Arquivo Viveka
De
Anchieta aosnovos
tempos.
LÁ VAI O BONDE PARA A EUROPA DO LESTE DE SP
PENHA, MOOCA, TATUAPÉ E SÃO MIGUEL
2 Caderno Especial
D i á r i o d o C o m é rc i o
Diretor–presidente
Guilherme Afif Domingos Diretor-responsável
João de Scantimburgo De Anchieta aosnovos
Diretor-executivo
Moisés Rabinovici
tempos.
LÁ VAI O BONDE PARA A EUROPA DO LESTE DE SP
PENHA, MOOCA, TATUAPÉ E SÃO MIGUEL
CADERNOS
De Anchieta Aos Novos Tempos VOLUME IV:
Lá vai o bonde para a Europa do Leste de SP
Projeto Gráfico e Direção de Arte
Gerente de Operações
Michaella Pivetti
José Gonçalves de Faria Filho
Capa
Tratamento de Imagens
Michaella Pivetti e Moisés Rabinovici
Lair Saurim Marim Joaquim Carlos Negreiros
Edição
José Guilherme Rodrigues Ferreira Luciana Fleury Lygia Rebello Textos
Armando Serra Negra Denise Ramiro Lúcia Helena de Camargo
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Pelos caminhos do Leste Pelo antigo Caminho da Penha, o Diário do Comércio chega agora ao 4º capítulo da sua série De Anchieta aos Novos Tempos – a Zona Leste de SP. Caminho lúgubre, margeado de cruzes pintadas de piche sobre túmulos de quem não o sobreviveu. (Hoje ele é a defumada avenida Celso Garcia, pontilhada de postes. Cruzes!) Caminho de mistérios, via-sacra, eleito por Nossa Senhora da Penha de França para seu perpétuo altar. (E assim nasceu a Penha). Caminho da Estrada Imperial do Rio de Janeiro, com trânsito político e das tropas de burros dos primeiros empreendedores paulistas. (Antes de proclamar a independência do Brasil, o príncipe D. Pedro fez escala de uma noite na freguesia da Penha). Caminho de imigrantes: seguiram-se ao padre Anchieta, em 1560, mais de três milhões de portugueses, italianos, espanhóis, lituanos, húngaros... (É a nossa Europa do leste de SP – não é, belo?). Caminho da Mooca – e das indústrias, do sindicalismo, da pizza e do panetone. Caminho do Tatuapé – e das vinhas, das tecelagens e de times de futebol, como o Corinthians. Caminho de São Miguel Paulista – e da tribo dos índios guaianazes que defendeu São Paulo, das olarias e da seda artificial produzida pela Cia. Nitro Química Brasileira. Caminhos De Anchieta aos Novos Tempos, Zona Leste. MOISÉS
Realização
Apoio
Patrocínio
RABINOVICI
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Caderno Especial 3
A caminho do leste Vista da Igreja da Penha por Thomas Ender/1817
Nos idos de 1817, a melhor vista do conjunto de São Paulo tinha-se do alto da igreja da Penha, então uma pequena capela distante 2 milhas da cidade
Texto de Armando Serra Negra
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Agliberto Lima/AE
No trajeto seguido pela atual Avenida Celso Garcia, trilhava-se o caminho da Penha, um dos mais movimentados – devido à devoção dos paulistanos à Nossa Senhora da Penha
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Caderno Especial 5
A santa e as cruzes do caminho do Rio Houve tempo em que os caminhos da Província de São Paulo eram margeados por grande número de capelinhas e cruzes – as “santas cruzes” – lembrando os viajantes perecidos à beira da estrada. Realidade ou lenda, o que importa é que esses rústicos, e na maioria pequenos, monumentos funerários foram alvo de devoção das pessoas, que jamais passavam por eles sem benzer-se com o sinal da cruz, depois de entoada uma prece em louvor da alma que ali descansava. E de todos esses oratórios populares, mais poderosos eram os que se sobrepunham aos cadáveres realmente enterrados no lugar. Nessas santas cruzes pintadas de piche para a conservação (o que lhes dava uma aparência ainda mais lúgubre), o povo costumava se reunir em oração, depositando em sua base toda a espécie de exvotos, os símbolos das graças alcançadas pela intermediação, no além, daqueles que ali haviam encontrado o repouso eterno. Os exvotos são hoje objeto de colecionismo para os antiqüários, compondo-se de pés, mãos, cabeças e outras partes do corpo – as partes que estariam doentes e foram curadas - esculpidas em madeira. Sob tal aspecto, entre os caminhos antigos de São Paulo o Caminho da Penha era o que mais chamava a atenção. Sua enorme importância para a cidade remonta ao século XVI, quando era a porta de entrada para a vila dos que vinham de uma longa e difícil viagem, desde o porto fluminense. Era na Penha, portanto, que findava a Estrada Real do Rio de Janeiro. E o bairro do Brás, parada de descanso de quem vinha da Penha, antes de atingir a Várzea do Carmo (Parque D. Pedro I), era considerado um dos mais aprazíveis recantos do planalto, com suas belas chácaras e residências. Uma delas, a do Ferrão, tornou-se célebre por ser de Domitila do Castro e Canto – a Marquesa de Santos - na época em que era casada com o MajorBrigadeiro Rafael Tobias de Aguiar. À Penha foi atribuído esse nome, em virtude de um acontecimento sobrenatural narrado em lenda. Conta-se que um viajante, parando no caminho do Rio para dormir, colocou a santa que trazia ao seu lado (carregar imagens religiosas nas viagens era um costume comum à época, na crença de trazerem boa sorte). Mas quando acordou no dia seguinte, deu pelo seu sumiço e resolveu voltar no caminho para ver se a encontrava. Encontrando-a, seguiu viagem até o anoitecer e parou para dormir. Ao acordar, a santa tinha sumido novamente. O Brás, parada de descanso de quem Foi encontrá-la no mesmo vinha da Penha, era repleto de chácaras – como a da Marquesa de Santos lugar em que a havia resgata-
do no dia anterior. Entendendo que a imagem de Nossa Senhora “queria” permanecer naquele lugar, construiu uma pequena gruta (penha, no português) para ela, dando origem à localidade que passou a ser chamada de Nossa Senhora da Penha de França, ou de Lourdes, uma vez que o viajante era um andarilho francês, cujo nome ficou esquecido no tempo. A devoção a tal imagem tornou-se tão poderosa na realização de pedidos e milagres, que vez por outra ela era transportada para os diferentes locais da província, onde porventura estivessem necessitando de seu auxílio milagroso. Isso tornou a via de acesso para o local numa das mais movimentadas. Tanto que, em 1864, o Governo da Província começou a construção de uma estrada, que se iniciava na Ladeira do Carmo (Rua do Brás, Intendência e, depois, Rangel Pestana) até alcançar o Caminho da Penha (Avenida Celso Garcia), atravessando os córregos da Mooca (fazedor de casas) e do Tatuapé (caminho do tatú). Este último, agora canalizado sob a rua de mesmo nome, corria pelo então Sítio do Piquerí (peixe pequeno). Como era costume, essa estrada continuou cheia de capelinhas e santas cruzes, sendo estas as mais visitadas em relação às outras da cidade. Isso significava desenvolvimento e, em 1872 – Brás e Penha contando juntos mais de 33 mil habitantes – foi inaugurada a Companhia Carris de Ferro de São Paulo, responsável pela primeira linha de bondes de tração animal. E, em 1901, a empresa canadenReprodução se The Light and Power obteve o monopólio da circulação viária da cidade, brindando a Penha com uma nova linha de bondes elétricos. Se de uma lado a eletricidade auxiliou o trânsito de comerciantes e romeiros da Zona Leste, de outro aumentou bastante o número de óbitos por acidente: pessoas que eram atropeladas pelos bondes, ou dele caiam enquanto viajavam feito pingentes. Com isso, o número de capelinhas e santas cruzes foi aumentando mais e mais... e a Penha consolidou sua vocação de “bairro dos milagres”.
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Numa terça-feira, 31 de março de 1908, um passageiro especial havia tomado um desses bondes, do centro ao Belenzinho, descendo em frente ao Marco da Meia Légua, um indicativo da distância percorrida, inaugurado anos antes. Logo Fotos: Jonne Roriz/AE as crianças se achegaram dele, pedindo santinhos ao querido e popular padre João Batista Schaumberger. Sucessor do venerando padre Antônio Benedito Camargo, vigário da região, também conversava com os demais moradores, como era de costume. Dali, Os ex-votos eram uma embora pudesse concluir maneira de agradecer: o trajeto até a Penha, onde representam estava sua paróquia, de a parte do corpo bonde, sempre preferia ir que estava caminhando, meditando doente e foi curada. sobre os evangelhos. Eram Eis que um fascínora depositados nas igrejas da região, de nome Guasdos santos ca, bebendo numa tavera que se atribuía a benção na com seus sequazes, vê o padre e resolve meterlhe um tiro sem mais nem menos. Segue-o e, atualmente onde se acha a Rua Antônio de Moraes Barros, com Rua São Jorge, joga-lhe o cavalo em cima, desferindo três tiros, sendo um mortal. O enterro do padre foi realizado no dia seguinte, no Cemitério da Penha, debaixo de um forte temporal. Não tardou muito para que, no local onde o padre tombara morto aparecesse uma tosca cruz de madeira pintada de preto, diariamente vista com velas acesas ao seu redor, ardendo dia e noite. Semanalmente, devotos trocavam o pano de linho branco que entrelaçavase no braço da cruz. A “Santa Cruz do Padre João”, entre todas as que existiram ao longo do Caminho da Penha, tornou-se a mais visitada pelos fiéis. Depois de transladada do lugar original uma vez, em 1938, acabou do outro lado da Avenida Celso Garcia anos mais tarde, na esquina da Rua Síria, onde manteve-se firme ao lado do Pronto Socorro do Tatuapé, até o ano de 1970. Depois disso, desapareceu sem deixar vestígios... Mas a pequena imagem de Nossa Senhora da Penha de França ainda pode ser louvada na igreja matriz do bairro da Penha. Sem medo; afinal hoje há metrô!
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Acervo Viveka
Bonde da Penha em 1963. O início das operações deste tipo de transporte ocorreu em 1901 e foi marcado por diversos acidentes: quedas e atropelamentos
A fama das curas atribuídas a N.S. da Penha fez com que sua pequena capela se transformasse em uma imensa basílica
Newton Santos/Digna Imagem
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O VIAJANTE ENTENDEU ENTÃO, QUE A IMAGEM DE NOSSA SENHORA QUERIA PERMANECER NAQUELE LUGAR. CONSTRUIU UMA PEQUENA GRUTA PARA ABRIGÁ-LA, DANDO ORIGEM À LOCALIDADE QUE PASSOU A SER CHAMADA DE NOSSA SENHORA DA PENHA DE FRANÇA
Ruas cheias de história Na Penha, um dos marcos históricos da terra, com a célebre colina de onde se avistava a nascente vila paulistana, os nomes de algumas de suas ruas evidenciam uma motivação peculiar: Avenida Amador Bueno da Veiga: foi Capitão-Mór de São
Paulo, um grande defensor dos interesses da cidade. Rua Pe. Benedito Camargo: homenageia aquele
que foi durante meio século o vigário de sua Paróquia. Rua Pe. João: lembra seu sucessor João Batista
Schamberger, que morreu assassinado. Rua Dr. João Ribeiro da Silva: diz
respeito a um dos que subiram o Rio Tietê num pequeno barco a vapor, estabelecendo residência na Penha. do homem público que obteve do governo a construção de um ramal entre a estação de Guaiaúna e as proximidades onde se erguia sua mansão. Rua João Cesário: recorda o morador
das proximidades do lago.
Para saber mais: Retalhos da Velha São Paulo – Geraldo Sesso Jr. / OESP – Maltese, São Paulo, 1986. Toponímia e Antroponímia do Brasil. Coletânea de Estudos – Maria Vicentina de Paula do Amaral Dick / São Paulo, 1992
Arte sobre quadro de Anchieta, por Portinari, do acervo do Banco Itaú S.A.
Rua Cel. Rodovalho: patenteia a figura
NESSAS SANTAS CRUZES PINTADAS DE PICHE PARA A CONSERVAÇÃO (O QUE LHES DAVA UMA APARÊNCIA AINDA MAIS LÚGUBRE), O POVO COSTUMAVA SE REUNIR EM ORAÇÃO
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Jean-Baptiste Debret (1827)
Duas levas de tropeiros carregadas. Uma chega e outra parte pelo caminho que levava ao Rio de Janeiro. A Penha, como ponto de descanso, era parada obrigatória
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Penha William John Burchell/1827
As estradas que partiam de SP eram margeadas pelas “santas cruzes”, homenagens aos que morriam no caminho. A da Penha foi escolhida por uma santa
Texto de Lúcia Helena de Camargo
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Era só uma passagem. Mas uma santa ficou... Assim nasceu a Penha A Penha surgiu como uma passagem. A região ficava na rota para o Vale do Paraíba, Rio de Janeiro e Minas Gerais. O caminho era utilizado principalmente por aqueles que procuravam índios: os bandeirantes, com objetivo de escravizá-los, e os jesuítas, que queriam catequizá-los. A lenda do viajante francês – que levava uma imagem de Nossa Senhora que sempre voltava para um mesmo lugar, no alto de um morro, onde hoje é a Penha – explica o início do povoado e teve importante papel no desenvolvimento do bairro, com a crescente peregrinação de fiéis ao local em busca dos milagres atribuídos à santa, cuja imagem está abrigada na Basílica da Penha.
ra, que a ergueu no local da antiga capela. A matriz não apenas tornou-se o marco inicial da Penha, mas também ajudou a região a prosperar. O próprio padre, ao morrer, legou suas propriedades à igreja. Em 1684, a abertura de seu testamento revelou que ele deixara para a paróquia, além das terras que ficavam “pegadas ao ribeirão ari-Candivay”, atual Aricanduva, a casa em que morava, cinqüenta vacas, a quantia de quinhentos mil réis e doze índios “que não são senhores de toda a sua liberdade”. Existem diversas versões para a origem do nome da santa que o viajante francês levava. Uma delas diz que nasceu na França, como “Notre Dame de France”, próximo aos grandes montes, sendo chamada Nossa Senhora do Monte. Assim, no Brasil tornou-se Nossa Senhora da Penha. Segundo o dicionário, Penha significa “grande massa de rocha isolada e saliente”, “penhasco” ou “penedo”. Os devotos começaram a vir de São Paulo, de outras cidades e até de outros Estados. E não apenas rezavam na igreja, mas também, a exemplo do padre Jacinto, legavam parte de seus bens a Nossa Senhora da Penha de França. O padre assinava recibos das doações recebidas. Com base neles, pode-se concluir que a igreja não tinha problemas financeiros na época. Entre os que procuravam índios para gerar mão-de-obra escrava, destaca-se a atuação do bandeirante seiscentista Domingos Leme, possuidor de sesmarias recebidas, em 1643, do capitão-mor Francisco da Fonseca Falcão. Outro desbravador radicado na região foi Amador Bueno da Veiga, dono de muitas terras desde Guarulhos até a Penha, ao longo do Vale do Rio Tietê. Hoje, dá nome a uma avenida que corta o bairro. No dia 15 de setembro de 1796, a Penha foi elevada à categoria de freguesia, integrando regiões que atualmente formam os bairros Guaianases, São Miguel, Ermelino Matarazzo e Vila Matilde.
Em sua certidão de nascimento, o bairro tem 337 anos de idade. Data de fevereiro de 1667 a fundação da Igreja Nossa Senhora da Penha de França, construção que deu oficialmente início à região. O povoamento, porém, começou bem antes. As primeiras referências históricas são de 1532, quando se estabeleceram nos campos do Ururaí (hoje pertencente ao Tatuapé) os primeiros moradores, com posse de sesmarias. O historiador Sylvio Bomtempi, em seu livro Penha Histórica (editado pela Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, 2001) relata que em 1560 o padre José de Anchieta nomeou o local, então uma aldeia de índios catequizados, como São Miguel de Ururaí. Vinte anos mais tarde há registro de que aos religiosos foi cedida outra sesmaria. Segundo Maria Cândida Vergueiro Santarcangelo, no livro Penha de França 1668-1968, também a primeira igreja da Penha pode ter sido construída mais cedo do que a data oficial indica. “Muitos moradores deixavam a vontade expressa de serem sepultados na Igreja de Nossa Senhora da Penha de França, como era costume de outrora. Alguns testamentos datavam da primeira metade do século 17, o que faz supor que a capela tenha sido PADROEIRA DE SÃO PAULO erguida entre 1630 e 1650”. Curiosamente, permanece gravada no A devoção a Nossa Senhora da Penha de França continuava a pórtico de entrada da igreja a data levar paulistanos à igreja. E, em determinados períodos, era a pró1682. De acordo com Bomtempria imagem que era transportada. Como em 1768, quando um Newton Santos/Digna Imagem pi, essa inscrição foi feita na grande surto de varíola tomou São Paulo e a Câmara Municipal reforma de 1937. “Nessa interveio para levar a imagem à Sé com intuito de fortalecer as rezas época, não haviam docuque pediam o fim da doença. mentos que comproReconhecendo a importância da Nossa Senhora da Penha de Franvassem a verdadeira daça para a cidade, a Câmara encaminhou requerimento às autoridades ta de fundação”, explica. diocesanas elevando-a à padroeira da cidade de São Paulo. Em 1876, “Hoje se poderia corriocorreu a última ida da imagem para a Catedral. A partir dessa data, gir essa inexatidão”. A construção foi obra do paA igreja dedicada à N. S. da Penha: devoção fez com que a santa se tornasse padoeira de São Paulo dre Jacinto Nunes de Siquei-
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Miguel Dutra/ Acervo Museu Republicano de Itú
Newton Santos/Digna Imagem Fotos: Acervo Viveka
Registros da Igreja Nossa Senhora da Penha em épocas diversas: no séc.19, na aquarela de Miguel Dutra (acima); no século 17, no quadro de Adelaide Cavalcanti (centro) e na foto de 1908 (lado)
Arquitetura atual da Igreja Nossa Senhora da Penha. Bastante desfigurada de sua construção original, foi, em 1982, ameaçada de ser derrubada
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foram retomadas as peregrinações à Igreja da Penha. Os cortejos, que partiam do centro da cidade, chegavam ao bairro em maior número em 8 de setembro, quando se comemora a natividade da santa. Um episódio com o padre Jacinto contribuiu para que aumentasse ainda mais a devoção. Ele se salvou de um acidente no Ribeirão Aricanduva e o episódio ganhou proporções milagrosas. O propalado milagre levou à criação da sala de ex-votos, para acomodar as centenas de peças trazidas pelos fiéis em romaria, e acabou por conferir à Penha, em 1909, o título de santuário mariano, devido ao grande número de peregrinos que procurava a igreja. A Matriz foi elevada a Santuário Episcopal, passando a ser designada Santuário de Nossa Senhora da Penha de França e, em 1934, sofreu uma grande remodelação para abrigar mais fiéis. A Igreja Nossa Senhora Penha de França, já bastante descaracterizada de sua construção original, não mereceu tratamento como patrimônio histórico. Em 1982, foi inclusive ameaçada de ser derrubada, tamanho o estágio de deterioração em que se encontrava. Mas a comunidade interveio e a igreja foi mantida, passando por uma drástica reforma. Nessa época, já tinha perdido a condição de matriz para a Basílica Nossa Senhora da Penha de França, cuja pedra fundamental foi assentada em 1957. Localizada no número 199 da Rua Santo Afonso, a basílica fica a duas quadras da primeira igreja. Foi construída em razão do crescimento da comunidade e abriga a imagem original de Nossa Senhora, aquela que, segundo a lenda, teria escolhido o bairro como moradia definitiva. Edificação grandiosa, comporta 7 mil fiéis. O herdeiro espiritual do precursor padre Jacinto Nunes Siqueira é padre Carlos Calazans, paulistano de 68 anos, que serve na paróquia da Penha há três décadas. Ele atesta que, embora as romarias tenham cessado, a devoção se mantém, com os fiéis presentes às missas todos os domingos. Em 16 de junho de 1802, foi Newton Santos/Digna Imagem fundada a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, construída por escravos negros com dinheiro de esmolas, para que pudessem freqüentar uma igreja sem sofrer a segregação religiosa. Recémtrazidas da África, as levas negreiras causavam temor em muitas famílias, pois se dizia que os negros traziam consigo a varíola. Nas primeiras décaA Igreja das do século 18, as autoridades Nossa paulistanas conseguiram estabelecer um acordo Senhora do Rosário com os comerciantes de escravos: que os negros dos Homens ficariam em quarentena antes de entrar na ciPretos, dade. Esse período de espera era feito no Camide 1802, foi construída nho da Penha. Diante de sua importância para a por escravos região e da manutenção de sua estrutura de tainegros pa de pilão, a igreja foi tombada pelo Conselho com dinheiro de esmolas
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de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat), em 1982. As manifestações religiosas se mantiveram ao longo dos anos. Embora com menos entusiasmo do que no passado, o dia 8 de setembro é, todos os anos, comemorado na comunidade. Até meados de 1970, na Avenida Celso Garcia havia o desfile de carros que passavam apinhados de gente rumo ao Santuário de Nossa Senhora da Penha de França. Nos arredores da igreja eram armadas barracas de guloseimas. Os devotos compravam muitos santinhos e medalhas, levados depois para o vigário benzer. Mas ali também se instalavam jogadores profissionais, com roletas, vísporas e outros jogos da época. A festa da padroeira de 1967, quando o bairro completava 300 anos, foi particularmente luminosa. Na ocasião houve a inauguração da iluminação a mercúrio da Rua Santo Afonso, local da basílica, e da Praça Nossa Senhora da Penha, onde fica a igreja original. LIMITES E VIZINHANÇA
O bairro é limitado pelo Ribeirão Aricanduva, estendendo-se até São Miguel Paulista e, do outro lado, até Guarulhos. Essa proximidade foi a principal razão para a lei provincial de 1880, que anexava a Penha ao município de Guarulhos. A população não gostou e exigiu a reintegração a São Paulo, que ocorreu em maio de 1886. A partir da igreja, localizada no alto do outeiro, começaram a se traçar aquelas que são hoje as ruas mais movimentadas da Penha. A capela definiu as duas principais vias públicas do bairro. A rua de baixo, foi durante algum tempo chamada simplesmente de Rua, depois Rua Direita, Rua Campos Sales e hoje é a Avenida Penha de França. À frente, a Rua do Meio, que hoje é Comendador Cantinho. E a Rua de Cima é a atual João Ribeiro. O trajeto para se entrar ou atravessar o bairro continuava a ser feito pela Estrada da Penha – atuais avenidas Rangel Pestana e Celso Garcia. Durante muito tempo, essa rota serviu não apenas a fiéis, viajantes e sertanistas, mas também para a circulação de mercadorias e de comércio de animais. A privilegiada topografia da Penha teve parte importante na sua história e no desenvolvimento da economia. Com 1.500 metros de altitude, a Penha começou a ser procurada no início do século 20 por famílias endinheiradas em busca de ares mais saudáveis, recomendados pelos médicos para recuperação de doenças respiratórias. Alguns compravam chácaras na região e instalavam ali suas casas de veraneio, outros decidiram por se mudar para o local. Muitos trocaram suas mansões dos Campos Elíseos pela Penha. Uma das senhoras da aristocracia paulistana a migrar para a Penha foi Dona Carlota de Melo Azevedo, que possuía várias chácaras na região. E o primeiro telefone do bairro foi o instalado em sua residência. Também em razão de sua geografia, a Penha seria o local de pouso, em 1822, do então príncipe regente D. Pedro I, que vinha do Rio de Janeiro. Segundo o livro A capital da Solidão – Uma história de São Paulo das Origens a 1900, de Roberto Pompeu de Toledo (Editora Objetiva, 2003), ele deixou o Rio no dia 14 de agosto, parando com sua comitiva para pouso em várias cidades do
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Para abrigar um número crescente de fiéis, foi erigida a Basílica Nossa Senhora da Penha de França. A edificação grandiosa comporta 7 mil pessoas
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Itamar Miranda/AE
cia a população ali estabelecida. As antigas chácaras foram dando lugar a prédios e residências menores. A rapidez da expansão imobiliária é uma das explicações para a notória falta de áreas verdes do bairro. “Quase todas as árvores existentes estavam plantadas dentro das chácaras particulares. Os novos proprietários as derrubavam para aumentar a área vendável de seu empreendimento. Como não havia preocupação do poder público em fazer praNo início da década de 70 foi inaugurado o Teatro Martins Pena ças e parques, o bairro acabou ficando com escassa aérea verde”, explica o engenheiro José Donato Feola, estabelecido na região desde 1945. O começo dos anos 70 foi pródigo para a cultura no bairro. A Biblioteca Municipal Guilherme de Almeida, no largo do Rosário, EXPANSÃO COMERCIAL E IMOBILIÁRIA com acervo de 37.600 livros, foi construída após um abaixo-assiNos anos seguintes, a Penha teve grande desenvolvimento e foi nado que reuniu 50 mil assinaturas. Ainda em 1970, o bairro gainiciada uma expansão imobiliária, com prédios tomando o lugar nharia a Casa de Cultura da Penha e o Teatro Martins Pena. das antigas chácaras. O bairro residencial foi se transformando em Na década de 1980, as transformações ocorreram principalum centro comercial para Zona Leste da cidade, possuindo além mente na área imobiliária. O bairro começou a se verticalizar, com das já tradicionais lojas de rua, o Mercado Municipal, um shopping o surgimento de muitos prédios residenciais e comercias, além de center inaugurado em 1992 e muitos vendedores ambulantes, cuja condomínios fechados. A paisagem da Penha chegou modificada presença é motivo de eterna desavença com os comerciantes locais. aos anos de 1990. O outeiro, antes marco indiscutível na topograNas imediações da igreja, prosperaram desde cedo as lojas de artifia, começava a ser escondido pelos prédios. gos religiosos. A zona comercial circunscrevia-se à Rua da Penha Em 1992, a inauguração do Shopping Center Penha traria novo (atual Avenida Penha de França), Rua Dr. João Ribeiro e Praça 8 de fôlego à região. “O shopping foi uma das melhores coisas que aconSetembro. Depois de 1930, o comércio penhense incrementou-se teceram para a Penha: no local onde antes havia uma indústria metarapidamente, transformando o bairro em importante núcleo comerlúrgica poluente, agora temos um centro de compras que cuida dos cial, servindo não só à sede do distrito como às vilas satélites. arredores”, elogia Folco. O comércio e os serviços são as principais De 1940 a 1950, abriram as portas na Penha diversos grandes maatividades econômicas na região, que hoje conta com boa infra-esgazines como Rivo, Garbo, Ultralar, Singer, Eletro, Pernambucanas, trutura nas áreas de saúde e educação, com nove escolas estaduais e Riachuelo, entre outros. Grande parte das lojas existe até hoje. Muitas 13 particulares. Há dez postos de saúde, um hospital (Hospital Nosdiversificaram os negócios, vendendo de velas a prendedores de rousa Senhora da Penha, inaugurado em 25 de janeiro de 1954). Está pas, de móveis a chinelos de plásprevista para os próximos anos a inauguração do Campus Leste da Reprodução tico. Ao longo da Avenida Penha Universidade de São Paulo. de França, é notória a presença de O bairro tem atualmente 124.292 habitantes, de acordo com dados bazares de comércio popular, do censo de 2000 feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísprincipalmente aqueles em que os tica (IBGE). No entanto, a região perde, a cada ano, 0,93% de sua poartigos custam R$ 1,99. pulação. A causa do êxodo seria a busca por melhores oportunidades Paralelo ao aumento de estaem outras regiões e até em outras cidades. “Apesar das melhorias que belecimentos comerciais, crestentamos implementar, a Penha precisa de mais investimentos para conseguir manter a população jovem aqui”, defende o subprefeito Texto da lápide comemorativa que marcou a passagem do príncipe D. Pedro I pela Penha Luiz Barbosa de Araújo. Vale do Paraíba. “No décimo dia de viagem, 24 de agosto, chegaram ao arrabalde da Penha, de onde se tem uma vista de São Paulo, lá longe, com as pontas das torres das igrejas recortando-se contra o céu. Ali acamparam”. No dia seguinte, ele assistiu a uma missa na igreja matriz e só então seguiu viagem para São Paulo, onde duas semanas depois, no dia 7 de setembro, proclamaria a independência do Brasil, não muito longe dali, às margens do Riacho Ipiranga. Em 1886, foi a vez de D. Pedro II e da Imperatriz visitarem o bairro. Foram recepcionados pelas autoridades locais, pelo vigário da paróquia padre Antônio Benedito de Camargo, pelo Coronel Rodovalho e professores e alunos de escolas locais. Anos mais tarde, aconteceria mais do que a simples visita de um governante: a Penha chegou a funcionar como sede do governo paulista. Em julho de 1924, com a revolta tenentista, os rebeldes ocupam a cidade durante quase um mês, pedindo o fim do poder das oligarquias, reivindicando moralização do governo, voto secreto e independência do poder legislativo. O presidente de São Paulo (título do governador, na época), Carlos de Campos, refugiou-se na Penha e usou o posto policial no Largo do Rosário para despachar durante a revolução de 1924.
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Fotos: Acervo Viveka
DESTRUÍRAM ALGUMAS OBRAS DE ARQUITETURA ÍMPAR PARA FAZER ESTACIONAMENTOS NOS LOCAIS. É PRECISO AGORA PRESERVAR AS CONSTRUÇÕES HISTÓRICAS QUE RESTARAM”
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FRANCISCO FOLCO, DONO DA ESCOLA DE ARTES VIVEKA E GUARDIÃO DE IMAGENS HISTÓRICAS DO BAIRRO
Newton Santos/Digna Imagem
Marcos do bairro: o casarão de Proost Rodovalho, fundador da ACSP, e Dona Carlota de Melo Azevedo, proprietária de várias chácaras e do primeiro telefone da região
Inauguração do Shopping Center Penha trouxe novo fôlego para a região. Comércio e serviços são as principais atividades econômicas do bairro que reúne cerca de 124 mil habitantes
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Fotos: Newton Santos/Digna Imagem
Vitrine da Penha: o comércio O comércio é o principal motor da vida econômica na Penha atualmente. No passado, predominavam as lojas de velas e artigos religiosos. hoje conta com um total de 2.862 estabelecimentos de todos os tipos, que vendem de roupas finas a artigos de R$ 1,99. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), levantados no censo de 2000, o comércio lidera a lista daqueles que mais empregam na região, respondendo por 7.870 empregos efetivos. Assim como em grande parte dos centros urbanos do País, apenas os serviços oferecem número semelhante de postos de trabalho, com 7.831 empregados. A indústria vem em seguida: são 6.466 pessoas trabalhando nesse ramo. Uma das primeiras fábricas a se instalar na região foi a Nova Vulcão, empresa local há mais tempo cadastrada na Associação Comercial de São Paulo, associada há 70 anos. Fundada em 1924, com o nome de fábrica Vulcão, pelo alemão Carlos Müller na Rua das Palmeiras, três anos depois já precisou de uma sede maior e se mudou para a Rua Joaquim Marra, na Vila Matilde, onde funciona até hoje. Entre os diversos imigrantes empregados, estava Guilherme Borgiani, italiano que se revelou excelente vendedor e acabou sendo um dos responsáveis pelo crescimento do mercado no interior de São Paulo na década de 1940. Com base em Campinas, ele chegou a responder por 80% do total de vendas da empresa. Em 1954, Müller decidiu se desfazer dos negócios e Borgiani comprou a Vulcão. O ex-funcionário que passou a patrão diversificou a linha de produtos e estabeleceu novos conceitos. Em 1963, Guilherme transferiu a direção da fábrica para o filho Sérgio e o genro Alberto Giorgi, que a rebatizaram de Nova Vulcão. Ambos dirigiram juntos a empresa até 1995, ano em que morreu Giorgi. Desde então, sua mulher, Sônia Borgiani, assumiu o lugar do marido na fábrica. Nos anos 70, a Nova Vulcão fez clientela dentro do mercado industrial, investindo em desenvolvimento de produtos específicos e sob encomenda. A área se tornou a principal desde então,
O imigrante italiano Guilherme Borgiani passou de funcionário a dono da Nova Vulcão, uma das indústrias pioneiras do bairro, hoje sob comando de Sérgio e Sílvia (à dir.).
com a produção de tintas e vernizes especiais para máquinas industriais e agrícolas. A Nova Vulcão segue o modelo de administração familiar característico, mas se mantém atenta ao mercado. “Procuramos nos atualizar sempre, porque no nosso ramo as novidades aparecem a todo instante”, diz Sérgio Borgiani, hoje no cargo de presidente. “Nossa propaganda é boca a boca: sempre funcionou assim”, sustenta ele. “Fomos a primeira empresa nacional de tintas a ter a certificação ISO 9.000.” DONA MADALENA, ESPECIALISTA EM MEIAS
No mesmo ano em que era fundada a Vulcão, no centro da Penha nascia a tradicional loja Meias Penha. Munira Abrão Neme Feola comanda, hoje, o estabelecimento da família, aberto por seu pai, Chafic Abrão, em 1924, na Avenida Penha de França. Segundo a atual proprietária, “vem gente de outros bairros de São Paulo, de outras cidades e até do exterior” só para comprar com eles. Atualmente instalada na Rua João Ribeiro, 449, a loja levou para o novo endereço as características físicas da primeira. “A cara do lugar nunca mudou: foram mantidas a arquitetura e a disposição das mercadorias, e isso ajudou a manter a identidade”, avalia o engenheiro
Augusto Feola, filho de Munira. O sírio Abrão, morto há cinco anos, chegou ao Brasil em 1914, em pleno começo da Primeira Guerra Mundial, junto com outros imigrantes. Sua mulher, Madalena, comandava o atendimento e conhecia todos os clientes pelo nome. Apesar das dificuldades, Abrão nunca desistiu e os clientes se mantiveram fiéis. “Algumas mulheres mais idosas ainda chegam e perguntam por dona Madalena, a simpática senhora que entendia tudo de meias”, conta Alessandra Feola, filha de Munira. “Isso ocorre com freqüência... e minha mãe morreu há 14 anos”, completa Munira. CASAS, PRÉDIOS, SALÕES
O marido de Munira, José Donato Feola, é um penhense que ajudou a construir o bairro, literalmente. Nascido em Cordeirópolis, interior de São Paulo, formou-se em engenharia, mudou-se para a Penha em 1945, e começou a comandar obras. Em 1968, abriu seu próprio empreendimento. A Construtora Feola foi responsável por diversas obras no bairro e imediações, como a remodelação do balneário do Clube Esportivo da Penha, construção do prédio da Gazeta Penhense, do Fórum da Penha, o salão de festas Big House, entre outros. José Donato faz parte da associação Viva o Centro da Penha, ajudou
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Fotos: Newton Santos/Digna Imagem
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TUDO O QUE CONQUISTEI NA VIDA ESTÁ AQUI: MINHA MULHER, MEUS DOIS FILHOS, MEU PATRIMÔNIO; PRECISO ZELAR PELO LUGAR QUE CONTÉM TODA A MINHA HISTÓRIA.” JOSÉ
DONATO FEOLA, PROPRIETÁRIO DA CONSTRUTORA DE MESMO NOME, RESPONSÁVEL POR DIVERSAS OBRAS NA REGIÃO, E INTEGRANTE DA ASSOCIAÇÃO VIVA O CENTRO DA PENHA Fotos: Newton Santos/Digna Imagem
AQUI A GENTE CONHECE TODO MUNDO, É COMO NO INTERIOR: AS PESSOAS DE VEZ EM QUANDO FAZEM FOFOCA, MAS SE AJUDAM E SE QUEREM BEM.”
José Donato com o filho Gustavo (topo) e a esposa Munira (acima à dir.) formam uma família de empreendedores
a elaborar o projeto de construção da nova linha de trem para o bairro e participa das reuniões nas quais discute, junto com técnicos da subprefeitura, o Plano Diretor Regional. “Tudo o que conquistei na vida está aqui: minha mulher, meus dois filhos, meu patrimônio; preciso zelar pelo lugar que contém toda a minha história”, diz. Alguns dos prédios que Feola construiu, Marco Antônio Jorge vendeu. O dono da imobiliária Marco Antônio Imóveis, diz que não troca a Penha por nenhum outro lugar. “Aqui a gente conhece todo mundo, é como no interior: as pessoas de vez em quando fazem fofoca, mas se ajudam e se querem bem.” Ele conta que nos últimos cinco anos o negócio de imóveis tem ficado mais difícil. “os aluguéis baixaram, porque a oferta aumentou muito e o poder aquisitivo diminuiu”, analisa. Mas se diz confiante no futuro. “Tenho perseverança e sei que as coisas vão melhorar.” ESPORTE PREFERIDO: O TRABALHO
Tradição e bons produtos é o que oferece também Rubens Bunas, que abriu sua loja, Rubens Magazine, em janeiro de 1963, na Praça 8 de Setembro, centro da Penha. Na década de 1970, transferiu-se para o número 83 da Rua Gabriela Mistral, e passou a vender, em vez de roupas em geral,
MARCO ANTÔNIO JORGE, DONO DE IMOBILIÁRIA TRADICIONAL DO BAIRRO
trajes e artigos esportivos. O estabelecimento ganhou o nome de Sport Rubens. Bunas conta que a mudança de ramo de negócio, que começou com a venda de agasalhos escolares e encomendas de camisas de clubes de futebol, ocorreu gradualmente. “Chegou uma hora que os clientes vinham aqui procurar só roupas e materiais esportivos, então concluí que era o momento de me especializar”, relata. Atualmente, em suas prateleiras encontram-se de camisas de clubes a troféus, de bolas de pingue-pongue a protetores dentais para a prática de boxe. E ele promete conseguir qualquer artigo solicitado pelo cliente. “Se eu não tiver na loja, aceito a encomenda e busco onde for necessário”, garante. Bunas diz que não tira férias e, ironicamente, não pratica esportes. “Meu esporte é trabalhar.” NOVOS EMPREENDIMENTOS
Em meio a lojas tradicionais com várias décadas de idade, o Shopping Center Penha exibe, no número 304 da Rua Dr. João Ribeiro, o vigor da juventude. Situado no centro do bairro, circulam por ele todos os meses cerca de 1,5 milhão de pessoas. O centro de compras foi inaugurado em 19 de outubro de 1992 e conta hoje com 220 lojas, distribuídas em dois pisos. Além de uma central de cursos e feiras culturais, promove
Marco Antônio Jorge (à esq.) e Rubens Bunas: comerciantes tradicionais
exposições de flores e outros eventos. Entre as iniciativas com vistas ao futuro, que envolvem desde empresas tradicionais, novos comerciantes e a comunidade ao redor, está a capacitação de representantes de Organizações Não Governamentais (ONGs) para o desenvolvimento, construção e hospedagem de sites gratuitos. O curso será ministrado na unidade especializada em Terceiro Setor do Senac São Paulo, que fica na Penha. Nomeado de Site Social, o projeto pretende treinar funcionários e voluntários vinculados ao Projeto Redes Sociais do Senac para que construam páginas na internet e, assim, divulguem mais e melhor as entidades. “Acredito que esse projeto irá contribuir para a inclusão digital, dará maior visibilidade e fortalecerá as organizações de base comunitária”, afirma Jorge Duarte, gerente da unidade especializada em Terceiro Setor do Senac.
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Arquivo Distrital da Penha
Penhense há 53 anos: a ACSP A Distrital Penha da Associação Comercial de São Paulo (ACSP), fundada em 13 de novembro de 1951, foi a segunda distrital criada, logo depois de Pinheiros, estabelecida no mesmo ano pelo então presidente Henrique Bastos Filho. Com sede no número 199 da movimentada Rua Gabriela Mistral, a distrital conta com 1.400 associados e sua jurisdição compreende, além da Penha, os bairros de Vila Matilde, Cangaíba e Arthur Alvim. Não por acaso uma das vias que desembocam na Rua Gabriela Mistral, em trecho próximo à distrital da Penha, é justamente a Coronel Rodovalho, homenagem ao importante empreendedor paulistano Antonio Proost Rodovalho – que durante muitos anos teve casa no bairro – e foi fundador da ACSP, em 1894. Hoje, a entidade, presidida pelo empresário Guilherme Afif Domingos, conta com 15 sedes na capital paulista, que atuam em prol dos empreendedores – e da comunidade. O empresário Ivan Lorena Vitale é o atual diretor superintendente da Distrital Penha. Há 30 anos trabalhando na entidade, ele exerce sua terceira gestão no cargo. Penhense de nascimento, Vitale tomou o primeiro contato com o comércio nas lojas de tecidos e papelaria do pai. Hoje, se auto-intitula produtor rural, por ter algumas plantações e morar em uma chácara nos arredores, mas afirma nunca ter abandonado o espírito empreendedor. “É importante manter a mente de homem de negócios para tomar as decisões certas, que atendam aos interesses locais e beneficiem o maior número possível de pessoas”, diz. E continua atento aos problemas em todas as áreas: de mudanças no trânsito a enchentes, de camelôs a melhorias nos transportes coletivos. Uma conquista recente da entidade foi justamente a inclusão da linha F de ônibus, que aumentou o número de coletivos com ponto final no terminal Penha. Outro projeto que entusiasma o administrador da distrital é a criação da nova estação de trem
Trabalho intenso: distrital acompanha o combate a camelôs ilegais e a publicidade irregular, defende melhorias para o transporte da região e presta serviços para os associados
para o bairro, dentro da malha da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). O projeto ainda está no papel mas, se implantado, vai beneficiar os moradores do centro do bairro, que fica no alto do morro, onde apenas chegam os ônibus, pois a estação Penha do metrô está localizada na baixada. “Começou a ser concebido aqui na distrital”, orgulha-se. ECONOMIA INFORMAL: UM PROBLEMA
A questão dos ambulantes figura entre os problemas mais graves da região. A velha briga entre comerciantes e camelôs está longe de acabar. Vitale acompanha de perto a ação da subprefeitura, que coloca a guarda municipal nas ruas na tentativa de proibir que sejam armadas as barracas, principalmente na Avenida Penha de França – local preferido pelos camelôs –, mas não vê uma solução rápida. “Não é uma questão apenas de mais policiamento, é preciso mudar a mentalidade das pessoas, e isso não ocorre facilmente.” Outro projeto que é motivo de orgulho para o administrador é referente à publicidade irregular, iniciado na região pela distrital, em conjunto com a subprefeitura. Vitale diz que a aparência do centro histórico do bairro começou a melhorar depois
que a Prefeitura passou a multar em até R$ 20 mil aqueles que desrespeitavam a lei. Vitale reconhece, porém, que ainda há muito a ser feito nessa área, pois as ruas do centro estão tomadas por pequenas lojas que exibem as mais diferentes placas e faixas de todas as cores e tamanhos. Melhorar a aparência dos locais históricos é uma das metas da incipiente organização Viva Penha, que conta com a participação de moradores, alguns conselheiros da Associação Comercial e, obviamente, com o apoio da distrital. “Nossa intenção é terminar a gestão revitalizando o centro da Penha”, planeja. Entre os serviços cotidianos oferecidos aos associados está a recuperação de crédito, além do encaminhamento diário de cerca de 15 processos à Junta Comercial de São Paulo, para abertura, modificações e fechamento de empresas. A entidade dedica parte de sua estrutura para uso da comunidade local. São organizados cursos, palestras de utilidade pública e feiras de saúde, além de passeios de automóveis antigos, concursos de som de carros e a participação ativa nas festas do bairro. Todo ano, por exemplo, envolve-se nas comemorações de 8 de setembro, aniversário da padroeira, Nossa Senhora da Penha de França. É costume
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Francisco Fuoco/Viveka
NOSSA INTENÇÃO É TERMINAR A GESTÃO REVITALIZANDO O CENTRO DA PENHA.” IVAN
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LORENA VITALE, EMPRESÁRIO E DIRETOR SUPERINTENDENTE DA DISTRITAL PENHA
Arquivo/DC
Paulo Pampolin/Digna Imagem
a associação patrocinar os fogos de artifício, com fundos arrecadados entre os associados e outros contribuintes. PREMIAÇÃO AOS ILUSTRES
Anualmente, a sede da Associação Comercial na Penha distribui o prêmio “Penhense Ilustre”, para aqueles que mais se destacaram na comunidade. Em 2003, foram 50 premiados, entre eles Rubens Bunas, proprietário de uma tradicional loja de artigos esportivos e Marco Antônio Jorge, dono de uma imobiliária. “Esse prêmio é bem-vindo porque mostra o reconhecimento do nosso esforço para melhorar o lugar em que vivemos”, comemora Marco Antônio Jorge. O administrador da distrital Penha reclama que o bairro, que foi um dos primeiros a se formar na cidade de São Paulo, sempre teve que viver às próprias custas, por ter sido “abandonado pelos governantes”. Ele diz esperar que surja alguém disposto a trabalhar mais ativamente pela região. “Não temos nenhum vereador aqui. Precisamos de um projeto político para ganhar influência e força de reivindicação junto ao poder público.” Perguntado se ele próprio não seria um candidato natural, desconversa: “Eu? Não. Não nasci para a política.”
A criação de uma nova estação de trens da CTPM para a região é um dos principais projetos defendidos por Ivan Vitale, superintende da Distrital Penha, bairro onde morou o pai da ACSP, coronel Rodovalho (no retrato à esq.)
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Fotos: Reprodução Newton Santos/Digna Imagem
A loja que virou patrimônio histórico Cláudia de Souza Morelli chega da rua correndo, arfando, e explica que foi resolver negócios em bancos, porque atualmente está tocando duas lojas sozinha – “Minha cunhada, que era minha parceira, precisou sair” – e sem tomar fôlego começa a contar a história da reforma na fachada da loja, que foi mudada em prol do patrimônio histórico. “A Prefeitura deu um prazo para tirarmos o luminoso e deixarmos a frente da loja como era antigamente”, conta. Finalmente uma pausa. A atarefada empresária faz parte da terceira geração da família Morelli, presente no comércio da Penha desde 1937 com a Casa Morelli, hoje instalada no número 23 da mais movimentada avenida do bairro, a Penha de França. A loja da família vende bolsas e cintos, pastas e outros artigos em couro. Uma filial faz o mesmo no vizinho Tatuapé. “A loja do Tatuapé é maior, mas a daqui é mais significativa, porque foi neste bairro que meu avô começou tudo”, diz Cláudia. A história dos Morelli se entrelaça com o crescimento do bairro. O italiano Giuseppe Morelli chegou ao Brasil em janeiro de 1937, aos 26 anos de idade. Em julho do mesmo ano já abria sua alfaiataria. A rapidez de Cláudia e seu tino para os negócios, que se nota facilmente com poucos minutos de conversa, são explicados pela genealogia. Precavido, Morelli trouxe a maior parte do dinheiro dentro do sapato. O italiano não era pessoa de perder tempo, definitivamente. Uma semana depois de conhecer a penhense Maria, já estava namorando-a. “Ele sempre sabia o que queria e fazia de tudo para conseguir”, atesta a hoje viúva Maria Morelli, de 84 anos. O período de namoro durou apenas oito meses. “E não pára aí” – diverte-se Maria, conhecida no bairro como Dona Mimi – porque eu tive o primeiro filho, Francisco, apenas dez meses depois de casada.” O casal morava na casa construída atrás da alfaiataria, onde nasceram todos os seis filhos: Francisco, José, Joaquim, Maria Ignez, Mário Bruno e Carlos. Dona Mimi já soma 13 netos e seis bisnetos.
Depois de 1954, o alfaiate Morelli decidiu que fazer roupas sob encomenda já não era um negócio promissor e mudou ligeiramente de ramo, passando a vender roupas prontas, sapatos, cintos e chapéus. “Meu pai entendeu que era a hora de mudar e foi em frente sem pestanejar”, diz Francisco Morelli, o filho mais velho. O grande número de filhos levou o patriarca dos Morelli a fazer a partilha dos bens em vida. “Ele não queria desavenças na família por causa de dinheiro, então, um dia reuniu todos nós e dividiu os bens”, conta José Morelli, o segundo filho. Seu irmão gêmeo, Joaquim – morto há sete anos – foi quem decidiu continuar com os negócios. Cláudia, filha de Joaquim, segue na administração depois da morte do pai. José e seu irmão Francisco são moradores da Penha desde que nasceram e freqüentam a Igreja do Largo do Rosário. Todos os anos, eles atuam na organização da festa da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, que em 16 de junho de 2002 completou 200 anos. São trazidos para a festa grupos de congada e outras representações folclóricas de influência negra. “Contamos com a colaboração de várias irmandades de Nossa Senhora do Rosário”, relata José. “Trabalhamos bastante, mas quando chega o dia da festa, a gente esquece tudo e cai na farra”, diz Francisco.
O comando da tradicional loja de artigos em couro (no topo, em 1947 e acima nos dias atuais) já passou por três gerações da família Morelli (abaixo)
Fotos: Newton Santos/Digna Imagem
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Tietê-Aricanduva: antiga hidrovia, hoje um mar de problemas Acervo Viveka
Após ser um grande impulsionador do desenvolvimento da região, o Aricanduva (na foto em 1934), agora provoca um dos maiores problemas para o bairro: as enchentes
Os rios Tietê e Aricanduva, os córregos Tiquatira e Guaiaúna e outros afluentes da área da Penha, cuja primeira vocação foi ajudar no desenvolvimento, hoje causam as enchentes, um dos maiores problemas da região. A história registra que muito antes do bairro ser fundado oficialmente, os rios já mostravam sua predestinação em se tornar vias de acesso. Em 1561, o padre Manuel de Paiva e o Irmão Gregório Serrão, ambos da Companhia de Jesus, a mesma do padre José de Anchieta, lideraram uma expedição defensiva contra os então chamados “nativos pagãos”. No grupo, além dos religiosos, seguiam piratininganos (os habitantes de São Paulo), mestiços e índios batizados. Como os índios rebeldes promoviam sangrentas investidas aos grupos que chegavam pelo caminho por terra, a expedição decidiu seguir por rio. Começando no Tietê, entravam nos afluentes Tiquatira e Aricanduva, que chegam ao sopé do outeiro da Penha. Dessa forma foi criado um novo caminho para o bairro, que contribuiu para a crescente penetração territorial e povoamento. O transporte fluvial foi usado durante muitos anos, tanto para evitar o risco de ataques quanto pela facilidade no embarque de mercadorias. O rio possibilitava fácil comunicação também com os povoados vizinhos de Nossa Senhora da Conceição de Guarulhos e de São Miguel, Itaquera, Itaquaquecetuba, Guaió (Suzano) e até Mogi, de onde se podia descer ao litoral. Em tupi-guarani, Aricanduva significa “lugar onde há muitas palmeiras de espécie airi”. Até os anos de 1930 e 40, a várzea do rio na área da Penha fez jus ao nome, servindo como espaço de lazer, oferecendo área verde e águas limpas. Na época, não havia construções na várzea, respeitando as cheias naturais que ocorriam no verão – e que hoje dão lugar às desastrosas enchentes. A canalização do Aricanduva propiciou a ocupação do solo ao redor, mas a força das águas acabou aparecendo.
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Fotos: Acervo Viveka
De acordo com informações da Subprefeitura da Penha, somente este ano foram atingidas pelas águas dos córregos 2.237 casas na região. Segundo a entidade, as medidas que serão tomadas para resolver o problema, incluem “intensificação da limpeza de bueiros e córregos, estudo de obras e serviços para contenção de encostas, como também outras obras, como a canalização do Córrego Rincão, entre as Ruas Guaranésia e Monte Sião.”
Desde 1930, o Clube Esportivo da Penha (CEP) faz parte da vida dos moradores do bairro
SOLUÇÕES PARA AS ENCHENTES
O arquiteto Edison Ivanov, professor do Senac São Paulo na área de urbanismo, critica as medidas que chama de “paliativas”, argumentando que o problema das enchentes só pode ser resolvido com a reurbanização das várzeas, aproveitando a região para a criação de mais áreas de lazer. Um projeto na várzea do Tietê desenvolvido por ele prevê, em primeiro lugar, o plantio de árvores. “A idéia com isso é criar microclimas e melhorar a temperatura quente da região, que tem pouquíssimo verde”, explica. “O rio pode voltar a ser área de lazer, com integração da família, construção de campos de futebol e outros equipamentos voltados para a população.”O investimento para essas obras poderia vir, segundo Ivanov, poupando-se a verba gasta em piscinões e obras vistas por ele como deficientes. “Se considerarmos todo o dinheiro gasto nos piscinões do Aricanduva, somado com o despendido no complexo viário que destruiu a cara da região, já teríamos capital para a recuperação da várzea na região da Penha.” CLUBE ESPORTIVO À BEIRA-RIO
O Clube Esportivo da Penha (CEP), cuja existência está intimamente atrelada ao rio que corta a região, é uma instituição que faz parte da vida dos penhenses desde 1930. Com 12 mil sócios e localizado no centro do bairro, tornou-se ponto de referência. Em uma região em que quase não há árvores, abriga 160 mil metros quadrados de área verde. “Temos aqui pelo menos 10 mil árvores”, diz Affonso Lenzi, presidente do clube desde 1993. Pelo menos dentro das dependências do clube, o ideal proposto por Ivanov é realidade. E já foi melhor quando o Tietê adentrava o CEP. O clube surgiu pelas mãos de um grupo de dissidentes do “Regatas da Penha”,
O CEP realizava competições de remo e de natação nas águas do Tietê
liderados por Plínio Augusto de Camargo. Na época, a sede resumia-se a uma quadra de esportes e a um galpão com vestiário. Mas logo voltou-se para sua vocação natural: as atividades aquáticas. Com o Rio Tietê margeando o clube, o penhense passou a ter uma gama de atrações: o cocho (piscinas naturais flutuantes), trampolins, passeios de barcos, prática de remo e competições na água. O clube destacou-se nos esportes aquáticos até a década de 1950, com campeonatos, como o famoso “Volta da Penha a Nado”, do qual participaram atletas como João Havelange. E o clube investia também em esportes terrestres. Em 5 de abril de 1931, acontecia a primeira Volta da Penha, disputada por 106 corredores. Por volta de 1953, o traçado do Tietê foi mudado. A “praia” foi afastada e o CEP se viu seriamente ameaçado. Com o desvio do rio, o clube perdera seu maior atrativo e, conseqüentemente, quase todos os sócios. Então, dirigentes como Ferruccio Michelotto e João Antonio Sanches Conessa, conduziram campanhas para conseguir atrair sócios
e manter vivo o clube. E começaram um plano de arborização da área, antes ocupada pelas atividades ligadas ao rio, que resultou no espaço ecológico que é hoje. É dessa época também o ginásio – que até meados dos anos 80 sediou competições esportivas internas, foi palco dos carnavais penhenses e de parte da vida social do bairro. O último recurso para atrair sócios foi a construção de piscinas. Com as reformas, voltaram os sócios. Na nova fase, começou-se a praticar boxe, atletismo, basquete e bocha. Hoje, há também locais para a prática de tamboréu (jogo em que se utiliza pandeiro e peteca ou, às vezes, pequena bola de borracha), 12 quadras de tênis, 3 campos de futebol, ginásio com quadras poliesportivas (futebol de salão, vôlei, basquete, handebol), pista de patinação, ginásios de bocha e malha, balneário com cinco piscinas, entre outras áreas. As atividades sociais aumentaram com a construção de outros salões de festas. De herança do Tietê, sobrou a lagoa, às margens da qual os penhenses ainda pescam e fazem piqueniques nos fins de semana de sol.
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Francisco Fuoco/Viveka
Acervo Viveka
História sobre trilhos. Dos bondes ao metrô Até o final do século 19, a Penha aparecia nos mapas de povoamento como uma freguesia distante do centro de São Paulo, ficando clara a existência de um enorme descampado entre o bairro e a cidade. Para percorrer essa distância de cerca de dez quilômetros, hoje existe metrô, algumas linhas de ônibus, além das vias Radial Leste e Marginal Tietê, para quem vem de carro. Mas naquela época, andava-se a pé, a cavalo ou nos bondes, pelo Caminho da Penha (Avenida Rangel Pestana, continuada pela Celso Garcia). Existiam, então, os bondes alimentados a vapor e os puxados por parelhas de burros, que entraram em circulação a partir de 12 de outubro de 1872. Em 1889, funcionavam várias linhas por tração animal. Quatro companhias exploravam o transporte. A de Rudge Ramos foi a que obteve autorização para operar a linha Penha. Durante muitos anos, os penhenses, os grandes proprietários rurais do bairro, visitantes e devotos de Nossa Senhora da Penha de França tinham por meio de transporte o bonde puxado por burros, cujo ponto final era local onde hoje funciona a estação Penha do metrô. Os mais modestos subiam a pé a ladeira até a igreja, enquanto os endinheirados completavam o percurso a cavalo ou tílburi – pequeno carro de duas rodas e dois assentos, sem boléia, com capota, e tirado por um só animal. A primeira linha de bondes elétricos, operada pela São Paulo Tramway Light and Power Company Limited (antiga Light), partia da Barra Funda para o centro da cidade, e foi inaugurada em sete de maio de 1900. A linha que chegava ao centro da Penha surgiu em janeiro de 1901. Na época, também foram beneficiados com linhas elétricas os bairros de Ipiranga, Santana e Pinheiros. De 1930 a 1950, funcionou a linha Largo do Tesouro-Praça 8 de Setembro. A partir de 1950, havia a Praça da Sé- Praça 8 de Setembro. Em 1960, surgiu a linha Penha-Lapa. O chamado Bonde para Operários carregava passageiros espremidos em duros bancos de madeira. Além de trabalhadores da indústria,
Dois momentos do transporte ferroviário na Penha: a FEPASA (esq.) e o ramal da Central do Brasil, de 1906 (dir.)
transportava verdureiros da Penha que vendiam suas hortaliças no Mercado Municipal. Os bondes, em virtude das dezenas de paradas e da proverbial cortesia de motorneiros e cobradores, acabaram ficando marcados pela morosidade. A linha seis da Penha favoreceu o processo de urbanização das regiões que ladeavam a ex-Estrada da Penha, como Brás, Belém e Tatuapé. Tal foi a procura pelo bonde da Penha, que ninguém mais se interessou pelo trem Ramal Penha da Estrada do Norte, que parou de circular em 1904 por falta de usuários. OS PRIMEIROS ÔNIBUS
Nesse período de tráfego de bondes elétricos, surgiram também empresas de ônibus. Os coletivos fizeram sucesso e se expandiram extraordinariamente. Os primeiros funcionaram em 1925, e em 1930 já haviam 400 carros para atender a uma população de 890 mil habitantes. Em 1934, existiam 700. Atualmente, segundo estatísticas da SPTrans, cerca de 5 mil ônibus transportam 85% dos paulistanos. Os bondes elétricos operaram na Penha até abril de 1966. Com a desativação do sistema de bondes, as empresas particulares aumentaram gradativamente sua participação na operação de linhas de ônibus, e foi criada a Secretaria Municipal dos Transportes. Em 1968, os bondes pararam de circular em toda a cidade de São Paulo. Hoje, operam na Penha diversas empresas de ônibus, entre elas a
Empresa Auto Ônibus São Miguel, Empresa de Auto Ônibus Vila Esperança, Viação São José, Viação Urbana Penha, Empresa de Ônibus São Geraldo, Empresa de Ônibus Guarulhos. A empresa de ônibus LesteOeste ficou conhecida por Penha-Lapa, em razão da famosa linha que já foi a mais extensa da cidade. A frota de ônibus que serve o bairro é de 770 veículos, com 60 linhas, atendendo a 49 vilas. Dessas linhas, 37 se destinam ao centro da cidade. Em média, essas empresas transportam 500 mil usuários da região diariamente. O metrô Penha, inaugurado em 31 de maio de 1986, facilitou a vida dos penhenses. Segundo estatísticas da Companhia do Metropolitano de São Paulo, 20 mil passageiros por hora usam a estação nos horários de pico, diariamente. O metrô Penha, no entanto, não chega ao centro do bairro. Por esse motivo, um grupo de comerciantes e técnicos elaborou o projeto para a nova estação de trem, dentro da malha da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), que seria construída ao lado do terminal de ônibus, este localizado no alto da ladeira da Penha, ao lado do Mercado Municipal. “Esse projeto, se implementado, vai devolver aos penhenses algo que já se tinha no início do século: um trem chegando ao centro do bairro, pois no começo do século 20, o bonde deixava os moradores em plena avenida Nossa Senhora Penha de França; o metrô só chega até o sopé do monte”, aponta o professor Francisco Folco, estudioso da história da Penha.
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Itamar Miranda/AE
Celso Junior/AE
O trânsito caótico na Av. Celso Garcia, uma das principais do bairro. Associação de moradores quer revitalizar o centro da Penha e trazer melhor qualidade de vida para seus habitantes
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“Aqui não voltará a ser passagem” – Viva o Centro da Penha Com intuito de recuperar marcos históricos, construções e a tradição do bairro, um grupo de penhenses organizou a entidade Viva o Centro da Penha. O idealizador e entusiasta do projeto é Manuel Gonçalves, 46 anos. Português de nascimento, depois de 34 anos morando no Brasil, sempre cidade de São Paulo, diz ter se tornado “paulistano por adoção e penhense histórico, patriótico e convicto”. Dono da Arte Flora, loja de flores e presentes que nasceu há 33 anos como Floricultura Nossa Senhora da Penha, Gonçalves organizou em janeiro deste ano a primeira reunião para tratar do assunto. Conselheiro da Distrital Penha da Associação Comercial, ele conseguiu reunir moradores e seus colegas comerciantes, entre eles o engenheiro José Donato Feola e o jornalista Eugênio Cantero. A Associação Viva o Centro da Penha divulgou em fevereiro um documento no qual afirma que seu objetivo é “promover o desenvolvimento da área central do bairro Penha de França e de seus aspectos urbanísticos, culturais e econômicos, a fim de transformá-lo num grande, forte e eficiente centro, que contribua para o equilíbrio econômico e social e o bem estar da população.” O arquiteto Edison Ivanov, que fez vários estudos sobre a região, aplaude a iniciativa. Professor do Senac São Paulo na área de urbanismo, Ivanov tem algumas propostas para melhorar o centro da Penha e com isso diminuir o êxodo constatado nas últimas contagens de população. Segundo o censo de 2000 feito pelo IBGE, a Penha perde todo ano 0,93% de sua população. “Nos últimos anos, o comércio ambulante, o trânsito maluco, a falta de segurança e de equipamentos de lazer e cultura, levaram ao êxodo de mais de 50% de sua população original. É preciso retomar a moradia nestas áreas”, defende. Em um passeio pelo centro do bairro, o urbanista apontou problemas e sugeriu soluções. “As construções estão poluindo cada vez mais, com todas essas placas, luminosos, fachadas sem cuidado:
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NOS ÚLTIMOS, ANOS O COMÉRCIO AMBULANTE, O TRÂNSITO MALUCO, A FALTA DE SEGURANÇA E DE EQUIPAMENTOS DE LAZER E CULTURA, LEVARAM AO ÊXODO DE MAIS DE 50% DE SUA POPULAÇÃO ORIGINAL. É PRECISO RETOMAR A MORADIA NESTAS ÁREAS.”
“ “
EDISON IVANOV, ARQUITETO E PROFESSOR DO SENAC SÃO PAULO NA ÁREA DE URBANISMO, QUE FEZ VÁRIOS ESTUDOS SOBRE A REGIÃO
A PENHA FUNCIONA COMO PORTA DE ENTRADA DA ZONA LESTE, SENDO UM FANTÁSTICO EIXO DE COMÉRCIO E SERVIÇOS E PRECISARIA SER MELHOR CUIDADA.” E. IVANOV
o visual desagrega valor à região”, disse sobre a disposição das lojas ao longo da principal avenida, a Penha de França. ESPAÇO PÚBLICO MALCUIDADO
No Largo do Rosário, onde fica a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, tombada pelo patrimônio histórico, Ivanov aponta que o tombamento “não tem raio de influência”. Ou seja, a igreja, com suas paredes de taipa preservadas, possui um entorno com construções visivelmente deterioradas. “É fundamental que os comerciantes locais, as entidades de classe e os moradores se reunam e passem a cobrar melhorias do poder constituído”, incentiva. “A Penha funciona como porta de entrada da zona leste, sendo um fantástico eixo de comércio e serviços e precisaria ser melhor cuidada.” Esse é um dos pontos particularmente caro aos organizadores da Viva o Centro da Penha, cuja carta de intenções diz que “a qualidade do espaço público é requisito básico para o pleno exercício da cidadania e a identidade desse centro, do bairro da Penha, resultará de um processo no qual os valores do seu patrimônio histórico, arquitetônico, cultural e econômico serão percebidos pelos cidadãos.” Entre os mais ativos membros da associação está Eugênio Cantero, dono do jornal Gazeta Penhense. Presente em todas as reuniões, palestras, agremiações, festas e acontecimentos, ele justifica na profissão sua onipresença: “Vou a todos os lugares por obrigação do ofício: preciso ficar informado”. Mas a atuação de Eugênio, conhecido na região como “Geninho”, vai além da tarefa de se manter informado.
Ele usa seu jornal para fazer campanhas em prol das famílias que perderam bens com enchentes, ajuda a arrecadar verbas para a festa da padroeira, integra comissões que estudam melhorias para as ruas do bairro e até escreveu uma singela carta exaltando as qualidades dos poemas de Elisa Barreto, para ajudar na campanha da poetisa que reivindica o Prêmio Nobel da Paz. Francisco Folco, 52 anos, dono da escola de artes Viveka, é o guardião das imagens da Penha. Sempre foi interessado na história do bairro, onde morou desde criança, e em 1997 começou sua carreira como historiador amador. Ao fazer um registro fotográfico da arte sacra da Igreja de Nossa Senhora da Penha de França, que teve suas paredes e tetos pintados por seu avô, Alfredo Cespi, encontrou em seu interior uma coleção de fotos exibidas no terceiro centenário do bairro, em 1968. Organizadas por Hedemir Linguitte, antigo morador, as imagens estavam em péssimo estado de conservação. “Estavam sujas, mofadas, com manchas de água de chuva e algumas até rasgadas”, conta ele. Ao perceber o valor histórico do achado, Folco iniciou um trabalho de recuperação das imagens, utilizando recursos digitais. “Levei três anos, mas consegui recuperar cada detalhe das fotos”, diz. Com o material em mãos, Folco montou um CD-Rom, “Retratos da Penha”, que traz 421 imagens do bairro, desde 1905 até os dias de hoje. Ele vende o CD-Rom por R$ 20 e destina o lucro obtido a patrocínio de eventos culturais no bairro da Penha. O material fica à venda na Viveka – Escola de Arte e Criação, na Rua Betari, 560, Penha, São Paulo, telefone (11) 294-6833.
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Fotos: Valéria Gonçalves/AE
Memórias de um ator penhense e a ‘paz’ da Penha no prêmio Nobel O ator Marcos Winter nasceu e cresceu no bairro da Penha. Hoje vive no Rio de Janeiro, atua em televisão, teatro e cinema, além de coordenar a organização não-governamental Movimento Humanos Direitos, que luta pelo fim do trabalho escravo no Brasil. A última aparição do ator na tevê foi na série Um Só Coração, no papel do jornalista Luís Martins, com quem Tarsila do Amaral (Eliane Giardini) fica casada durante boa parte da trama. Marcos César Simarelli Winter não é apenas um penhense famoso, mas um paulistano apaixonado. “Adoro São Paulo e sempre que posso volto à cidade”, diz. Sua mãe, Odete, de 75 anos, ainda mora em uma casa da Rua João Ribeiro, uma das vias mais movimentadas do bairro, principalmente depois de 1992, com a abertura, no número 304, do Shopping Center Penha. “Minha memória sobre a Penha é muito vasta”, afirma o ator. “Passei a maior parte da vida lá”. Atualmente com 37 anos, ele morou no bairro até os 20. “Lembro muito vividamente de brincar de esconde-esconde no clube esportivo: o esconderijo podia ser em qualquer lugar do clube, o que fazia o jogo durar o dia inteiro”. Da adolescência, Winter diz ter guardado lembranças ainda melhores. “Ah, como eram boas aquelas brincadeiras de moleque maior... quando freqüentava a parte de baixo do campo de futebol para dar os primeiros beijos”. Conhecido pelos amigos de infância como “Macarrão”, ele diz adorar ser chamado pelo apelido, por remetê-lo à época em que “andava tranqüilo pelas ruas da Penha com meus amigos, ia para o colégio e para a balada, e a vida era simples e gostosa”. Ele estudou na escola estadual da Penha e no grupo escolar Santos Dumont, tradicional colégio do bairro, cursando depois Educação Artística na faculdade São Judas, na Mooca. “Antes de mudar para o Rio de Janeiro, me mantive na Zona Leste de São Paulo.”
O ator Marcos Winter morou no bairro até os 20 anos de idade e guarda boas lembranças da infância que passou por lá. Apesar de viver atualmente no Rio, se declara um paulistano apaixonado por suas raízes
Paulino Rolim de Moura e Elisa Barreto (ao lado) se conheceram na Penha e casaram na Igreja Matriz Nossa Senhora da Penha. Agora, sonham em trazer para o bairro o Prêmio Nobel da Paz
UM POEMA PARA O PRÊMIO NOBEL
Elisa Barreto, de 81 anos, e Paulino Rolim de Moura, de 86, também têm toda sua história entrelaçada à do bairro. Se conheceram na Penha, casaram-se na Igreja Matriz Nossa Senhora da Penha de França, mudaram da cidade duas vezes, mas acabaram voltando a morar ali. “Não nos acostumamos em outro lugar”, dizem. Agora, querem trazer para a Penha o Prêmio Nobel da Paz. Elisa tem oito livros de poesia publicados e este ano enviou sua inscrição para concorrer à consagrada premiação. A antiga idéia foi retomada em 2003 pelo casal, quando Elisa compôs Paz, poema que exalta a importância em se obter a paz mundial. Seu marido gostou tanto que mandou construir uma escultura em aço escovado e vidro, na qual gravou o poema, e a peça foi chamada de “Homenagem à ONU”. Os versos, com fotos da obra foram enviados a diversos artistas, escritores, poetas brasileiros e estrangeiros, além de políticos, dirigentes e organizações. Uma das entidades que receberam o poema, já vertido para o inglês, foi a Organização das Nações Unidas (ONU). “Sempre achei que o Brasil deveria concorrer ao Prêmio Nobel da
Paz. O prêmio tem 103 anos e nenhum brasileiro jamais ganhou”, argumenta Paulino. Ele mostra orgulhoso o recibo do correio, no qual consta a postagem do volume de 730 gramas enviado ao comitê do Prêmio Nobel, na Noruega. Integram o dossiê uma cópia do poema em homenagem a John Kennedy publicado na Times of Brazil, cartas de amigos e admiradores de Elisa – incluindo uma do jornalista Eugênio Cantero, dono da Gazeta Penhense –, a resposta de Kofi Annan a uma carta sua, recortes de jornais e revistas, entre outros documentos. Na entrada do escritório, que fica no quintal da casa, um painel exibe a letra do Novo Hino Nacional, escrita também por Elisa. Mudar a letra do hino brasileiro é outra causa pela qual o casal vem trabalhando. “A letra atual é elitizada e longa demais, o hino precisa ser acessível ao povo”, defendem Paulino e Elisa. A nova letra, que se encaixa na melodia original composta por Francisco Manuel da Silva, tem apenas cinco estrofes, e o refrão é: “Brasil, este gigante bem desperto,/ cuja grandeza a todos extasia,/ expõe seu patrimônio a céu aberto,/ nas lutas, na vontade e na energia.”
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Newton Santos/Digna Imagem
“PAZ” SÓ TU POMBA DA PAZ JAZES PROSCRITA SOBRE UM MONTE ESPINHOSO E INATINGÍVEL. PALOMA BRANCA QUE PAROU NO ESPAÇO DESAFIANDO A FORÇA DOS MORTAIS, SEUS ANSEIOS DE AZUL E LIBERDADE, SOBRE O GIRO DE SÉCULOS E SÉCULOS. NÃO CREIO QUE TE ALCANCEM FACILMENTELUTAS SANGUINOLENTAS COBREM MAPAS, DESTROEM CIDADES E TU INDA PERMANECES INTOCÁVEL. SÓ DEUS TANGERÁ O GRANDE SINO NO MOMENTO EXATO DO TEU ENCONTRO COM OS POVOS. ENTÃO VOARÁS LEVE E SOLENE SOBRE AS ALMAS QUE TE AMARAM E CONFIARAM EM TI COM A CERTEZA QUE TEU MINISTÉRIO É O EVENTO MAIOR DA HUMANIDADE. ELISA BARRETO
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Fotos: Acervo Viveka
Da pose de um time amador, passando pelos caminhos percorridos por bondes, uma aglomeração em frente a um teatro e chegando ao forte comércio da região: fotos da Penha antiga e do cotidiano de seus moradores foram recuperadas por Francisco Folco e resgatam a história do bairro
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Mooca
Por favor: Mooca não tem acento Fotos: Milton Michida/Digna Imagem
Museu do Imigrante: a antiga hospedaria recebia milhares de italianos, espanhóis, portugueses, lituanos, húngaros e outros estrangeiros que chegavam à Mooca
Textos de Lúcia Helena de Camargo
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A Europa em São Paulo - Não é, belo? grande imigração, que teve início por volta de 1870, mudou a cara do bairro com a chegada daqueles que hoje o caracterizam. Paralelamente à vinda dos imigrantes, alguns empreendimentos começaram a ganhar vida na região. Em 1876, o fazendeiro Rafael Aguiar Paes de Barros criou o Clube Paulista de Corrida de Cavalo. Inaugurado oficialmente em 1890, o local se transformou em um centro de lazer dos paulisO bairro tem oficialmente apenas dois anos a menos do que a tanos, originando, posteriorcidade de São Paulo. E sua história, de 448 anos, começou muito mente, o atual Jockey Clube de antes da imigração. Os primeiros habitantes do local foram, claro, São Paulo. Paes de Barros, hoje, dá os índios. A região, no entanto, “envelheceu” mais de 300 anos nome à principal avenida que somente na década de 80. Em 1985, um grupo de pesquisadores liA escultura do padre corta a Mooca de ponta a ponta. derados pelo historiador Eugênio Luciano Júnior, provou, recoAnchieta, erguida para homenagear o bairro As corridas de cavalos tornarambrando documentos históricos, que o bairro não tinha os 118 anos se tão procuradas pelos paulistaque constavam do registro oficial, mas 429 anos. Pelo reconhecinos que, em 1877, foi criada a linha de bonde Centro-Mooca, de mento da nova data de aniversário, comerciantes locais se cotizaram tração animal, logo substituída por uma linha férrea. para erguer um monumento, no início da Avenida Paes de Barros, Os trens, aliás, estiveram desde cedo muito presentes no desencom placa comemorativa e uma escultura do padre Anchieta. volvimento da região. A malha ferroviária, instalada até o início do Há diversas versões para o surgimento do nome do bairro. A século 20, foi uma das grandes responsáveis pelo sucesso da indúsmais aceita é que, em 1556, os jesuítas construíram uma ponte tria de São Paulo. Ao longo de quase cem anos, a riqueza do Estasobre o Rio Tamanduateí usando, como de costume, mão-de-obra do deslizou sobre trilhos. indígena. Algumas casas foram rapidamente erguidas na área. Os Os italianos começaram a se espalhar pela Mooca nas décadas de índios, espantados com a rapidez com que os brancos construíam, 1870 a 1890, com a abertura de cantinas e fábricas de massas. Em começaram a chamar os arredores de Mooca, em referência ao 1891, chegou a Companhia Antarctica Paulista, que em 1904 comtermo que, em idioma tupi-guarani, significa “faz casa”. Nos sécupraria a vizinha Bavária. Nos anos seguintes, ocorreu a expansão falos posteriores, 17 e 18, o local foi tomado por vastas chácaras. A bril. O Cotonifício Rodolfo Crespi foi dos primeiros grupos Fotos: Evandro Monteiro/Digna Imagem industriais do ramo de tecidos a se instalar na Rua dos Trilhos.
Quando se quer caricaturar um paulistano, nada mais fácil do que falar com o sotaque característico do bairro da Mooca, um português com toques de italiano, que esquece os plurais e acaba toda frase com “Não é, belo?”. Os italianos marcaram presença, mas não foram os únicos imigrantes que ajudaram a construir o bairro. No final do século 19 e início do século 20, também chegaram aos milhares portugueses, espanhóis, lituanos, húngaros e outros estrangeiros, muitos desembarcando diretamente na então Hospedaria do Imigrante, hoje Museu da Imigração.
AGLOMERADO DE INDÚSTRIAS
A concentração de indústrias na região foi o fator que levou a greve-geral de julho de 1917 a eclodir justamente na Mooca. Marcado pela morte do sapateiro espanhol José Iñeguez Martinez, o movimento começou na Rua Piratininga, em frente da fábrica da Antarctica, mobilizando mais de 10 mil pessoas. Os grevistas pediam regulamentação do trabalho de menores e mulheres, redução da jornada de A Avenida Paes de Barros é a cara da Mooca. Porta de entrada do bairro, é também sua principal via
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Acervo Memorial do Imigrante
Mooca, greves e sindicalismo A Mooca tem uma participação marcante na história do sindicalismo brasileiro. A greve geral de 1917 teve início em uma fábrica do bairro, o Cotonifício Crespi, no dia 22 de junho, como uma reação à tentativa da empresa de prolongar o trabalho noturno sem aumento da remuneração. Os operários entraram em greve exigindo aumento de salários, abolição das multas, mudanças no regimento interno e regulamentação do trabalho feminino e infantil. O movimento atingiu outras empresas e foi reprimido com violência pela polícia. Um manifestante, o sapateiro espanhol José Martinez, foi morto e, depois de seu enterro, a greve se generalizou chegando a algumas cidades do estado de São Paulo, ao Rio de Janeiro e outras regiões do Brasil. Em meados de julho, a greve terminou. As conquistas obtidas pelos operários foram limitadas, mas a paralisação melhorou a organização operária, com a fundação de vários sindicatos
BERÇO DA INDÚSTRIA E DO SINDICALISMO PAULISTA DURANTE A PRIMEIRA METADE DO SÉCULO 20, A MOOCA ERA O BAIRRO MAIS POPULOSO DE SÃO PAULO EM 1947, COM QUASE 100 MIL HABITANTES
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Mabel Feres/AE
trabalho, que se estendia até por 12 horas, e garantias trabalhistas. A primeira fábrica a parar foi o Cotonifício Crespi. Berço da indústria e do sindicalismo paulista durante a primeira metade do século 20, a Mooca era o bairro mais populoso de São Paulo em 1947, com quase 100 mil habitantes, além de possuir o maior colégio eleitoral, com mais de 30 mil eleitores. Até os anos 50, a Mooca concentrava ainda grande parte das indústrias da cidade, principalmente dos setores têxteis e de alimentos. Porém, nessa época, a modernização industrial mundial começou a abalar as fábricas artesanais da região, que uma a uma foram fechando. O rastro de abandono até hoje se vê, com os enormes galpões vazios das ruas Taquari e Piratininga, da Avenida Paes de Barros e da Rua da Mooca. Atualmente com 70 mil habitantes, a Mooca procura resgatar a riqueza do passado, mas com vistas na qualidade de vida. No galpão onde funcionou o Milton Michida/Digna Imagem Cotonifício Rodolfo Crespi será instalado, até o final de 2004, um hipermercado. “Queríamos colocar ali o primeiro shopping center da Mooca, mas como não foi possível, um grande mercado já será bom para começar a impulsionar novamente a economia da região”, acredita Fernando Crespi, neto do fundador da indústria original. Além dos galpões abandonados, o outro problema crônico da Mooca, assim como em toda a Zona Leste da cidade de São Paulo, é a notória falta de verde. Enquanto a Organização das Nações Unidas (ONU) recomenda que a cada habitante seja destinada 12 m2 de área verde, a capital paulista oferece 4 m2 e a média na região é ainda pior: 2 m2. MAIS ÁREAS VERDES
Durante a elaboração do Plano Diretor Regional, a população local apontou como prioridade aumentar a área verde da região. A subprefeitura lançou, então, o Programa Mooca Verde. O projeto abrange os distritos da Mooca, Brás, Pari, Água Rasa, Belém e Tatuapé. De acordo com a subprefeitura, o programa, que pretende construir e revitalizar praças, pode beneficiar diretamente 308 mil moradores. No primeiro semestre de 2004, passaram por reforma 20 praças. Entre 2001 e 2003, foram recuperadas outras 40. A área da subprefeitura da Mooca abrange 220 praças. Dentro do Programa Mooca Verde, foi implantado o Núcleo de Agricultura Urbana. Os resultados começam a aparecer. Em um terreno de 7 mil m2 no cruzamento da movimentada Radial Leste
com a Rua Bresser, 20 famílias carentes estão plantando hortaliças, verduras e legumes, que são depois vendidas com renda revertida para as próprias famílias. Uma das características dos produtos da horta urbana é a ausência de fertilizantes e agrotóxicos. É usado adubo orgânico, feito de restos de folhas e frutas. Divertida e saborosa, a O meio ambiente é a área que vem tradicional festa de San recebendo mais investimentos da subprefeiGenaro é tura. Foi inaugurada em fevereiro de 2003 a famosa em todo Brasil. Central de Triagem de resíduos sólidos, Reúne que processa lixo reciclável. Para o mafabricantes de massas, terial chegar até lá, no entanto, os donos de moradores precisam levar seu lixo cantinas e restaurantes, aos postos de Coleta Seletiva além de Solidária e Postos de Entregas 100 mil comilões Voluntárias, porque não há coleta seletiva porta a porta. Segundo a subprefeitura, a Central de Triagem, que funciona na Avenida Salim Farah Maluf, beneficia 40 cooperados. A subprefeitura busca ainda parcerias para desenvolver outros projetos que aumentem o verde na região. “A participação da sociedade civil é essencial para o sucesso do Mooca Verde”, afirma a subprefeita da Mooca, Harmi Takiya. Os problemas da Mooca são muitos, como em todos os bairros, mas os mooquenses sabem como ninguém fazer uma boa festa. Divertida e saborosa, a tradicional festa de San Genaro é famosa em todo Criado Brasil e reúne em setembro os fabricantes de em 1998, massas, donos de cantinas e restaurantes e 100 o Museu do Imigrante mil comilões de todos os lugares, que consopossui mem 5 mil quilos de macarrão e dez mil peum curioso acervo. daços de pizza nos dez dias do evento. Ao lonSão roupas, go do ano, há outras festas menos famosas, que carros antigos, objetos seguem a mesma linha: muita comida, vinho e e documentos música italiana. dos imigrantes que chegaram Uma das apaixonadas pelas festas e também ao País pelo bairro é Paula Dicunto, herdeira da dono fim do século 19 ceria fundada por seu avô na Rua Borges de Figueiredo. Ela expressa o sentimento que resume o amor incondicional que muitos moradores declaram: “A Mooca precisa de verde e de muitas outras coisas, não é muito bonita, mas a gente não a deixa por nada, porque aqui nos sentimos bem, aqui a gente conhece todo mundo, aqui só tem gente buona, bela!”, diz, com legítimo sotaque mooquense.
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O Cotonifício Rodolfo Crespi foi uma das primeiras indústrias a se instalar na Rua dos Trilhos. Seu galpão será transformado em hipermercado Reprodução Evandro Monteiro/Digna Imagem
A família Dicunto fez história no bairro com suas padarias (à direita). Membro da terceira geração, Paula (abaixo) diz que não seria feliz em nenhum outro lugar Evandro Monteiro/Digna Imagem
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Arquivo
QUEREMOS QUE A MOOCA COMECE A SE DESENVOLVER, COMO OCORREU COM O TATUAPÉ, O VIZINHO AO LADO.” FERNANDO
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CRESPI, BISNETO DO CONDE RODOLFO, FUNDADOR DO EXTINTO COTONIFÍCIO RODOLFO CRESPI
Conde Rodolfo Crespi: o empreendedor italiano fundou a maior tecelagem da América Latina nos anos 30
Evandro Monteiro/Digna Imagem
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Tudo acaba em pizza. Ou panetone A região da Mooca já foi a mais industrializada de São Paulo, em meados dos anos 30 e 40. Muitas dessas indústrias pioneiras desapareceram, deixando os galpões vazios nas vias mais antigas. Entre elas, os Armazéns Matarazzo, Companhia Paulista de Louças Esmaltadas, Fábrica de Tecidos Labor, Fábrica de Meias Musseline, Moinhos Gamba (que se transformou na casa de eventos Moinho), o Cotonifício Rodolfo Crespi, atualmente em reformas para virar um hipermercado. Hoje, a Mooca tem como ponto forte sua tradição em restaurantes italianos e pizzarias, além de ser a marca registrada de São Paulo. Entre os estabelecimentos mais tradicionais estão a pizzaria São Pedro, que aos finais de semana, faça chuva ou faça sol, é preciso rezar ao santo para conseguir uma mesa, tão grande é o movimento. Outro ponto disputado é o Elídio Bar, famoso por sua grande variedade de petiscos, mais de 130 tipos. Algumas famílias têm suas histórias interligadas à da própria Mooca. A família Crespi é uma delas. Seus empreendimentos mudaram os rumos da região. Rodolfo Crespi chegou ao Brasil em 1896, com 33 liras no bolso, vindo da Lombardia, região italiana de tradições fabris, onde se teciam algodão, lã e seda. Ele se estabeleceu no bairro, casou-se e, tempos depois, fundou a Rodolfo Crespi & Cia Ltda, que em 1909 se tornaria o Cotonifício Rodolfo Crespi. A indústria produzia fios, tecidos e roupas, em lã e algodão. E começou a prosperar vendendo dentro do País e exportando. Produziu durante algum tempo até uniformes para o exército italiano. Em meados da década de 1930 chegou a ter 30 mil empregados, sendo a maior tecelagem da América Latina. O conde morreu em 1939 e a empresa, embora continuada pelos herdeiros, nunca mais teve o mesmo vigor. Em 1963 entrou em concordata, fechando as portas, sem conseguir fazer face à modernização tecnológica das novas empresas, às importações de países asiáticos e às exigências trabalhistas. Fernando Crespi, bisneto do conde Rodolfo, é o herdeiro que hoje administra o que sobrou dos bens da família, que vive principalmente
Donato Dicunto veio da Itália em 1878, com destino à capital uruguaia, Montevidéu. Por engano, desceu no Porto de Santos. Adaptou-se e fincou raízes na Mooca
do aluguel de imóveis. O galpão da antiga fábrica passou muitos anos fechado. Em 1996, houve uma tentativa malsucedida de transformá-lo em shopping center. “Tentamos durante seis anos, mas não conseguimos aprovação para o projeto”, lamenta Crespi. Atualmente, o local está em reformas para abrigar um hipermercado, que será inaugurado até o final de 2004. “Queremos que a Mooca comece a se desenvolver, como ocorreu com o Tatuapé, o vizinho ao lado”, diz. “A inauguração de um grande centro de compras certamente vai atrair outros investimentos.” DO ERRO AOS BANQUETES
Outra família que moldou os contornos da Mooca foi a Dicunto. Hoje administrada por Paula Dicunto, da terceira geração de empreendedores,
o estabelecimento é referência na região quando se trata de doces, salgadinhos para festas, pães e massas. Seu pai, Alfredo Dicunto, de 82 anos, afastou-se dos negócios em razão de problemas de saúde. A saga dos Dicunto começa com um engano. Donato Di Cunto, desembarcou em Santos aos 17 anos de idade, em 1878. Ele embarcara em Nápoles com destino a Montevidéu, onde sua mãe tinha parentes. Analfabeto, recebeu a orientação de descer do navio no terceiro porto após a travessia do Atlântico, que seriam: Rio de Janeiro, Santos e Montevidéu. Porém, durante a longa viagem, houve a bordo um surto de doença contagiosa e o navio fez uma parada forçada. Ele, então, considerou o porto de Santos como a terceira parada, e desembarcou no Brasil
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Fotos: Reprodução Evandro Monteiro/Digna Imagem
Paulo Pampolin/Digna Imagem
Fotos antigas contam um pouco da história da família Dicunto. Alfredo (à dir.), de 82 anos, afastou-se dos negócios por problemas de saúde. Sua filha e sobrinhos administram tudo com a mesma dedicação
falando apenas o idioma napolitano. De alguma forma conseguiu abrigo e decidiu adaptar-se ao novo ambiente. Com certa experiência no trabalho de carpintaria, conseguiu o emprego de ajudante de carpinteiro no Banco União, cujo departamento de construções era chefiado pelo famoso arquiteto Ramos de Azevedo. No banco, alfabetizou-se e aprendeu desenho, chegando ao cargo de mestre de obras. Paralelo ao trabalho no banco, abriu com o irmão José, recém-chegado da Itália, uma das primeiras padarias da cidade, na Rua Visconde de Parnaíba. Em 1895, viajou para a Itália para visitar a mãe e voltou casado com Rosália Marrone. Na época, inaugurou a segunda padaria, localizada na então Alameda Taubaté, atual Rua Borges de Figueiredo. Em 1900, já com dois filhos, retornou para a Itália. Donato jamais voltaria ao Brasil, morrendo em fevereiro de 1932. “Ele sempre lamentou não ter conseguido voltar”, conta Paula. Em 1934, os então cinco filhos
participaram da nova leva de imigração e fizeram o caminho de volta, retomando a padaria da Borges de Figueiredo. Em março de 1935, os irmãos Di Cunto Vicente, Lorenzo, Roberto e Alfredo reinauguraram o estabelecimento da família. O início foi difícil em razão da crise e da concorrência – na Mooca e região existiam dezenas de padarias. Outro problema eram os calotes. “Para o comerciante não havia a mínima garantia, e os calotes apareciam na mesma velocidade em que os devedores mudavam de endereço”, relata Paula. Os irmãos Dicunto, porém, se mantiveram no negócio e aprenderam. Em 1936, inovaram, fazendo entregas em domicílio, a princípio com veículo de tração animal, e depois com um “furgão”. Aumentaram a produção e começaram a diversificar os produtos: a partir de 1939, iniciaram a produção de panetone. Mas nos anos da Segunda Guerra Mundial sofreram com o racionamento de gasolina, de lenha, do sal e, o mais grave para
fabricantes de pão, a falta de trigo. Em 1949, com a normalização do abastecimento das matérias primas, foi inaugurada a seção de confeitaria e reiniciada a fabricação do panetone. Na década seguinte, começaram com o atendimento de festas de aniversário, casamentos, batizados, chegando a fazer banquetes para até três mil convidados. Hoje, além da padaria, eles mantêm o serviço de buffet, seção de rotisserie e restaurante com 250 lugares, vendendo massas, pratos semiprontos, além de doces e bolos decorados, salgados e, claro, pães. Abriram ainda uma loja no Tatuapé, com os mesmos produtos e serviços. “Aqui vendemos doces e salgados encontrados de norte a sul na Itália”, diz Paula, que passou toda a vida na Mooca. Ela define o sucesso da sua empresa como uma combinação de “Sorte, paciência e muito, muito trabalho.” Mas ela faz questão de ressaltar que a sorte começou cedo. “Ainda bem que meu avô errou o caminho e acabou aqui na Mooca;
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Paulo Pinto /AE
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José Luis da Conceição /AE
Entre os estabelecimentos mais tradicionais e disputados da Mooca estão a Pizzaria São Pedro (à direita) e o Elídio Bar, com mais de 130 tipos de petiscos
acho que eu não conseguiria ser feliz em outro lugar.” MARKETING COMEÇOU NA MOOCA
A Companhia Antarctica Paulista é outra fábrica que participou dos primeiros tempos da região. Fundada em 1891, começou a funcionar no bairro da Água Branca, mudando para a Mooca em 1904, quando a companhia adquiriu a antiga Cervejaria Bavária, instalada no parque industrial que atualmente é ocupado pela Antarctica. Entre os fundadores da empresa estava o geógrafo Teodoro Sampaio. Ao lado de outros sócios, como Antonio de Campos Sales, Asdrúbal Nascimento e o alemão Antonio Zerrenner, Sampaio participou da primeira assembléia da empresa. A expansão para fora da capital começou em 1914, com a inauguração de uma filial na cidade de Ribeirão Preto. A hoje gigante das cervejas, principalmente depois da criação da AmBev, alastra seus domínios pela América Latina e até Portugal. E pelo menos uma história mostra que
a companhia não progrediu por acaso. Na década de 30, época em que não se ouvia falar em marketing, a Antarctica Paulista já adotava estratégias inovadoras. Diariamente, levantava nos cartórios de registro civil da Mooca os nascimentos de crianças. Com os endereços em mãos, enviava às mães cartas personalizadas e uma caixa com 24 garrafas da cerveja escura Malzbier, desejando felicidades ao casal e ao recém-nascido e lembrando que o produto contribuía para aumentar a lactação. Para fortalecer o poder da mensagem, o rótulo exiba uma figura de uma mulher amamentando um bebê. EMPREENDEDORES DO FUTURO
Os tempos de contar com a sorte e algumas poucas mentes brilhantes, porém, terminaram. Para não acabar nas listas das empresas que um dia já foram grandes, mas feneceram, um dos caminhos seguidos pelos empreendedores atuais da Mooca é a associação, troca de informações e atualização. Com vistas ao futuro, ocorrem regularmente encontros
como o “Os Donos do Futuro: O Conhecimento a Favor de sua Empresa”, evento realizado no Clube Juventus que, em setembro de 2003, reuniu 3 mil pessoas. O objetivo do encontro, que teve como um dos organizadores a Associação Comercial de São Paulo, foi discutir com o empresariado os principais problemas da região, que concentra cerca de 30 mil empresas. E teve como palestrantes o presidente da Associação Comercial de São Paulo, Guilherme Afif Domingos, e o psiquiatra e consultor organizacional Roberto Shinyashiki. Na ocasião foi lançado o site Portal do Conhecimento dos Empresários da Zona Leste (www.unicid.br/portaldosempresarios), elaborado pelo pró-reitor da Universidade da Cidade de São Paulo (Unicid), Eduardo Fonseca Neto, e por professores de pós-graduação em administração de empresas da instituição. A página na Internet aborda tecnologias, questões fiscais, franquias, exportações, custo de mãode-obra e serviços.
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Um espanhol no comando da distrital dos italianos
Evandro Monteiro/Digna Imagem
“ “
SOU MAIS MOOQUENSE DO QUE SE TIVESSE NASCIDO AQUI.”
ANTONIO VICO MAÑAS, ATUAL DIRETOR-SUPERINTENDENTE DA DISTRITAL MOOCA
NÃO RARO, AS PESSOAS PENSAM NA ASSOCIAÇÃO COMERCIAL COMO UM CENTRO APENAS DE COMERCIANTES, MAS A ENTIDADE HOJE É... UM CANAL DE SERVIÇOS E UM FÓRUM DE DEBATES; TRABALHAMOS POR MELHORIAS DOS ARREDORES E PELA INTEGRAÇÃO DA COMUNIDADE...”
A. VICO MAÑAS
Sobrenomes italianos sempre predominaram em todos os quadros de dirigentes e conselheiros da Distrital Mooca da Associação Comercial, fundada em 8 de novembro de 1953. Mas hoje quem está no comando é um espanhol. O diretor-superintendente é Antonio Vico Mañas, de 56 anos, nascido na cidade de Barcelona, Espanha. Ele chegou ao Brasil no mesmo ano da inauguração da distrital, quanto tinha 5 anos de idade. E desde então mora na Mooca. “Sou mais mooquense do que se tivesse nascido aqui”, garante. Ao contrário do pintor Salvador Dali (1904-1989), com quem tem em comum a região de nascimento, o atual diretor-superintendente é realista e pragmático, embora também tenha grandes aspirações. Vico Mañas cursou a faculdade de Direito, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Afeito à vida acadêmica, fez mestrado e doutorado na área de administração, mas nunca foi comerciante ou empresário. Desde 2001 dirigindo a distrital, ele está em seu segundo mandato e tenciona mudar a imagem da entidade. “Não raro, as pessoas pensam na Associação Comercial como um centro apenas de comerciantes, mas a entidade hoje é mais abrangente, pois procuramos ser um canal de serviços e um fórum de debates; trabalhamos por melhorias dos arredores e pela integração da comunidade, seus profissionais liberais e empresas”, argumenta. Dentro da jurisdição da distrital estão, além da Mooca, Vila Prudente, São Matheus (dividido com Penha e São Miguel) e Brás. Entre os cerca de 5 mil empresários da região, 2.112 integram a Distrital Mooca. “Estamos fazendo campanhas para obter mais sócios”, conta. “Paralelo a isso, continuamos trabalhando firme para oferecer mais e melhores serviços aos associados.” Ele explica que procura sustentar sua administração sobre o tripé “questão social, segurança e cultura”. Na área social, há diversas instituições, cujos dirigentes estão diretamente ligados
A Casa Vida (acima e na página ao lado), coordenada pelo padre Júlio Lancelotti, abriga crianças com Aids e menores de rua. A instituição tem o apoio da ACSP
à Associação Comercial da Mooca, como a Creche ABC Novo Mundo, presidida por Jorge Apolo Bononi, um dos diretores da distrital. A entidade atende 300 crianças e adolescentes de baixo poder aquisitivo, promovendo atividades de expressão artística, esportiva, recreativa e base cultural, além de reforço alimentar. Há a Casa Vida, coordenada pelo padre Júlio Lancecotti, que presta serviços a crianças com Aids e menores de rua. Com sedes na Mooca e na Vila Prudente, é apoiada por empresários da Associação Comercial. Vico Mañas destaca ainda o Lar Dona Cotinha, que cuida de crianças abandonadas e cujo diretor, Kiyoshi Ushui, é conselheiro da distrital. Um dos projetos que contam com especial empenho do administrador é a Legião Mirim, projeto ligado ao Movimento Degrau (Desenvolvimento e Geração de Redes), que foi criado em março de 2002 com o objetivo de integrar adolescentes ao mercado de trabalho. Até hoje, 20 mil adolescentes conseguiram uma colocação no Estado
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Fotos: Luiz Prado
de São Paulo, segundo o Ministério do Trabalho. “Os meninos estudam e são remunerados: esse é um ótimo caminho para começar a capacitar e incluir jovens no mercado de trabalho”, diz Vico Mañas. SEGURANÇA PREVENTIVA
Na área de segurança, o superintendente relata que os esforços são centrados na prevenção, buscando, por exemplo, ajuda de empresários locais para iluminar as ruas. “Para o policiamento propriamente dito, contamos com o bom trabalho da polícia civil, que sob o comando do delegado Charles Kalil, mantém a Mooca um lugar tranqüilo para se viver”, elogia Vico Mañas. Um exemplo da baixa violência é que na Mooca, segundo o delegado, não ocorreu nenhum homicídio nos cinco primeiros meses de 2004. De acordo com ele, há “pequenos problemas” com roubos de carros, que já estão sendo resolvidos. Até o final de sua gestão, em 2005, Vico Mañas pretende ainda implantar sedes do Poupatempo em alguns
dos galpões abandonados. “Esses são lugares ideais, por serem grandes e bem localizados”, aponta. Na vertente cultura e conhecimento, o superintendente da distrital inclui cursos e workshops. Todo mês ocorre a palestra “Meu Negócio”, ministrada por um empresário, comerciante ou profissional da área de economia, política, educação e saúde. “O evento funciona para se trocar idéias e promover a reciclagem empresarial.” Uma parceria com a Universidade São Judas pode começar a dar resultados em breve. Estudantes de administração entrevistaram 200 moradores, escolhidos de acordo com localização e classes socio-econômicas, sobre quais imóveis merecem ser revitalizados na região. Os dados iniciais revelados na pesquisa apontam as casas da Rua dos Trilhos entre aquelas que deverão ser primeiramente restauradas, por seu valor histórico e arquitetônico. Os recursos para o projeto estão sendo arrecadados junto à iniciativa privada, com apoio da subprefeitura. Outra universidade
da região a se unir à distrital foi a Unicapital. Um grupo de estudantes está arrecadando livros para que sejam abertas novas bibliotecas públicas na Mooca. Em 2003, em comemoração aos 50 anos da distrital, começou a ser distribuído o Prêmio Destaque Zona Leste, para as personalidades que contribuíram para melhorar a vida da comunidade. Todo mês é promovida a entrega de prêmios, divididos nas categorias Terceiro Setor, Empresa, Autoridade, Imprensa e Ex-superintendente. “Estão dizendo que fazemos cerimônia demais, mas vamos continuar; só vamos parar de comemorar os 50 anos quando fizermos 51”, brinca o superintendente. E como tudo na Mooca acaba em macarronada, há também a festa italiana na Associação Comercial. Todo ano, no segundo semestre, é promovida uma confraternização com arrecadação revertida para entidades sociais. “Mas essa não é festa de discurso; é só para comer e conversar”, avisa Vico Mañas.
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3 milhões de hóspedes deixaram aqui um museu O Museu da Imigração consta em diversos guias internacionais como uma das atrações da cidade de São Paulo, mas não é muito conhecido por grande parte dos paulistanos. Localizado na fronteira entre os bairros da Mooca e do Brás, é visitado mensalmente por 10 mil pessoas. “Recebemos muitos turistas estrangeiros, mas pouca gente de fora da Zona Leste”, diz Midory Kimura Figuti, atual diretora da entidade. Inaugurado em 1887, o prédio foi construído para abrigar a Hospedaria do Imigrante, que recebeu quase três milhões de pessoas em suas dependências nos 91 anos de existência, fechando as portas em 1978. Midory, 66 anos, é brasileira, começou a trabalhar no local em 1959, como nutricionista. Mas sua história esteve ligada à hospedaria muito antes: em 1921, seu pai, Yoshikazu, desembarcara ali ao chegar do Japão. O pai morreu em 2003, aos 99 anos, e ela hoje está empenhada em resgatar as histórias dos imigrantes que ajudaram a formar o Brasil. O Museu da Imigração e Memorial do Imigrante foi criado em abril de 1998 com o objetivo de reunir, preservar e expor a documentação e a memória dos imigrantes. O conjunto ocupa uma área de 3 mil metros quadrados, apresentando exposições permanentes que revelam a história dos imigrantes chegados à cidade nas primeiras décadas do século, além de curiosidades, como roupas e carros antigos. Há salas que exibem objetos utilizados pelos estrangeiros, como utensílios de trabalho, peças de uso doméstico e fotos. Há ainda depoimentos gravados por imigrantes, arquivo iconográfico e biblioteca com 1.200 títulos. Quem quiser buscar suas origens para compor a árvore genealógica da família, pode procurar o serviço do museu que emite certidões atestando o desembarque de imigrantes no porto de Santos, de 1882 a 1978, com base nos registros da antiga hospedaria. A diretora do museu incentiva também a doação de material, para ampliar a área de exposição. “Pedimos que sejam doados objetos que possam mostrar como era a vida de seus antepassados”, diz.
Localizado entre os bairros da Mooca e do Brás, o Museu do Imigrante recebe a cada mês cerca de 10 mil visitantes. Inaugurado em 1887, o prédio (abaixo) a princípio era uma hospedaria
Aos domingos, ocorre no pátio do museu um animado almoço, com barracas que vendem macarronadas, pizzas e outras massas, e cantores de músicas italianas. E nos finais de semana e feriados, é possível também passear de bonde pelas ruas da Mooca, e de mariafumaça, restauradas nos moldes do começo do século, em um trajeto de um quilômetro. O Núcleo Museológico da Mooca, de dimensões menores, faz um trabalho parecido com o do Museu do Imigrante, mas mantém a proposta de resgatar a história de antigos moradores da região. Instalado em agosto de 1986 nas dependências da Biblioteca Municipal Affonso Taunay, possui considerável acervo fotográfico, documentos originais, instrumentos musicais, entre diversos objetos, inclusive uma máquina de tapeçaria de 1930. Três ou quatro gerações depois, os vestígios da imigração começam a se perder na memória, daí a importância do trabalho desses museus. Prova disso é o pequeno Arthur Kenji Furuko Sakai, de 8 anos, que integrava um grupo de 30 crianças participantes do passeio de maria-fumaça especialmente organizado para receber escolares do ensino básico. O menino de traços orientais andava de trem pela primeira vez na vida, e depois das explicações dos orientadores, começou a se questionar como teriam
chegado ao Brasil os seus antepassados. “Será que vieram num trem como este?”
Museu da Imigração e Memorial do Imigrante: Rua Visconde de Parnaíba, 1.316, Mooca. Tel. 692-9218. Diariamente, das 10h às 17h. Próximo à estação Bresser do metrô. Ingressos: R$ 4 adultos. Biblioteca Affonso Taunay e Núcleo Museológico da Mooca: Rua Taquari, Mooca (em frente à Universidade São Judas). Abertos de segunda a sexta-feira, das 9h às 17h, e aos sábados das 8 às 14h.
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Fotos: Milton Michida/Digna Imagem
Museu do Imigrante: nos finais de semana é possível fazer um passeio de maria-fumaça. Restaurada nos moldes do começo do século, ela percorre o trajeto de um quilômetro
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Fotos: Reprodução
EU ARRANJEI O MEU DINHEIRO/ TRABALHANDO O ANO INTEIRO/ NUMA CERÂMICA/ FABRICANDO POTES E LÁ NO ALTO DA MOOCA/ EU COMPREI UM LINDO LOTE DEZ DE FRENTE E DEZ DE FUNDOS/ CONSTRUÍ MINHA MALOCA”. TRECHO
Os “demônios” da terra da garoa O conjunto mais paulistano de todos os tempos, o Demônios da Garoa, nasceu na Mooca. Embora a composição atual conserve apenas dois mooquenses entre os seis integrantes, o grupo mantém seu estúdio no bairro e continua cantando as canções de seu mais famoso compositor, Adoniran Barbosa (1910-1982). O grupo tornou célebre a canção Trem das Onze, eleita em 2000, por telespectadores do telejornal SP-TV, da Rede Globo, a música que melhor representa a cidade de São Paulo. E a música não fica de fora de nenhuma apresentação do grupo. Os fãs exigem que seja tocada. “A gente às vezes enjoa um pouco dela, mas tem que cantar sempre”, diz Sérgio Rosa, o Serginho, de 49 anos, filho de Arnaldo Rosa, um dos fundadores do Demônios da Garoa. A parceria entre Adoniran Barbosa e os Demônios da Garoa, iniciada na década de 1940, permanece até hoje. Todas as apresentações do conjunto incluem músicas do compositor. Filho de imigrantes italianos, Adoniran Barbosa – cujo verdadeiro nome era João Rubinato – nasceu em Valinhos, interior do Estado de São Paulo, mas acabou tornando-se o sambista mais paulistano que já existiu. E ele viveu o que cantou. Boêmio e fumante convicto, morreu em São Paulo no dia 23 de novembro de 1982, aos 72 anos de idade. Durante toda a vida, ele próprio gravou apenas três discos. Os Demônios da Garoa imprimiram características próprias às músicas de Adoniran. “O grupo inventou aquele ‘quais, quais, quais’ meio malandro”, diz Sérgio Rosa. Eles contam que, inicialmente, Adoniran não gostou da interpretação, mas ao ver suas músicas fazerem tanto sucesso, deu total liberdade aos intérpretes. Não apenas Trem das Onze, mas muitas das músicas de Adoniran retratam aspectos da vida paulistana: construções urbanas, como Viaduto Santa Efigênia, Praça da Sé, desigualdades sociais (Despejo na Favela, Saudosa Maloca), as inundações (Samba Italiano); conflitos de gerações (Já Fui Uma Brasa, Envelhecer é uma Arte). Sempre com o sotaque que lembra o dos imigrantes italianos, teve entre os maiores
“
DA CANÇÃO ABRIGO DE VAGABUNDOS, DE ADONIRAN BARBOSA
O mais paulistano dos conjuntos, o Demônios da Garoa, surgiu na Mooca. O grupo mantém estúdio no bairro e canta músicas de Adoniran Barbosa
sucessos Tiro ao Álvaro, que chegou a ser gravado por Elis Regina, e Samba do Arnesto, ambas clássicos do samba. SERENATAS PAULISTANAS
Os Demônios da Garoa nasceram com o nome de Grupo do Luar, participando de festas de aniversários dos amigos e fazendo serenatas nas janelas de moças da Mooca. Um dia o radialista Vicente Leporace os ouviu cantar e ficou encantado. Eles, então, cantaram em 1943 num programa de calouros da rádio Bandeirantes, ganhando um contrato com as Emissoras Unidas (Bandeirantes, Record, Panamericana e São Paulo). Passaram a se apresentar no rádio três vezes por semana. O potencial vocal do grupo foi classificado pelo radialista como “demoníaco”, surgindo daí o nome com o qual se profissionalizaram, que homenageou também a proverbial chuva fina de São Paulo. A primeira formação tinha os paulistanos da Mooca FranciscoPaulo Gallo, Artur Bernardo e os irmãos Claúdio e Arnaldo Rosa, além de Antônio Gomes Neto, que era de Jaú, interior de São Paulo. Os ensaios aconteciam na casa da mãe de Arnaldo, na Rua Cassandoca, paralela à Rua dos Trilhos. Sérgio Rosa, filho
de Arnaldo e integrante do grupo desde 1987, diz que já nasceu “um pequeno demônio da garoa”, porque ia aos ensaios com o pai. “Eu era o fã número zero dos Demônios.” Hoje com 49 anos, Sérgio recorda a infância no bairro da Mooca. “Joguei muita bola nos campinhos, soltei pipa; nos finais de semana a meninada toda ia para o centro esportivo”, conta. “Felizmente, a Mooca pouco mudou nesses anos todos.” O primeiro disco, de 78 RPM, foi lançado em julho de 1950. Em 1951, o grupo gravou pela primeira vez uma composição de Adoniran, Marvina. A música caiu no gosto do público e atrelou para sempre compositor e intérpretes. No total, o grupo gravou 26 discos de 78 RPM e dezenas de Lps. A edição de 1994 do Guinness World Records, o livro dos recordes, registra o Demônios da Garoa como o conjunto mais antigo em atividade no mundo. Orgulhosos do título, eles mantêm em lugar de destaque na antesala do estúdio o quadro com a menção emoldurada. Há dois anos o grupo se apresenta regularmente no Bar Brahma, no centro da cidade. O show acontece toda quarta à noite e no almoço de domingo.
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Fotos: Newton Santos/ Digna Imagem
O poeta mooquense e o visitante apaixonado É raro quem não o conheça no bairro. Ele sabe onde e quando estão acontecendo todas as festas, palestras, inaugurações, eventos esportivos, oficiais e sociais da região, além de ter na ponta da língua a história da Mooca desde os primórdios. Trata-se de Raphael Luongo Cardamone, o Raluca. Filho de um italiano, Angelo Cardamone, e de uma americana, Raquel Luongo, ao se apresentar, Raluca diz ser imigrante: “Nasci no Brás e emigrei para a Mooca quando tinha dois anos de idade.” Seu avô materno, Domingos Luongo, foi dono de um casarão na Avenida Paes de Barros e de uma das primeiras casas lotéricas de São Paulo: a Casa Lotérica Luongo, instalada na Rua XV de Novembro, no centro da cidade. Raluca vive num pequeno apartamento, sustenta-se com o que recebe da aposentadoria, e no dia-a-dia segue a rotina de almoçar no restaurante por quilo da esquina, distribuir seus poemas e todos os dias visitar a mãe, Raquel, de 94 anos. Ele diz ter escrito mais de 500 poemas, sempre à mão. Conhecido no bairro, o mooquense tira cópias de seus poemas e sai distribuindo. Toda semana há um texto novo de Raluca nos bares, padarias, restaurantes, farmácias e lojas da região. “Não tenho dinheiro, mas tenho orgulho de ser poeta e cidadão mooquense”, afirma. Além de escrever, cultiva a história da região e protege as tradições do bairro. Há dois anos ficou revoltado com as novas placas da Rua da Mooca. “Colocaram Mooca com acento! Um acinte!”, esbraveja. Em março de 1993, ele fez campanha, mandou ofício para a Prefeitura, brigou e esperou até que os técnicos da subprefeitura foram ao local e rasparam, um a um, os acentos das placas da rua. “Acompanhei de perto todo o trajeto, porque o nome de um lugar é a sua identidade: precisa ser respeitado, e todos sabemos que Mooca não tem acento.” MOOQUENSE DE CORAÇÃO
A Mooca tem a fidelidade dos antigos, que não a deixam por nada, e começa a atrair pessoas de outros bairros e até de outras cidades. O engenheiro
Juventus, o clube da maior torcida de São Paulo Raphael Cardamone liderou campanha para corrigir o nome do bairro nas placas de rua
Fanático por pizzas, o engenheiro Fabio Egashira, diz estar habituado ao bairro
eletricista Fabio Sene Egashira, 26 anos, é um dos novos e já apaixonados moradores. Há pouco mais de um ano, em janeiro de 2003, mudou-se para um apartamento de 60 metros quadrados na Rua do Oratório, uma das vias mais tradicionais, que faz esquina com a Avenida Paes de Barros. Egashira nasceu em Taubaté, interior de São Paulo, e veio para São Paulo em 1996 para estudar na USP. Morou no Butantã e depois na Vila Madalena. Quando começou a procurar apartamento para comprar sua primeira opção era a Zona Oeste, região onde sempre tinha morado, mas acabou achando um na Mooca, com ótimo custo-benefício e o comprou, ainda em construção. Fanático por pizzas e massas, ele diz que a Mooca “é um paraíso”, devido ao grande número de cantinas e restaurantes italianos. Outro aspecto do bairro que encanta Egashira é a paisagem humana, em especial a profusão de jovens descendentes de italianos da região. “Essas italianinhas são muito bonitas”, elogia. Para o futuro, talvez quando se casar e tiver filhos, planeja comprar um apartamento maior. “Mas pretendo me manter aqui na Mooca: já virei moquense.”
O Clube Atlético Juventus fez 80 anos em abril. Os juventinos repetem que “é impossível falar da Mooca sem falar do Clube Atlético Juventus e vice-versa”. E eles sabem o que dizem. O clube surgiu como agremiação dos funcionários do Cotonifício Rodolfo Crespi, indústria que prosperou na região nos anos 30 e 40. Raphael Luongo Cardamore, pitoresca figura da região, que já jogou futebol de salão e lutou boxe no Juventus, tem uma curiosa teoria sobre o Juventus ser o clube com mais torcedores na cidade. “Muita gente torce para outros times, mas o Juventus é o segundo clube da grande maioria dos paulistanos e, assim, sua torcida é a maior de São Paulo.” O presidente atual do Juventus, Armando Raucci, confirma a teoria. Mooquense e juventino, ele diz que ser também sãopaulino não fere sua devoção juventina. “A gente precisa ter um time grande para torcer, porque o Juventus nunca foi uma equipe de ganhar campeonatos importantes”, pondera Francisco Aparecido Romanucci, o viceClóvis Ferreira/Digna Imagem presidente do clube. O Juventus surgiu em 1924, pelas mãos do italiano Vicente Romano, que, juntamente com o seu colega português Manoel Vieira de Souza, ambos funcionários do Cotonifício Rodolfo Crespi, resolveu fundar um clube de futebol, com a intenção de participar de jogos amistosos na várzea paulista. O clube chamou-se “La Greca” e a dupla de amigos assumiu a direção do clube e recrutou jogadores entre os funcionários da indústria. Paralelo à prosperidade da fábrica, a equipe de futebol começou
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Fotos: Clóvis Ferreira/Digna Imagem
a ganhar disputas e tornar-se conhecida no cenário esportivo. Os donos da empresa passaram a acompanhar de perto as atuações do time. Em 1925, Adriano Crespi sugeriu a mudança do nome para Cotonifício Rodolfo Crespi Futebol Clube, cedeu espaço para a construção do campo e iniciou campanhas para inscrever o time na Associação Paulista de Esportes Athleticos (APEA), entidade que dominava o futebol paulista na época. Em 1929, o time disputou e se tornou campeão do Campeonato da Liga Amadora de Futebol. Em novembro daquele ano inaugurou o estádio na Rua Javari, e ganhou a oportunidade de jogar na divisão principal. Mas para disputar uma competição com a elite paulista, foi decidido que o nome do time seria mudado. Depois de várias trocas, em 1935 – uma ano depois que se consagrou-se campeão amador do estado, invicto – ficou decidido que seu nome seria C. A. Juventus. Em 1958, foi construído um salão junto ao estádio para realização de festas, bailes de carnaval, jogos de basquete, lutas de boxe e outros eventos culturais e esportivos. Em 1960, a diretoria presidida por Roberto Ugolini decidiu transformar o clube. A nova sede seria erguida numa área de 85 mil m2 no Parque da Mooca. Em poucos meses, milhares de títulos foram vendidos e no dia 17 de abril de 1962 foi assentada a pedra fundamental do parque poliesportivo, onde funciona a sede social do clube. Foram construídos ginásios de basquete, vôlei, futebol de salão, caratê-judô e bocha, além de uma completa infra-estrutura à disposição dos seus 40 mil sócios.
Hoje com 40 mil sócios e completa infra-estrutura, o Clube Juventus surgiu em 1924 pelas mãos de um italiano e um português. Os mais velhos aproveitam uma partida de bocha. Há quadras de basquete, vôlei e futebol
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Ta t u a p é Newton Santos/Digna Imagem
Textos de Denise Ramiro
Desde 1971, os 97.272 m2 do Parque do Piqueri, com paineiras que atraem beija-flores, são uma opção de lazer
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Tatuapé: o gigante da Zona Leste No final do século 19 o Tatuapé era uma área rural, como a maioria das comunidades paulistanas afastadas do centro da cidade. Por isso mesmo, a população que vivia ali se dedicava basicamente ao cultivo de lavouras. Uma peculiaridade do bairro, porém, lhe conferiu charme e notoriedade. Poucos sabem que, nas primeiras décadas do século 20, o Tatuapé foi o maior empreendedor vitícola do país, graças à persistência de imigrantes italianos que chegaram por ali na época. O clima ameno e a terra fértil ajudavam no desenvolvimento bem-sucedido de várias espécies de frutas na região. Mas a ligação da uva com o bairro era especial e sua origem, bastante remota. Muito antes dos italianos, a fruta nobre já fincara raiz no solo tatuapeense. Logo após o descobrimento do Brasil, o desbravador português Braz Cubas, apreciador de vinho, iniciou o cultivo de uvas no local. Ele chegou à região em torno de 1560, para procurar ouro e pedras preciosas a pedido de Mem de Sá, o terceiro governador-geral do Brasil. Não achou o rico metal, mas para sua alegria conseguiu produzir a bebida (que já havia tentado fazer, sem sucesso, no litoral paulista) para consumo próprio e dos padres que rezavam as missas das Capitanias. Cubas se instalou junto à confluência do Rio Tietê e do ribeirão que deu nome ao bairro, na parte baixa do terreno, próxima ao atual Parque do Piqueri. Além da uva, Cubas desenvolveu também outras culturas e iniciou a criação de porcos e gado bovino. Ele os fornecia à Vila de Piratininga, desabastecida pela revolta dos índios Piqueris, resistentes à catequização. O lugar viveu um período de apatia devido a esse episódio e um novo ciclo de desenvolvimento só viria quase um século depois. Esse ciclo coincidiu com a transferência das terras de Braz Cubas para as mãos do padre Mateus Nunes de Siqueira, que ampliou a sua extensão e, conseqüentemente, a área atual do bairro. Na data em que o documento foi registrado, 5 de setembro de 1668, passou a ser comemorado o aniversário do bairro. É dessa época a Casa do Tatuapé, hoje Museu do Tatuapé, construída pelo processo de taipa de pilão, característica do período bandeirista. Ela hoje faz parte das Casas Históricas do Município. As terras da parte alta, onde atualmente se localiza o nobre bairro Jardim Anália Franco, também começaram a ser exploradas por outro grande desbravador, Francisco Velho. Nesse período, que se estendeu por dois séculos, a agricultura permaneceu como a principal atividade do local.
O grande impulso para o desenvolvimento do Tatuapé se deu justamente na parte baixa do bairro, em 1865, com a abertura da Estrada da Penha, única opção para quem queria se dirigir do centro de São Paulo para a capital do país, o Rio de Janeiro. Uma década depois, a região ganhou estímulo com a inauguração da Estrada de Ferro do Norte, a Central do Brasil, que ligaria o bairro do Brás a Mogi das Cruzes. Sem contar que favoreceria outra atividade econômica que começava a surgir na região: a produção de tijolos e a extração de areia. Elas tinham no Rio Tietê o melhor escoadouro para as mercadorias que seguiam para os bairros centrais da cidade. Paulo Pinto/AE
O Tatuapé é um dos bairros mais bem servidos de comércio e serviço da Zona Leste da cidade
O imponente rio também era a melhor alternativa de lazer dos tatuapeenses. As famílias faziam piqueniques às margens do rio, os homens pescavam bagres, lambaris, entre outros peixes, e a criançada nadava na água cristalina. A região tinha flora e fauna abundantes. Além do tatu, que deu origem ao nome do bairro (em tupiguarani Tatuapé significa caminho do tatu), preás e capivaras eram vistas nas matas que margeavam o Tietê. A vegetação exuberante de paineiras, ipês, cambuis e ingás atraiu o conde Francisco Matarazzo, que comprou a Chácara do Piqueri, a mesma que pertenceu a Braz Cubas nos idos de 1560. Lá ele desfrutava com a família
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Fotos: Reprodução/Arquivo/Gazeta do Tatuapé
AOS DOMINGOS, OS HOMENS SAIAM ANSIOSOS PARA OS CAMPOS DE VÁRZEA PARA JOGAR OU TORCER. ESSA PAIXÃO FUTEBOLÍSTICA ACABOU CONSAGRADA COM A INSTALAÇÃO ALI DO CAMPO DO MAIS POPULAR DOS TIMES PAULISTAS, O CORINTHIANS, QUE CHEGOU AO BAIRRO EM 1910
O Sampaio Moreira (alto) era um dos 200 clubes de futebol de várzea da região. A disputa com seu principal adversário, o Vila Primavera (esq.), tinha a mesma paixão dos clássicos estaduais de hoje
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princípio do século passado, o bonde elétrico era o único meio de momentos de descanso, recebia políticos importantes e realizava transporte coletivo, que passava pela Estrada da Penha e, portanto, festas para a alta sociedade paulistana (em 1971, a prefeitura servia a toda população do bairro. Até a década de 40, as escolas da desapropriou o terreno, que foi transformado em opção de lazer região não ofereciam o curso ginasial. Por isso, acabando o curso para a população, inaugurando o Parque do Piqueri). primário, os alunos tinham que descer para a Avenida Celso GarPiqueniques e pescarias não eram, porém, as únicas diversões no cia para continuar os estudos. Também na parte baixa estava, até a Tatuapé do início do século 20, ao menos para a população mascudécada de 50, o único cinema da região, o São Luiz, que não existe lina. A região chegou a reunir mais de 200 clubes de futebol de mais. Era na Celso Garcia o ponto da paquera. Os moços forvárzea, quando a modalidade começava a despontar como o mais mavam um corredor e as moças, em duplas, desfilavam por ali nos expressivo esporte nacional. A rivalidade entre os times da parte finais de semana, trajando suas melhores roupas. Os moradores se baixa e alta do bairro, dizem os moradores mais antigos, tinha a reuniam também nas famosas quermesses realizadas pelas igrejas. mesma paixão dos grandes clássicos estaduais de hoje. Um deles, o Com o aumento da população, os moradores, que eram abasteciSampaio Moreira, da parte baixa do Tatuapé, fundado em 1928, dos pelos caixeiros viajantes e ambulantes até a década de 20, pasexiste até hoje e mantém atividades nas categorias de base. Seu sam a contar com um comércio mais estruturado. Muitos deles aberprincipal adversário, que representava o alto Tatuapé, era o Vila tos por imigrantes italianos, portugueses, espanhóis, sírios, entre Primavera. outros. Surgiram nessa época também os armarinhos, padarias, farAos domingos, enquanto as mulheres iam para a cozinha, os mácias e açougues. Nos anos 20 homens saiam ansiosos para os e 30 uma nova atividade econôcampos de várzea para jogar ou Sebastião Moreira/AE mica chegou ao bairro, a industorcer. “Muitas vezes o jogo trial, que iria mudar o perfil do acabava em batalha campal enbairro. As duas primeiras fábritre jogadores, torcedores e dicas foram a Duperial, inauguraretoria dos clubes. Chegaram a da em 1920, que produzia tapepromover verdadeiras quetes e passadeiras com preços bradeiras nas sedes dos times mais acessíveis, feitos à base de adversários”, conta o historiaprodutos químicos, e a Tecelador Pedro Abarca, que há gem Tatuapé, do Grupo Santismuitos anos estuda o bairro. ta, que começou a operar em Essa paixão futebolística aca1928. Depois chegaram outras bou consagrada com a instalaempresas do setor têxtil, como ção ali do campo do mais poa Tabacow, a Tecelagem Textípular dos times paulistas, o lia e o Cotonifício Guilherme Corinthians, que chegou ao Giorgi. A industrialização do bairro em 1910 e conquistou o bairro se deu pela grande ofercoração de várias gerações de ta de áreas rurais, que atraíram tatuapeenses. indústrias de bairros já saturaCom a instalação da linha dos (Brás, Mooca e Ipiranga), férrea e da estrada da Penha foi interessadas em expandir ou natural que a parte baixa do implantar novos negócios. bairro se desenvolvesse mais Várias empresas do setor têxtil instalaram-se na região, como a Tecelagem Tatuapé, a Tabacow, a Textília e o Cotonifício Guilherme Giorgi (foto) Além das tecelagens, instalarapidamente. Alguns historiram-se ali as tinturarias, fáadores adotaram o critério de bricas de cofres, móveis, colchões e metalúrgicas. dividir o bairro em duas partes, a antiga e a nova (parte alta). A Junto com elas, veio a necessidade de infra-estrutura mais adeprimeira vai do Rio Tietê até a linha Leste-Oeste do Metrô, onde quada. A energia elétrica substituiu os lampiões, o asfalto cobriu antes passavam os trilhos da Central do Brasil, tendo como limites as principais ruas, as redes de água e esgoto atingiram vários ponlaterais a Avenida Salim Farah Maluf e Ribeirão Aricanduva. A tos da região. Os primeiros telefones chegaram ao bairro e surgioutra vai da linha do Metrô até o Jardim Anália Franco, tendo os ram novas linhas de ônibus. Depois de 30 anos de permanência no mesmos limites laterais da parte antiga. Esta é formada por casas bairro, o Tatuapé também ficou pequeno para a ambição dos térreas, sobrados e palacetes. No setor antigo, ao contrário, pregrandes empresários. Leis ambientais mais rígidas e questões de dominam as construções verticalizadas, que se ocuparam das logística afastaram as indústrias do local. Chegava a era do desengrandes áreas rurais vazias. volvimento imobiliário. As construtoras disputavam terrenos com Ironicamente, a divisão topográfica foi responsável pela sepaas empresas, pagando preços salgados para erguer prédios. Na ração e aproximação dos moradores das partes alta e baixa. No
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Arquivo/Gazeta do Tatuapé
parte alta, surgiam os primeiros condomínios de alto padrão. Caso do Jardim Anália Franco, conhecido como o Morumbi do Tatuapé. A educadora que deu nome à luxuosa área residencial da Zona Leste fundou em 1901, junto com senhoras da sociedade paulistana, o Lar Anália Franco. A instituição, que existe até hoje, cuidava na época de crianças órfãs, mães solteiras e todo tipo de pessoas desamparadas. Hoje o bairro do Tatuapé ocupa a posição de um dos bairros mais importantes de São Paulo e o mais bem servido de comércio e serviços da Zona Leste da cidade. Conta com duas estações de Metrô – Tatuapé e Carrão – que propiciaram um desenvolvimento de destaque entre os bairros da Zona Leste. Há também shopping centers e hipermercados, dezenas de escolas e universidades particulares. O bairro cresceu, é inegável. Mas ao andar por suas ruas percebe-se que ele ainda mantém o melhor de um passado recente, a amizade entre os moradores, que só se vê nas cidades do interior. Fotos: Jaime Braz Romano/Gazeta do Tatuapé
Arquivo
Fundado em 1901, o Lar Anália Franco é mantido pela Associação Feminina Beneficente e atende mães solteiras, crianças órfãs e pessoas desamparadas
Quando o Lar Anália Franco foi fundando, o Tatuapé era uma predominantemente rural. Hoje, a entidade é rodeada por uma área residencial com imóveis de alto padrão
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Fotos: Jaime Braz Romano/Gazeta do Tatuapé
Vista aérea e detalhe do lar Anália Franco, batizado em homenagem à sua fundadora, educadora que dedicou sua vida fundando abrigos para órfãos, creches e escolas maternais
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Fotos: Evandro Monteiro/Digna Imagem
Uma padaria e muitas histórias para contar Numa manhã ensolarada de abril, Alfredo Martins, de 83 anos, conversa com amigos de infância em frente à Padaria Lisboa, a mais antiga do Tatuapé. Os colegas foram lhe presentear com uma foto amarelada da formatura da turma de ginásio, que ele mostra com orgulho aos funcionários da padaria. A recordação puxa outras memórias e ele começa a contar histórias de sua meninice, do bairro e do estabelecimento. Quando seu tio abriu a padaria, em 1913, a praça Silvio Romero, onde ela está instalada até hoje, já existia. No coração do Tatuapé, a praça atualmente é cercada pelo comércio e por carros apressados. Era ali que as famílias assistiam às missas na pequena capela e passeavam nas tardes de domingo. A história de seu Alfredo com a padaria começou quando ele tinha oito anos. Já fez de tudo: entregou pão pelo bairro a pé, preparou a massa para fazer o filão (não existia pãozinho francês na época), cuidou do balcão e do caixa. “Fazia conta de cabeça, hoje os jovens não vivem sem uma calculadora”, observa. O falante e risonho seu Alfredo se emociona ao lembrar da infância. Ainda mais quando o assunto é o Corinthians, o time do coração. Fala de jogadores antigos do clube, da inauguração do Parque São Jorge e do Pacaembu. Recorda a estréia de Leônidas da Silva, o Diamante Negro, “que deu um nó na armação tática do seu time”. Para ele, o Tatuapé é um bairro feliz porque tem o Corinthians. Alfredo também gosta de lembrar da sua carreira política. Foi o primeiro presidente da Sociedade União Amigos do Tatuapé, que o lançou candidato do bairro a vereador, função exercida por 30 anos. A carreira política, porém, nunca atrapalhou sua vida de comerciante. Ao contrário, a atividade serviu de cabo eleitoral. “Como comerciante fiquei conhecido e fiz muitos amigos. A padaria era o meu melhor escritório político”. A Padaria Lisboa passou por transformações ao longo dos anos. O carro-chefe da casa, o pãozinho especial, ainda é vendido ali. O segredo de um pão gostoso, revela Alfredo,
Rafael Costa Martins, Alfredo Martins e Flávio Martins comandam a mais antiga padaria do Tatuapé, instalada na praça mais famosa do bairro
é usar farinha especial e assá-lo em forno à lenha, técnica que ainda não abandonou. Aprendeu tudo com o pai e o tio materno. Quando o pai morreu, em 1934, o tio, solteiro, foi morar com a família de Alfredo e tocou o negócio com a irmã até passar o estabelecimento para o nome dos sobrinhos. Hoje conta com a ajuda do filho Alfredinho e do neto Rafael. Tem ainda uma loja de importados, que funciona ao lado da padaria. Seu Alfredo trabalha todos os dias. O segredo de tanta vitalidade talvez venha da sua filosofia de vida. “Nunca deixe de trabalhar. Tudo o que aconteceu ontem não leve para amanhã. Amanhã é outro dia”, aconselha o simpático senhor. DE CARROÇAS ÀS CÂMARAS FRIGORÍFICAS
A história de uma das mais tradicionais empresas do Tatuapé, a São Rafael, que começou fazendo carroças e agora fabrica câmaras frigoríficas, vem de longe. Quem começou tudo foi o imigrante italiano Augusto Rafael Boccia, que chegou ao Brasil em 1906, aos 17 anos, contratado como operário de obras na região Norte do país. Anos mais tarde veio para São Paulo, onde abriu uma oficina de carroças - o meio de transporte mais utilizado na época e o que o napolitano Augusto melhor sabia fazer - ao lado do que hoje
é a Praça Roosevelt. Augusto conheceu sua esposa, Natália Giacometti, com quem teve seis filhos, na região. Ela revelaria logo a sua vocação para os negócios: em 1933, alugou um terreno no bairro do Tatuapé e registrou a Fábrica de Carrocerias São Rafael de Natália Giacometti. “Vovó foi a alma do negócio, era esperta e cheia de iniciativa. O vovô fazia bem o ofício, mas não gostava da parte burocrática”, conta Amadeo Boccia, 71 anos que hoje comanda a empresa. A evolução do negócio passou das carroças abertas para os modelos térmicos, feitos com palha de arroz e cortiça. Com a chegada das primeiras montadoras ao Brasil, a São Rafael prosperou. Novas demandas surgiram e chegou a vez das carrocerias refrigeradas, que passaram por várias inovações tecnológicas. A partir de 1990, com leis ambientais mais rígidas, a família mudou de ramo. A fibra de vidro, base da produção, era muito poluente. Hoje a empresa se concentra na fabricação de câmaras frigoríficas e está prestes a sair do Tatuapé, levando consigo parte da história do bairro. “O Tatuapé não comporta mais indústrias, deve seguir sua vocação residencial, comercial e de serviços”, diz Amadeo. A empresa vai embora, mas o exemplo de luta da família Boccia fica.
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Fotos: Paulo Pampolin/Digna Imagem
A saga da família Marengo Quem visita o imóvel instalado no número 5632 da movimentada Avenida Celso Garcia, no Tatuapé, tem uma agradável surpresa. Nem pode imaginar o que vai encontrar lá dentro, mesmo com um olhar mais atento à entrada da propriedade, onde uma placa de pastilhas de azulejo traz a inscrição “Estabelecimentos Agrícolas Marengo”. Trata-se de uma chácara muito arborizada onde se comercializam mudas de plantas frutíferas e de flores. É ali que João Cesar Marengo mantém o negócio centenário da família de imigrantes italianos que se instalou no Tatuapé em 1887 e fez história no bairro. Tudo começou com o seu tataravô, Benedecto Marengo. Ele comprou uma gleba de terra na Vila Gomes Cardim para cultivar uvas importadas. Dos Estados Unidos trouxe a Niágara branca, a uva de mesa, que se adaptou perfeitamente ao solo tatuapeense, se espalhou para todo país e ficou conhecida como “uva Marengo”. Com a morte precoce de Benedecto, aos 49 anos, seu filho Francisco assumiu o negócio em 1897, com apenas 22 anos. Ele ampliou ainda mais a variedade de uvas, com espécies importadas da Europa e dos Estados Unidos. No final dos anos 30 adquiriu novo terreno, na Avenida Celso Garcia (onde hoje se localiza o Hospital Municipal do Tatuapé), que virou opção de lazer para os paulistanos. Aos domingos o lugar era aberto à visitação e moradores de vários bairros passavam agradáveis tardes degustando as deliciosas uvas. Entre os prêmios que o estabelecimento recebeu, o mais importante foi o de melhor cultivador de uvas do Brasil, em uma exposição internacional, realizada em 1922. Francisco faleceu em 1959 e o filho Cesar assumiu o negócio com o mesmo sucesso do avô e do pai. Durante sua administração, o Parque Marengo foi desapropriado e a chácara mudou-se para mesma avenida, onde está até hoje. Visitantes ilustres sempre fizeram parte da clientela do estabelecimento. Entre as várias personalidades que freqüentavam o local estiveram políticos como Jânio Quadros e Adhemar de Barros, além de figuras inusitadas, como o ator Jonathan
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NÃO POSSO DEIXAR QUE TUDO SE PERCA. DEVO ISSO AO TATUAPÉ”
JOÃO CESAR MARENGO, PROPRIETÁRIO DO ESTABELECIMENTOS AGRÍCOLAS MARENGO
Reprodução
João Marengo quer manter viva a história da família cujo sobrenome virou, no País, o apelido da uva Niágara Branca, a uva de mesa
Harris, o “doutor Smith” do seriado de tevê Perdidos no Espaço. De César, o negócio passou para seu filho Cláudio, a quem coube manter o que restou do maior empreendimento vitícula de São Paulo até falecer em 1999. Mas a saga não parou por aí. João Cesar, filho de Claudio, está decidido a manter viva a história
dos Marengo. Quer restaurar a casa centenária da propriedade para fazer ali um museu da família, incrementar o comércio de plantas e abrir o local à visitação. Seu irmão Francisco cultiva mudas na fazenda da família, no interior paulista. “Não posso deixar que tudo se perca. Devo isso ao Tatuapé”, diz João.
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Fotos: Paulo Pampolin/Digna Imagem
A chácara Marengo mudou de vocação: passou de vinícola para o comércio de mudas de plantas frutíferas e flores, com a de bico de papagaio (acima)
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Um Brasil para ajudar a cuidar do Tatuapé Depois de viver intensa fase industrial, as atividades comerciais passaram a ditar os rumos da economia no Tatuapé. Isso levou à necessidade de uma entidade que representasse os empresários do ramo. Em 25 de novembro de 1991 surgiu então a Distrital do Tatuapé da Associação Comercial de São Paulo, sediada na Rua Padre Adelino, 2074, próxima à Praça Silvio Romero. Além do Tatuapé, a distrital engloba também os bairros Parque São Jorge, Carrão, Vila Formosa, Aricanduva e São Mateus. Os associados da região formam um grupo de mais de 1,8 mil comerciantes. Há cerca de um ano, a distrital está sob o comando de Dirceu de Paula Brasil, que tem participado ativamente dos eventos marcantes do Tatuapé e região, visando beneficiar o empresariado e a comunidade. Em sua gestão, o superintendente vem atuando em parceria com as subprefeituras locais, para promover melhorias nos bairros. Entre as ações em desenvolvimento destacam-se as reformas da Praça Silvio Romero, que fica no coração do bairro, e da Praça Nicola Antonio Camardo. A melhoria da iluminação pública, com a troca de lâmpadas brancas pelas amarelas de sódio, também está entre as iniciativas. Está ainda nos planos de Brasil a construção de um “Marco da Paz” na Praça Silvio Romero. O esforço de integração com a comunidade vem sendo reconhecido por representativos setores da sociedade local. Em novembro passado, por ocasião das comemorações dos 335 aos de fundação do Tatuapé, Brasil recebeu o I Título em Excelência em Integração e o título de Empresário de 2003, concedido pelo Jornal Zona Leste. Natural de São Paulo, Brasil nasceu no bairro da Mooca, mas reside há muitos anos no Tatuapé. Iniciou sua vida profissional em 1948, aos 12 anos, e de lá para cá estudou muito. É advogado pela Faculdades Integradas de Guarulhos, economista pela Faculdade de Economia, Finanças e Administração de São Paulo e contador pela Universidade Mackenzie. Hoje atua como consultor na área de shopping centers, advoga para empresas e
entidades de classes e atua junto a entidades associativas e filantrópicas. O trabalho não impede que Brasil dedique tempo para a família — ele é casado, pai de quatro filhos e avô de três netos — e para o seu principal hobby, os livros. Freqüenta livrarias e sebos atrás de obras raras para rechear sua biblioteca, que tem cerca de cinco mil livros. “Coleciono obras raras há muito tempo”, diz ele.
A reforma de praças importantes do Tatuapé, como a Silvo Romero (acima e na página ao lado) é uma das ações da distrital
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Como reconhecimento à sua atuação o superintendente Dirceu Paula Brasil recebeu o I Título em Excelência em Integração eo Título Empresário de 2003
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Marlene Matheus - A dama do Parque São Jorge
Marlene Matheus, viúva do mais popular presidente do Corinthians, é a cara do Tatuapé
Uma das personagens mais carismáticas do Corinthians, Marlene Matheus, teve o primeiro contato com o clube de forma inusitada. Já nutria simpatia pelo Timão, influenciada pela colônia espanhola, onde aprendeu a dançar flamenco. Mas a paixão veio mesmo às vésperas de uma apresentação de dança, que fez parte das homenagens da Rádio América (onde ela trabalhava) ao quarto centenário de São Paulo. O evento aconteceria em pleno Parque São Jorge, já que o Corinthians havia sido campeão do torneio comemorativo do aniversário da cidade. Ao chegar ao local, Marlene surpreendeu-se e disse que não dançaria ali. Nessa hora um senhor aproximou-se e perguntou indignado: “Por que não vai dançar aqui?”. Ao que ela respondeu com firmeza: “Não danço na grama”. Não podia imaginar que o senhor que a interpelou seria o mais popular presidente do clube, Vicente Matheus, com quem se casou, em 1968, e dividiu a paixão pelo clube. Como primeira-dama, ouviu os anseios dos sócios e descobriu “encantada” que eles queriam muito pouco. Instalou no clube um berçário, churrasqueiras, jardins, criou cursos de culinária e um departamento feminino. “Queria que as mulheres acompanhassem os maridos ao clube e entendessem o fanatismo deles pelo futebol”, diz ela. Isso a aproximou dos moradores do bairro, onde vive há 32 anos. Marlene é a cara do Tatuapé. “Aqui tenho tudo o que preciso, shoppings, supermercados e amigos”, conclui. Conservadíssima aos 67 anos, parece dez anos mais nova. Ainda mora na mesma casa confortável em que viveu com o marido. Guarda lembranças dele e do Corinthians por todos os cantos. Numa das salas, o sofá branco com almofadas pretas lembra as cores do Timão. Nas paredes, fotos de momentos felizes do casal. Uma é de dar inveja em qualquer adversário: o Papa João Paulo II vestido com a camisa e uma touca do clube. “O papa me recebeu em Roma e benzeu o São Jorge que comprei em Capadoria, cidade natal do santo”, conta com orgulho. A imagem está
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Fotos: Newton Santos / Digna Imagem
AQUI TENHO TUDO O QUE PRECISO, SHOPPINGS, SUPERMECADOS E AMIGOS
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MARLENE MATHEUS, EX-PRIMEIRADAMA DO CORINTHIANS
A sede do clube que nasceu no Bom Retiro foi construída no bairro em 1928 porque o preço do terreno era mais acessível que outras regiões. Sua chegada arrebatou a paixão de vários tatuapeenses e a agremiação chegou a ter mais de 100 mil sócios. Hoje o Corinthians conta com apenas 4 mil associados
na capela do clube. Marlene anda afastada do Parque São Jorge, mas ainda vai ao estádio assistir aos jogos do time ao lado da Gaviões da Fiel. Lamenta a situação da agremiação que chegou a ter mais de 100 mil sócios: hoje são só 4 mil. Do marido, fala com carinho. “Não existe mais homem assim, honesto, solidário e autêntico”, afirma. “Não era romântico, de dizer eu te amo, mas me tratava como rainha”. A história do Corinthians com o Tatuapé aconteceu por acaso. O clube que nasceu no Bom Retiro,
em 1910, do sonho de operários imigrantes. A sede, entretanto, foi construída no Tatuapé, em 1928, porque o terreno ali era mais em conta. Além do futebol, o clube se destacou no remo e no basquete com a melhor equipe da América Latina dos anos 60. O Timão fez a cabeça dos tatuapeenses. Ao andar pelas ruas do bairro é evidente que ali é território dos “mano”, jeito como corintianos e adversários se referem aos torcedores alvinegros. É ali que Marlene se sente em casa.
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Fotos: Arquivo
O clima ameno e a terra fértil de quando o Tatuapé era uma área predominantemente rural fez com que o bairro se tornasse o maior empreendedor vinícola do País
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S ã o M i g u e l Pa u l i s ta J. Washt Rodrigues
Textos de Denise Ramiro
Índios guaianazes, fugindo de João Ramalho, se instalaram onde hoje é São Miguel
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Da origem rebelde ao descaso Paulo Pampolin/Digna Imagem
A primeira construção de São Miguel foi uma capela feita de taipa de pilão pelos índios e inaugurada pelos jesuítas em 1662, considerada o marco da fundação do bairro, localizado no extremo leste de São Paulo. Muitos povoados catequizados surgiram da mesma forma. O curioso em São Miguel é que a capela ainda permanece ali, cercada de estabelecimentos comerciais por todos os lados. Tombada pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional desde 1938, ela é tida pelos historiadores como um exemplar único da arquitetura colonial brasileira e a construção original mais antiga da cidade de São Paulo. Mas muito antes de surgir a capela, a região já era habitada pelos índios guaianazes. Eles chegaram à região em 1560 e se instalaram às margens do rio Ururaí, nome do trecho do Rio Tietê que passava pelo bairro. Alguns historiadores consideram, portanto, esse ano como o da fundação do bairro, ou seja, mais de um século antes da data oficial. Os guaianazes vieram das imediações do Pátio do Colégio, após se revoltarem com a chegada por lá do colonizador João Ramalho e de seus seguidores. Estes por sua vez haviam deixado a vila de Santo André da Borda do Campo, primeiro lugar visitado pelos colonos portugueses ao subirem a Serra do Mar, extinta neste mesmo ano e incorporada a São Paulo de Piratininga. Kathia Tamanaha/AE
As olarias da região abasteciam a área central da cidade, utilizando o Rio Tietê para escoar a produção
Documentação da época mostra que em 1580 os índios de São Miguel ganharam a posse definitiva da Aldeia de Ururaí, como era chamado o bairro nos seus primórdios. O lugar era considerado estratégico para os portugueses que temiam a invasão de outros colonizadores à vila de São Detalhe do hall da capela Paulo. Os demais pontos de de São Miguel: construção original mais antiga de São Paulo entrada, Bertioga e Santos-São Vicente, já eram protegidos por fortalezas e fortes. Os principais inimigos eram os índios Tamoios, aliados dos franceses. Orientado pelo padre Manoel da Nóbrega, o padre Anchieta visitou os guaianazes, seus antigos discípulos, para lhes pedir apoio na defesa da vila de São Paulo. E assim foi feito. Os primeiros moradores de São Miguel foram, então, sentinelas dos jesuítas. Com a chegada dos Bandeirantes, entre o início do século XVII e meados do seguinte, os índios serviram de guia nas longas expedições dos desbravadores pelos sertões em busca de minerais preciosos. Outros tantos foram trabalhar como escravos nos canaviais nordestinos. Depois desse período até perto da chegada do século XX, foi a vez dos colonos chegarem às terras dos guaianazes, já em número reduzido, e explorarem seus serviços nas lavouras que começavam a cultivar. “Do ponto de vista dos índios é a fase mais acentuada da decadência. Para os colonos, significava a ascensão do colonizador e o progresso da região”, diz Roseli Santaella Stella, doutora em História pela Universidade de São Paulo. Nessa época, já com 108 casas e mais de 2 mil habitantes, São Miguel começava a ser explorada economicamente. Apareceram as olarias, portos de areia extraída do local, e as hortaliças, que abasteceriam a região central da cidade, via Rio Tietê. Surgiram os armazéns de secos e molhados em torno da Capela de São Miguel. Eles forneciam alimentos para os seus moradores e para cidades vizinhas, como Guarulhos (que fica do outro lado do Tietê), além de municípios do Vale do Paraíba. Nas primeiras três décadas do século XX, o bairro ganhou novo impulso para o seu desenvolvimento com a inauguração da estrada que liga São Paulo ao Rio de Janeiro e com o início da implantação da linha ferroviária. Nesse período, São Paulo passou por um forte crescimento com a construção de grandes edificações no centro da cidade. São Miguel acompanhou de longe, fornecendo areia e tijolos para as obras.
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ORIENTADO PELO PADRE MANOEL DA NÓBREGA, O PADRE ANCHIETA VISITOU OS GUAIANAZES, SEUS ANTIGOS DISCÍPULOS, PARA LHES PEDIR APOIO NA DEFESA DA VILA DE SÃO PAULO. E ASSIM FOI FEITO. OS PRIMEIROS MORADORES DE SÃO MIGUEL FORAM, ENTÃO, SENTINELAS DOS JESUÍTAS
Primeira construção de São Miguel, a capela feita de taipa de pilão pelos índios é considerada o marco da fundação do bairro e permanece no mesmo local até os dias atuais
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A INDÚSTRIA E O PROGRESSO
Entre meados dos anos 30 até a década de 70, São Miguel viveu o seu período econômico mais fértil. A Cia Nitro Química Brasileira, do grupo Votorantim, foi instalada em São Miguel para produzir o rayon, uma espécie de seda artificial bem mais barata que o fio natural, produzida à base de nitroglicerina. A fábrica, de origem americana, foi comprada e trazida para o país aos pedaços, como conta o atual gerente de suprimentos da empresa, Nelson Furlan, que tem 35 anos de casa. A empresa surgiu para abastecer a fábrica de tecidos do grupo em Sorocaba, no interior paulista, e trouxe para o bairro muitas melhorias. Quando a Nitro Química chegou ao local, não havia nem energia elétrica. A iluminação era à base de lampiões de gás, acesos e apagados todos os dias por um senhor muito popular da época, o “Vagalume”. A empresa precisou, então, melhorar a infra-estrutura do lugar para operar a fábrica: São Miguel ganhou luz elétrica, água encanada e asfalto nas ruas principais. Foi construída também uma vila de casas populares para os empregados e outra para os executivos da empresa, muitos deles estrangeiros. A vida social e o lazer dos moradores também foram patrocinados pela companhia, que instalou o Hospital Santa Terezinha (desativado há alguns anos), creches, clube esportivo, farmácia, cooperativa de produtos alimentícios e o Círculo Operário, que oferecia cursos de corte e costura, datilografia e culinária, entre outros. “A Nitro Química exerceu o papel do poder público no bairro”, diz a historiadora Roseli. Estimulados pelas novas perspectivas que São Miguel oferecia, o comércio e o setor de prestação de serviços deram um salto. Surgiram farmácias, restaurantes, lanchonetes, padarias, armazéns, armarinhos, cartórios, imobiliárias, agências bancárias. Esses, entre outros estabelecimentos, foram abertos principalmente pelos imigrantes italianos, espanhóis e portugueses que chegavam ao bairro. Mas a convivência da empresa com os moradores nem sempre foi tranqüila. A Praça Getúlio Vargas Filho, conhecida pelos mais velhos como Praça das Promessas, onde os políticos faziam seus discursos, serviu de palco para diversas manifestações operárias. Ali os trabalhadores iniciaram muitas greves, entre as décadas de 40 e 80, para reivindicar melhores salários e condições de trabalho e protestar contra a poluição causada pela companhia. Um dos momentos mais delicados foi um acidente na unidade que fabricava explosivos. Vários operários morreram e as operações com esse tipo de material foram encerradas. Com o passar do tempo, o processo de produção de rayon se tornou obsoleto e foi substituído pela tecnologia do rayon de viscose, mais moderna. Em 1998, abalada pela concorrência dos produtos sintéticos, como o nylon e o poliéster, fabricados por quatro empresas no Brasil e muitas outras na China, a unidade que fabricava viscose foi fechada. Hoje, a Nitro Química se concentra na produção de nitroglicerina, matéria-prima para a fabricação de tintas, vernizes, esmaltes de unha, entre outros itens usados pelas indústrias químicas. A fábrica, que chegou a empregar sete mil funcionários nas décadas de 50 e 60, hoje
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tem apenas 400 empregados. Os efeitos da diminuição das atividades da Nitro Química para a população de São Miguel foram nefastos. Afinal, a empresa havia atraído para o bairro milhares de migrantes nordestinos, nortistas, mineiros e do interior do estado. São Miguel ficou conhecido como o bairro dos baianos ou a Bahia nova. O advogado José Luciano Icardo, morador antigo do bairro, se recorda dos paus-de-arara que desembarcavam levas de nordestinos no centro de São Miguel. “Eu era pequeno, mas lembro da cara cansada, das roupas sujas e do corpo franzino daquelas pessoas que chegavam em busca de uma vida melhor. Ficava muito impressionado e entristecido com aquilo”. Seu pai, Rodolpho, um imigrante italiano de Turim, abriu o primeiro escritório de advocacia e contabilidade do bairro, em 1948, que funciona até hoje sob o comandado de Luciano e seus três filhos. Passada a época áurea da Nitro Química, o bairro vive agora uma nova fase, que na verdade é um retrocesso ao seu segundo estágio de desenvolvimento, quando apenas fornecia mão-deobra. Se antes os primeiros habitantes, no tempo dos Bandeirantes, trabalhavam na exploração de pedras preciosas, agora o bairro abastece com trabalhadores as indústrias de outros bairros ou de municípios vizinhos. “São Miguel virou um bairro-dormitório, está sem uma vocação econômica”, lamenta Roseli Santaella Stella. Alguns moradores se queixam da falta de atenção para com o bairro. José Caldini Filho, de 75 anos, 69 dos quais vividos no bairro, é um deles. Segundo Caldini, dono de um escritório que presta serviços de contabilidade, advocacia, seguros e imóveis, a Nitro Química atraiu inúmeros migrantes para o bairro. Ele mesmo tem vários parentes que trabalharam para o grupo Votorantim. Caso do seu pai, José Caldini, que antes de entrar na empresa foi cabeleireiro do precursor do império construído pela família Moraes, o comendador Pereira Inácio, sogro do senador José Ermírio de Moraes. Ao caminhar pelas ruas centrais do bairro é possível confirmar as observações de Caldini. Não é exagero dizer que os camelôs dominam o comércio local. A consequência de tudo, diz ele, é o aumento da violência, principalmente na periferia de São Miguel, onde está instalada uma das maiores e mais violentas favelas de São Paulo, a Pantanal. “São Miguel está morrendo”, lamenta Caldini. Deve ser difícil para ele e para os moradores da sua geração, que viveram momentos felizes no bairro, com muito futebol de várzea, além de memoráveis bailes de carnaval, reJ.F. Diorio/AE veillon e quermesses, ver seus filhos e netos sem opção de trabalho e lazer. “Os jovens daqui têm que ir para os shoppings da Penha ou do Tatuapé para se divertir”. São Miguel reclama atenção.
Retrato do descaso com a região, a favela Pantanal é uma das maiores e mais violentas da capital
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Fotos: Reprodução/Paulo Pampolin/Digna Imagem
A instalação da Nitro Química trouxe para a região luz elétrica, água encanada e asfalto nas principais ruas e desenvolveu o comércio local
Cenas da produção de rayon, seda artificial produzida à base de nitroglicerina que, durante muitos anos, foi o principal produto da empresa
Casas que a Nitro Química (no alto, sua fachada atual e instalações antigas) construiu para trabalhadores ainda fazem parte da paisagem do bairro
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Fotos; César Diniz/Digna Imagem
O operário craque de bola A história de São Miguel paulista está diretamente ligada a Cia Nitro Química Brasileira. Muitos dos moradores trabalharam na empresa a vida toda. É o caso de Valdemar Karine, de 73 anos, mais conhecido como Nicão, que veio de Taquaritinga (interior paulista) para São Miguel com 12 anos de idade. Dois anos depois já estava na companhia do grupo Votorantim. Trabalhou na unidade de rayon, que produzia fio artificial de seda, sendo transferido depois para o setor elétrico, onde ficou até se aposentar, em 1979. Seu Nicão mora no mesmo endereço desde que chegou ao bairro, na Vila Nitro Química. A casa fica ao lado da fábrica e é uma das moradias construídas para servir aos empregados e facilitar o deslocamento dos funcionários para a empresa, que operava 24 horas por dia. “Às vezes o pessoal da fábrica chamava a gente em casa as três da manhã para resolver um pepino”, lembra Nicão. Muitos empregados, como seu Nicão, compraram o imóvel dacompanhia, que trocava a casa por tempo de serviço. A vida de muitos moradores dessa vila operária é parecida com a de seu Nicão. Seu amigo José Mariano de Souza, 71 anos, veio da Bahia e trabalhou na fábrica por 24 anos. A esposa de Nicão, dona Creusa, 70 anos, ficou lá por 10 anos, depois de chegarde Caicó, no Rio Grande do Norte. Trabalhou duro, como diz, mas mesmo assim tem carinhopela empresa. “A Nitro Química era a mãe de São Miguel”, diz ela.Não era só o trabalho que ligava a vida dessas pessoas à companhia. Todas as suasnecessidades eram supridas por estabelecimentos abertos pela Nitro Química, desdefarmácia e hospital até cooperativa de alimentos e cursos profissionalizantes. Sem falar doClube de Regatas Nitro Química, que proporcionou lazer e diversão a muitos funcionários e moradores do bairro. “Vivi meus melhores momntos no clube”, recorda Nicão. Apaixonadopela bola, esse são-paulino
Nicão, com a esposa, Creusa e seu vizinho, José: todos ex-funcionários da Nitro Química
viveu os áureos tempos do futebol amador, quando as grandes fábricas montavam seus times. Os campeonatos dos quais participavam eram levados tão asério como os da divisão principal. Nicão era médio volante do CR Nitro Química quando otime foi campeão da Liga Amadora do Estado de São Paulo, em 1956. A agremiação recebeu times de peso em seu estádio, em jogos amistosos. O adversário mais famoso foio Santos de Pelé e o resultado, o esperado: 7 x 1 para o time da baixada. Hoje seu Nicão vive uma vida tranquila ao lado da companheira, dos filhos, netos e o do bisneto. Tambémgosta de jogar dominó e baralho com os amigos. Futebol, só pela tevê ou quando bate uma bolinha com o neto.
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Fotos: Paulo Pampolin/Digna Imagem
Paratodos, o primeiro armarinho Numa época em que carne se comprava no açougue, comes e bebes nas lojas de secos e molhados, verduras e legumes nas quitantas, e os hipermercados nem passavam pela imaginação, os armarinhos tinham um papel fundamental no comércio de bairro. Vendiamtodo o resto: artigos de papelaria, calçados, roupas, remédios, novelos de lã, linhas e agulhas, perfumaria, panelas e louças, radinhos de pilha, instrumentos musicais, entre outras mercadorias. Tempo em que as compras do cliente eram anotadas numa cadernetinha e o acerto da conta ficava para o final do mês. Em São Miguel Paulista, o primeiro estabelecimento do gênero, o Armarinho Paratodos, foi aberto na década de 30 pelo russo Carlos Scheneider. Ele veio para o Brasil no início do século passado, fugido da Revolução Comunista. Quem conta a história é Herman Koshitz, 86 anos, que comprou a loja do amigo, em 1946, em uma situação bizarra. “Num Natal, bebi muito e dei minha palavra de que compraria a casa”, lembra o vienense, naturalizado brasileiro, que chegou ao Brasil aos 6 anos de idade. Cumpriu a promessa e tocou o negócio até se aposentar, no ano passado. Vendeu o ponto para um ex-funcionário, que trabalhou para ele durante 25 anos. Herman, preocupado com o destino dos três empregados, amigos de muitos anos, decidiu demitilos para que pudessem sacar o fundo de garantia e “se ajeitar na vida”. O ponto funciona até hoje no mesmo lugar de origem, na movimentada Rua Angelo Lapena, 170, no centrinho de São Miguel. “Fico feliz de deixar o negócio em boas mãos”, diz Herman. Nos 57 anos em que esteve à frente do comércio, Herman trabalhou duro. Abria a loja às seis da manhã, para atender aos estudantes do Grupo Escolar Carlos Gomes, o primeiro
Herman Koshitz: 57 anos à frente do armarinho mais antigo do bairro, comprado de um amigo
do bairro, e fechava só depois das 10 da noite, quando acabava a jornada dos operários da Cia Nitro Química. Mas sobrava tempo para a diversão. Freqüentou bailes no Clube de Ragatas Nitro Química, proseou com os amigos à beira do Rio Tietê e jogou muita pelada. Os colegas de bola contam que o senhor Herman era um craque. Sem falsa modéstia, ele confirma seu talento. “Jogava com as duas pernas e o meu chute atravessava o campo”, conta com brilho nos olhos, profundamente azuis. Jogou no Elite Futebol Clube, time da antiga Panificadora São Miguel, freqüentada pelos bacanas do bairro. São-paulino fanático, por ironia do destino casou-se com a filha de um dos fundadores do Corinthians, João Deloreto, que conheceu quando morou no Bom Retiro. “Time a gente não escolhe, vê e se apaixona”.
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Fotos: César Diniz/Digna Imagem
Fotos: Reprodução César Diniz/Digna Imagem
Do Vaticano a São Miguel Em 1950, durante uma excursão de músicos italianos pela América Latina, o maestro siciliano Oreste Sinatra conheceu o Brasil, encantou-se com o país e decidiu ficar por aqui. Deixou para trás uma gloriosa carreira: chegou a se apresentar na imponente Capela Sistina, no Vaticano, onde tocava órgão nas missas. Resolveu dividir sua experiência e talento com músicos brasileiros. Assim que chegou, instalou-se no bairro do Paraíso e abriu um estúdio de música. Sinatra trabalhou para a rádio Gazeta, foi maestro do coro do Teatro Municipal de São Paulo e inaugurou o Teatro Municipal de Campinas. Dez anos depois, mudou-se para São Miguel Paulista, onde abriu o Conservatório Dramático e Musical Oreste Sinatra, em uma casa antiga, da década 30. Durante 30 anos ensinou canto e piano para muitos alunos. Entre eles, famosos como a cantora Angela Maria. Duas ex-alunas de canto estão atuando no Teatro Scala de Milão, outros quatro discípulos fazem parte do coro do Teatro Municipalde São Paulo. O grande maestro faleceu em 1990, mas sua obra continua viva. A filha, Claudia Sinatra, 45 anos, assumiu o comando do conservatório. Ela ensina canto e piano, assim como o pai. “Papai era exigente e perfeccionista”, lembra ela. Claudia diz que sempre gostou de piano, mas o pai a fez estudar violão. “Ele prometeu me dar uma bicicleta se eu me formasse em violão”, diz. Claudia ganhou a bicicleta e foi aprender piano. No tempo em que o pai era vivo, os dois tocavam piano a quatro mãos em apresentações no bairro e em outros espaços da cidade. Hoje o conservatório tem cerca de 120 alunos e, além dos cursos de música clássica, ensina ritmos mais modernos, como o rock. “Os jovens de hoje não têm muita paciência, preferem cursos rápidos e progressivos”, explica Claudia. A filha do maestro lembra ainda do grande coração do pai. Ela conta que ele não se negava a tocar quando um amigo ou alguém da comunidade pedia. Por isso mesmo,
Aulas de teclado no conservatório que formou várias turmas de alunos: tradição de boa música mantida pela família do fundador, Oreste Sinatra
apresentou-se em várias solenidades do bairro, como missas e casamentos. Nos momentos de folga, gostava de passear pelo bairro e principalmente, de visitar a centenária Capela de São Miguel. “A capela era a paixão dele”, lembra a filha Claudia.
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Distrital São Miguel: sintonia com o bairro A distrital de São Miguel Paulista da Associação Comercial de São Paulo foi fundada em março de 1982. Nesses anos todos tem participado ativamente de vários projetos de melhoria do bairro e de regiões vizinhas, como Itaim Paulista, Guaianazes, São Mateus, Itaquera e Ermelino Matarazzo. Desde que assumiu o mandato, o atual diretor-superintendente, Sérgio Mercado, tem trabalhado junto às subprefeituras locais e já coleciona algumas realizações reconhecidas pelas comunidades que atende. Entre elas, a participação atuante na construção do trecho de ligação da Avenida Jacu-Pêssego à Rodovia Ayrton Senna e o empenho, junto à Comissão Fiscal da CPTM, para a reforma e transformação da Estação de Trem de São Miguel em uma unidade moderna. Além disso, a distrital se destaca com o projeto empreendedor “Unir para crescer”, que alfabetiza adultos e acompanha de perto o Plano Diretor Regional do bairro. A atual gestão também trabalha na atração de novos associados e hoje conta com 1650 empresários. Há planos para construir uma nova sede para a distrital, capaz de receber 150 pessoas, e também para atrair para São Miguel o Fórum do Jovem Empreendedor. A distrital ainda participa das festividades da região e realiza palestras na sua sede, que fica na Rua Henrique de Paula França, 35, no centro de São Miguel. No ano passado recebeu uma homenagem pelos relevantes serviços prestados à comunidade, feita pelo bispo diocesano dom Fernando Legal, da Catedral de São Miguel. Mercado começou a vida profissional bem cedo. Aos 11 anos de idade já fazia reposição de mercadorias em um supermercado. Depois trabalhou em uma funilaria de automóveis,vendeu água e vela em frente ao cemitério da Vila Formosa, até conseguir comprar o seu primeiro açougue. Para aumentar os rendimentos, contratou um funcionário para tomar conta do estabelecimento e foi trabalhar para uma construtora, onde ficou por 15 anos e fez carreira. Decidiu sair da empresa para trabalhar no próprio negócio, a essa altura já bem-
Ricardo Lui/Pool7
Sérgio Mercado, superintendente da distrital: entre outras batalhas reconhecidas pela comunidade, a luta para transformar a estação de trem de São Miguel em uma unidade moderna
sucedido.“Aprendi nessa trajetória de vida que a maior riqueza de um homem não é o dinheiro, mas o conhecimento”, diz Mercado. A partir disso transitou por vários caminhos. Hoje, além de empresário de sucesso, realiza palestras motivacionais e atua como consultor de
marketing. Nas horas vagas é artista plástico, faz pinturas a óleo sobre tela, e compõe músicas. No momento está escrevendo o livro “Como Conquistar seu futuro”. Mercado é casado, tem dois filhos e uma paixão que vem de longe, o Corinthians.
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Piassi, o melhor tempero da região
Família Piassi: sucesso com o restaurante, que seve comida com gosto caseiro em porções generosas
Arroz, feijão, bife, ovo frito e salada de verdura e legumes. O prato do dia-a-dia do interior deu origem ao Restaurante Piassi, o mais antigo de São Miguel Paulista, aberto em 1955. Os donos, descendentes de italiano vindos de Boa Esperança do Sul, interior de São Paulo, se instalaram em São Miguel um ano antes. Vieram atrás das oportunidades de negócios que pipocavam a partir da instalação no bairro da Cia Nitro Química. No início, o patriarca da família, Pedro Piassi, abriu um bar. Seus filhos, Pedro Filho e Aurélio, compraram o estabelecimento e o transformaram em restaurante para servir prato feito, originalmente preparado pela matriarca, dona Nilsa. Quando comeu pela primeira vez no Piassi, o ex-bancário Oscar Frizzatto, 76 anos, freqüentador da casa há mais de 50 anos, conta que sentiu saudades da comida da mãe, moradora da cidade de Santa Adélia, no interior paulista. A fama do restaurante começou então a se espalhar. “O lugar ficou pequeno, tinha gente comendo até em cima da mesa de bilhar”, lembra Pedro Filho, que hoje toca o negócio junto com a terceira geração dos Piassi, dois filhos e dois sobrinhos. O jeito foi ampliar o espaço, alugando o imóvel ao lado. O próximo passo foi contratar um cozinheiro profissional, que ficou na casa apenas 45 dias mas ensinou truques culinários aos Piassi. “Não sabia nem fritar um ovo”, confessa Pedro Filho. Depois a cozinha ficou a cargo de uma dona de casa do bairro. O prato feito ou “PF” ainda é servido no restaurante, mas o cardápio cresceu e conta hoje com uma enorme variedade de pratos a la carte. Muita gente famosa já experimentou o tempero dos Piassi. Políticos como Marta Suplicy e Paulo Maluf, jogadores de futebol, como os ex-craques Ditão e Zé Maria, do Corinthians, a atriz Lucélia Santos e o cantor Antonio Marcos, natural do bairro, já falecido. O lugar é familiar, lembra aqueles restaurantes antigos onde as famílias se reuniam aos domingos para comer refeições caprichadas e servidas em porções generosas. Nas paredes, fotos antigas do bairro e de personagens famosos que passaram por São Miguel. Destaque para o retrato do time
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Fotos: César Diniz/Digna Imagem
A fama do tempero do prato feito servido pela família Piassi correu São Miguel e lotava o pequeno bar. Os fregueses eram tantos que alguns comiam na mesa de bilhar
do Santos de Pelé, de 1957, no Clube de Regatas Nitro Química, quando foram inauguradas as arquibancadas do estádio, com um amistoso contra o time da casa. O peixe ganhou de goleada, mas isso não tem a menor importância.
Seu Pedro Filho é palmeirense, a camisa autografada pelo goleiro Marcos na parede não deixa dúvidas. Seu maior sonho, ainda não realizou. “Quero trazer o Adhemir Da Guia aqui”, diz. O convite está feito.
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Emund Pink,1823/Acervo de artes da Bovespa,SP
São Paulo vista do chamado Caminho para o Rio de Janeiro, em 1823: bairros se desenvolveram ao longo do tempo, mudando radicalmente a paisagem original
Iconografia As imagens usadas para ilustrar este caderno são: (1)reproduções dos livros Iconografia Paulistana do Século XIX (De Pedro Corrêa do Lago, Capivara, 2003) e Anchieta nas Artes (dos padres Hélio Abranches Viotti e Murilo Moutinho S.J. Edições Loyola), (2) fotografias do acervo do Museu do Imigrante e de acervos pessoais dos entrevistados (3) fotos compradas da Agência Estado e produzidas pelos fotógrafos da Agência Digna Imagem
Família Penhense em 1924
A c e r v o Vi v e k a
Convento da Luz - aquarela sobre papel de Miguel Dutra
Nossa pr贸xima viagem passa pela Luz