Palavras Sérgio Araújo
Aiabá
Aiabá é sempre um galho entre o Nilo e o Amazonas, subiu aos céus em seu espelho caboclo-terra e forjou das ondas da FM-cordas, o cordel satírico do Assaré. Um índio, filho de Funai-mata-mata, requer alforria e bate tam,tam,tam na pedra Içu-cabeça de pau oco. Aiabá sorri no V.T. e arriba... Lá das nuvens açoprateadas, ela nos conta a história de como sua mãe sobreviveu à tribo do feiticeiro Edi-pô. Arequenas, trombeteiros, galopam seus cavalos marinhos na correnteza bostaarquivelhas do rio das tripas. Eis Aiabá, maravilhoso cidadão dos out-doors. Contam que Aiabá, ao nos visitar, teria feito voar sobre o Abaeté, as cuecas molhadas do tio Sam. Abá Kura-kura. Fogo nos cabelos verde wave e aqui jaz um piro-piro que em vida cruzou o atlântico em busca da palha de aço dos Jesuítas. Aiabá visitou o ano 1274 e rasgou a Suma Teológica em ato puro. Antes, estivera com Heráclito e Éfeso lhe era cara e bela. Podia-se ainda passear, ir às olimpíadas ou participar dos freqüentes concursos de charada promovidos pelo Comitê Executivo do Templo de Ártemis e no ano 500 a.C., ganhou o concurso em parceria com Heráclito. Eis a charada: ―Concorda o que de si difere: harmonia de movimentos contrários, como do arco e da lira‖. Saá-Ká-Tá – certa vez viu Ianomâmi sentado, meditando. Era meio-dia e Ianomâmi, primogênito do Pau d`arco, crispando a água brilhante com as garras de uma onça pintada, disse-lhe, citando Maiakovski: - ―Os jovens lutam contra esta canonização dos escritores-guias, que pisam com o bronze pesado dos monumentos a garganta da palavra nova que liberta a arte‖. Riscando a areia com um osso de preguiça, Aiabá respondeu: - a palavra em movimento é minha borduna em riste e minha palavra e a minha borduna são um. - Pois bem – disse Ianomâmi – eu corri a minha mão sob a terra, pisei a lama e moldei com cuspe este pote à minha frente. Vê? Eu o atirarei ao rio e daqui há dez anos eu o reconhecerei. Ele sou eu! Aiabá partiu e arrastou consigo a louca dança da poeira, veio ver o Robot-rato do novo século e embora não houvesse tempo para entregar-se a brincadeiras pueris,entortou três antenas, quando sobrevoou o cinza-morto da aldeia próspera. Aiabá bateu em ré-tirada e agora que nos deixou, ainda vive na matéria pretoquente das ruas, dos becos, sobrevivem ainda os seus átomoscor-silábica a repetir eternamente, onde quer que haja sol, o ―Da‖ que escapou dos lábios do poeta noite a dentro. - Boa noite. Responderam aliviadas, as pessoas que se acotovelavam na pequena janela do sobrado. Era tarde e já não havia mais o que fazer na rua, a menos que se
queixe ser notado por quase todas as pessoas em suas janelas ou pelas velhas barulhentas e pouco amáveis diante de um estranho que, de passagem, ensaiou um cumprimento. Decididamente aquela era a polis cor de esmeralda com seus raros aros de marfim. Um grupo de meninos jogava sinuca com bolas de gude num tabuleiro inclinado. Escureceu: dois guénos próximos ao muro pintado com flores do jardim de Montezuma, entendiam a situação com seus pequenos olhos tardios. Aiabá Pensou: - Mas como pode um poema atravessar as cordas do tempo? Neste instante, interveio uma de olhos negros como os raros cristais da Salmônia e com seu corpo, sua flauta e seus cabelos, voou para pegar com os dedos livres, cada resto de cor que jazia nas cordas. Eram duas a tirar as cores das cordas, Nuas. A noite levou os aprendizes e seus martelos para além das bigornas reluzentes, e se podia cantar. Aiabá concordou e ouviu o poeta que dizia: - eu sou limalha em plena vida. Desejo apenas a insensatez, não me é dado participar de tua falsa segurança, nem quereria eu correr tal risco. - Sim, és um louco! – disse-lhe Aiabá. Mas, Quem te julgará, Se os autos do teu processo ainda não foram lavrados? - Pobre diabo! Que a justiça te seja cega e desejará mil vezes ter sido condenado. E Aiabá visitou mais uma vez o cenário em que tudo começou. Ali, bem ali, onde o sol penetra entre as colunas e incendeia as pedras do chão. Sobre o mar, duas ou três nadas sopram as espumas das ondas. O sol está bem alto, na praia ouve-se o vento e vê-se as pegadas que não levam a lugar algum. Entardeceu: a noite explodia sobre sua cabeça como um balão de gás e espirrava confetes maduros em sua roupa de domingo. Naquele tempo ainda se podia andar pelas ruas sem despertar a cólera dos homens da noite. Um guarda noturno vigiava as fortalezas decadentes e apitava para merecer suas migalhas postas às portas: um pouco de vinho, dinheiro e as nozes recusadas por alguma criança. Por algum tempo, deixou seu pensamento voar em meio às impressões daquela noite. Revirar as pedras e andar pelas ruas para celebrar a Katharsis enquanto as Bacantes erguem-se dos bancos de pedra à beira dos igarapés, douradas e sonolentas a reclamar cada uma à sua maneira, suas porções de paraíso, suas noites de sonhos. Alguém declamava: - Ah! Viajante maldito. Jamais poderão acorrentar-te a esta nau que conduz a todos por caminhos conhecidos, tua carroça é a minha. Ei-la à deriva, disparada pelos campos, cidades, vilas, rios que não te prendem em seus leitos de argila. Solta estas rédeas, atira-as ao vento e grita para que te ouçam: eu possuo o tempo bem aqui na minha mão. Ah! Vrêmia maldito, não te conhecem nem conhecerão antes do tempo.
As lâmpadas dos velhos postes de madeira iluminavam aqui e ali, luz métrica e volátil como os capinzais das orlas das estradas e lá está ele, quando ressoa pelos quatro cantos: Creia-me, tua imagem, eu a vi projetada ainda ontem, como uma sombra em plástico transparente. Que tens a dizer? Aiabá caminha agora, atreve-se a chutar uma lata vazia sobre as pedras da calçada e fala baixinho: - Que faço aqui? É como se estivesse apoiado num parapeito estreito a olhar sobre a marquise. Atrás, sob a mesa, estão os pés de ontem nos chinelos de amanhã. Continua a sua caminhada que agora ganha ritmo com o bater dos pés em marcha. Ouve alguém que passa com muita pressa e passa, passa, passa... Certas vozes conhecidas, murmúrios que o tempo não dissipara, ondulavam em sua mente. Restos de diálogos entrecortados por visões há muito esquecidas, batiam como tambores, pulsavam até deixá-lo tonto.
Efeméride
Do alto dos seus últimos andares A cidade passeia tranquilamente. Sob as cortinas, sobre os altares, Em seus vales, - silos de serpentes - Repousam frios em seus azares Generais intransigentes, Bundas e bustos, infernos capilares, Bostas de pombo – renitentes - Salpicadas no bronze esverdeado dos Cézares. Braços de boneca, Bola de gude no asfalto, Alguém morreu ali na esquina colega! Um cafezinho por favor! Táxi! E esse ônibus que não vem, que horror Catarro nas frestas de uma avenida ensolarada. No chão da cidade, A cidade passeia tranquilamente!
Poesia
Poesia Idéia vaga Presente, ostensiva Grata. Vertente literal primária Inconsolavelmente refratária Poesia Grata inerte Verte Refrata A lítera morte que lhe tecem! Dos cânones da língua, pioneira,
poemassiva. Poesia, forma tão ativa Híbrido cânone, linguitísica Bossal, cinestésica total Cafetina, teleeletroniconcretina.
Recife
Por cima uma ponte Por baixo Sa l t a m Cocas tamanho família E entopem Com tampinhas As malhas da rede Enredada E atada Por nervos ponte-agudos Enquanto foge por ali Um casal de apitos Na avenida boa vista Saqueadores de caldo de cana E um velho poste No ponto da torre cinza arcaica Daí em diante Ausente O sol De par a par Pardo Pardeja Em lívidos olhos de janela. Fria Como a água matinal (a janela da casa verde)
pinga cacos de vidro fosco.
Um poema
Um poema Não nasce do nada É tempo e espada Um poema Nasce na rua Que não é minha Nem sua É pau e pedra Na vida do poeta.
Galinheiro
Quando criança, ele estreou no "galinheiro" do Circo São Jorge. Era uma daquelas peças, capaz de provocar lágrimas até nos cachorrinhos amestrados. Pantomimas à parte, a arte de representar afrouxou os corações e escancarou as goelas para os festins encharcados de vinho amargo de ponta de balcão. O palhaço nem sempre tinha razão na graça de esconder sob a espessa maquiagem, um espírito de criança. Lindalva, a moça das cordas e dos arcos, desfez casamentos, provocou duelos ao amanhecer e fugiu com o anão para não ceder aos apelos eróticos do apresentador espanhol. A música abafada da velha clarineta inspirou farmacêuticos, padeiros e aposentados; criou filarmônicas e construiu maestros que, rapidamente, voltaram ao anonimato dois meses após a rumba fatídica que pôs fim à cíclica lona verde. Como era gostoso aquele lenço estampado a deslizar carinhosamente sobre o ombro, vindo daquela mão doce, pequena, que convidava a bailar numa tenda de ciganos ao som de singelos violinos e terminar perdidos, enamorados, sobre um rochedo qualquer, à luz da lua, acariciando aquele corpo dengoso de dançarina dos trópicos. Fantástico seria viajar com a moça do trapézio; morar em sua barraca e, à noite, furtivamente, olhar seu rosto de perto e enfim acreditar que aquela que
ali estava era a mesma musa aérea que com um simples gesto fazia sangrar as unhas do domador. Subir e descer ladeiras era muito fácil, ainda mais se acreditássemos poder subir nos ombros do homem com as pernas de pau e, lá do alto, mijar na cabeça do inimigo predileto. Agora, a vida pôs-se a andar de muletas, põe seus óculos de ponta de nariz e se dedica a contar histórias de quando estreou no "galinheiro" do Circo São Jorge.
Canto I
Aquela terra era assim: rasgada pelo vento. Correnteza na solidão de palha e barro das margens empoeiradas. Do homem, do contador de histórias tristes; do homem cortado pela metade, o andarilho de um só caminho de seixos afiados, em pele e osso; do mapa do mundo desenhado nas curvas da picada; na lama e na fumaça pálida dos fins de tarde. Daqui e dali, numa e noutra voz o lamento das rezadeiras, porque a morte é sina ou bônus de vida para os que ficam e não choram, apenas cantam ladainhas. De todos os que olham, apenas as crianças enxergam em cada olho que lhes espantam, que lhes condenam, um sofrimento calado e uma dor que sara no correr com as rodas na estrada estreita. Para quem o dia é coisa que se pode contar, mais um tanto vem juntar-se a todos os outros e seus filhos ainda dormem sobre folhas. Suas mulheres apenas pertencem a alguém e não falam porque não ousam falar, sorriem! E na timidez entreaberta das bocas murchas, mostram um taquinho de beleza que não aceitam possuir, pois são as mulheres do rio, do carvão e das ervas que crescem sob as sombras das saias em solo fértil. Seus meninos e meninas, prole comum dos terreiros, das camas de um quarto frio e escuro; até que seja dia e esperem sentados, num canto, que o desejo de crescer lhes corrompa e lhes atire cegos, tortos ou dilacerados para os confins de um mundo feito de pau, lata e garrafas vazias. Assim apagam-se os dias e, com eles, vão os velhos para as sombras das paredes sujas de memórias; vão para dentro e se recolhem nas lembranças intercaladas na chama agonizante das lamparinas que lhes acendeu na infância, incendiou na juventude e transformou em cinzas os sonhos loucos de voar com os pássaros, que ainda cantam ao longe.
Navegantes
Senhores navegantes, Parem o barco! O perfil cinético das borboletas azuis Circunavega seus corações intranquilos. Adeus Cordas soltas à maré! Atlas, contas do mar, sol, anzol Rebrilham nos olhos de peixe E óleos ancestrais. Canibal à praia! Âncora veloz ao fundo azul. Senhores navegantes, Olhai o fundo fosco da maré azul e Rasgai papiros ilustrados, Mapas E restos semânticos De bulas pós-ardidas. Senhores navegantes, Libertai as palavras-coisas E surgirão versos andantes e rimas-remo Na cara suja da normalidade.
IX
De todos os ventos daquela tarde, um era tímido e o outro velava a morte do sol nas sombras de um muro branco. Um cachorro vadio dava voltas em torno de si enquanto um vento não trouxesse o odor das latas de lixo. Era um perfeito dia de sol e sombras. Dia do vento libertador e seu pégaso afoito, agitador, infalível em sua missão de escancarar portas e janelas esquecidas pela rotina dos dias. Vento que arrasta consigo a luoca dança da poeira dos cantos que impávida como a sombra de uma árvore projetada nas
escadas vazias, retorna espalhada sobra a calçada lisa. Foi assim em todos os espaços que os ventos conquistavam. Nas esquinas, correndo e cantando entre ruas e buracos de parede até partir, para retornar agora suavemente e contar as histórias das tardes e dos ventos.
Rápido
Lá está, em meio à multidão e eu a vejo como num tape, com seu sorriso ensolarado. Rápido me perco e te encontro a passar... Acho que foi naquele automóvel novinho em folha e lá se foi mastigando bichinhos de açúcar.
Frágil
Como um flash, aqui e alí, um após outro; de uns tantos momentos que, no rol sincero das minhas memórias, não aparecem com grande mérito. Veloz é o trabalho de arrumar - ou seria desarrumar - figuras, rostos, tacos de frases ou cenários pela metade. Minimalismo em meio ao fog esverdeado de 2022. Um sorriso esquecido. Alguém viajou sem se despedir e nunca mais voltou. às vezes, a memória é assim. Frágil! Como nós...
O jogo
"Temos vagas". Era apenas o que se podia ler por entre a neblina que se avolumava em volta da pequena lâmpada acesa sobre a placa suspensa à porta de um prédio velho e ainda em construção. Duas batidas na porta e uma mocinha magra de olhos escuros, vivos e longos cabelos pretos, deu passagem para uma sala sombria e iluminada à luz de duas lamparinas colocadas nas extremidades de um balcão de madeira, longo e corroído pelo tempo. - Quanto tempo o senhor vai ficar? - Apenas esta noite — respondeu o hóspede noturno. A moça conduziu o hóspede até o terraço, passando por uma escada sem corrimão. - Então não há leitos individuais? - perguntou o hóspede. - Não senhor! Como pode ver, este é o único quarto que existe e aqui estão todos os nossos hóspedes. Dezenas de corpos sonolentos, arrumados em fileiras ao longo das paredes, enfiados em sacos suspensos verticalmente por argolas presas a ganchos de metal. Um único e enorme cobertor suspenso acima das cabeças por fios de nylon, protegia-os contra as intempéries pois não havia teto algum, apenas a noite escura sobre suas cabeças. - Quem são essas pessoas? - indagou perplexo o novo hóspede. - O senhor não sabe? - respondeu a jovem calmamente. - São os jogadores do tempo. Chegam aqui aos montes e aqui permanecem até que o jogo recomece na manhã seguinte. - mas que jogo é este? – quis saber o novo hóspede. - Ora, ora... Não vá me dizer que o senhor veio aqui por acaso, eu tenho certeza que não. – afirmou a jovem, categórica. -Nesse instante, como se já tivesse estado ali por muitas vezes, o hóspede reconheceu o seu lugar junto aos demais, declarou suas marcas e viu-se suspenso, em seu saco de dormir, pronto para fazer daquela noite o ponto de partida para novas vitórias no jogo.
Jacaré sargaçado
Causou espanto aquela banhista com um sumaríssimo dental-life, mastigando um doce(vida é mel), á procura do jacaré que cruzou a baía de todos os lixos e, tranquilamente, comeu o caruru da bela hóspede do Mediterranéé. De Mar Grande ao grande mar de Caixa-pregos, ele pregou fundo o prefixo, o sufixo e o interfixo das efeemes locais. A saber: Eu sou negão! E, boca de 09 pra valer, não recusa um convite sargaçado de uma gata com os pés
arregaçados pela "larva migrans", para fazer tatoo surrealista ao sol do meio dia, enquanto você procura um otário pra tomar o resto da sua tubaína. Agora o sol derrete as bordas do asfalto e o mar avança sobre os banhistas com botas de acrílico fumé. Não. Não se espante se um jacaré usando óleo de gergelim se deitar ao seu lado em qualquer praia da ilha. Apenas retire os óculos escuros, relaxe e deixese embalar pelo mais recente sucesso da dupla Moisés e Messias e sua banda "Mentes em eclipse", enquanto o jacaré degusta a sua galinha assada com farofa. Nietzscheanas nº 1
Eu olhava para aquelas sombras Que constantemente dançavam em torno de mim E o conforto que sentia Era a solidão, A distância que de mim se fez constante E me conservava intacto, Delirante. Por muito tempo eu olhei para o abismo E enfrentei seus monstros itinerantes Salpicados de realidade E pesados Sobre os ombros dos atores ideais. E aquilo era mau. Transbordava o peso das correntes E asfixiava como um nó na garganta. A voz calada, A palavra não dita, A desdita. Em torno de mim Selvagens discursos; Profusão de olhos laterais. Escolhos, Que nada viam, eram vistos. Há luz... Há luz... E no solstício o solo primeiro percebe Quem desce para matar a sede de liberdade E libertando-se Ainda há tempo De tocar a réstia, De dizer a frase, De ascender infante A tatear rotinas.
Bar continental
De quanto tempo disponho Para viver congelado na íris estreita Desta janela vesga? Pouco me resta obter Sem optar por constrangedora aquarela Pateticamente posta Sobre a marquise de ferro fundido Do bar continental. Não sei por onde anda aquela disponibilidade sempre presente. Não sei dispor de um tempo Fundido em aquarelas, janelas e íris de marfim. Não sei Se louco ou santo É o sonho abissal Congelado sobre a marquise Do bar continental.
Nietzscheanas nº 2
Estupefata a civilização de pátrias molestadas Reclama que do alto dos picos E das cinzas dos abismos Ouça-se a voz intempestiva a apontar barbáries. Eis o cálice ditirâmbico! Quem ousa ultrapassar o círculo ilusório Que aprisiona, intimida e fere? Quem, dentre as ovelhas reticentes Vê o demiurgo que sangra Em incomensuráveis convicções E apriorismos imberbes? Lá está o homem novo! Eu o vejo Num dèjavu embriagado de séculos A irradiar potência numa espiral infinita, Impregnada das páginas de Kafka, Nietzsche, Dostoiévski E Augusto dos Anjos. Mestres da modernidade,
Dilacerados em seu tempo, Anjos e demônios, Ventres abertos para o infinito. Metáforas
Enquanto a faca do horizonte, Distante, Corta a carne crua De uma estrela nua, O dia sorri na neblina Estonteante Como um copo de blues A transbordar sonoro, Metáforas soltas Na transparência efêmera Que o dia I r r a d i a. O gesto
Parou em plena avenida. À primeira vista, apenas podia distinguir três lumes que incidiam brancos. Mesmo que recortadas, essas pequenas e nervosas formas, fundiam-se num corpo ao fundo que se dissolvia, branqueado, branqueagudo sob um céu enegrecido em escuro contraste com a luminosidade pueril: como uma corexplosão no abismo, uma imagem ritmada, quase espasmocênica. Pensou que podia voltar para casa e escrever sobre aquele gesto novo que nenhum ser humano ainda havia experimentado e que em seu íntimo sabia que existia. Precisava apenas explorar as dobradiças. Sim! Todo corpo é único e preciso, mas diverso no ―eu‖ que generaliza e submete a determinados signos universais. Ah! Um gesto cerebral! Como pode ser? Pensou enquanto gesticulava ligeiramente. Codificar, Eis a solução. Todo esse gestual concreto pode libertar, - pensou. Não! Não é possível fazer-se claro aos cidadãos agônicos que em vão perambulam, reticentes em suas retículas ácidas, diagramadas, cada um ocupando o seu espaço programado.
Tentou ouvir sua própria voz, mais uma vez, para saber se ainda podia falar. Olhou em volta e prosseguiu vasculhando rostos, perfis, silhuetas, diodos e dióxidos. Disse? Não! Lentamente, como quem é conduzido pela falta de luz, escorregou como um relógio de Dali entre a multidão ácrata e continuou até dissolver-se completamente num ponto. Codificado, mensurável, agora estava livre para continuar imune aos apelos de um sentimento humano. ―Demasiadamente humano‖.
Na porta
Parada Na Porta Suporta Ereta Beija O Vento Que Te Lança Pra Dentro Suposta Seja A Porta Que A Lança Não Importa Ventania Adentra Suplica Que Te Beije Na
Porta Minha mão poética
Minha mente concreta Não desliza no papel, Salta. Saculeja indomável Sobre pautas paralelas. Minha pena discreta Sobrevoa palavras Já escritas Bafejadas pelo tempo, Desvendando ritmos e dimensões. Minha mão poética Tem vontade própria, Gosta de espaços infinitos E tinta preta.
Cartão postal
Aquele era um dos poucos museus da cidade que ainda não havia visitado. Portas abertas, casarão centenário, fachada neoclássica. Como tantos, perdido nos corredores estreitos da cidade católica, caótica e bizarra. Era uma noite como outra qualquer, exceto pela quantidade de curiosos, cantores, atores, poetas concretos e anexos. No meio de tudo, o poeta e sua musa: uma nota perdida da sinfonia de Wagner. E a ela, diz-lhe à moda de Goethe: "Vinde, doces ilusões que tanto amei na clara manhã da minha vida"! Um olhar irrompeu o frio néon e atingiu em cheio, por entre as mechas que teimavam em esconder seus olhos, o brilho sonoro de um sorriso fresco e simples. As luzes vermelhas das lanternas de freios corrompiam o cristal abarrotado de Frau milch. O que você quer dizer quando diz que já fez de tudo e só lhe resta fazer de nada? - Zaúm! Você me entende Fräulein? Venha me ver amanhã e te darei as vozes da Bahia. As vozes dos antigos poetas, dos prédios abandonados, das igrejas frias, das águas que escorrem pelas encostas e molham os meninos, descalços à beira mar. Do púlpito, o velho poliglota fala as suas palavras. O agro vitral desdenha do flash e sobre as cabeças da assistência, reluz de viés. Do outro lado da rua, a tua lua segue os transeuntes com agilidade e indica o itinerário: vai pela vitória... Mais tarde, era só reler aqueles poemas antigos que diziam de tudo e de nada e, como num encanto, a doçura voltava.
Aquela era uma das poucas memórias da cidade que ainda não havia contado. Holzstatuette mit Goldüberzug. Der König Tutanchamun
A Estrada
A estrada era permanentemente coberta por um céu anterior. Logo que chegou por alí, avistou o vasto deserto com o seu clima ameno, levemente aquecido e acolhido por uma brisa alegre e perene. Não desejava caminhar, apenas queria sentir o ar acariciando sua pele enquanto divisava ao longe um arbusto verde em folha, em cujos galhos calados, suspirava a ave noturna. Não havia caminhos outros que acorressem às impávidas construções monolíticas que erguiam-se à sua frente, pois o tempo é efêmero e corre numa velocidade de mãos unidas, numa luz igual e envolvente, pactuando com a natureza onírica do lugar. Não! Definitivamente ele não era um ator confuso dizendo as falas soltas enquanto o pano caía e o espectador mais atento dormitava sobre um colo prateado. - Come este fruto seco em plena terra com cheiro de terra - disse-lhe o guia e continuou - seus planos foram desfeitos pois o rumo é infinito e a incerteza é o destino. - E aquele velho calendário? - Indagou. - O tempo é agora! Sentenciou - embora as luzes artificiais atenuem teu desencanto, esta estrada é deserta o suficiente para te prender em suas léguas sinuosas. Foi! Devagar caminhou entre veredas. Viu alhures as crianças no terreiro, os pregoeiros a soluçar maravilhas e as mulheres nos afazeres coletivos. Agora posso voltar - pensou. Mas viu-se novamente imóvel, perdido em pensamentos enquanto um cão rosnava, sonolento, ao seu redor. Virou-se, olhou em volta e sorriu. Tema
Parece que foi ontem O teu braço em minhas mãos O relógio E você sorri O teu rosto Uma rima O teu oposto Você ainda me vê?
Eu ainda sou o teu dilema O teu tema Ainda te vejo Breve Nas luzes coloridas Na noite que te esconde Num bilhete Onde? Noturno
Uma pequena chama navegava tranquila sobre o óleo transparente da lamparina. A penteadeira, além da claridade, exibia orgulhosa um vidro de Diamante Negro, um pente de tartaruga, duas borboletas de porcelana azul e um velho almanaque do Biotônico Fontoura. Era um pequeno quarto, com cama colada à parede branca, um colchão de palha coberto com o lençol amarelado pelo uso, um urinol e as roupas de ontem penduradas num prego atrás da porta. - É no pé da máquina - dizia orgulhosa, referindo-se ao trabalho que sustentava o casal. Justiça seja feita, era a melhor modista da cidade. Mas, se o fato de costurar bem lhe trazia fama e freguesia boa paga, ela andava cansada, resmungando pelos cantos e nem sentia mais vontade de frequentar a casa de Dona Miúda nos domingos à tarde para um café com bolo e recordações. Sentia-se triste e solitária entre velhos e novos amigos. Até para ele, seu primeiro amor, não mais contava os causos da infância, as aventuras no pomar do avô e tudo o mais que fazia a alegria daquela vida tosca. Um dia, cansada de tudo, olhou para as estrelas naquela noite sem lua como se fosse pela primeira vez e soluçou, como numa ladainha, aqueles versos de criança que fizera há muito tempo numa noite como aquela. Sozinha, recitou bem baixinho até que, lentamente, fez-se em palavras pequeninas e frágeis como nuvens de letras que agora voavam ligeiras com suas asas leves de libélula em direção à Via Láctea. Qualquer dia
Quando sair na chuva Qualquer dia Desses dias de sair Dia de ser Dia desses... Eu então direi O que ouço O que sei
Direi da estante Cheia de livros Dos ingressos antigos Daquele bilhete de viagem Já te falei da carta? (que não enviei) Do cartão da turma? Tua foto no panfleto Um manifesto Meu poema de protesto Volta e meia Ainda saio na chuva Quem sabe Te vejo de novo Olho no olho Escrevendo versos silábicos Incertos Secretos Concretos.
Janelas
As janelas sempre me intrigaram. Há janelas para a escuridão, janelas para uma luz intensa, janelas que permitem vislumbrar recortes do ambiente, como num quebra-cabeças. As janelas estreitas são como ranhuras na solidão do ambiente; as janelas longas não mostram nada, são espelhos que resguardam o interior das torpezas do dia. Há ainda as quadradas; as quebradas; as consertadas de última hora; as definitivamente sem conserto. Mais intrigante ainda são as pessoas às janelas: uma velha solteirona e magricela,um senhor de bigodes largos e poucas esperanças, uma lâmpada amarela, lembranças, crianças. As janelas das meretrizes,dos aprendizes… Há silêncios que dizem tudo. Discussões acaloradas, brigas, intrigas, velórios. Um pai angustiado, um marido traído, um filho que chora num canto qualquer; um taco de pão, migalhas no chão, sangue e lágrimas. A música não pára, taças, vultos coloridos, sorrisos, gritos agudos, um seio suado, um beijo roubado. As janelas são cicatrizes!
A casa de Manuela
Olhando do alto, ela ocupava um retângulo estreito entre duas casas maiores. Telhado de duas águas frente e fundo com muitos anos de sol e chuva, emaranhado de barandões, sacos plásticos e um kichute que só Deus sabe com foi parar ali. A rua se alongava numa reta após uma curva leve ,cujo côncavo pertencia à vista da janela muito baixa e estreita que, quando aberta, emoldurava uma parede azul e, no canto, à direita, a madeira torneada do braço do sofá. Daquela casa, quase que não se podia dizer-lhe a cor. Talvez um branco levemente azulado ou um azul claro esbranquiçado com manchas cor de rosa aqui e ali, em algumas partes via-se um verde aguado denunciando as diversa pinturas por que passara através dos anos. Chapéu–de-couro, margarida, onze horas, erva cidreira, boldo e outras tantas que se misturavam às ervas daninhas, papéis de balas e tocos de cigarros que formavam um conjunto colorido à entrada da casa, tudo isso margeando um caminho de cimento sobre a terra, rachado e enegrecido pelo tempo. Pelas frestas, via-se o interior humilde e limpo. Do conjunto de som de duas caixas grandes com tweeters, soava forte, Me and Bob Mcgee e, de vez em quando, os sucessos do momento, mas apenas no rádio. Na sala, um sofá coberto com uma colcha de chenile cor de abóbora, uma mesinha de madeira encostada à parede, num canto, coberta com uma toalha branca sob um vaso com flores artificiais. Na parede, um quadro com moldura ovalada de pintura barata retratando três crianças com trajes antigos. Um cheiro leve de parquetina inundava o ambiente. O ar era frio, mas não úmido, refrescado pelo vento constante que, numa corrente invisível, lambia sem pudor as paredes lisas, o chão de cimento vermelho e o telhado suspenso nos caibros de madeira fina. Manuela quase nunca estava lá. Trabalhava como professora primária num bairro distante e fazia bicos em outras atividades. Diziam que tinha uma vida obscura, para além dos muros da escola estadual. Sussurravam as fofoqueiras que Manuela era isso e aquilo. Diziam que tinha um filho, ninguém sabe onde nem com quem. O certo ou quase certo é que o menino era criado pela mãe que morava sozinha no subúrbio. Manuela gostava de música. Quando abria a casa e estendia os lençóis na janela, um festival dava início. As canções não tinham pátria, as línguas se misturavam como numa Babel sinfônica, quintessência do bom gosto: blues, rock, samba de Cartola, Adoniram e Batatinha; Chico Buarque, Rita Lee, Caetano, Pink Floyd , Yes, Led Zeppelin, B. B. King, Beatles, Piazola, Bessie Smith e Miles Davis. Manuela não era bonita nem feia. Manuela era Manuela. Não gostava de ser vista nem ouvida. Dizem que era feliz à sua moda; que namorava um garoto de dezesseis para contrastar com os seus 37 e não dava bola pra ninguém. Manuela, sua casa e sua música. Assim foram-se os anos de Manuela e dos amigos de Manuela e dos gatos malhados rondando e roçando na porta para entrar. Certamente existe um tempo e um lugar fora dos tempos e dos lugares para onde vão as Manuelas, suas casas e suas músicas; para onde vão as as palavras iluminadas pela poesia da vida. Strawberry fields forever, Manuela!
Quem sabe um dia
Quem sabe um dia Eu te mostro a lua Com sua luz metálica Numa noite fria. Quem sabe amanhã A estrada é deserta A noite é prata A relva é vasta E tua voz é leve Como uma navalha Cortando o silêncio. Quem sabe não esqueço Teu endereço E a luz da lua Nos teus cabelos. Talvez! Num desespero de solidão Na escuridão Eu possa te ver Como na primeira vez Naquela noite Na imensidão prateada da lua. 36 ºC
Um papel Um recado Um recibo rasgado Quinze mil cruzeiros Em outubro de 84 Um cigarro Um cinzeiro Populares de Cuba (Fumar daña su salud) Rio de Janeiro Eu não fui pra Aruba! Li Artaud e Baudelaire Chutei urna no palco Meu poema silábico Você lê se quiser Sua voz embargada Na hora marcada Você diz o que quer Dança e protesta Manifesta! Lê aquela brochura Ainda há Ditadura Nós queremos diretas! Mas ficou no papel Agora rasgado Um recibo solitário
De um sonho sonhado Registrado No CPF e RG Cadê Você?
Blue and Green
A noite caiu pesada como chumbo sobre sua cabeça. No cais, à espera de Penélope, observava a dança das luzes da cidade refletidas na água. Pensava nas desilusões que a vida lhe trouxe e como aquela mulher havia penetrado fundo no seu coração. Como era serena aquela paixão, como se assemelhava a "Blue in Green" que outro dia tivera a felicidade de ouvir no Café Solano. O cheiro da noite, o frio da madrugada e a espera. O último cigarro ainda queimava entre seus dedos e novamente aquela melodia. Intrigava-lhe a maneira como ela entrou na sua vida. Um táxi em plena avenida frenética numa tarde de verão. Os prédios refletiam a intensa luz do sol e do lado oposto da rua: cabelos ao vento, sorriso pleno, decote generoso, mas comportado, quase sincero. Não tomou o táxi, correu como um louco entre os carros para acompanhá-la. Numa disputa enlouquecida e unilateral com os transeuntes que caminhavam à sua frente, apostava com um depois do outro, pontos de chagada determinados pela proximidade com ela. Era uma maneira divertida de vencer terreno e se aproximar do alvo. Podia vê-la chegando, podia sentir o seu perfume mesmo embaralhado nos diversos cheiros da rua naquela tarde. Enquanto se aproximava, cada vez mais rápido, pensava se devia falar-lhe, contar da sua paixão imediata, das loucuras que seria capaz de fazer para lhe agradar, das noites incontáveis de amor e vinho. Penélope caminhava como quem avança para os braços do primeiro amor. Dirse-ia que flutuava sobre sua felicidade. Não pisava as pedras portuguesas da calçada e ele estava ali, do seu lado, calado, olhando de vez em quando
para merecer um sorriso que não se apagasse quando ela, por fim, se voltasse para ele. O néon meio apagado e avermelhado do bar se avolumava através da chuva fina e Penélope não chegava. O som estridente da rotina policial podia ser ouvido misturando-se ao trompete de surdina que vagava sonolento na bruma do cais. - Senhor M? - perguntou-lhe o homem de chapéu à sua frente. Não respondeu. Atirou o cigarro na poça à sua frente e acenou indicando que o seguiria. Fez todo o trajeto em silêncio: o carro veloz deslizando no asfalto molhado, o prédio branco, a sala de espera, o corpo. Um vulto vagou perdido, quase invisível diante das luzes das vitrines vazias até perder-se na escuridão. No bar da esquina que acabara de dobrar tocava Blue in Green, onde muitas garotas iluminavam o ambiente como notas musicais na noite fria.
O velho professor
Destacava-se suspenso nos ares como uma janela para o passado. Liberto das agruras do tempo em sua carne, o rosto impecável em óleo sobre tela, parecia alegrar-se com o olhar mais atento do visitante curioso. A seus pés, uma pesada mesa de jacarandá reluzente de óleo de peroba, suportava velhos maços de papel, um porta lápis de metal prateado e uns poucos livros encadernados à moda antiga, com letras douradas em papel escurecido. Teve o seu tempo. Fertilizou-o com suas letras envergadas pelo peso dos sentimentos e, acolá, esvoaçantes como um bando de serenatas ao luar. Construiu versos bêbados, outros encantados e sonoros como o dedilhar das cordas de um violão numa melodia vaga e veloz. Ele sabia e repetia para quem o pudesse ouvir que o tempo é uma agulha arteira e tece com eficácia o texto dos dias. O velho professor sorri de soslaio e acena imperceptível para os olhos incautos dos visitantes. Naquela sala, o antigo divã roça seus fios arrepiados pelo desgaste, no pé-direito que se ergue solene em grossa camada de tinta azul entrecortada pelas estantes robustas que transpiram leitura, conhecimento em forma de nuvens de palavras, que ainda circulam alterosas pelo ambiente.
Teria sido em São Petersburgo, naquele passeio, do lado direito da Nevski, olhando as belas vitrines numa tarde de verão? Ah! Sim. Com certeza! A paixão foi fulminante e nada nem ninguém poderia tirar-lhe das mãos, aquele livro. Daquele encantamento, brotaram versos e prosas que encheram páginas e mais páginas do seu caderno de capa dura. O velho professor que agora sustenta um sorriso matizado percorreu mundos e destrancou portas; modernizou-se nos bulevares de Paris. Em seus intensos devaneios, ele percorreu os meandros dos edifícios populosos de Praga para desvendar os mistérios das Moiras. Se pensas que o pote estava cheio a derramar palavras como a banheira de Arquimedes, estás enganado, meu caro amigo. Aquele velho didata sabia que, como as areias do Saara, o conhecimento não tem fim. Deleitava-se a recordar blowup e aquela cena; não, não era uma cena de cinema, mas uma obra de arte; uma hélice enclausurada no enquadramento em preto e branco; luz e sombra. Vez por outra, matava a sede revisitando séculos, passeando pelos jardins da Academia e sentando-se à mesa com Sofia, a bela dama, sempre espantada diante da simplicidade mas, carinhosa, em cujo colo suspirou olhando a noite estrelada, sem respostas. Estava tudo ali, para quem quisesse ver: as histórias, as memórias e, mais que tudo, aquele metasorriso. É isso mesmo! Um metasorriso, um sorriso em si mesmo, encharcado de orgulho intelectual que a modéstia resguardava ante a imprecisão das opiniões alheias. Desbravador implacável, exímio conhecedor dos caminhos nas estepes; saltador de montanhas e explorador de florestas tropicais. Por onde quer que andasse a imaginação dos poetas, lá estava ele, crítico mordaz, doce agnóstico a comover-se diante da beleza. Suspenso estará sempre, nos ares, como as nuvens a apreciar contente a gente que ali aprende e que, como ele em sua infância, sonha um dia saber as respostas escondidas nas coisas e admira aquela figura suspensa, retratada em cores sóbrias. O velho professor, que não morre nunca, pois sobrevive não apenas na memória dos aprendizes, mas nos sonhos que brotam dos poetas.
Palavras coisas
Nada Um vazio Onde outrora havia palavras Palavras coisas Cantantes
Sonoras Como uma flauta doce Saltitante Palavras moventes Movediças Palavras lisas Cordilheiras lexicais Transmentais Nada Um vazio Vaso Um Verbo Ao acaso!
Acordar
Tocou o chão com os pés descalços e retirou-os imediatamente, estava fria demais aquela manhã e ainda não era junho. Com muito esforço, sonolento, endireitou-se na cama e fixou os olhos no telhado baixo e escuro para ver se já havia amanhecido. Inclinou-se um pouco para frente e ligou o rádio de três faixas que ficava sobre uma mesa improvisada com cavaletes de construção. - Vamos acordar! - dizia a vinheta do programa numa voz meio caipira, de quem diz porque diz, seguida por uma canção sertaneja das antigas, tipo Cascatinha e Inhana. Cambaleou até o fogão de lenha, pegou o querosene numa prateleira, restos de palha de milho e varou o lusco-fusco com a chama do fósforo, num estalo. Lá fora os primeiros sons da passarada anunciavam o dia. Um cheiro de fogueira acesa tomou conta do ambiente. Cheiro quente que logo se fundiria com o bafo de café barato e de pão dormido esquentado sobre a chapa de ferro.
- Vamos acordar! - repetia desafiando, o locutor. Naquela manhã, despertara com a lembrança de um sonho ou talvez fosse uma impressão, um sobressalto capaz de deixá-lo pensativo e meio triste. Não era tristeza, mas nostalgia. Era uma lembrança sem se lembrar, um perfume que persistia e não se dissolvia na água que agora banhava o seu rosto. - Eu sou tão jovem! - Que lembranças pesam em minha mente? Que portas deixei de abrir? - Pensou enquanto sentava-se para engolir o café com pão. Talvez seja ela. De quem não vejo o rosto. Vejo apenas os longos cabelos, a atmosfera alegre e onírica, uma cumplicidade, ternura. - Quero voltar ou seguir? O que procuro está no passado ou no futuro? pensou enxugando uma lágrima. O rádio agora transmitia as notícias do dia. Enquanto se olhava no espelho, tentava afastar aqueles sentimentos. O sol tomou conta da pequena sala vazia. Lá fora as pessoas passavam, alguns meninos fardados iam para a escola e o pára-brisa do automóvel no lado oposto da rua refletia o sol em seus olhos a ponto de não ver mais nada. - Acordei! - disse com voz de locutor de rádio e bateu a porta.
Silêncio
O tempo escoou E eu estou longe Não te observo mais Andando descontraída pela calçada Ou deitada no chão Com um olhar perdido Imaginando utopias Silenciosa ilha.
O tempo passou
E eu estou sozinho Pensando em você Sonhando, deitado no chão Observando O quadro na parede Minha utopia.
Pensei num tempo Andando com você No caminho do mar Na trilha das pedras Sem tempo E sem espaço Descalços no fim do dia.
Upload
Sentado em frente ao monitor com os olhos fixos no centro da tela esperando algo ou alguém, absorto. Só, em sua inutilidade semanal, não percebeu a vigilância fria e panótica da Webcam que penetrava em seu corpo como um raio-X e, sondando os seus mais remotos pensamentos, impingia-lhe uma alienada exposição. - Alô! - rompendo o silêncio - uma voz aveludada, um sussurro de fêmea etérea. Como quem desperta de um sono profundo, foi, aos poucos, se acostumando com o ambiente nebular do display até sentir o impacto das mãos com o teclado, abaixo. Digitou alguma coisa, sem nexo, meio parecido com o vernacula utopiensium e virou-se em plano médio americano procurando a webcam que, agora, deslizava tranquilamente num ângulo de 180º.
- Alô - repetiu a voz etérea. - Alô senhor! Favor digitar seu user name e password enquanto confirmamos o contato visual. Lembramos: esta fase do processo é muito importante para preservar o link enquanto fazemos à transliteração dos dados. Aguarde, por favor. Atordoado, ele tentava corresponder às exigências da máquina enquanto se maldizia por não ter lido os "Termos de Uso" e a "Política de Privacidade", agora era tarde, o dedo ágil digitara as últimas letras da senha resvalando num clic instintivo para enviar. Enquanto aguardava novas instruções minimizou a janela do Player e pôs-se a observar atentamente o caos alfanumérico que enchia a tela e contornava um pequeno campo retangular, quase um banner oco, revelando o branco excessivo do cristal líquido. - Agora, senhor, por favor digite uma frase qualquer para que possamos iniciar o download - carinhosamente pedia aquela voz serena que, de maneira alguma podia ser uma gravação dessas que existem aos montes nas telecomunicações. - Mas que raios de frase eu devo escrever? - pensou! Estendeu os dedos sobre o teclado e permaneceu nessa posição até que, como um relâmpago, cortando os seus pensamentos desordenados, surgiu: " o que você quer de mim?" Então, com os dedos pesados de ansiedade, digitou. Voltou os olhos para o monitor que parecia mais Gaussian Blur do que estava antes. - Senhor? Agora permaneça imóvel para possibilitar uma melhor performance do scanner. Pela primeira vez, enquanto permanecia congelado numa pose de 3x4, irritouse com aquela situação. Afinal, o que queriam com ele? Não bastavam os updates daquela semana? Acaso não teria solucionado os problemas de instalação do novo pack? Não teria reportado aquele bug? Nada parecia estar "batendo". - Senhor? The key, the end, the answer! Foi então que entendeu tudo aquilo. Claro, só podia ser o sinal que esperava. Imediatamente iniciou o upload a partir das memórias mais remotas da sua vida que agora eram transmitidas através de um raio caleidoscópico para a ávida lente da webcam que se aproximava num zoom ótico.
Azul
O anúncio fixado na porta de entrada da casa de V escrito em fonte Old English informava, solenemente, a chegada do casal, em lua de mel há uma semana. Pela porta semiaberta penetrava um réstia de luz do sol que imprimia, em tons dourados, um triângulo retângulo no chão de madeira polida. Sentada, bordando um pano qualquer para matar o tempo, V suspirava enquanto pensava na recepção: flores do campo, cheiro de jasmin, música alegre, bebida farta e borbulhante, salgados e doces, ah! muitos doces. Iluminado, o jarro de porcelana verde refletia a luz do sol em raios frios e animados projetando na parede uma infinidade de pequenas partículas multicoloridas. V não era bonita como a noiva. V tinha sonhos românticos como toda jovem de sua idade. Mas V não era bonita como a noiva. Era inteligente! Na verdade, era muito mais inteligente que sua irmã. Não fosse pelo "defeito", como costumavam dizer referindo-se ao fato dela não poder andar, coisa de nascença, V certamente seria a preferida do, agora, marido de sua irmã. Em sua insignificância aparente, ela era extremamente produtiva. Além dos cuidados da casa, ela escrevia. Amante nenhum nesse mundo teria escrito cartas e poemas tão belos quanto os que V moldava com lágrimas, na matéria indiferente do papel, em suas eternas noites de insônia. V é tão jovem! Mesmo que os verões esbanjassem claridade e velocidade às vidas daquela casa, V era inverno! Não que deixasse a alguém perceber a sua tristeza, ela simplesmente congelava em sua solidão enquanto ria e conversava sobre os dias e as coisas. No seu exílio, criava. Escrevia sobre vales verdes e serenos, sobre montanhas cujos picos alcançavam as nuvens e as águias faziam ecoar seus gritos pelos ares, descrevia terras imaginárias, lagos tão extensos, oceanos tão profundos, pessoas tão belas e boas quanto ela. V é tão bela! Bordando, ia criando. Criando uma festa de casamento, um amor delicado, uma figura que escapava do seu pensamento toda vez que tentava vislumbrar um rosto, uma mão, cabelos ao vento, sol no rosto, sorriso. Via sem detalhes, como quem adivinha. Mas, mesmo assim, ela queria poder dizer que amava, que sonhava e vivia. Não importa se eram tantos os presentes que enchiam o seu quarto de uma graça comprada aqui e ali, sem identidade, apenas coisas brilhantes, felpudas e sonoras. V queria viver para além daquele quarto e sentir-se plena nas coisas do mundo. V é frágil! Diluindo a triângulo e espalhando luz por todos os cantos da sala, entra o casal em plenos sorrisos e conversas. Acorrem todos, o som se espalha como a água sobre a toalha da mesa, reluzem os metais, gestos e frases, palavras e respingos Distante daquilo tudo, lenta e silenciosamente, a mão escorrega sobre o peito e repousa suavemente sobre o pano. Fechados os olhos, V agora jaz, pequena flor sobre uma rocha bruta.
Fecho o livro e vou dormir, sereno, como uma melodia de Bossa Nova.
Cavaleiro torto
Um cavaleiro torto De silhueta neogótica Percorre o caminho, sorrateiro Na lama putrefatalenankin Filho da arca pulga tricha Esbilte pilotron sanguessuga Mimética solução humanóide Lesa-forma vil vivente Um cavaleiro de longa esfera Filho da arca sila troncha Caminha indeciso Na prima lama dicotômica Cata tenso, na orla empolada Finos fios de palavraspontes Para dizer fundante O que nunca fora antes. Um cavaleiro torto Pouco Só
Intrépido arcanjo rococó Arremata a vida num poema Como laço ou como nó.
Monólito
Eu reconheço este perfume que, de tão íntimo, Abre janelas na minha previsível singularidade. Vagando em nuvens de palavras, Rostos e pedaços amorfos, Estruturas e monólitos, A saudade indecifrável. Teu rosto no rosto de pedra, Minhas mãos no teu rosto de seda. Tristeza e alegria. Parcos ângulos obtusos Silêncios redondos Rodopiam na valsa confusa da memória. Pinçar retalhos de certezas completas Que já não valem mais Brinquedos, são o que são. Afasto agruras, Deixo passar o beijo, o olhar de desejo, A noite eterna E o dia submerso na maciez da pele. Falas,
Amigos, Um futuro distante que hoje é presente E a gente nem sente. Deixo aberto o portal antropofágico, A desordem, O exatamente inverso do que sou Para soar humano Na natureza caótica do meu corpo E na coerência do sonho.
Sabe quando você tem certeza
Sabe quando você tem certeza E ninguém parece se importar com a solução? Quando todos emperram E só você é ação? Quando dizem acabou Você ignora porque sabe alcançar? Entende o motivo da estranheza Mas caminha, mesmo que devagar? Ontem me disseram não haver amanhã. Não da forma como eu queria. Janelas não se abrirão para um céu azul, João não beijará Maria, Canteiros inteiros, estilhaços no chão. Sabe? Hei de apurar minha visão, Conspirar, conjurar, subverter, revolucionar; Lançar palavras num balão, Letras inteiras
num muro intocável. Sabe, quando você tem certeza Não está só. Há uma rede clandestina Esperança, confiança Seja qual for o nome da trama, A gente não se engana Se suja, se fere, aposta tudo E sorri pro céu azul Sorri pra Maria, sorri pra João...
O artista da solidão embriagante
Oh! Senhor das colheitas e das flores que brotam nos jardins do fim do mundo. Eu sou Severino. O servo aleatório. O penitente na terra violada. O artista da solidão embriagante. O pórtico está aberto e a jornada vai começar. Por hora vos digo: do nada nada se cria, exceto a fantasia! E desta sou o criador e curador. Silibrina da face orvalhada, como Lady Godiva, embriagada até o gargalo, dissonha o que antes era aconchego e canto quente, para soltar do ventre em chamas, o rebento seco como o lajedo da capoeira. Meu coração é de barro, das barrancas do rio, das pisadas do gado leve em pele e osso, sim senhor. Quando cantou, "Joana flor das alagoas", o canto da terra, o lampião acendeu em noite ligeira e relampiou nas telas de zinco. Naquele instante, eu nasci! Bezerro novo na poeira dos dias, arauto das primeiras horas, que ainda nas mãos da véa Aniceta, num choro embargado, risquei o espaço com o olhar duro para as frestas da taipa. Na rabeira das palavras, cantei num canto salitroso as desditas dos couros secos no rol das plagas e resmunguei meus versos pros ouvidos rotos. Canto, meu senhor, porque velado é o tempo que assombra minhas certezas e me impõe rolar o verbo na brancura calva do papel. Oh! Senhor das colheitas e das flores que brotam nos jardins do fim do mundo.
Eu sou Severino. Servo já não sou. Meu penar me fez crescido e nas artes me fiz príncipe. Codinome voluntário pra espalhar letras miúdas e outras tantas graúdas nas folhas que correm mundo a fora.
Estrangeiro
Eu bebo o futuro Como um copo de água fresca No calor intenso do presente. Não me apetece o sorriso fácil Do aqui e agora. Falsa saída, Panacéia improvável. O futuro me pertence Nos versos silábicos que escrevo. Eu canto E minha canção tem pernas longas. Ela verá os próximos séculos E mostrará meu espanto, Não do futuro Que ainda é distante a cada momento. Mas do presente
Que nunca existiu. Cantando sigo Indecifrável, perdido de mim, Estrangeiro em minha terra.
Elisa
Parou no meio da ponte. Elisa! Chicoteou-le uma lembrança. Por que ela? Logo ela, tão fugaz... Embrulhado na chuva fina, As mãos flácidas, O olhar perdido. Flutua. Não sente o chão, Não sente o corpo, A mente ausente, Apenas repete: Elisa! Elisa!
Quase na Praça Castro Alves
Desceu do ônibus no Campo da Pólvora, em pleno sábado de carnaval. O tênis novo, bermuda estampada com bolso secreto pra guardar dinheiro e documentos, camiseta regata e três doses de conhaque só pra turbinar a entrada na avenida. O Trio Elétrico dava a volta no Sulacap enquanto Reginaldo deslizava São Pedro abaixo. Ele e uma multidão de mortalhas molhadas, rasgadas, amarradas nas cinturas, arrastadas no chão lambuzado de urina, cerveja e restos de folia. Reginaldo sonhava encontrar Soninha. Tinha marcado um lero com ela nas imediações do Clube de Engenharia. Ali rolava uma galera legal: a turma da esquerda, alguns roqueiros que não foram pro festival, pra praia ou ficaram em casa ouvindo Black Sabbath; os intelectuais que não pulavam e passavam todo o carnaval discutindo com a turma da esquerda; alguns populares (aqueles das crônicas nas edições de domingo), universitários, bichos-grilos turbinados e, é claro, muita mulher bonita (dos outros). Aquele pedaço era o local mais quente do carnaval no início dos anos 80. Por ali passavam quase todos os trios e trecos que alegravam a galera. Reginaldo fazia a ponte: um pé na Praça e outro na barraca de Valdir para uma cerveja gelada e uma parada pra cantar as meninas e "se armar" pra mais tarde. Naquele dia tava tudo certo. Soninha ficou de lhe esperar na mureta do Clube, em frente à barraca de Valdir e nada poderia dar errado. Enquanto passava por São Bento, Reginaldo ouvia os acordes de Dodô e Osmar na Carlos Gomes e pensava em Soninha lhe esperando na mureta: latinha de cerveja numa mão, um cigarro na outra, os cabelos dourados na réstia do sol que morria na ilha, vermelho. O Sulacap imponente derramava gente por todos as janelas. Pro lado da Rua Chile, as luzes acabavam de ser acesas e iluminavam restos de Gandhis, aqui e ali, como contas brancas que escapuliram dos colares dos Orixás. Reginaldo dobrou a esquina. A multidão enchia a rua estreita como sardinha na lata. Empurra pra lá, empurra pra cá e Redginaldo entrou na onda. Não mais andava, era levado numa alegre correnteza que vez por outra se transformava num furacão onde tudo rodava, os pés quase não tocavam o chão e as mãos
só tinham lugar acima das cabeças que passavam em profusão. Não eram apenas cabeças, eram braços, rostos suados, latinhas, cigarros acesos, peitos, mãos nos peitos, loló, ladrão, capacete de polícia, pisão no pé, dedo no olho, sovaco na cara e um milagre pra sair dali antes da chegada do próximo Trio Elétrico. Quase esmagado contra a porta de ferro de uma loja de passagens aéreas, Reginaldo avistou Soninha em cima do muro do Clube de Engenharia. Não se importava mais com os pés encharcados na poça de mijo nem com o odor que exalava da mistura dos perfumes e cheiros da multidão que impregnavam seu corpo molhado de suor. Lá estava ela, linda, de shortinho azul, top colorido e uma flor no cabelo. Soninha dançava. Não! Não era dança. Era uma coreografia, ela pairava como Francesca de Rimini sobre a multidão que imitava os movimentos de um cavalo mecânico em ritmo acelerado. Seus cabelos escorriam sobre os ombros, os olhos fixos no alto do Trio, as mãos levantadas. Reginaldo mergulhou na multidão como se estivesse no Porto da Barra. Queimou os cabelos moldados com óleo de coco da morena dos Pernambués com o seu cigarro, atropelou o maluco que cheirava loló e nem se importou, tropeçou numa muquirana e, por um instante, pensou não poder transpor a barreira das bundas rebolantes e dos socos dos malhados. Mas lá estava Soninha e estava perto. Só mais alguns metros. Reginaldo foi cuspido pela multidão contra uma pilastra do Cine Bahia. Atordoado, caminhou apertado contra o muro a tempo de ver Soninha em cima do Trio, sorriso amplo a caminho do Campo Grande. Pra Reginaldo a decisão: lavar as mágoas com as cervejas de Valdir ou se deixar convencer pelo refrão que balançava o chão da Praça na voz de Caetano: "atrás do trio elétrico, só não vai quem já morreu".
Capistrano e o vento
Capistrano, filho de Eliodoro e neto de Capistrano. Esse era seu orgulho. Lá para as bandas do Oricó não havia riqueza maior que uma descendência contada e recontada pelas honras do trabalho honesto. Sua força vinha daí, do amor de Madalena e do filho Elinho. Naquele sábado, voltando da feira, Capistrano levava os pedidos de Madalena; um doce pra Elinho e uma canseira danada. Andava para poupar Cipó que já suportava dois panacuns cheios das coisas que comprara com o dinheiro do seu comércio. - Eia! Cipó. - num grito entrecortado por um assobio - vamo, vamo! A estrada se alongava perdida entre os cacaueiros que a margeavam. O sol estava a pino e o jumento cipó, de vagar, marchava com os olhos fechados e a cabeça baixa. Caminhava há duas horas e ainda faltava mais duas para chegar em casa. Era um pedaço de estrada de terra, um tanto de roça de cacau, outro de manga, o último trecho de mata e a velha casinha de taipa se mostrava em sua humildade barro e palha. A estrada era varrida pelos ventos de agosto. O farfalhar constante era às vezes tão intenso que amedrontava. Dava a nítida impressão de que a floresta ia engolir a todos como uma bolha verde e revolta com sua boca enrugada e amarga como a casca do pau d'arco. Capistrano ia cantarolando em pensamento as velhas canções da Vó Minervina e, vez por outra, interrompia a cantoria para relembrar os causos de pédefogueira em noite de lua, com a família reunida no terreiro varrido de
véspera; prato de aipim com carne e a caneca de café pilado com cravo e rapadura. Nessa distração ia Capistrano e nem reparou quando à sua frente, um jenipapeiro fino e alto envergou profundamente sobre a estrada soltando folhas como fogos de artifício na noite de São João. O vento roçou o corpo de Capistrano e o fez estremecer! Sentiu um frio repentino e agarrou-se à cangalha de Cipó que cambaleava com as orelhas em riste. O vento cresceu como uma muralha à sua frente e despejou os restos da mata com seus cheiros e suas migalhas sobre seu corpo lento e insignificante. - Eia, Eia. - tentava fazer Cipó obedecer enquanto puxava-o fortemente pelo cabresto. Cipó fincou as patas no chão de terra e não arredava. Agora eram as compras que começavam a cair quando Cipó empinava ligeiramente para se livrar da fustigação. Foram as panelas, as fazendas, açúcar, café a garrafa de Jacaré. - Velei-me meu São Benedito! Sussurrou apavorado. - Eia, Cipó! Vamo, vamo... - implorava como se sua vida dependesse disso. Cipó empacou e Capistrano agarrou-se a ele como se fora sua única salvação. O vento ficou mais forte a ponto de derrubar uma árvore a poucos metros dos dois. O estrondo fez Cipó relinchar e pular sem sair do lugar e, pulando, derrubava o conteúdo dos panacuns que rolavam estrada a fora. O horizonte tinha sumido numa polpa marrom e o que era estrada virou céu e o que era céu virou estrada, o vento soprava de baixo pra cima, Cipó com as orelhas no chão, bufava e Capistrano flutuava sobre a Cajazeira que rodopiava e se encontrava com a estrada, ou era o céu? A casa de palha, o fogo as lembranças de Madalena, Elinho na escola, minha velha Minervina, meu pai Eliodoro, São Benedito rogai por nós. Bola de sebo Capistrano na idade de Jesus não pode morrer sem criar Elinho, Cipó já vai alto, o perfume de Madalena, minha sandália, aquele toco... Aos poucos, deu-se a calmaria! A estrada virou estrada, o céu azulou, Cipó perdido nas entranhas do horizonte e Capistrano dormindo. Descansava, a final, Sob as folhas que ainda caiam, lentamente, sobre sua cabeça recostada no velho toco do Jequitibá.
Nuvem
O código expresso Impresso Virtual Sem identidade Só me reconheço No discurso possível Passível Inautêntico corpus Generalizador O que eu tenho a dizer Arranha o disco rígido do meu computador Eu me estranho Eu não sou eu
Sou aquilo que me generaliza Nuvem Neblina Perspectiva.
Como ondas num lago
Gostava de falar das coisas que, por um triz, escaparam do seu olhar atento e de toda a vivência que poderia encantá-lo e transformar os acontecimentos em sólidas cosntruções na memória. Mas, de qualquer forma, ele viu todas essas coisas e tinha delas uma saudade sublime. Ele precisava delas para se achar. Não se achava em lugar algum sem os detalhes. Eles não são determinantes, mas fazem a conexão necessária ao estar ali. Era como se tentasse ocupar uma vaga antiga, algo como uma mossa num espaço vazio e plano que apesar de não ter existência concreta, física, permanecia intacta, à espera de um acoplamento que fizesse jus à sua existência. E quando os ares impregnados de amargura comprimiam as coisas dos dias, ele procurava abrigo nos detalhes que, como uma chave mestra, lhe permitia abrir os momentos passados e recontar para si mesmo, restaurando migalhas das experiências como se fosse dar vida nova a uma obra de arte quinhentista vilipendiada por ignorância e desleixo. Era assim, reencontrando-se e perdendo-se nos extremos das coisas, que ele fazia a sua arte para apartar-se de si mesmo. Nesse processo, encontrava o seu lugar, sua propriedade imaterial. Coisas de sentimento; signos inflados pela imaginação e arrumados para significar ampliando-se como as ondas bidimensionais se propagam num lago sereno.
Enquanto caminhava devagar
Enquanto caminhava devagar, lançou um último olhar para o quarto vazio. Nada a fazer senão descer as escadas e ganhar a rua que, naquela hora, estava quase deserta. Desceu degrau por degrau a escada em caracol, arrastando os pés de propósito para ouvir o eco na solidão da noite.
Com um sorriso catártico
Com um sorriso catártico e olhos abertos para a profundidade do momento, flutuou ao som da clarineta dedilhando um alaúde invisível para acompanhar a delicadeza e a feminilidade da voz que cantava: ―hello, my love, now you're alone‖.
Travelling em primeiríssimo plano
Travelling em primeiríssimo plano na delicadeza da nuca. Sob uma camada suspensa de fios dourados penetra em caracóis que se desfazem suavemente...
Bebeu cada gota
Bebeu cada gota de horizonte como se fosse luz nos lábios dos girassóis!
Paisagem
Tarde quente de outubro: Silenciosa, Ácida. Sem sombras na rua deserta e abrasiva. Acolá, O azul marinho pinta o horizonte E revela uma poesia de bossa nova. O vento liberta um pássaro veloz, Ascendente Que respinga gotas sutís No meu rosto Quente como a tarde.
Lapso
Não conhecia nenhuma daquelas pessoas que transitavam freneticamente pela ladeira íngreme e estreita. O fluxo constante deixava-o atordoado e aumentava a sensação de abandono que havia surgido desde que se dera conta da situação em que se encontrava. Foi como se tivesse surgido do nada. Encostado no velho poste de ferro reparou na marca de fabricação gravada no metal:Düsseldorf -Deutschland. Aquelas palavras não saiam da sua cabeça e ficou repetindo: Düsseldorf, Deutschland, Düsseldorf...,enquanto caminhava em meio àquela gente calada e, aparentemente, insensível. Subiu alguns metros, desceu outros tantos... Na verdade, não sabia para onde estava indo nem tampouco aonde se dirigir naquele lugar estranho. Não estava em outro país! Embora estivesse com medo de falar com as pessoas, de perguntar-lhes onde estava,sentia familiaridade nos cheiros, sons e texturas que impregnavam os sentidos. Não era medo, de repente soube, o que lhe impedia de comunicar-se. Era antes, uma certeza absoluta sobre a impossibilidade de comunicação com
aquela gente fria e distante. Por um momento, orgulhou-se disso. Sorriu com o canto da boca para não deixar que percebessem o prazer que sentia. Düsseldorf - Deutschland! Voltou ao velho poste que suportava uma pequena lâmpada suspensa na extremidade oscilante de cano escuro que surgia do corpo negro do poste fabricado em Düsseldorf,Deutschland. Parado ali, não se importava mais com aquela gente. O sistema voltou a funcionar normalmente. Digitou as coordenadas e desapareceu.
Devir
Num instante é brisa, no outro EVENTO!
Limite
23:59 O cabo negro e estriado serpenteava pelo piso de madeira enroscando aqui e ali nos móveis estragados pelo tempo e seguia mesa acima tão esticado que perecia poder partir-se a qualquer momento. Sobre a mesa jazia um copo de papel, vazio, desses de aniversário, com motivos infantis: um palhaço com cabeleira colorida, serpentinas,confetes, língua-de-sogra, tudo isso com muitas cores para fingir alegria e comemoração. Adiante, refletindo a luz de uma lâmpada incandescente, como uma serpente estreita e verde, escorria lentamente o líquido derramado do copo em direção aos dedos finos e inertes de Teresa. 23:58 Um relógio despertador emoldurado por figuras de anjos barrocos cavalgava uma mesinha de cabeceira com duas gavetas entreabertas. Mais adiante, em diagonal, a sombra com gestos leves tingia a parede branca do quarto de Teresa. Como num sonho ruim, ela acordou sufocada pela secura do ar, os cabelos molhados de suor que também escorria por todo o corpo e abriu os olhos a
tempo de ver-se através do espelho da penteadeira, flutuando como a assistente do mágico no circo Eureka. Na sonolência que ainda sentia, zonza e surpresa pela insólita situação, Teresa não sabia se flutuava pelo quarto como um astronauta ou se o quarto era uma espaçonave que lhe acolhia com gentileza e a fazia sentir-se bem na incerteza dos fatos. O certo é que agora sobrevoava a mesa da sala que ainda guardava os restos da festinha de aniversário do seu único filho. 23:57 No televisor ligado, Tom corria desesperadamente atrás de Jerry e derrapava numa esquina como um carro no asfalto molhado. 23:56 Teresa imóvel na cama, não sabia da noite e o que lhe trazia, não sonhava, não cabia no tempo estreito que agora tinha. 23:55 A porta abriu com um leve estalo. Agigantando-se pela sala vazia, a sombra com chapéu atravessou o corredor esfregando-se ora numa parede, ora na outra empurrada pelas luzes dos outros cômodos que se alternavam ao longo do caminho. Parou em frente à porta do quarto onde Teresa dormia, empurroua devagar jogando uma tira de luz sobre as suas pernas brancas.
Polaroid
Aqui, onde estou, Posso diluir-me num verso Para caber no espaço do teu riso. Posso colher mil maneiras de te amar, Sonhar em cinemascope Nosso beijo lírico de domingo. Rabiscando agora, Nesse velho caderno colegial, Sou ciência humana transitória. Sou saber perdido na tua memória, Fotografia em preto e branco Da minha antiga Polaroid. Aqui, onde estou, Posso construir meus versos em silêncio Para exibir estático numa tela,
Posso fazer uma fotonovela E colher o teu sorriso breve Para fazer figura leve No espaço cênico do poema.
Festim antropofágico
Suspenso no fio tênue do seu sonho contingente, ele olhou em volta e percebeu, com espanto, quão diferente era a realidade posta na mesa da indiferente contagem dos dias. Do alto, o olhar se expande e alcança surpreendentes formas que se insinuam e contam histórias com tramas embebidas nas profundezas da agonia e da dor. Neste caldo prenhe de solidão, apenas treva e vento inverso margeando dunas esculpidas pelo som arredondado de um violino. Como um acrobata ébrio no olho do furacão, conta riscos luminosos e sombras obesas e vorazes que se avolumam ainda mais saciando sua fome num banquete biológico, fagocitose pictórica e dominante. Mesmo que todos os ventos soprem sobre sua cabeça metálica, vale a visão e o conhecimento do fogo e da água, das pedras que andam, de todo o mais e de todo o menos que os dedos podem alcançar nas cordas da guitarra. E alguém grita: Desce daí e vem ser fera, Mas diligente Como na última valsa Que partilhamos na noite fria. Desce para cantar E contar Em praça pública Sob os olhares da turba Que tudo é ilusão É vento Vulto Vão.
Ouviu palavras ocas, cascudas, escorregadias, repulsivas como vômito. Não se empenhou em procurar definições, ele espalhou sua embriaguez no festim, assoberbado. Liberto da fama e de todo o conteúdo singular, quer formar legiões trôpegas e procissões nômades. Não mais o belo. O grotesco é o interregno das cores e odores, das formas que nos fornos se formam em finos traços. E na praça, Sob as pedras da turba Tudo é peso Prisão Pó.
Pé de vento
Tudo transcorria na mais absoluta simplicidade que a verdade encerra: Maria era casada com José, dois mais dois era quatro e o domingo era o dia do descanso. Havia uma paz celestial, azul como as cuecas do Papai Noel e serena como mãe d’água absorta a acariciar os cabelos sobre a pedra lisa na margem plácida do rio. Joaquim e sua amante; o tenente renitente e toda a gente supunham-se contentes em suas premissas verdadeiras. Não importava a ausência do seu filho mais valente, o José, que por caminhos impensáveis, andou riscando traços em terra e barro de longínquas plagas. Joana cabeleireira, migrante por inteira, voltou certo dia com mala, cuia e Sarita, filha das tardes livres no salão vazio, das vozes roucas e coisas poucas do amor de João. Menina aplicada, Isaura foi mandada, transferida, maculada. Da capital voltou fessora, cabo de vassoura, mais esperta que na ida. Para curar sua ferida fez palanque, voto e veto no caminho do poder e da fé. Para quem ficou sobrou assento, mas nenhum pé de vento. Tudo era lento, o cabra zangado, o fogo de Elvira, a febre do mato e pobre no relento. Tudo era igual como fora antes no mundo pequeno do desconsolo. E o rio manso, nas longínquas plagas de Joana que não tem o amor de João, que traiu José com Maria, que casou com Isaura por poder e toda a glória, corre agora colina abaixo entre pedras polidas, adentrando a mata, materno ventre.
Claustrofobia
Não sei se me olhas, agora, sob esta abóbada uterina, claudicante e claustrofóbica. O certo é que te vejo letárgica, na imensidão do teu espaço ínfimo. Se não me atrevo a avançar sobre o teu tronco como um louco e sanguinário é porque não te atreves a me olhar nos olhos. Sequer moves as partes delgadas para jogar teu bote aéreo e certeiro, para depois sair em disparada tateando brechas para abrigar a tua casca repulsiva. Das paredes desta cave, no lusco-fusco embrionário em que nos encontramos, brotam periféricas figuras em relevo, toscas, como tocos que são, a apontar seus dedos retorcidos, acusatórios. Não há saída, como não há espaço para compartilhar em harmonia. Só pode haver um: o vencedor, posto que sejam inimigos naturais. Não há predação, contudo, tudo não passa de um processo de afirmação da posição que ocupamos no espaço. Eu estou aqui e isso é mais do que eu posso suportar. Este não é o meu lugar, não posso compartilhar contigo as minhas fraquezas. É certo que não te importas, nem sabes o que sei; nem sabe quem és ou o que sou para ti. Todavia, cá estamos a nos perceber como presença indesejável. Enquanto rastejas, inquieta, eu sou obrigado a curvar-me no máximo das possibilidades do meu corpo para evitar o contato. Sufoco e arregalo os olhos para antever teus objetivos, para mapear teus caminhos e, deliberadamente, fugir para dentro de mim, reduzindo espaços, encolhendo pensamentos, calando a voz. Minha vingança é que não te deixo todo o espaço, tu ainda me tens e isto te incomoda, eu sei. Eu vi com que precaução elaborou teu plano de fuga, ou de ataque, quem sabe das táticas que formam a tua estratégia de eliminação. Eu também tenho meus planos. Tenho método. Na insuficiência da memória elaboro, invento a partir do que tenho. Essa é a minha marca. Meu instinto me protege e minha cabeça me lança para frente como uma catapulta medieval. Eu sou vaso de guerra, flecha riscando o ar frio da manhã. É…
Soneto
Não serei meu vulto na janela, emoldurado, Quando a clara lua derramar seu leite. Prefiro ser nas tardes dos campos dourados Com os olhos pálidos e as mãos silentes.
Como num suspiro célere, num lamento, Como em noite crua de beijos e abraços, Num instante é brisa, no outro evento Espargindo luzes na solidão dos espaços.
Eu, na vastidão mecânica do meu corpo, Sou nada aflito na superfície, solto Na imaterialidade efêmera do pensamento .
Silêncio! Agora que a luz se esvai em flocos No vazio intenso dos meus sonhos loucos, Sou pluma envolta no lençol dos ventos.
Utopia
Eu quero a utopia! Não a ilha, Mas a certeza do incerto, A prova do improvável. Eu quero Vênus, Marte e Júpiter, Quero a Terra no futuro Sem leis e sem grades, Sem fome, crime e dinheiro; Sem políticos, sem trapaça, Sem a ilusão da religião. Eu quero esta utopia. Sem início e sem fim; Sem crença e sem esperança. Eu quero uma utopia Como um poema de Emily Dickinson, Como um pássaro que se equilibra num fio. Eu quero utopia, Literatura, Poesia. Quero sentir a tez da tela, O odor das formas E a cor do vento. Quero Heráclito, Nietzsche e Foucault, Quero a historia do porvir
Tatuada pela máquina de kafka Numa esquina da Névski. Macunaíma na Bahia, Castro Alves e John Donne Numa Lanhouse de periferia. Eu quero o aço, o vidro e o carbono, Supermáquina, Gadgets, widgets e applets. Quero androide na minha porta Com a pizza da madrugada. Andar se pagar passagem, Sem o meu, sem o teu, Leaves of grass! Quero os loucos na praça, E os generais como privada de pombos. Eu quero o ócio criativo, A escolha digitada. Eu quero o silêncio E o barulho do vento nas copas das árvores. Quero Rock, Blues E um samba de Batatinha. Quero utopia, texto, melodia E não me incomoda a tua censura. Se ―é proibido sonhar…‖, Eu escrevo pra me vingar.
Um verso
Ontem, na solidão inquieta do meu quarto, De súbito, atravessou-me um verso na garganta. Com palavras fontes E radicais impregnados de juventude, Soltou minha voz com timbre de criança.
Devaneio
Acordou cedo.
Olhou em volta e não viu ninguém. Não viu a nova máquina, O olho que lhe vê. Sua conta na rede, Seu retrato na parede. Ele não viu você. Não viu o dinheiro dos outros, O sangue na cidade; Ele não viu a maldade. Não viu os cabelos dela, Seu visual progressivo, A conta em cima da mesa, A lata de cerveja. Não viu o herói da tela, As algemas no bandido; Não viu a fita amarela, Nem o choro, nem a vela. Não viu que não via algures, Enfiou-se na escuridão do sono E sonhou contente. Sonhou com aguardente, Recitou seus poemas de cor e salteado, correu sobre os telhados.
Não viu que podia ver, Onde está você,
Aonde vai o rio E sua correnteza. N達o viu que, deveras, a sua riqueza, Era agora a sua cegueira, Sua nobre vis達o no devaneio.
O meu caderno de cinq端enta folhas
Uma velha mala de couro: livros, algumas fotos, uma lata de biscoitos com um daqueles rótulos vintage anos 30. Ela, a mala, ficava guardada sob a cama dos meus avós e era sempre na ausência de ambos, que eu me aventurava a garimpar as relíquias que repousavam ali, há anos. Tinha a latinha das quinquilharias do meu avô, a garrafinha de ―Linimento de Sloan‖, moedas antigas, parafusos, pregos tortos, um bilhete de Loteria Federal e as ferramentas do seu ofício de alfaiate. Era muito interessante ver a destreza com que ele transformava um corte de tecido em um paletó; como, por linhas tortas, riscava com o seu giz azul e redondo o traço certo da costura e da elegância que vestia os coronéis e os doutores desde antes de ser meu avô. O produto final era enrolado num papel pardo, atado com barbante de sisal e rotulado com um quadrado de papel pautado contendo o nome do freguês e o tipo de traje. Ah, os livros. Tinha gibi de Tarzan, manuais de iniciação maçônica, Almanaque Fontoura e um exemplar do ―Macaco Simão‖ que eu ganhei e coloquei ali, junto com o resto do tesouro. Aquela casinha era a minha felicidade, meu exílio quando o tempo fechava lá pras bandas da minha casa, meu repouso e minha escola. Era uma casa de letras e palavras, de ―estórias‖ antes de dormir. Era uma casa de sonhos, de personagens fantásticos vindos do passado, com seus nomes estranhos: Belarmino, Camerino, Aristeu, Consuelo; e que brotavam carregados de significados nas conversas a meia voz que eu escutava atento, costurando os fragmentos e revivendo o que não vivi. Ali, aprendi a criar histórias e a ouvir as palavras que eu pronunciava , metódico, para extrair imagens que se multiplicavam e voltavam a ser palavras no meu caderno de cinquenta folhas.
A noite, a estrada e o silêncio
A cidade, ao longe, flutua com suas pequeninas luzes. Presépio perdido e difuso, dissolvendo-se na escuridão num jogo de esconde-esconde, colina após colina, com seus mistérios na frieza da noite alta. Aqui, um cheiro forte de maçã. Além, os limites acesos da estrada sinuosa que em breve, vai mostrar sob a neblina, as ruelas silenciosas que abrigam casas pequenas e sombrias, cheias de memórias. Podia molhar os meus pés na relva úmida à beira da estrada e ficar ali a contemplar o céu aberto e brilhante imaginando histórias que nunca seriam escritas. Sentir apenas. Tatear o espaço, enxergar com a imaginação, degustar meus pensamentos como se fossem vozes varando o silêncio da minha solidão. Por que não faço o que me pede o coração, posto que dorme a razão intransigente? Nesse instante flutuo com a cidade ouvindo poesia na folha que agora cai sem rumo e perde-se para sempre no breu da curva.
Ditirambos na praça
Não te dou a poeira das ruas, A sujeira dos becos E as misérias dos homens. Antes, como um mágico, Como um sátiro na praça dos ditirambos, Invoco poetas já esquecidos, Sonoras sereias, Umas tantas coisinhas de vidro E um comprimido de aspirina.
Haicai I
Na manhĂŁ, entre flores e ĂĄrvores, O teu sorriso Explode em minha cara Com gosto de laranja.
Kino
O mar. O olho ronda o fio das águas rasas e revela a âncora enfiada na areia. Conchas, bóias de salvamento flutuam, correntes avançam corroídas. O sábio do futuro é a lança que repousa na laje à beira-mar. Ancorantes retomam antigos pensamentos que diziam: Depois de muito relutar, Ligeiro, Quase que esperava pela sua ausência. Ela estava E o roteiro rabiscado em papel quadriculado ficou sem sentido. Assim como a metáfora solta ao acaso, as palavras são redondas como se viessem de lábios de cristal. Correntes, contas e traços descalços como flores no caos. Tensão entre a tragédia e a farsa. Ancorantes, saltimbancos profetas da ataraxia! Façamos o jogo.
Cosmonauta de papel
A xícara de café refletia na superfície escura e brumosa da bebida, a luz difusa da manhã. Os braços apoiados sobre mesa contrastava com a alvura impressionante da toalha. Não havia coisa que pudesse ser descrita para além desta cena. Um estranho e imenso vazio. Era como uma tela negra em cujo centro projetava-se aquela composição bizarra e constrangedora. Da mesa podia-se ver apenas a metade ocupada, a outra metade parecia ter sido apagada como se apaga um desenho qualquer usando uma borracha escolar. Era um desenho infantil, porém caprichoso e revelador de um talento inato e ainda um pouco imaturo. Parecia feito a lápis numa técnica em que a representação principal vasa, na própria brancura do papel, em contraste com um fundo matizado. Aqui, um fundo escuro em grossas camadas de lápis de cera. Se havia cor para lá do preto e branco eram as ranhuras que, amareladas, vestiam um corpo humano que se sobrepunha à mesa e que também fora apagado nas extremidades. Insinuava-se um céu que não existia no desenho. Podia-se perfeitamente imaginar as estrelas brilhantes, restos de nebulosas, pequenos planetas distantes e alguns sóis com brilho intenso por trás dos panos enevoados das galáxias. Num canto, dissimulado pela intrincada trama negra, um vulto prateado flutua como um cosmonauta à deriva no espaço infinito, rodopiando até sumir na margem próxima do papel.
Três por quatro
Desceu do ônibus na pracinha do terminal. À sua frente, petrificada numa pequena colina, erguia-se impávida uma capela centenária. Escorregou no asfalto tingido pelo óleo dos velhos motores das Marinetes. Era o primeiro dia de aula na capital. O olhar desconfiado de garoto do interior registrava tudo em lances tímidos e inquietos. O medo de chegar atrasado, de errar o caminho, de ser aceito. Enfim, o desconhecido tem cheiro de fumaça, café torrado e perfume de mulher. A foto depois da aula, a foto depois da aula… Ia repetindo enquanto caminhava orgulhoso por estar ali. Era uma nova vida afinal. E ali estava. Sozinho. Por sua própria conta e risco transitando entre desconhecidos, ambulantes, sorrisos alheios, garotas na fila e, provavelmente, os batedores de carteiras de quem tinha ouvido falar nas preleções da Tia Zulmira. A foto na volta… A camisa branca com o escudo azul. Calça azul marinho, sapato preto. Tudo tem o seu sentido. O dele era o estudo. O conhecimento que lhe fora negado pela ignorância dos interlocutores adultos, o que não tinha nos livros lidos, o que nem os livros sagrados explicavam, doravante estariam provados e escritos com esferográfica no caderno de dez matérias. Na entrada, o portão de ferro rangendo abria espaço para um pátio de pedras portuguesas bem diante do edifício neoclássico que se insinuava austero, como deveria ser a casa do conhecimento. A escola da capital. Ninguém reparou na figura tímida que se encolheu numa cadeira de canto e ficou a saborear as novidades. Escolheu amigos, adivinhou os nomes de alguns, criou histórias que se passavam além daquele momento e se apaixonou pela menina de óculos e cabelos negros. O som da sirene interrompeu a aula que invocava histórias antigas. Esperou pelo vazio da sala para admirar as pilastras magníficas, os móveis escuros, o chão de cerâmica com motivo antigo. Saiu lentamente e novamente a lembrança: a foto. Do alto da ladeira avistou um lambe-lambe. Sentou-se num banquinho e reparou no balde para lavar as fotos, os rostos desconhecidos que estampavam as laterais da velha câmera. Será que ele seria mais uma daquelas fotografias? Não importava. Era fácil ser anônimo naquela cidade. Atenção! Pronto. Seis faces idênticas em três por quatro para provar que ele estava ali. Não era aquele que há pouco brincava de cowboy com os amigos e distribuía tiros de espoleta imitando a rudeza dos vaqueiros do Faroeste. Era agora compenetrado. Um objetivo novo que começava a ser conquistado ali, naquela hora e naquele lugar. Um leve sorriso era visível na foto que se queria séria. Guardou a meia dúzia acomodada num canto quadrado de envelope de carta. Enfiou as mãos nos
bolsos e penetrou na massa colorida que atravessava a rua na faixa de pedestres.
O homem velho
Procurando ―O direito ao ócio‖ de Paul Lafargue, ele tombou o livro que se escondia, estreito que era, entre o ―Ócio‖ e o ―Capital‖. Era um volume de bolso editado nos anos quarenta, com tiragem limitada, impresso em papel Leorne e rubricado pelo editor. Nada de excepcional, posto que sua estante abrigava obras adquiridas no velho ―Sebo Brandão‖. Todavia, aquele exemplar lhe chamou a atenção. Não se lembrava dele, com certeza não o tinha comprado e muito menos lido. ―Um homem velho‖, de Frederico Guilherme Framet, tradução de Joaquim Pinto Costa. Editado em Lisboa, o livrinho tinha a arrogância das grandes obras. Mas quem seria esse tal de F.G. Zamet? E o seu personagem, o homem velho? Não parecia um tratado de psicologia nem tampouco de fisiologia. Tinha páginas a menos que a conta necessária para tal empreendimento. Era um pequeno conto, com certeza! Estava disposto a se deixar levar pela narrativa, penetrar no universo misterioso de um autor sobre o qual nada conhecia. Abriu o livro como se abre aqueles livrinhos de ―pensamentos do dia‖ e leu a esmo: ―não compreendo por que julgais ilegítimo o entusiasmo que não morreu com o tempo. O mundo está cheio de pessoas cuja casca áspera e rugosa denuncia a passagem do tempo e que conserva o viço que impele o seu querer. A morte da semente é a vida do broto‖. Leu sem parar o velho e insignificante livrinho achado espremido entre gigantes.
Forma
Gosto das formas. A superfície exata, O ângulo do retângulo. A forma é mais que aparência, É essência tátil E retrátil. O agudo, o rombudo, a bolha. A forma é antecedente. É o conteúdo insurgente. [A pedra de marte É a mesma no meu quintal.] A forma não é forma, o seu modelo, Morfeu adormecido. A forma é o oposto do vago, É rebento inconteste da materialidade. A forma Forma.
Da natureza das coisas
Fazia-lhe referência, frequentemente, para confirmar um pensamento. ―Força e Matéria‖, de Ludwig Büchner. Era uma questão de gratidão ao mestre e, ao mesmo tempo, lhe permitia um inebriante orgulho intelectual que procurava não disfarçar e deixava que o percebessem como um leve ar de superioridade. Era absurda a incapacidade deles em compreender a verdadeira identidade das coisas. A Matéria é primordial. E, ao demonstrar isso, recorria a Demócrito, Heráclito e Epicuro com uma destreza admirável e numa oratória cheia de artimanhas dialéticas, verdadeiras armadilhas eruditas. Até que ela apareceu em sua vida. Teóloga, católica praticante, devota de Nossa senhora de Fátima e estudiosa das obras probatórias de Santo Tomás de Aquino. Ela era doce. Cultura recheada por longas visitas aos santuários europeus, museus e relíquias do mundo antigo patrocinadas pela riqueza cacaueira da família. Fazia palestras em centros sociais e comunidades de base onde espalhava como confetes coloridos, o seu tomismo cheio de fé e revelação. Nas noites de frio, após um longo beijo apaixonado, enroscavam os pés por baixo do cobertor e sonhavam. Ela via-se envolta por elétrons, prótons e neutros numa coreografia minimalista, a bailar no universo em expansão. Ele sonhava recitando de cor a Suma Teológica, embriagado, abraçado com Tomás de Aquino numa taberna medieval.
Lá fora
As nuvens pareciam pesadas demais para poder flutuar acima de todas as coisas. O chão sequer sustentava as carapaças ancestrais, ao léu, soterradas no Humo. Como um retrofoguete, um foco de luz acelerou sobre sua cabeça e ele curvouse feito artista ovacionado pela platéia da Avant-première. Lá fora não há proteção. O palco é vasto e profundo. Nem a trufa nem a fruta, o fel é o sabor. Ofuscado pela luz intensa ele vagueia intruso na cegueira alheia e desinteressada. O palco gira e a dança dos rasos irrompe das cortinas rotas como um tropel sôfrego sobrepondo as máscaras a cada salto. Agora ele é de foz em fora, soluto na imensidão unânime da sua espécie. Não há retorno, apenas o entorno; engenho lúdico que impele a súcia para o vazio. Meditabundo, a um canto se acomoda. Seu pensamento recolhe as reticências da história e as compila na trama do córtex. Queria poder secretar os juízos e, como panacéia, pulverizar a multidão fazendo arco-íris numa manhã de primavera.
Desfiladeiros
Com suas marcas casuais, A parede da pedreira Que não existe mais enquanto parede, Outrora sentiu o vento acariciar [como aço] Cortando a face da pedra. Agora não é mais dura, Não sombreia mais o pó das tardes E eu não sinto medo da altura. Não sonho com escaladas e desfiladeiros. Não brinco mais Quando a chuva vem em grossas tranças Formando laguinhos de sujar pés. O sol não aquece a parede de pedra Até secar o galho preso na fenda E eu não posso quebrar o galho Entre os dedos, Sentir o pó da madeira. A parede da pedreira não é mais de pedra, É de memória. Seja lá de que matéria for, Eu não brinco mais na sombra da pedreira.
O tempo não passa como se pensa
O tempo não passa como se pensa. Ele para nas tardes cinzentas Quando, olhando o horizonte, Ouvimos os sussurros da brisa ligeira. Sentimos o tempo que diz: Ei, espera que vou te mostrar: Olha pra mim! Podes ver-me na réstia de sol Sobre o muro? No pássaro que canta acolá? No inseto traquinando amiúde? No som de um alaúde? Olha pra mim E murmura aquela cantiga Aquela, da moça do conto de Maupassant. Repara! Escuta, olha, sente. É como extrair som das teias, Soa sublime e quente como um colo. Olha pra mim E me diz de si Que eu sou todo ouvidos. Intenta tocar-me Nesse jogo de pega-pega. Olha pra mim Que te mostro coisas sem fim. Coisas que brilham no jardim, O violino da valsa, A cigarra E a traça perdida na parede branca. Às vezes o tempo para Na música que nos embala E nos faz pensar Que apenas blefa Quando enruga a face lisa do artista.
Nave de plasma
José estava ficando velho. Apesar da contagem do tempo, não era a cronologia que marcava como tatuagem de dragão, a alma inquieta do nosso amigo. O que ele não tolerava e lhe tragava a insignificante existência era um querer quase insano. Ele esperava por não saber procurar. E, nessa espera, desaguava sua incompleta aventura em prosa e versos que, com o tempo, tornou-se um enfado. Já não supria mais a necessidade de transcender os vazios dos dias, a conta não batia e as despesas eram maiores que a receita. Queria. Não sabia mesmo o quê. Queria talvez o dia com céu azul e alguns cirrus bem branquinhos. Quem sabe navegar no Jet Stream pilotando uma nave de plasma. José queria, mas não sabia. Certa vez pensou que podia ser marinheiro no barco de Jack London. José era mesmo assim: impressionava-lhe o modo de vida aventureiro e romântico como nos velhos contos que ainda empoeiravam em sua estante. José estava ficando velho. Apesar da contagem do tempo, não era a cronologia que marcava, como tatuagem de dragão, a alma inquieta do nosso amigo. O que ele não tolerava e lhe tragava a insignificante existência era um querer quase insano. Ele procurava por não saber esperar. E, nessa procura, completava a sua aguada estrutura rascunhando o tempo no tédio das horas. José sabia, mas não queria viver a insalubridade das idéias comuns. Nada era tão belo como olhar o mundo com óculos novos, ler ―Noites Brancas‖ de uma tacada só ou ouvir os passarinhos naquela manhã com céu azul e cirrus brancos. Pensava em ser marinheiro, aventureiro, romântico. José queria acordar de férias para escrever um livro. Queria viajar para a Rússia, Alemanha e XiqueXique. José estava ficando velho e nessa espera desaguava ou, quem sabe, navegava na brancura dos livros tatuando dragões na memória, nas noites empoeiradas da sua existência. Através das coisas
Não sabendo mais o que pensar, acomodou-se com gestos lentos ao assento. As luzes riscavam em cores quentes a janela cortada ao meio pela cortina de tecido vermelho. Retalhos de noite. Escapam-lhe os sonhos efêmeros que escorregam como lágrimas. Através dessas coisas, a moça do lado está mais próxima. Não vê, sente! Ele cavalga agora numa planície orvalhada. Está coberto de sentimentos e não sabe o que fazer com os potes de palavras que trás consigo. Atira umas poucas ao chão, outras são substâncias, algumas magnéticas. Retalhos de emoção. Destinos opostos, mesma rota. Ela está no lado da lua. Ele cata na brancura das folhas como parte da mesma visão. Gestos, rostos, uma pálida sombra e uma melodia que levita como névoa na estrada deserta.
Como gravuras antigas
Amarelo o sol E eu caminhei pela areia. Ontem à tarde
O mar se fez estrada iluminada Como nas gravuras guardadas em gavetas. Entes que eu esqueça Havia tantos azuis, outros tons E cores mais que não sei de cor. Sei que passavas às vezes Com um ar de seda, Cedinho, Com o corpo leve em minhas mãos. Meu relógio de pulso, Meu mergulho no tempo… Todas aquelas coisas sob o sol Eu vejo de novo E, como se abrisse uma janela, Digo: Olá! Minhas mãos ainda estão aqui, Eu ainda sou eu Caminhando sob o sol amarelo.
Reversos
Não penso em poesia Como versos. Antes, reversos. Transcrevo os meus próprios textos Que transgrido na tez insípida do papel. O que me importa
É o código aberto, o incerto; O que muda ao gosto do cliente Que trai o dito e, no desdito, Reescreve incógnito Os seus próprios versos.
Zulmira na noite fria
Então, ela via aquelas pessoas passando e repetindo gestos conhecidos, aquelas situações que há muito observava e que as devolvia, quase sempre, envoltas em metáforas para purificar a praça. Uma espécie de dèjá vu em espiral. Agora ela compreendia que o retorno é eterno. As unidades vão e vêm para ocupar os papéis definidos: um arlequim, uma colombina, um palhaço de esquina, um líder, um zé ninguém… Zulmira, a dama dos ratos, podia mudar seu destino e romper com o script original mas estaria apenas assumindo outro papel no teatro ao lado; na peça alheia que maternalmente lhe acolheria. Ela se aquece agora na fogueira enquanto os mascarados avançam com suas tralhas e pretextos. O próximo ato flutua sobre as cortinas como uma nuvem, psicodélica nuvem de velhas tempestades.
Um encontro consigo na confusão da rua. Entre cacos e restos de tudo: um olhar que não vê, uma lembrança descabida e Zulmira perdida na noite fria.
Estamos sós
Estamos todos sós Nos arranha-céus, No beco imundo, Nos jardins… Eu estou só E quanto mais fundo vou, Mais alto estou.
A distância não separa, Mas preenche o campo de visão Como se observa uma maquete: A forma reduzida, A realidade apreciável do todo. Há sempre que nomear O que se vê daqui. Nada é o mesmo E mesmo que seja será sempre inominável, Porque palavras, Não as tenho para tal fim. Me perco e me acho nos signos E embora clara a visão, É minha a construção do objeto que se mostra. Dou forma e retenho a imagem, O que sobra não é minha obra, Mas aparas ressequidas Que nada contam sobre a figura esculpida.
O escritório do senhor Olusco
O casarão ergue-se à margem da rua como uma muralha que ao longo dos seus mais de duzentos anos sustentou olhares soberanos sobre a cidade, desde suas janelas escavadas no frontispício decorado com anjos e demônios. - Eu quero dois sacos plásticos para colocar relíquias que enviarei a parentes distantes – disse suplicante enquanto varria o ambiente com os olhos semicerrados. Olhos de quem é míope, sabe como. - Vamos entrar, está procurando o escritório do senhor Olusco? Sussurrou o zelador, enquanto sumia na esquina escurecida pela sujeira de mãos antigas e muitas outras imundícies que os dias acumulam nas paredes. A escadaria parecia infinita em sua solidão e umidade. Portas entreabertas vomitavam restos de interrogatórios, gritos e culpas aparentes. Em flashes, como nos sonhos lembrados com dificuldade ao acordar, enquanto esticava-me escada acima, sentia a estranheza das coisas, o delírio das
emoções arrastadas ao limite de humanidade daquela gente. Não sei o que faço aqui! É certo que outras lembranças me ocorrem no crepúsculo que, lá fora, pinta as paredes e sombreia os buracos do jogo de gude escavados na terra, como as sombras nas crateras da lua. Lembro dos barcos submarinos que passavam velozes sob a caravela frágil que, talvez, não alcançasse o seu destino no azul profundo adiante. Agora desço no caracol cinza por entre múltiplos ambientes, cores, gentes, sinas, pragas e presentes sem passado. Não sem passado quantitativo, mas sem histórias acumuladas como bagagem para o futuro, para as incertezas e circunstâncias da viagem. De novo a escuridão molhada que acomoda. - Êi, eu te conheço. Não és o palhaço que comia fogo no circo de lona verde, engraxada e remendada? Como está a rumbeira? Diz aí! O palhaço parecia não ouvir, apesar da pouca distância e ainda me lembro das partituras para clarineta jogadas sobre a mesa da sala, da lona verde e da dançarina. Linda era o seu nome. Linda morena. Não sei mais se subo ou desço. Só a vertigem que me ilude e me leva de volta para o início ou o fim. Não sei distinguir, apenas supor que vejo o que não veria se meu ouvido interno se comunicasse direito com o cérebro. O cérebro da moça da loja. Pelo menos a sua cabeça parecia tão pequena, que diria quase impossível comportar um cérebro humano. Mas ela me olhou de forma tão inteligente, que me apaixonei pelos poemas que, com certeza, guarda na gaveta do seu armário, em velhos cadernos escolares. A porta. Agora a vejo. A saída desse manicômio ou condomínio. Dá no mesmo. Não é a insanidade que perturba, mas a excessiva certeza quando tudo é mistério e que se revela às migalhas, como seguir o pão de João e Maria. Abro para o vazio das ruas com suas gentes toscas e vou.