e, por isso mesmo, elucidativo das opções estéticas vigentes no domínio

da fotografia, ao defender que nele se abordava «o valor humano em prejuízo do artístico». Esta pista de António Sena motivou a concentração da pesquisa no Arquivo do MOMA, onde se encontram nada menos do que cinco caixas repletas de documentação sobre a itinerância de The Family of Man, durante quatro anos, pelos vários continentes. 503 fotografias por 273 fotógrafos de 68 países (como Ed Van der Elsken), seleccionadas por Edward Steichen com a assistência do fotógrafo Wayne Miller, que como já vimos é também citado por Victor Palla e Costa Martins no “Índice” de Lisboa. E são bem visíveis os vários pontos de contacto entre o projecto editorial e expositivo de Steichen em 1955 e o de Victor Palla/ Costa Martins, em 195659. Desde logo na montagem dinâmica das imagens no espaço expositivo, variadas no formato e na disposição, criando um percurso desnivelado; até à articulação entre as fotografias e os trechos literários na paginação em livro. O “poema gráfico” de Victor Palla e Costa Martins, termo empregue pelos próprios autores pela composição poética das imagens, constitui, também ele no seu conjunto um excelente reflexo de uma viragem paradigmática no entendimento moderno, mais humanista, da Cidade. É uma exortação visual, também de imaginários, apoiada numa compreensão mais sensível das necessidades sociais que os projectos urbanísticos devem contemplar. Na sua dupla vertente expositiva e editorial, é um projecto que renova a visão da cidade de Lisboa através de imagens, tanto fotográficas quanto poéticas.


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Margarida Medeiros


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// Revisitar Olho de vidro – uma história da fotografia, um breve comentário.

O texto que se segue tem origem na comunicação oral realizada no contexto da palestra que teve por mote a série de dois episódios para a rtp, realizada em 1982 por António Sena e Margarida Gil, sobre a Fotografia e a sua História. O interesse histórico deste filme, sendo António Sena, à época, e ainda hoje, um pioneiro ímpar na historiografia portuguesa da fotografia, é múltiplo e variado, não apenas pelo enfoque didáctico que constitui, mas, sobretudo, pela forma como invent ria as diferentes existências da fotografia no seio da cultura contemporânea. De objecto privado a público, de instigadora de pensamentos nostálgicos e meio de registo objectivo e histórico, de plataforma artística incontornável do século XX, todo o potencial com que a fotografia se desenvolveu e embrenhou na cultura ocidental, desde a sua invenção, está aqui inventariado. Centrado, inevitavelmente, pelo seu formato didáctico, nos pontos de ancoragem histórica consagrados em obras como a de Beaumont Newhall ou Helmut Gernsheim, este documentário preocupa-se em real çar a dimensão estética da fotografia e a forma como essa estética envolve, de forma tantalizante, os mais recônditos gestos do quotidiano. Um dos momentos mais interessantes do filme, e que remetem para toda a história da ontologia da fotografia, de Oliver Hendell Holmes a Barthes, é o momento em que, na abordagem dos anos 50, os realizadores tomam como exemplo o livro de Victor Palla e Costa Martins, Lisboa, cidade triste e alegre, na última parte do documentário. Depois de apresentada a obra, que o próprio António Sena redescobriu, na sua busca de uma história da fotografia portuguesa, em particular do período dos anos 50. Os realizadores, a sua equipa de filmagem e os próprios autores do livro deslocam-se a Alfama, um dos bairros de Lisboa onde tinha sido realizada parte das imagens que constituem a obra, e vão à procura das pessoas que ali se encontram fotografadas.


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É toda uma algazarra que se gera e filma, motivadapelo encontro com a imagem de si que estas pessoas reencontram trinta anos depois. No pequeno grupo de pessoas que se junta em torno da equipa, de livro aberto na mão, algumas pessoas vão identificando os personagens ainda vivos. Mas o centro de todo o episódio é o momento em que uma senhora vai a casa buscar o vestido com o qual fora fotografada décadas antes, abrindo-se um plano em que vestido,“real”, e fotografia no livro, da rapariga envergando, com ar sonhador, o mesmo vestido, são mostrados lado a lado. Esta relação autentificadora da fotografia com a “vida real”, de contiguidade, foi sempre uma das suas propriedades mais idiossincráticas, que levou Walter Benjamin a reflectir sobre as suas consequências no modo (a) crítico com que uma fotografia é recebida. Para Benjamin, tudo mudara com as sucessivas modificações técnicas introduzidas na aparelhagem fotográfica, que permitiam imagens cada vez mais rápidas, ou seja, que permitiram introduzir o “instantâneo”, roubando à fotografia aquela aura de distância que se obtinha na contemplação das antigas fotografias, nas quais o tempo da produção era uma das suas marcas constitutivas. Esta realidade foi, para Benjamin, responsável pela “degenerescência” da fotografia, já que se torna num objecto “transparente”, onde é impossível demorar o olhar, onde a realidade do presente se confunde com a sua imagem (1). Ora é esta vertigem realista da fotografia, esta “transparência”, que leva a esquecer que se trata apenas de um pedaço de papel, ou de uma página de um livro, que é bem documentada, “ao vivo”, em Olho de vidro – uma história da fotografia. «O referente adere», dizia Barthes, ou seja, a imagem fotográfica apela à emoção provocada pela retrospecção do real que se acredita sempre ter existido como está representado. A imagem convoca a percepção, mesmo que retrospectiva, da experiência real e é essa condição inabalável da fotografia, mesmo que digital, que permite que esta se tenha insinuado como uma ferramenta básica da comunicação moderna, bem como da arte contemporânea. Assim, ao longo do documentário, deambula-se pela história da fotografia, como pela presença da mesma nos sítios mais perto ou mais longe, desde as imagens da necrofilia no jornal às fotografias de casamento, desde as imagens dos grandes mestres às colocadas nas campas do cemitério dos animais no Jardim Zoológico. Fotograma do filme Olho de vidro – uma história da fotografia António Sena (Toé) e Margarida Gil, 1982/Produção RTP, Lisboa


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Assim, ao longo do documentário, deambula-se pela história da fotografia, como pela presença da mesma nos sítios mais perto ou mais longe, desde as imagens da necrofilia no jornal às fotografias de casamento, desde as imagens dos grandes mestres às colocadas nas campas do cemitério dos animais no Jardim Zoológico. Mas este deambular não é realizado de forma anódina ou compilativa. Para além da voz off, que nos vai sugerindo relações, histórias, citações, cronologias, a banda sonora tem um papel fundamental na transmissão das propriedades sensoriais da fotografia. Medium quase sem textura, plano e por vezes mesmo transparente, o paradoxo da fotografia está, também, na capacidade para convocar outros sentidos, como o tacto, o odor ou o som, na medida em que convoca sempre, inevitavelmente, os processos subjectivos da memória, quer esta seja privada ou colectiva. A banda sonora, música ligeira intercalada também com outra mais clássica, tem também um papel fundamental, indicando de forma persistente uma trajectória de leitura para as fotografias apresentadas. Pequenos desvios lúdicos, como o texto de Alice que surge das imagens de Lewis Carroll, sequências em que canções nos remetem para a imagem que passa diante dos olhos do espectador, canção pop americana e inglesa, música portuguesa , toda esta constelação sonora contribui para reforçar uma leitura simultaneamente eufórica e disfórica da fotografia. Eufórica, porque a articulação permanente entre a música, a voz off e as imagens que vão deslizando perante o espectador, parece ter por objectivo sublinhar a tensão emocional provocada pela estética fotográfica: uma estética que se baseia na possibilidade de rever o visto (mesmo se nunca antes visto), que vive da possibilidade de olhar fixamente para uma realidade que já passou, ou não se viu suficientemente, ou nunca se pôde observar directamente; eufórica porque revela ‘a realidade’ diante dos nossos olhos, por obra de um movimento mecânico; mas a perspectiva é também eufórica porque constantemente nos revela a fotografia, como uma forma de celebração dos heróis e dos grandes acontecimentos do século XX: a resistência, as lutas sociais, a Grande Depressão e a Farm Security Administration. Mas a leitura que nos fornece é também disfórica, não relativamente à fotografia em si mesmo,

face à qual o discurso é sempre entusiasta e entusiasmante; mas porque nos conduz numa deriva, consequência inevitável da própria ontologia da fotografia, pela fotografia a partir de sequências de imagens, orientadas por canções (românticas), que promovem a percepção da mesma como objecto nostálgico, produto de uma cultura centrada na rememoração do passado como parte essencial da sua construção identitária. Este olhar da fotografia para trás é apresentado no filme de forma quase insustentável. É pela filmagem das imagens fixas, numa sequência não arbitrária nem aleatória, sem sequer dar oportunidade ao espectador de nelas se poder fixar mais alguns instantes do que os permitidos pela montagem do filme, que aquele é mobilizado para esse sentimento, e pode, no final, concluir da eficácia do medium enquanto forma de memento mori, como sublinhava Susan Sontag. Um dos aspectos mais fascinantes deste filme é a forma como utiliza, de forma ostensivamente manipulativa o cinema para estabelecer uma contextualização de algumas épocas da história da fotografia. Enquanto a fotografia vai sendo apresentada por épocas, preocupações, grandes mestres ou estilos, o seu contexto histórico é-nos induzido por pequenos inserts cinematográficos; assim, em certos momentos da narrativa histórica da fotografia, o real social, a conjuntura política ou histórica é-nos fornecida por outro media, ao qual, supostamente, neste contexto, se atribui o papel de apresentador de uma realidade objectiva, que estaria para lá da objectiva fotográfica e que serviria, assim, de fundamento apodíctico do discurso elaborado em voz off ao longo da série.

// A imagem convoca a percepção, mesmo que retrospectiva, da experiência real e é essa condição inabalável da fotografia.

(1) Walter Benjamin, “Pequena História da Fotografia”, in A Modernidade (Lisboa, Assírio & Alvim, 2006, trad. de João Barrento).


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O que cria um paradoxo, extremamente interessante e responsável pelo sentimento de candura que hoje este documentário desperta: enquanto a imagem fotográfica é descrita em toda a sua complexidade, variedade de géneros e transversalidade cultural, o cinema aparece, nas frestas “históricas” da narrativa, como algo “sem código”, como uma linguagem meramente do real, passível de promover no espectador um efeito de verosimilhança relativamente à narrativa histórica proposta. Se o cinema reverte sobre todo o conjunto do filme esse “efeito de real”, é porque em grande parte a narrativa histórica em torno da fotografia nos é dada como, apesar do aviso inicial, de que se trata de “uma” história da fotografia, numa perspectiva diacrónica, desde os seus primórdios (Niépce, Daguerre, Talbot) até ao tempo em que o filme foi feito e se encaixa, portanto, no modelo do “era uma vez”, inevitável a qualquer “história da fotografia”. Assim, a perspectiva temporal que é realizada no filme é entrecortada por esses breves inserts de real fornecidos pelo hiperrealismo do cinema, com a sua dimensão temporal, a sua linguagem articulada no tempo. Essa relação estabelecida é particularmente incisiva na abordagem da fotografia do género fotojornalístico, onde às imagens de grandes repórteres se associam pequenos excertos fílmi cos dos grandes acontecimentos do meio do século. Mas curiosamente, esta técnica narrativa de que se servem ludicamente os realizadores exibe de forma muito clara a diferença entre a fotografia e o cinema. Barthes denunciara já o paradoxo manifesto na fotografia enquanto «mensagem sem código»(2): a forma como esta, apresentando-se como tal, esconde frequentemente o seu contrário: o código, isto é, a truncagem, a ideologia, a pose. Mas nada pode desmantelar completamente o efeito brutal exercido pela fotografia, mesmo que, sabendo isso tudo, procuremos distanciar-nos desse efeito “traumático”, obsceno, imposto pela imediatez com que a imagem precipita quem a olha no poço fantasmático designado por “real”. Com o cinema é outra história. Entre o documento dos irmãos Lumi ére e a ficção evasora de Hollywood, o cinema envolve o espectador num tempo simulado (mesmo que coincida com o tempo “real”), e com ele sabemos sempre “que estamos no cinema”. Não é tão brutal, embora possa ser mais alucinante. Com uma doçura que é negada à fotografia, a introdução destes breves excertos reforça a associação livre do espectador da História da Fo-

tografia de António Sena e Margarida Gil, devido à própria estrutura da montagem, no sentido em que mobiliza a sua percepção dos mesmos filmes como o pano de fundo de “real” onde se inscreve a narrativa fotográfica, e que a justifica. Um efeito magistral, de perfeitos ilusionistas. Mas, finalmente, o que este filme sublinha – numa espécie de demonstração prática das mais determinantes teses sobre a ontologia fotográfica, e que marcaram a história da sua teoria até essa data (Benjamin, Kracau er, Barthes, Sontag) – é a forma como a fotografia convoca, mais do que qualquer outro medium, o inconsciente, colocando assim o sujeito face a face com as suas memórias desejadas mas também indesejadas, como a memória/consciência do fluir do Tempo, coadjuvada pelos materiais que envolvem toda a narrativa do documentário. É possível que este documentário seja hoje visto por gerações mais novas como um objecto “datado”. Mas essa, para além de outras, é uma das riquezas históricas deste filme, feito “no seu tempo”, colocando as questões que se colocavam “no seu tempo” e que são ainda, em grande parte, as mesmas – a aceleração dos processos, com a chegada do digital, apenas vem acentuar alguns desses aspectos mais agonísticos convocados pela fotografia desde o seu início. O seu desenho epocal (realizado com um modo de produção que seria hoje impensável em termos de direitos de banda sonora) é uma das suas mais-valias, na medida em que permite situar o documentário no tempo através de elementos que não se reportam a um “envelhecimento” do conteúdo mas que revelam as estruturas formais com as quais o desenho deste documentário procurava situá-lo no seu espaço discursivo: a necessidade, urgente, de divulgar a história da fotografia, a sua importância cultural e as suas referências fundamentais. No seu conjunto, visto a esta distância, é também um retrato de António Sena, e da militância com que procurou integrar a fotografia e a sua história na cultura portuguesa, procurando todos os meios de divulgação ao seu alcance.

(2) Cf. Roland Barthes, “Le Message Photographique”, in Communications, 1, 1961, reeditado em L’Obvious et l’Obtus (Paris, Folio, 2001).


Fotograma do filme Olho de vidro – uma história da fotografia


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Três documentos que exaltam relíquias portuguesas, trabalhos que tornam eternas obras como, por exemplo, um livro quase mitológico do design – Lisboa, cidade triste e alegre, de Vitor Palla e Costa Martins. Retirados do livro AG Prata, Reflexões Periódicas Sobre Fotografia, editado por Susana Lourenço Marques, José Carneiro e Vítor Almeida, estes conjunto de letras refletem a prática fotográfica em Portugal e o seu cruzar com as artes plásticas – trabalho de excelência da autora Helena Almeida. Helena Almeida recorre a conjunto de imagens fotográficas que aparentam documentar momentos sequenciais de uma ação que, ao contrario, dos outros textos que apresenta um caráter mais teatral, mas que não me deixam de fascinar igualmente. Com o texto de Margarida Medeiros assistimos a uma afirmação da fotografia como um médium que convoca, mais do que qualquer outro, o inconsciente da mente humana, conseguindo criar uma certa nostalgia ou mesmo melancolia no seu receptor, devido ao facto de colocar “o sujeito face a face com as suas memórias desejadas mas também indesejadas” [1] A fotografia é tida, assim como no livro de Vitor Palla e Costa Martins, como fonte de saudade, sublinhando o inconsciente e caracterizada como um recurso que capta a vida real com vertigens realistas afirmando o momento na sua passagem temporal.

(1) Medeiros, Margarida _ Revisitar Olho de vidro - uma história da fotografia, um breve comentário


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