Memorial Descritivo Sady Selaimen da Costa

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UM CHEVETTE E UM SONHO...

MEMORIAL DESCRITIVO SADY SELAIMEN DA COSTA

Porto Alegre - 2017­



MEMORIAL DESCRITIVO SADY SELAIMEN DA COSTA

Promoção a Professor Titular do Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre - 2017­


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SADY SELAIMEN DA COSTA

UM CHEVETTE E UM SONHO... (ou carta para um filho que nunca tive)

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(ou carta para um filho que nunca tive)

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estes dois bens se resumia o meu patrimônio, quando retornei ao Brasil no início de 1989, após dois anos de estudos e aperfeiçoamentos na bela cidade de Mineápolis localizada no gélido (mas acolhedor) estado de Minnesota no meio-

oeste americano (EUA). O Chevette 86 era uma herança deixada por meu pai, que havia falecido no ano anterior em Porto Alegre sucumbindo apenas dois meses após o início de uma fulminante moléstia. Já o sonho, era um bem consideravelmente menos palpável e que vislumbrava uma carreira assistencial de sucesso na especialidade que havia abraçado e acalentava a esperança de, quem sabe um dia, galgar uma posição acadêmica de destaque. Refletindo com mais cuidado, abrangência e profundidade sobre esta seara de bens, heranças e riquezas emerjo com uma conclusão sólida e cristalina: a meu juízo, o meu maior e melhor patrimônio é representado pelo conjunto de valores forjados, exercitados e lapidados por gerações e que me foram altruisticamente transmitidos pela minha família. Alguns deles diretamente através do DNA, mas inúmeros outros pela influência direta de ensinamentos e exemplos no cotidiano. Para entender melhor as origens desta história, teremos de retroceder um pouco no tempo... Sou o quarto filho de uma família de classe média que habitava o bairro São João na região do quarto distrito de Porto Alegre (também conhecido como o distrito operário da cidade). Meu pai, o velho Sady, não possuía diploma de curso superior, sendo um requisitado técnico em contabilidade e

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minha mãe, Janethe, como era comum acontecer naquela época, era uma competente dona de casa. A prole era constituída por uma escadinha com intervalos regulares de dois anos: Emir, Amir e minha irmã Márcia. Todos crescemos no prédio número 33 da Rua Pedro Américo que estava convenientemente situado a poucos metros dos três locais mais importantes para a formatação inicial da nossa cidadania: o colégio São João dos Irmão Lassalistas (onde todos nós fomos alfabetizados e cursamos, pelo menos, o ensino fundamental); a igreja São João (onde por muitos anos frequentei grupos de jovens que me trouxeram grandes influências); e o clube Sogipa, que era uma imensa extensão do pátio do nosso edifício e uma espetacular área de esportes e lazer. O velho Sady era filho único, órfão de pai, e praticamente não possuía nenhuma conexão familiar. Já a minha mãe era da primeira geração de uma numerosa família de imigrantes católico-libaneses que havia chegado ao Brasil em busca de oportunidades e uma nova pátria no início do século XX. Meu avô Chein Selaimen iniciou sua vida profissional como mascate (o que, aliás, era o principal e mais tradicional ofício dos imigrantes libaneses), progredindo poucos degraus na escala social ao longo de alguns anos. Minha avó, Marieta, era mãe de seis filhos e tinha uma personalidade muito característica. Analfabeta em português (pois, só lia e escrevia em árabe), era de um orgulho e uma altivez impressionantes. Obcecada pela educação dos seus filhos, superou um manto de preconceitos velados e uma monumental barreira econômica e proporcionou a todos eles a possibilidade de frequentarem as melhores escolas da época mesmo que isto impusesse inexoráveis e inerentes sacrifícios. Sua obsessão era que seus filhos se formassem “doutores” e não mediu energias para que este projeto se materializasse simbolicamente em anéis de esmeraldas, safiras e águas-marinhas. Cresci no meio deste caldo de cultura e obviamente tanto eu quanto os meus irmãos sempre fomos muito mais influenciados pelo lado libanês da família. Meu pai via isto com extrema naturalidade uma vez que ele próprio se viu abraçado e absorvido pela grande família Selaimen. Teria muitas e saborosas histórias para contar sobre esta época, mas sei que este não é o fórum mais adequado. É importante salientar, entretanto, que naturalmente assimilei características paternas e maternas para forjar a minha própria personalidade. Meu pai era um grande sujeito para quem, infelizmente, a sua curta vida não ofereceu muitas possibilidades. Exagerado, carinhoso ao seu jeito e às vezes severo, tinhas seus acessos de ira reiteradamente desmoralizados pelos filhos que sabiam que neles estava personificada na pura essência a velha máxima que reza que “cão que muito ladra, não morde”. Nunca nos encostou um dedo (não que não merecêssemos em algumas oportunidades), delegando esta tarefa ao rápido, certeiro e incrivelmente curvilíneo chinelo da nossa mãe! Idealista, sempre tentou estimular seus filhos a romper limites e atingir patamares que ele próprio nunca nem ousou sonhar... Fumante inveterado teve sua vida abreviada por um câncer

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de pulmão aos 59 anos, mas Deus lhe concedeu a suprema graça de testemunhar a graduação de todos os seus quatro filhos (dois médicos, um dentista e uma advogada) e a dádiva de vê-los bem encaminhados nas suas próprias vidas. Eu morava em Mineápolis

quando recebi a ligação da

minha irmã. Não sobrava mais nada a fazer. Sem adeus, afagos ou despedidas, só me restou caminhar até o pátio dos fundos do Hospital da Universidade onde tristemente me sentei à sombra de um pinheiro vermelho, contemplando (ainda que com a visão turva) o balanço das águas do rio Mississipi e sentir a mais cortante, pungente e duradoura dor da minha vida. Minha mãe era (e felizmente ainda é!) uma cópia fiel da minha avó (até mesmo na aparência). Também altiva, exigente e atenciosa, sempre combinou largas doses de carinho com demandas pontuais pela boa educação, disciplina e, acima de tudo, afinco nos estudos. Seu jeito de ser até hoje personifica com precisão o estilo “morde e assopra” que foi fundamental para que toda a sua prole concluísse com êxito os cursos superiores que escolheram. Hoje, do alto dos seus 86 anos ainda coordena, fiscaliza, às vezes pacifica, e mantém unida toda a sua família. O seu tradicional rito de encontro familiar ainda se repete nos sagrados almoços das quintas-feiras, nos aniversários, nas datas festivas ou nas novenas de São João. Seu quibe é inigualável e funciona como um magneto atraindo seus filhos, noras, genros, netos, agregados e muitos, muitos, amigos para a maior e mais importante celebração libanesa que é a reunião em torno de uma mesa plena de fartura e alegria . Tive pouco convívio com as minhas avós. A mãe de meu pai, Eulália era uma exímia costureira e cozinheira. Certamente, nos dias de hoje, se fosse bem produzida seria proprietária de negócios de sucesso em qualquer um destes ramos. Elegante e com uma postura germânica, sempre teve um quê de modernidade, pois se casou por três vezes (sendo que um dos eleitos foi expulso de casa por ela...), mas teve um único filho. A “velha Lainha” tinha um temperamento fortíssimo e uma grande liderança que exercia sobre às pessoas à sua volta. No final da vida era ”convidada” frequentemente a se retirar das casas de idosos por onde passava por demandar e criar problemas com as “colegas.” Na última delas, a fim de assegurar a sua permanência, meu irmão Amir que é cardiologista teve de atender gratuitamente uma dezena das freiras responsáveis pela instituição. Por outro lado, tive a sorte de, na infância, praticamente ser adotado por uma tia da minha mãe. A vó Nena morava sozinha no andar abaixo do nosso. Viúva desde cedo e sem filhos encontrou talvez em mim a criatura ideal para dar vazão ao seu instinto maternal. Passava horas no apartamento dela onde guardava todos os meus brinquedos, principalmente meus valiosos times de botão. Zelava por mim a todo momento e quando o tempo fechava no apartamento de cima e o chinelo da mãe zunia de um lado ao outro era a primeira a me resgatar da confusão e me levar para a tranquilidade e segurança do segundo andar! Não era uma grande cozinheira, mas suas batatas fritas eram inigualáveis. Muito, mas muito, melhores que as do McDonalds! Meus irmãos ardilosamente me induziam a pedir para

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ela prepará-las em quantidades industriais e às vezes nas horas mais impróprias. Sabiam que uma solicitação minha nunca seria negada pela gentil, carinhosa e bondosa Vó Nena. A leucemia a levou com impressionante rapidez e aos dez anos de idade sofri pela primeira vez a dor de uma grande perda.

Meu pai que Deus o tenha,

Me honra contar seus feitos. Me dava um par de cascudos e algum tranco nos peitos, Que era lá o jeito dele De me mostrar os “preceito” Minha mãe me deu o carinho

O velho impôs o respeito!

Elton Saldanha

Examinando a minha trajetória desde a infância, procurei pinçar algumas características de cada período que julgo tenham sido importantes, quiçá, fundamentais ao longo da minha vida. Durante o primeiro grau pontuei três escolhas: a seriedade nos estudos; a prática de esportes; e a disciplina no aprendizado da língua inglesa. Estas decisões foram tomadas com a mais tenra idade. É claro que a seriedade nos estudos foi “incentivada” pelo já referido certeiro chinelo da minha mãe, mas as outras duas não. Foram opções próprias e seguramente muito felizes. Detalharei sumariamente apenas a importância da segunda e da terceira escolhas uma vez que o papel de uma educação de qualidade no sucesso pessoal e profissional de qualquer pessoa é completamente autoexplicativo e dispensa comentários. Sempre gostei de esportes. Adorava o futebol e cresci numa década terrível para ser gremista, ou seja, nos anos setenta. Jogava futebol razoavelmente bem para compor no time principal ou ser uma excelente opção no banco de reservas. Porém o tênis foi o esporte que me diferenciou. Não, nunca fui nem a sombra de um grande tenista, mas desfilava meu arrozinho com feijão nos torneios de quarta classe da Sogipa e da Sociedade Libanesa. Ainda assim, quando fui morar em Mineápolis eu descobri que era o único arremedo de tenista entre todos os residentes e fellows do departamento de otorrinolaringologia da Universidade. Para a minha felicidade o Professor Paparella (na época um dos otorrinolaringologistas mais famosos do planeta!) era, e continua sendo, um grande aficionado por este esporte e um razoável tenista amador. Após a primeira reunião do ano, quando todos nos apresentamos ao mestre e já na parte da sessão dedicada às amenidades, descobriu que no

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meio daquela dezena de jovens somente havia um tenista: o recém-chegado brasileirinho. Entre desapontado e simpático, me prometeu um convite para um match o qual assenti com orgulho, mas receoso de que se tratasse apenas de um educado e protocolar convite. Mas alguns dias após, já devidamente instalado no laboratório de histopatologia da Universidade de Minnesota, eis que recebo uma ligação da secretária perguntando se estaria livre para um joguinho de duplas no próximo sábado. Jocosamente respondi que estava com a agenda do sábado livre e, mais do que isto, completamente aberta nos próximos dois anos! O Professor Paparella, buscou-me em casa e fomos para a quadra. Fiz uma dupla afinada com o Mr. Al Bruce. Ganhamos da dupla do Professor com direito a um pneu (para os não iniciados no tênis um set de 6 X 0) e um glorioso smash (golpe violento onde o jogador pega a bolinha por sobre a sua cabeça com o braço em extensão máxima e a projeta de cima para baixo com incrível velocidade) na cabeça do chefe! A minha sorte foi que, apesar de ser um competidor renhido, o Professor sempre teve espírito esportivo e colecionava entre as suas qualidades o que se convencionou chamar de fair play. O resultado prático desta experiência foi fantástico: (1) o estabelecimento de uma estreita parceria esportiva que durou os dois anos seguintes; (2) o gradual desenvolvimento de afinidades acadêmicas e assistenciais que geraram (e continuam gerando) muitos frutos até os dias atuais; (3) a consolidação de uma relação humana plena de afeto e amizade que extrapolou todos os vínculos e limites profissionais. Hoje, apesar da distância que nos separa, somos partes de uma mesma família compartilhando nossas conquistas, dividindo nossas preocupações e multiplicando nossas alegrias. A monumental influência do Prof. Paparella sobre a minha formação pessoal e profissional nunca poderá adequadamente mensurada. Ainda assim, as suas impressões digitais podem ser detectadas (com maior ou menor clareza) em praticamente todos os momentos da minha vida desde então. O domínio da língua inglesa foi adquirido após vários anos de aulas complementares no Instituto Cultural Brasileiro Norte-Americano (ICBNA) onde eventualmente acabei me formando. O ICBNA foi de uma importância extrema em minha vida. Além de me preparar adequadamente para os futuros desafios que se apresentariam logo ali à frente, trouxe-me certa autonomia, pois ainda criança tomava o ônibus Volta do Guerino ou Vila do IAPI da extinta companhia Bianchi e, após o final da linha na Praça Don Feliciano, enfrentava uma jornada a pé pelo centro de Porto Alegre por entre camelôs, ambulantes, trabalhadores e desocupados até os altos da Rua Riachuelo. Como curiosidade, em uma ocasião ao sair da sala de aula deparei-me com a minha mãe que naquele dia achou por bem me buscar. Logo em seguida compreendi a razão daquele gesto: um terrível incêndio havia eclodido nas lojas Renner com inúmeras vítimas fatais. A confusão estava estabelecida no centro da cidade e, obviamente, a matriarca semita não poderia deixar uma de suas crias à mercê da própria sorte em meio a tamanho caos. Voltamos de mãos firmemente entrelaçadas até o terminal onde tomamos um ônibus verde com a carroceria Elizário da empresa Bianchi que nos trouxe, em segurança, ao nosso destino final.

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Uma vez fechado este parêntesis, o inglês foi a meu ver uma das minhas conquistas mais essenciais. Eu mesmo escrevi dezenas de vezes que “A comunicação oral distingue o homem de todos os outros seres viventes” e Toubbeh em 1973 foi ainda bem mais enfático: “A comunicação humana é ação, é cultura! Resume toda a história do homem. É o tecido que permeia todas as sociedades. Sua ausência renega a existência humana”. Assim para experimentar e aproveitar o que uma sociedade tem de melhor é preciso mergulhar nas profundezas do caldeirão da sua cultura socializando estreitamente com o seu povo e intercambiando experiências, ideias, ideais e sensações. Julgo que somente desta maneira extrairemos o máximo de uma experiência internacional. Em resumo, o inglês me abriu as portas da América, facilitou sobremaneira a minha adaptação no exterior e ajudou a cultivar amizades e relações que se renovam até hoje. Sem dúvida alguma, reitero, fundamental!

Finalizado o primeiro grau, e buscando uma educação ainda mais qualificada e muito estimulado pelo meu irmão Amir, prestei exame de admissão para ingressar no programa de segundo grau do colégio Anchieta. A clássica escola de padres jesuítas trazia o selo de qualidade estampado na sua história tendo formado gerações e mais gerações de proeminentes médicos, engenheiros, advogados, juízes e políticos da nossa sociedade. De uma hora para outra, me vi cercado de uma constelação de colegas que ostentavam os sobrenomes mais tradicionais da comunidade rio-grandense. O chamado ”crème de la crème” da sociedade gaúcha. Tudo certo, senão o fato de que a grife Selaimen da Costa simplesmente não existia... A rápida constatação de não fazer completamente parte daquele clube me despertou sentimentos aparentemente paradoxais. Se por um lado me senti acuado por ter a nítida noção de não pertencer aquele patamar social, econômico e cultural, por outro o fato de estar fora do palco principal cutucou minha ambição e despertou na minha mente juvenil a já referida altivez das matriarcas do clã Selaimen que foi o gatilho de uma enorme vontade de progredir, brilhar e, quem sabe algum dia, inscrever meu sobrenome no rol dos anchietanos proeminentes!

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Há quatro coisas que nunca voltam atrás:

A PEDRA LANÇADA, A PALAVRA PRONUNCIADA, A OPORTUNIDADE PERDIDA E O TEMPO PASSADO. E de tudo, tudo restaram três coisas: A certeza de que estamos apenas começando, A certeza de que é preciso continuar E a certeza de que podemos ser interrompidos antes de terminarmos. Fazer da interrupção um caminho novo, Fazer da queda um passo de dança, Do medo uma escada, Do sonho uma ponte, Da procura um encontro. Fica a promessa de reencontro... Fica o desejo de boa sorte...

Fica a vontade de que lutes e venças!

Fernando Sabino

Ao final do segundo grau, me espreitava ali à frente o meu primeiro realmente grande desafio: o vestibular unificado para o Curso de Medicina. A opção pela Medicina se encaminhou com certa naturalidade e, novamente, influenciada pelo meu irmão Amir que à época já era um bem sucedido acadêmico de quarto ano e também pelo meu tio Fuad um pneumologista afamado na cidade de Pelotas. Eu considerei até tentar cursar engenharia civil, pois sempre tive um raciocínio meio cartesiano. No colégio, quando fiz o profissionalizante de desenho arquitetônico, rapidamente percebi que aquela área não era para mim e definitivamente optei pela mais nobre das ciências! Busquei informações sobre os três cursos disponíveis em Porto Alegre (UFRGS, PUC e FFFCMPA) e decidi que a minha primeira opção seria pela última, a saudosa Faculdade Católica de Medicina. Como não poderia deixar de ser, o vestibular foi uma pedreira, pois além das dificuldades inerentes de prestar provas para o já concorrido Curso de Medicina, o unificado de 1978 reuniu as turmas egressas da antiga quarta série e da oitava (fruto da reforma estrutural do ensino médio nos anos

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setenta), na prática duplicando o número de candidatos postulantes por vagas! Ainda assim, foi com um misto de imensa felicidade e inefável alívio que ouvi meu nome ser pronunciado no rádio pela primeira vez durante a divulgação do chamado “listão” de aprovados! A Faculdade Católica de Medicina (sei que já não é mais este o nome, tampouco nem uma faculdade tendo evoluído ao longo dos anos para um complexo universitário) pela sua formatação pedagógica e por ser uma unidade isolada desinserida de um grande contexto universitário, me pareceu à primeira vista como um grande colegião! Este fato era por um lado bom e outro ruim. A parte boa é que tínhamos uma turma fixa o que obviamente estreitava profundos laços de amizade os quais conservo até hoje. Estávamos 100% focados nos conteúdos oferecidos e as disciplinas iam sendo vencidas com relativa tranquilidade já que tínhamos um excepcional hospital-escola totalmente à nossa disposição: a centenária Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. A parte ruim é que pelo nosso isolamento não pudemos usufruir toda aquela efervescência estudantil que sacudiu o país no final dos anos setenta e início dos oitenta e que foi vivida na sua plenitude por nossos colegas da UFRGS. Não, não éramos um bando de nerds alienados, mas, politicamente, talvez deixássemos um pouco a desejar... Senão vejamos: não frequentávamos o campus universitário, por conta do isolamento não intercambiávamos experiências e ideias com colegas de outras unidades e nem sempre participávamos das grandes assembleias. Mas, francamente, o que mais me importava naquele momento era aproveitar o máximo a Faculdade de Medicina e acumular uma bagagem considerável de conhecimentos técnicos e científicos. O convívio diário com meus colegas, professores e, principalmente, com uma massa de pacientes fragilizados e socialmente vulneráveis (que não raramente simulavam recaídas e novos sintomas para não receberem alta hospitalar, pois o ambiente, a atenção e o conforto nas enfermarias da Santa Casa eram muito superiores aos das suas próprias casas!) me trouxe uma série de sentimentos e conflitos. Entre eles, a perfeita noção de que a medicina é, sem dúvida alguma, uma das ciências mais instigantes, complexas e apaixonantes. Consequentemente a profissão médica reveste-se de uma aura quase litúrgica despertando ao seu redor admiração, curiosidade, respeito e, infelizmente, inveja. O papel do médico, à visão leiga, transcende às suas atribuições básicas e originais (com todas as suas virtudes e, principalmente, limitações) assumindo outras nuanças como as de amigo, conselheiro e confidente. Seguindo esta mesma linha de raciocínio, o súper-nefasto e indesejável estereótipo do médico semideus e infalível ainda habita o imaginário popular. É claro que não temos o compromisso com a infalibilidade. Ao menos em termos. Temos, sim, o inegociável compromisso de perseguir a excelência, almejar a perfeição e, desta maneira, circunstancialmente cortejar a infalibilidade. Do produto final desta fórmula não nascerá, entretanto, o intangível médico perfeito, mas o médico, tanto quanto possível, ideal que, aliada à sua capacidade técnico-científica, resgata nas raízes da sua profissão os seus valores mais singelos exercitando a compreensão, a caridade, a piedade e, acima de tudo, um

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profundo respeito e amor ao ser humano que, afinal, é o objeto exclusivo do seu ofício. A compaixão, o senso de urbanidade e cidadania (acima de tudo), a tarefa sisifesca do constante aprimoramento científico e o não menos complexo domínio da tecnologia formam uma sólida base de sustentação fundamental à construção de uma carreira médica bem sucedida. Os seis anos da faculdade de medicina passaram voando. Tínhamos uma turma espetacular. Um grupo de colegas e, mais do que isto, amizades que se criaram, amadureceram e consolidaram nesta meia dúzia de anos de convívio praticamente diário. Constituíamos, a meu juízo, um time de primeiríssima categoria que passou a dividir apreensões, tristezas, mas, sobretudo, alegrias e uma incrível vitalidade e vontade de vencer. Durante meu período na faculdade comecei a pesquisar meticulosamente e refletir com cuidado sobre as diferentes especialidades médicas que no futuro poderia vir a seguir. O portfólio de opções era imenso, mas ao final do curso sobraram apenas duas possibilidades: pediatria e otorrinolaringologia. Por conta disto, procurei incluir estas duas disciplinas no meu plano de estágios curriculares do sexto ano. O estágio de pediatria pode ser realizado sem maiores transtornos no Hospital da Criança Santo Antônio que além de ser um centro de excelência na especialidade fazia parte do Complexo Hospitalar Santa Casa. Já para realizar meu estágio curricular na otorrinolaringologia enfrentei algumas dificuldades uma vez que o serviço da minha própria faculdade, apesar de operacional e movimentado, era um pouco acanhado e com um corpo docente bastante enxuto (para não dizer reduzido). Aliava-se a isto o agravante de não ser (naquela data) ainda, credenciado oficialmente pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC). Decidi procurar outra opção e saí em busca de alternativas. Visitei e fiquei muito bem impressionado com serviço de otorrinolaringologia da PUC no hospital São Lucas chefiado pelo saudoso Prof. Rubem Lang e, posteriormente o Serviço de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital de Clínicas de Porto Alegre já à época considerado um dos mais completos do Brasil e com um programa de residência médica muito bem estruturado e conceituado. Lembro perfeitamente que quando cheguei pela primeira vez na recepção da Zona 19, no subsolo do Hospital de Clínicas (onde até hoje funciona o nosso serviço), dirigi-me a um médico residente do segundo ano que por acaso estava procurando um prontuário naquele local. Timidamente informei que estava ali para perscrutar da possibilidade de fazer um estágio no serviço. A resposta do hoje meu querido amigo Dr. Sérgio Steinbruch não poderia ter sido mais pra lá de encorajadora: “serás muito bem-vindo por aqui!” Com esta tremenda recepção, não tive mais dúvidas e defini que ali seria o local ideal para cumprir meu estágio de sexto ano. Nunca me passou pela cabeça, entretanto, que naquele exato momento, no par de minutos que durou minha conversa com o Sérgio, se iniciaria uma história espetacular. Naquele instante foi deflagrada uma relação intensa que já dura uma vida e um caso de amor incondicional por uma especialidade, por um serviço e alguns anos após, por uma faculdade e um departamento!

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Estes seis anos passaram muito rápido. Possivelmente porque tínhamos uma turma fantástica, muito divertida e extremamente unida. Chico, Neneca, Mimica, Gringo, Conceição, Gelson, Tita, Scarton, Gringo, enfim, um grupo de amigos bem heterogêneo, mas maravilhoso e que compartilhava noites adentro de estudos, ansiedades com os resultados das provas, jogos de futebol seguidos de bebedeiras no bar do Vidal, e um quê de irresponsabilidade afinal de contas 1983 parecia estar tão longe... No final de 1983, obtive meu diploma de médico e no mesmo mês prestei provas para residência em otorrinolaringologia no HCPA e pediatria no Hospital Santo Antônio. Obtive aprovação em ambos os programas, mas minha decisão pela otorrino já estava tomada. Ainda que adorasse a pediatria, por tudo que esta especialidade envolve e representa, entendi que a opção pela otorrino agregaria todas as grandes qualidades desta maravilhosa especialidade sem ter de prescindir do atendimento de largos contingentes da população infantil. Já o oposto não era exatamente verdadeiro. Sendo assim, minha decisão foi madura, serena e, sobretudo, muito bem pensada.

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A VITÓRIA DA VIDA!

Pobre de ti se pensas ser vencido!

Tua derrota é caso decidido. Queres vencer, mas como em ti não crês, Tua descrença esmaga-te de vez. Se imaginas perder, perdido estás. Quem não confia em si, marcha pra trás. A força que te impele para frente É a decisão firmada em tua mente. Muita empresa esboroa-se em fracasso Inda muito antes do primeiro passo; Muito covarde tem capitulado Antes de haver a luta começado. Pensa em grande, e os teus feitos crescerão; pensa em pequeno, e irás depressa ao chão; O querer é o poder arquipotente. É a decisão firmada em tua mente. Fraco é aquele que fraco se imagina; Olha ao alto o que ao alto se destina; A confiança em si mesmo é a trajetória Que leva aos altos cimos da Vitória. Nem sempre o que mais corre a meta alcança, Nem mais longe o mais forte o disco lança, Mas o que, certo em si, vai firme e em frente,

Com a decisão firmada em sua mente.

Bastos Tigre

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Durante meu primeiro ano de Residência no Hospital de Clínicas em 1984 comecei a constatar na prática que o ofício de médico impunha-se como uma das tarefas mais árduas e desafiadoras (para se ter uma ideia, no meu primeiro plantão tiver de constatar o óbito de um paciente com câncer terminal que decidira dar um fim ao seu suplício jogando-se de uma janela do seu quarto no sétimo andar. O seu Rúbis do 749B, como poderia esquecer...). Ali os limites entre o sucesso e o fracasso eram demarcados por linhas bastante tênues e o seu impacto transcendia aspectos exclusivamente individuais. Uma carreira médica, refletia, nunca estará completa uma vez que é construída ao longo de toda uma vida com determinação, sacrifício, inteligência e, para nós que adoramos o que fazemos incomensurável prazer. Dessa forma o seu resultado final deve representar o somatório de uma série de esforços, fundamentos e aprendizados teórico-práticos que adquirimos e rigorosamente exercitamos. O serviço de otorrinolaringologia do HCPA me recebeu de portas abertas. Como já havia realizado um proveitoso estágio no ano anterior, minha adaptação foi quase instantânea. Ajudou o fato de que vários residentes de outras especialidades eram meus amigos dos tempos do colégio Anchieta, ou dos plantões como interno-bolsista no Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre, ou mesmo egressos da velha Católica de Medicina. Ainda assim, o principal catalisador do meu ajustamento “expresso” era o excelente ambiente de trabalho vivido dentro da Zona 19 (aliás, uma característica que perdura até os dias de hoje!). O Chefe do Serviço na ocasião era o genial Dr. Nicanor Letti que se autointitulava um anatomista apaixonado pela otorrinolaringologia! Completavam o quadro de docentes ligados ao serviço uma constelação de craques composta pelos Professores Ivo Adolpho Kuhl (Professor Titular da Disciplina de ORL na UFRGS), Arnaldo Linden, Simão Levin Piltcher, Dalva Agostini do Prado Lima, Luiz Lavinsky, Gabriel Kuhl e os saudosos doutores Oswaldo Bruno Müller e Israel Schermann. Como médicos-assistentes do serviço (exclusivamente ligados ao HCPA) tínhamos os colegas Celso Dall’Igna, Airton Malinsky e Ângela Müller. Procurei identificar as melhores qualidades de cada mestre na esperança de assimilá-las tanto quanto possível. Assim, passei a admirar entre outras características a organização e paixão pela otologia do Dr. Linden; a coragem e a relação médico-paciente do Dr. Müller; a didática e o apego pela técnica do Dr. Piltcher; a sistemática e o respeito para com os pacientes com o Dr. Lavinsky; e a inesgotável capacidade de estudo do Dr. Letti. O período da residência médica foi extremamente prolifico para mim. Sentia-me completamente à vontade e estava 100% disponível para adquirir o máximo possível de conhecimentos e experiências. Meus colegas de ano eram a Dra. Elisabete Araújo Pereira e Antônio Augusto Fetterman Bosak. Formávamos um time afinado dentro e fora do hospital e até hoje quando nos encontramos em congressos, simpósios ou hospitais, sentamos para relembrar todas as nossas histórias com um misto de satisfação, alegria e uma ponta de indisfarçável nostalgia. Acumulei uma série de atribuições

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durante meu período como residente. Fui chefe dos residentes por livre escolha dos meus pares, por determinação do Dr. Arnaldo Linden, fui o responsável pela organização e supervisão do laboratório de dissecção do osso temporal (reformado recentemente por mim e “rebatizado” de Laboratório de Microcirurgia Experimental Arnaldo Linden – numa justíssima homenagem ao seu idealizador e maior entusiasta!), e tive a honra de ser o primeiro residente do terceiro ano da história do serviço de Otorrinolaringologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Desde o princípio, fui atraído pela subárea da otologia que despertou em mim um grande interesse e afinidade. Certamente fui influenciado neste sentido pela minha grande amizade e admiração ao Prof. Arnaldo Linden, talvez um dos primeiros colegas a se dedicar exclusivamente à otologia no âmbito assistencial e acadêmico. Ouvia suas histórias sobre o período em que havia estagiado no House Ear Institute em Los Angeles (até hoje uma das Mecas da otologia mundial) e maravilhado com aquelas experiências acalentava no meu íntimo um desejo muito grande de trilhar pelo mesmo caminho. Contribuíram para nutrir esta paixão as fantásticas histórias contadas pelo Prof. Ivo Kuhl (grande mestre, pioneiro e precursor da otorrinolaringologia moderna em nosso estado!) sobre o período em que esteve estagiando em Chicago com os Professores Paul Hollinger e George Shambaugh. Aprendi com estes mestres que a cirurgia otológica havia passado por uma evolução gradual até chegar ao estado de arte em que se encontrava. Historicamente, vários procedimentos foram sendo engenhosamente desenvolvidos a fim de tentar resolver ou, pelo menos, desacelerar, através da cirurgia, situações clinicamente incontroláveis e que representavam riscos iminentes de vida aos pacientes. Desta forma, a lógica que pautava os primórdios da otologia cirúrgica era, fundamentalmente, a de abortar histórias naturais desfavoráveis e desfechos que transitavam sinistramente das graves sequelas à morte. É claro que os nossos precursores tiveram ainda de adaptar à época o seu rudimentar arsenal terapêutico aos parcos conhecimentos sobre a fisiopatologia das principais moléstias do osso temporal acrescidos a profundas limitações de ordem técnica. Enfim, era uma história muito linda e, pronto, estava mais uma vez decidido: não mediria esforços para aprofundar meus estudos e conhecimento neste complexo, intricado e fascinante ramo da medicina... Os três anos se passaram muito rápido e ao final da residência, fui o orador da nossa turma em uma comemoração realizada no Leopoldina Juvenil. Lembro também que, no meu pequeno discurso, enfatizava o meu grande carinho pelo nosso serviço e a minha eterna gratidão a todos os meus queridos mestres. Finalizava, não com uma solene despedida, mas com um ameaçador, informal e profético “até breve zona dezenove!” Uma vez finalizada a residência médica comecei a elaborar uma estratégia que viabilizasse o cumprimento da minha ”profecia”, ou seja, o meu retorno à Zona 19. Concluí que este projeto passaria necessariamente por uma experiência médica no exterior bem aos moldes das realizadas

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pelos Professores Ivo Kuhl e Arnaldo Linden. Para tanto, contava com alguns trunfos e, infelizmente, inúmeros empecilhos. As vantagens se resumiam a três pilares: (1) minha vontade e determinação; (2) o já referido domínio da língua inglesa; (3) o fato de não ter uma família constituída (ou seja, era tecnicamente mais fácil organizar e custear uma viagem prolongada ao exterior). Como desvantagens sobressaía-se a minha imensa dificuldade financeira (estamos falando de tempos muito anteriores à massificação dos programas de apoio à pesquisa no exterior pelas agências de fomento); os pobres canais de comunicação (dependíamos dos correios naquele tempo ou o chamado “snail-mail”! sim, vivíamos ainda na idade das trevas, pré-internet, pré-google, facebook ou whatsapp! – e querem saber o que é mais incrível? sobrevivíamos! -); e a necessidade de encontrar um serviço de ponta que aceitasse nos seus disputados quadros um jovem “cucaracha” de 25 anos recém-egresso de um programa de residência médica em um hospital localizado em Porto Alegre, nos confins da América do Sul! Ainda assim, fui à luta e de tanto procurar tomei conhecimento que o Rotary Internacional mantinha um programa de bolsas de estudos que visava atender especificamente jovens desassistidos como eu! Joguei todas as minhas fichas nesta possibilidade ainda que desconfiado que pudesse ser preterido por algum familiar de rotarianos. Ledo engano, o projeto era tão bem organizado que nem permitia esta possibilidade. O nepotismo era abortado na raiz uma vez que o programa vedava a participação de familiares próximos de membros do Rotary! Preparei meu currículo com cuidado, vesti um terno de tergal e uma gravata e, cheio de esperança, compareci à reunião do comitê de seleção. Novamente, a organização me impressionou. Éramos recebidos com atenção e cortesia por membros do comitê. Engenheiros, dentistas, advogados, professores. Sentado na sala de espera, fitei nos olhos de cada um dos presentes. Surpreendi-me, com o sentimento de que não considerava aqueles jovens como meus adversários (afinal disputávamos uma mesma posição), mas como um bando de garotos esperançosos que perseguiam com garra e determinação um mesmo projeto de vida. Concluí ali uma grande obviedade: todas as pessoas acalentam sonhos. Maduro é aquele indivíduo que aprende a identificar, compreender e, principalmente, respeitar os sonhos dos outros... Muito mais tarde, entendi que a razão principal do rigor na seleção dos bolsistas (até um almoço era oferecido, menos para saciar nossa fome e muito mais para observarem nossos hábitos à mesa!) residia no fato de que, para o Rotary Clube, o seu bolsista representava o papel de um legítimo embaixador no exterior do seu país. Assim, da mesma forma que viajava para buscar conhecimento também deveria comportar-se como um vetor da transmissão da cultura, urbanidade e bons costumes do seu país de origem. Apesar de ter causado uma boa impressão, não logrei êxito nesta primeira tentativa. Entre resignado e frustrado, comecei a procurar um leque de novas alternativas para mim. Uma coisa era certa, teria de achar trabalho, e ele não demorou a aparecer. Após um processo seletivo, fui admitido como otorrinolaringologista do Hospital de Pronto Socorro (onde cumpria plantões de 24 horas

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semanais e que acabou transformando-se numa excepcional experiência e uma grande escola!), consegui um contrato de trabalho temporário com autônomo no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, mantinha um vínculo como otorrinolaringologista da Aços Finos Piratini (siderúrgica situada em Charqueadas e hoje pertencente ao grupo Gerdau) e meu pai me franqueou uma minúscula sala perto do gabinete de odontologia do meu irmão Emir para lá, timidamente, montar e abrir meu primeiro consultório. Quem sabe, conjecturava, pudesse amealhar em pouco tempo um “pé de meia” polpudo suficiente para seguir meu caminho com meus próprios recursos! O fato é que uma vez ”picado pela mosca azul” minhas convicções se mantinham intactas e eu seguia firme no propósito de perseguir a todo custo a meta traçada de aprimoramento no exterior. No final de 1986 surgiu uma nova seleção para bolsistas da Fundação Rotária. Reorganizei meu currículo, acrescentei alguns itens recém-adquiridos, minha mãe passou com cuidado e esmero o mesmo terno e gravata e, menos confiante (confesso) e um pouco febril (estava entrando num quadro gripal) segui uma vez mais para a reunião. Chegando lá, encontrei alguns candidatos do ano anterior e mais outros tantos marinheiros de primeira viagem. Todos com os mesmos olhares, imbuídos dos mesmos objetivos e acalentando os mesmos sonhos... Após a entrevista, da entrega do currículo e do fatídico e ardiloso almoço voltei para casa, acomodei-me por debaixo das cobertas e adormeci, pelo menos, com a certeza do dever cumprido. Três semanas após, estava em casa jantando quando recebi uma ligação de um senhor que chefiava o comitê de seleção, Dr. Ênio Tedesco (como iria esquecer deste nome!). Até hoje me emociono quando lembro da sua frase curta e muito objetiva: “Tu já podes ir arrumando as malas, guri. Ganhaste a bolsa da Fundação Rotária de 1987/1988. Parabéns!” Seria até sem sentido tentar descrever minha emoção. Aliás, tampouco acharia as palavras mais adequadas para tanto. Devolvi o telefone ao gancho, sentei na cama, olhei para o infinito e pensei: Puta que pariu, eu consegui! Nas corridas de fórmula 1 costuma-se dizer: chegar é fácil, mas a grande dificuldade está em efetivar a ultrapassagem! Pois, mais ou menos este foi o meu sentimento após ser agraciado com a bolsa de estudos (com a singela diferença de que havia levado quase dois anos para “chegar!”). A bolsa estava garantida, mas ainda não fazia a mínima ideia onde poderia usufruí-la! É claro que já tinha uma série de possibilidades em mente, mas não havia iniciado os contatos preliminares antes de assegurar que poderia arcar com os custos. Relembro que aqueles tempos eram outros. Até para conseguir os endereços encontrávamos dificuldades e seguiram-se semanas de grandes expectativas e enorme ansiedade. Checava minha caixa de correio diariamente quase com a mesma periodicidade com que hoje abro meus e-mails. O carteiro (que acabou meu amigo, irmão e camarada!) já compartilhava do meu drama e muitas vezes até se desculpava por não portar os envelopes que eu tanto desejava!

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Mas eles finalmente chegaram. Das várias instituições contatadas, separei quatro respostas bem encorajadoras: Universidade de Pittsburgh (EUA), Universidade de Minnesota (EUA), Universidade de Bordeaux (França) e Universidade de Toronto (Canadá). Encaminhei as respostas para a Fundação Rotária, uma vez que após elencar as minhas preferências, ficaria a cargo deles a seleção final (havia questões de interesse geopolítico envolvidas nas escolhas!) Algumas semanas depois, fui novamente contatado com a decisão: havia sido designado para fazer meu Fellowship na Universidade de Minnesota sob a tutela do Professor Michael Mario Paparella, Chairman Emérito do poderoso Departamento de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço daquela instituição.

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Munido de um atlas da Enciclopédia Barsa, fui olhar no mapa para onde estavam me mandando e me aculturar mais sobre a região. Descobri que os campi principais da universidade ficavam nas cidades de Mineápolis e Saint Paul (também conhecidas como Twin Cities – cidades gêmeas) sendo separadas pelo Rio Mississipi: Mineápolis a oeste e Saint Paul a leste do rio. A região fronteiriça ao Canadá era conhecida por ser a terra “dos dez mil lagos” (na verdade, vir a descobrir mais tarde que perfazem mais de cem mil!), tendo sido fortemente colonizada por alemães e escandinavos. Quanto ao clima, bem o clima era um horror. Temperaturas glaciais no prolongado inverno (chegando a 40 graus negativos Celsius – ou Fahrenheit, tanto faz, curiosamente, nesta temperatura as escalas se igualam -) e um calor úmido e cheio de mosquitos no curto período de verão! Mas todas estas questões eram apenas detalhes secundários. O principal é que estava com tudo definido: a ajuda financeira (13.000 dólares e as passagens), a instituição (Universidade de Minnesota) e o período (1987-1988). Tive tempo de organizadamente me desligar de todos os meus compromissos profissionais, encerrar as atividades do meu pequeno consultório, fazer as malas, despedir-me emocionadamente dos familiares e amigos no saguão do antigo aeroporto Salgado Filho e sem olhar muito para trás (numa mistura de nervosismo, ansiedade e excitação), embarcar no vôo 100 da VARIG rumo a São Paulo e de lá para Mineápolis. Uma vez em Mineápolis, o primeiro desafio foi encontrar um lugar para morar que fosse ao mesmo tempo bem localizado e financeiramente acessível. Depois de muito perambular em torno do campus descobri que três estudantes da Universidade de Minnesota estavam em busca de um quarto parceiro (roommate) a fim de dividir um apartamento de dois quartos, semi-mobiliado e em um bairro convenientemente situado. Juntamente com a Sra. Melinda, administradora do prédio, subi até o apartamento localizado no segundo andar e conheci, num final de tarde, aqueles que se tornariam três grandes amigos desde então: Jon Tynjalla (de Duluth, MN), Paul Wallerich e Troy Schneider (ambos de Wabasha, MN). Como mencionei anteriormente, o apartamento era semimobiliado e me faltava simplesmente uma cama para dormir... Mas aqui, novamente, a organização do programa de Bolsas de Estudos da Fundação Rotária mais uma vez me surpreendeu. Não eles não distribuíam mobílias aos bolsistas, mas designavam um membro do clube anfitrião para atuar como nosso “conselheiro” ou “tutor” (advisor) a fim de facilitar e maximizar a nossa adaptação à nova cultura. Para meu conselheiro foi designado um membro do Blomington Rotary Clube: Dr. Daniel Barnett. Dr. Barnett era o Vice-Diretor de um das

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maiores escolas da região, o Normandale Community College. Sua esposa, Mrs. May Lou era enfermeira sênior do Hospital da Universidade e duas filhas completavam a família: Tara e Erin. Coincidentemente, pouco antes de eu aterrissar em Minneapolis, ambas haviam saído de casa para cursar o College em outros estados gerando um enorme vácuo no lar dos Barnett ou o que psicologicamente se convencionou chamar de “Síndrome do Ninho Vazio!”. Assim, a minha literal adoção pelo casal foi uma consequência natural e imediata refletindo o momento de perda que eles experimentavam... De longe o Dr. Barnett foi a pessoa mais querida, bondosa e conciliadora que conheci na minha vida. Sua delicadeza e simpatia contrastava muito com a figura de um descendente de irlandeses, pletórico e com quase um metro e noventa de altura. Não, não esqueci da história da minha falta de leito. É que a maneira pela qual ela foi solucionada precisa ser contextualizada com este breve parágrafo. Pois foi ele quem resolveu o problema da cama trazendo uma da sua própria casa de uma maneira bem peculiar. Nunca esquecerei da nossa tresloucada jornada singrando pelos subúrbios e autoestradas de Mineápolis a bordo de um Ford Taurus azul com um colchão mal preso por cordas no seu teto chamando a atenção e horrorizando pedestres e motoristas! Mas já de volta ao apartamento, fiz questão de procurar acomodações coletivas com estudantes americanos no interior do campus ou próximas a ele. Como já nos referimos anteriormente, a experiência no exterior somente será completa se compatibilizar aspectos profissionais e pessoais em uma associação enriquecedora que será maximizada na medida em que tivermos a oportunidade de vivenciar na plenitude outra cultura. É interessante que este mesmo sentimento seja nutrido em relação ao visitante. Assim, achei importante levar comigo informações, fotos e curiosidades do Brasil, pois não faltaram oportunidades de servir como verdadeiro embaixador do nosso país. A adaptação aos hábitos do país anfitrião foi facilitada à medida em que entendi as diferenças básicas entre as culturas latina e anglo-saxã. A pontualidade, a rigidez, a pseudofrieza dos nossos novos companheiros foram, assim, facilmente percebidas e administradas. Uma vez instalado, o próximo passo foi o trabalho propriamente dito. Acostumado com as dificuldades na elaboração, viabilização e realização de projetos nas nossas universidades, fiquei maravilhado com as condições de fazer ciência na América. O Professor Paparella no seu ufanismo nacionalista gostava de salientar: “In this country, the difficult we do at once; the impossible takes a litlle bit longer!” É claro que, exageros à parte, o deslumbre com todas as possibilidades que podemos ter

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ao nosso alcance é real. Em pouco tempo, entretanto, este deslumbre desvaneceu e foi substituído por uma grande vontade de produzir, a qual também teve de ser domada para que eu pudesse concentrar minha atenção em projetos viáveis, relevantes à nossa realidade e, sobretudo, com início, meio e fim. Minha vida “profissional” em Mineápolis, era organizada entre dois polos: a Minnesota Ear, Head and Neck Clinic (onde o Prof. Paparella desenvolvia suas atividades assistenciais); e o Laboratório de Histopatologia do Osso Temporal situado no oitavo andar do do Phillips Wangensteen Building na margem leste do campus da Universidade (onde eram desenvolvidas as atividades de pesquisa básica). Nas segundas e quintas-feiras normalmente acompanhava as atividades clínicas e principalmente cirúrgicas do Professor, e nas terça, quarta e sextas trabalhava no laboratório. O meu tempo, assim, era bem dividido e contemplava exatamente o que havia vindo buscar: aperfeiçoamento profissional e a construção de um sólido currículo acadêmico. Com este sistema, a rotina não existia pois até os grupos de trabalho eram diferentes. Na clínica, circulava entre médicos do staff (além do Prof. Paparella, os doutores Rick Nissen, Oleg Froymovich e Marcos Goycoolea), clinical fellows ( meus bons amigos Michael Scott Morris – de Washington DC – e Rick Fox – Toronto, CA - ), enfermeiras, audiologistas e pessoal administrativo. Já no laboratório, circulava numa legítima torre de Babel com research fellows de várias nacionalidades: Mohamed Magdi (Egito), Chris de Souza (por incrível que possa parecer com este nome, Índia), Mahesh Badra (Paquistão), Lars Lundman (Suécia); Tae Yoon (Coréia do Sul); Malik Diop (Senegal); Neil Sperling (Nova Iorque); e um contingente superlativo de japoneses. O quadro fixo do laboratório contava com as competentes cientistas Pat Schachern (EUA), Sherry Lamey (EUA), Tetsuo e Nory Morizono (Japão), Steve Jung (Coréia do Sul) e o saudoso Professor Scott Giebink (EUA). Convivia no meu dia a dia com uma panaceia de culturas e estilos diferentes cada um com suas matizes, manias e peculiaridades. Mal comparando, o oitavo andar representava uma espécie de protótipo, ou melhor, uma legítima minúscula Nações Unidas.

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A oportunidade de dividir espaços e trocar ideias o tempo todo com colegas dos cinco continentes talvez tenha sido o meu maior legado e mais rico aprendizado durante todo o período que por lá estive. Este confronto de opiniões, o respeito à tradição, a atenção aos hábitos, as dificuldades de se comunicar e expressar sentimentos tudo compunha, ali à minha frente, um incrível e fascinante mosaico multicultural. Porém se observados bem de perto, apesar das diferenças e despidos alguns preconceitos todos nós enfrentávamos os mesmos problemas e sentimentos. A pungente saudade de casa, a dolorosa falta da família e dos amigos. Um padrão de vida bem inferior ao que estávamos acostumados a gozar em nossos países de origem. A contínua percepção de estarmos na América sem, de fato, pertencermos a ela . Enfim um rosário de dificuldades comum a todos e que, curiosamente, em vez de nos separar, constituía uma legítima amálgama que nos aproximava e consolidava esta heterodoxa união. Cada vez que um de nós retornava para seu país de origem as despedidas eram carregadas de emoção e envoltas num (aparentemente) desproporcional sentimento de perda. Eu costumava comparar estes momentos à batida de uma claquete sincronizando o enredo do filme da minha vida. Aquele ruído estridente e característico decretava muito mais do que uma mudança de cena. Ele tristemente definia que (muito provavelmente) aquele personagem acabava de ser excluído do meu roteiro... e para sempre! Éramos jovens, inocentes e inexperientes aprendizes. Tínhamos todos uma longa jornada, uma vida inteira pela frente. Partilhávamos ilusões, metas, enfim, sonhos. Ali era o local e o momento para acertarmos o passo, erguer os olhos e seguir firme tentando ser os principais autores dos nossos próprios destinos.

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A JOURNEY OF A THOUSAND MILES MUST BEGIN WITH A SINGLE STEP!

LAO TZU

É claro que acabei também conhecendo alguns brasileiros em Minneapolis. Não muitos, afinal a distância e, principalmente, o clima não era dos mais convidativos. Nosso povo sempre se sentiu mais atraído pela Flórida, Califórnia e a região nordeste. Mais ainda assim, através do Brazilian Center (um núcleo de acadêmicos brasileiros) fui apresentado a alguns. Deste grupo, fiquei mesmo próximo a quatro cariocas: Ana, Mônica, Cláudia e Mauro. O Mauro fazia jornalismo e realmente nos tornamos muito amigos. Mora hoje em Nova Iorque onde trabalha na Newsweek tendo constituído uma família 100% americana (inclusive ele, pois se naturalizou). Naquela época, tinha um nobre emprego oferecido pela Universidade que era gerenciar um carrinho de cachorro quente. Seu local de trabalho ficava em um amplo gramado situado bem na frente do Phillips Wangensteen Building o que era muito conveniente para mim. Não foram poucas as vezes em que cruzei o gramado e o visitei no final do seu turno de trabalho para fantásticos,

e,

apreciar um ou dois

obviamente,

escamoteados

bratwursts (lembro que os tempos eram bicudos...)

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Meu período em Minneapolis transcorria normalmente, mas as coisas começaram a mudar a partir de dois fatos que passarei a narrar. Em outubro de 1987 a reunião da Academia Americana de Otorrinolaringologia foi realizada em Chicago cidade também no meio-oeste americano e não muito distante de Minneapolis. Seguindo uma tradição que perdura até os dias de hoje, em todo ano um país é chamado a participar do evento na condição de nação convidada. A grande vantagem é que os custos de inscrição eram completamente franqueados pela Academia (o que já não é mais bem assim limitando-se a um desconto). Pois neste ano justamente o Brasil foi o país escolhido. Diante das vantagens da pequena distância e do bônus de inscrição não titubeei, arrumei minha mala, comprei uma passagem e me fui para Chicago. Lá chegando, como não poderia deixar de ser, encontrei um contingente grande de colegas brasileiros também todos atraídos pela qualidade do encontro e facilidades da ocasião. Sendo um recém egresso da residência médica com apenas dois congressos brasileiros na bagagem, era óbvio que não conhecia a maioria dos colegas e o oposto, claro, também era verdadeiro. Ainda assim, como não havia viajado com o grupo, minha presença causou uma certa estranheza e muita curiosidade, pois, afinal, o que fazia um jovem otorrino brasileiro ali, perdido nas terras do “Tio Sam! Acompanhei o grupo durante todo o tempo aproveitando para estabelecer uma série de contatos principalmente com colegas egressos dos serviços universitários de São Paulo. Após o congresso em Chicago, a viagem se estendeu para Pittsburgh uma vez que a delegação brasileira havia sido convidada pelo Professor Eugene Myers para uma visita ao seu famoso serviço na Penn State University. Durante os quase sete dias que durou este convívio, iniciei relações de amizade e parcerias profissionais que perduram até hoje. Foram várias, mas por ora citarei apenas uma: a Dra. Wilma Therezinha Anselmo, professora da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP. A Wilma (atual Presidente da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia), era uma entusiasmada Professora imbuída de uma missão: tentar atrair para Ribeirão Preto jovens pesquisadores para qualificar o programa de Pós-Graduação em Otorrinolaringologia daquela instituição. Aqui cabe um parênteses: a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto sempre representou a vanguarda da pesquisa médica no Brasil, principalmente nas áreas básicas. Foi constituída a partir de um esforço monumental do Professor Zefferino Vaz e viabilizada financeiramente a partir de investimentos vultosos da Fundação Rockfeller. Esta nova Faculdade se diferenciava das demais por adotar o modelo americano da época (Flexeneriano), que garantiu à instituição características inovadoras, que enfatizavam a pesquisa, a tecnologia e a superespecialização, assim como a separação do ensino básico do clínico e o tempo integral . Pois bem, sabendo que eu estava envolvido em atividades clínicas e de pesquisa básica na Universidade de Minnesota, mas ainda não oficialmente ligado e nenhuma instituição, a Wilma vislumbrou a possibilidade de que, quando retornasse ao Brasil, me agregasse ao programa de pósgraduação da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto.

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Esta ideia me agradou desde o início, pois ao mesmo tempo canalizava minhas atividades de pesquisa para um objetivo palpável e importantíssimo (um título acadêmico de mestrado), focava meu trabalho de laboratório em um projeto mais robusto (afinal viria a ser uma dissertação) e dava um rumo à minha vida no retorno ao Brasil. Sim, após algumas trocas de cartas e documentos para lá e para cá, meu futuro a curto prazo estava bem decidido: iria cursar a pós-graduação em Ribeirão Preto junto com a minha amiga Wilma e sob a orientação do Prof. José Antônio Aparecido de Oliveira. De volta à Minneapolis, concentrei meus estudos em duas áreas principais: Patogênese da Otite Média Crônica e Tratamento Cirúrgico da Doença de Meniére. Escolhi estes temas muito influenciado pela linha de pesquisa mais ativa, financiada e, portanto, prolífica do departamento (otite média) e por uma preferência pessoal do Prof. Paparella (cirurgia da descompressão do saco Endolinfático). Em relação ao primeiro, delineamos uma análise histopatológica de ossos temporais humanos comparando casos de otite média crônica com e sem a presença de perfurações timpânicas (desenvolvendo um conceito bem avançado para a época que era o de prescindir da perfuração como condição sine qua non para a caracterização desta prevalente moléstia.) O segundo era um estudo mais modesto de revisão de prontuários buscando aferir os resultados globais do tratamento cirúrgico na doença de Meniére incapacitante. Independentemente da efetivação das publicações, estes estudos me trouxeram enormes benefícios acadêmicos uma vez que através deles fui apresentado à uma série de novidades. Entre elas, e somente para citar algumas, o perfeito entendimento da microanatomia e patologia do osso temporal, a histopatologia translacional, a criação e organização de bancos de dados, a edição e ilustração de textos médicos, análises estatísticas avançadas e a execução de pesquisas bibliográficas informatizadas. Claro que devido à estrutura departamental, cada uma destas descobertas foram sendo guiadas por legítimos especialistas nos assuntos. Desta forma conheci ótimos profissionais da dimensão da saudosa Ginny Hansen (PhD em editoria médica), Gwen Afton (MSc em ilustração médica com tese de mestrado em otologia!), Chap Le (PhD em estatística) entre vários outros. Em parágrafo anterior citei que dois fatos haviam, de certa maneira, mudado para melhor a minha situação em Mineápolis. O primeiro foi a viagem a Chicago e a viabilização de uma pósgraduação. A segunda passarei a relatar agora. Era uma terça-feira de inverno em janeiro de 1988. Havia, como de costume cruzado o dia no laboratório e ao final do “expediente” no caminho de casa resolvi dar uma passada na clínica. Não possuía carro e cumpria todas estas distâncias caminhando às vezes sob um frio glacial. A fim de buscar proteção, provavelmente descobri todos os túneis de Mineápolis que interligavam prédios e possibilitavam o deslocamento por longas distânncias sem que houvesse necessidade de se expor às temperaturas extremas. É bem verdade, que sobre o Mississipi não havia túneis e ao cruzar por ali

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centenas de vezes enfrentando a baixa temperatura acrescida pelo cortante vento polar é que senti na pele e entendi na prática o significado da expressão “wind chill factor!” Chegando à clínica encontrei os dois clinical fellows na sala de conferências. Ficamos ali sem muito mais o que fazer jogando conversa fora. Já passava da minha hora de ir embora, mas resolvi aguardar para sairmos todos juntos na esperança de uma carona. Num determinado momento a secretária do Prof. Paparella, Mrs. Debbie Prudhome, entrou na sala e comunicou que devíamos esperar, pois ele gostaria de falar urgente conosco. Para bem da verdade, ela se dirigiu aos dois clinical fellows, mas como este direcionamento não havia sido explícito, julguei que estava incluído na solicitação da chefia e resolvi também aguardar. Alguns minutos depois o Prof. Paparella se juntou a nós e explicou o motivo da sua preocupação. Ele estava na fase final da edição do seu famoso livro OTOLARYNGOLOGY, HEAD & NECK SURGERY e todos os prazos de entrega dos capítulos já haviam sido esgotado e estendidos por mais de uma oportunidade. A famosa Editora Saunders estava pressionando muito para que todo o material fosse entregue imediatamente uma vez que a obra era composta de quatro volumes e somente o tomo referente à otologia ainda estava em aberto. Estamos falando da terceira edição do livro de otorrinolaringologia mais tradicional e conhecido no mundo, ou como o Prof. Letti costumava se referir, “a Bíblia da especialidade”. Era a obra de referência do nosso programa de residência médica, aliás como de todos os outros serviços do mundo! Havia ainda alguns capítulos pendentes e todos sob a sua responsabilidade. Ele falou que precisava de ajuda (dirigindo seu olhar para a ponta da mesa onde o Michael e o Rick estavam sentados) e que iria distribuir três dos quatro capítulos restantes para eles. A seguir olhou para mim e, com uma expressão que misturava algo de condescendência e desconfiança, falou que eu poderia ajudá-lo a organizar o capítulo de Doença de Meniére. Quase não acreditei nas suas palavras. Ajeitei-me na cadeira, engoli em seco e respondi altivamente que ele poderia contar 100% comigo (imagina só!) Voltei para casa já noite fechada (infelizmente a pé) vibrando com a perspectiva de, quem sabe, receber uma menção ao meu nome no final do capítulo como um agradecimento pela ajuda prestada. Para mim, somente uma referência bastaria e já seria (muito) para lá de especial. Corri para casa driblando montes de neve e cuidando para não escorregar nas calçadas cobertas por finas camadas de gelo já imaginando o meu nome sendo citado no livro do Prof. Paparella. Cuidei para não me deixar entusiasmar muito por esta ideia, mas por outro lado, vamos lá, não custava nada sonhar...

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Há quem diga que todas as noites são de sonhos.

Mas há também quem diga nem todas, só as de verão. Mas no fundo isso não tem muita importância. O que interessa mesmo não são as noites em si, são os sonhos. Sonhos que o homem sonha sempre. Em todos os lugares, em todas as épocas do ano,

Dormindo ou acordado.

William Shakespeare

O prazo era apertado, pois na sexta-feira pela manhã eu já teria de entregar o material compilado diretamente para a Ginny Hansen que era a profissional responsável pela redação final dos textos médicos da clínica. Nos períodos em que conversava com o Professor (principalmente após nossas partidas de tênis), pude observar que ele tinha um conhecimento muito amplo sobre as diferentes correntes de pensamento da otologia moderna, afinal ele mesmo fez parte desta história e pode testemunhar a evolução da especialidade. Para se ter uma ideia do seu valor, ele foi um legítimo “self-made man” saindo praticamente de um gueto de Detroit para cursar medicina na Ohio State. Era um trompetista sofrível (pelo que pude aferir em suas audições entre amigos), mas, ainda assim, tocava em bares da noite em busca de recursos para ajudar a pagar a faculdade. Ele costumava dizer que da sua turma de infância, somente ele e seu irmão haviam escapado de se entregar à criminalidade! Exageros à parte, a verdade é que ele construiu a sua belíssima trajetória e com 32 anos foi escolhido o mais jovem chairman da história da Universidade de Minnesota. Pois bem, percebi no nosso convívio que o Professor tinha uma característica muito particular: ele ouvia pacientemente a todos, mas era extremamente arraigado às suas próprias convicções e teorias (que na maioria das vezes eram mesmo brilhantes!) Como ele possuía um acervo de publicações originais impressionante sobre Doença de Meniére, o meu trabalho tornou-se muito mais fácil. Elaborei um roteiro bastante meticuloso e preenchi a espinha dorsal do texto com uma colagem dos seus próprios artigos. Recheei o texto com pontos e contra-pontos extraídos da literatura e costurei a estrutura final numa sequência que me pareceu bastante aceitável. Trabalhei ininterruptamente até a madrugada de sexta-feira (chegando a dormir na sala de conferências na noite de quinta) e pontualmente às 9 horas da manhã entreguei todo o material para a Ginny. Pronto, pensei, agora seja o que Deus quiser... Naquele final de semana, meus roommates foram todos para as suas cidades e fiquei sozinho no apartamento. No sábado à noite após uma boa noitada com os amigos regadas a Miller

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Lights e Flaming Sambucas em Saint Paul fui para casa já “à meia nau” dormir merecidamente o sono dos justos. No domingo cedo pela manhã, fui acordado pelo telefone na sala de casa que tocava insistentemente. Como estava sozinho, teria de atender (mesmo com chances mínimas de que a chamada fosse para mim). Levantei da cama e meio que me arrastando e ainda ligeiramente tonto (pelo terrível rescaldo dos Sambucas) fui até lá responder a chamada. Não reconheci imediatamente a voz que perguntava pelo Sády (sim, todos pronunciavam meu nome como se fosse uma paroxítona) e respondi ao meu interlocutor que era o próprio quem estava falando. Quando a voz do outro lado da linha se identificou, meus últimos resquícios do Sambuca definitivamente desapareceram: era o Professor Paparella discando da sua própria casa (algo inimaginável até então.) Prontamente perguntei no que poderia ajudá-lo. Ele começou a falar algumas generalidades sobre os capítulos que haviam lhe sido entregues ainda na sexta-feira à noite. Percebi que aquela conversa não iria muito longe por telefone e perguntei se ele gostaria de me encontrar em algum lugar. O Professor adorou a ideia e me pediu que fosse até a clínica em mais ou menos 45 minutos. Entre intrigado e curioso, tomei um banho expresso e rapidamente peguei o rumo da clínica e, agora no sentido inverso, driblando montes de neve e cuidando para não escorregar nas calçadas cobertas por finas camadas de gelo cheguei ao número 701 da 25th Avenue South pontualmente às nove horas da manhã. O Professor já me aguardava e ele mesmo abriu a porta do prédio para me dar acesso. Subimos até a sala de conferências e sentamos. Ele tinha uma pilha de rascunhos à sua frente que, imaginei, fossem os nossos capítulos. Sem rodeios, foi direto ao ponto: havia achado sofríveis os dois capítulos entregues por um dos fellows, apenas razoável um terceiro e tinha ficado extremamente bem impressionado com o que eu havia escrito! Antes que eu pudesse me recuperar desta surpresa maravilhosa, ele emendou: “quero que interrompas um pouco as tuas atividades no laboratório e venhas imediatamente aqui para a clínica a fim de aperfeiçoar e finalizar todos estes capítulos. Terás a coautoria de todos eles e dividiremos o de Doença de Meniére!” Ao longo de toda a minha vida, foram poucas as ocasiões em que tive uma sensação de bem estar pleno, ou metaforicamente falando “como se tivesse ganhado na loteria”. Mas naquela manhã cinzenta e gelada de janeiro de 1988, foi exatamente esta sensação que me invadiu... Não desapontei o chefe. A sala de conferências virou meu escritório de onde coordenava uma atividade febril de fellows, pesquisadores, editores, desenhistas e secretárias. Confiante, falava em dois telefones ao mesmo tempo e dava ordens para todos os lados. O estilo brasileiro ajudou muito naquele momento. Era extremamente exigente com os colaboradores, mas sabia pedir. Nunca deixava de elogiar o trabalho realizado antes de solicitar que se mudasse praticamente tudo (acho

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que herdei o estilo do “morde e assopra” da minha mãe)... Eu estava dando as cartas ali e, para tanto, tinha a confiança e o respaldo do chefe. Mas a responsabilidade era grande e o trabalho tinha que ser executado. E quer saber? Foi. O mais curioso desta história é que depois de publicar com grande sucesso editorial e comercial a terceira edição do seu livro, o Professor Paparella chegou à conclusão de que aquele processo todo era muito desgastante. Decidiu que seria hora de dar um tempo nos livros e redirecionar sua energia para comunicações breves, palestras e artigos científicos. Até que há algum tempo atrás foi novamente estimulado a enfrentar um novo projeto editorial ou, em outras palavras, um novo livro. Acabou aceitando o desafio, mas não deixou de trazer consigo suas antigas, fiéis e seguras parcerias. Senão leiamos os primeiros parágrafos do seu prefácio ...

You may ask yourself: “Why another textbook on otolaryngology--head and neck surgery. After authoring and editing 64 books, I had no plans to develop another work until Joe Rusko from JP Brothers Medical Publishers convinced me of the need for an affordable, onevolume comprehensive textbook in the field that would have a global focus in terms of content and contributors. JP was an ideal partner for such collaboration owing to its high-quality work (as evident in these pages) as well as its established international distribution infrastructure. I selected Professor Sady Selaimen da Costa to be coeditor for this edition. Dr. da Costa is the Professor and Chairman of the Universidade Federal do Rio Grande do Sul and Consultant at the city of Porto Alegre, Brazil. Sady was instrumental in identifying and securing the participation of experts from not only South American but also other parts of the world. Sady shared my vision for the project, and I am grateful for his many contributions.

MM Paparella 2017

Meu “ status quo “ definitivamente se modificou a partir daquele episódio. De uma hora para a outra, perdi a indesejada prerrogativa da invisibilidade e subi vários degraus na hierarquia do grupo, tanto na clínica quanto no laboratório. Aqueles foram os primeiros trabalhos que realizei em direta sintonia com o Professor. Houve muitos outros. Passei a colecionar a autoria de capítulos e artigos em livros e revistas que até então somente ousava consultar como ávido leitor: Current, Decision Making, Laryngoscope, Annals, Otology & Neurotology, etc... Minha bagagem acadêmica estava crescendo e ganhando uma musculatura diretamente proporcional ao aumento da densidade do meu currículo. Enfim, estava vivendo um momento muito especial e experimentava uma grande felicidade. Ainda assim, mais do que tudo, nada se comparava com a sensação de inflar a autoestima e passar a ser respeitado. O danado do respeito, pensava. Ele é bom e eu gosto...aliás, quem não gosta?

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UM CHEVETTE E UM SONHO...

(ou carta para um filho que nunca tive)

O meu primeiro período em Mineápolis foi pródigo em histórias interessantes. Tenho que concordar que também, na maior parte do tempo, contei com uma considerável dose de sorte. Por exemplo, em abril de 1988 foi organizado o primeiro Congresso de Otologia da USP em São Paulo, o chamado Orelhão (evento que perdura até hoje tendo se tornado um marco no calendário científico nacional.) Como primeiro palestrante internacional foi convidado o Prof. Paparella que prontamente aceitou uma vez que nunca havia estado no Brasil. O curso era teórico-prático o que significava que envolveria a realização de cirurgias de demonstração transmitidas ao vivo para a plateia. O Professor somente impôs uma condição: necessitaria da companhia de um assistente que conhecesse a sua rotina a fim de auxiliá-lo na realização dos procedimentos no que foi prontamente atendido. Analisando as suas opções, dentre todos os fellows, a escolha óbvia recaiu sobre mim. Não que eu fosse um auxiliar à sua altura, mas por ser nativo e evidentemente conhecer o idioma, a cultura e as idiossincrasias brasileiras como nenhum outro... Durante a viagem para o Brasil, fizemos uma conexão no aeroporto Kennedy em Nova Iorque. Ali fomos informados que o voo para o Rio de Janeiro (faríamos escala por lá também) estava com um pequeno atraso. Sem grandes opções, sentamo-nos em um bar para tomar uma cerveja e jogar conversa fora. Na falta de um assunto melhor, comentei com o Professor da minha grande alegria pela atenção, suporte e por todas as oportunidades que vinha recebendo desde a minha chegada à Mineápolis. Completei que não sabia exatamente o porquê de tanta ajuda, mas estava extremamente satisfeito por recebê-la! Ele largou o copo na mesa , me olhou e perguntou: “Sady, tu não sabes mesmo por que estou te ajudando?” Meio sem graça, inventei uma resposta qualquer algo vaga e bem mal estruturada. Ele tomou um gole, deitou novamente o copo na mesa e disparou: “Sady, tu acreditas mesmo nas minhas ideias e teorias, tu achas que elas são plausíveis e operacionais?” Claro que sim respondi. Ele emendou “tu achas que quando voltares para o Brasil vais propagá-las para os teus colegas, pacientes e alunos?” Se tiver a chance, com certeza, emendei. E ele retrucou: “ pois é exatamente por isto que estou te ajudando. “ Minha expressão deve ter sido de quem não havia entendido nada, assim ele continuou: “eu quero que tu te tornes um grande professor e vou te ajudar muita para que atinjas este objetivo. Eu desejo que no futuro próximo venhas a exercer uma influência positiva e grande liderança na tua comunidade. Rogo que sejas um líder ético, uma referência moral e um potente vetor de transmissão de conhecimentos. Pois tenho a certeza de que muitos destes valores e ideias que dizes que acreditas serão propagados por ti a várias novas gerações de estudantes. Desta forma, através do trabalho dos meus alunos, minhas verdades sobreviverão. No final das contas, este é o ideal maior de um verdadeiro mestre: flertar com a eternidade através dos corações e das mentes dos seus discípulos!”

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MEMORIAL DESCRITIVO

SADY SELAIMEN DA COSTA

Esta foi a mais espetacular e brilhante lição sobre a importância da docência e o papel de um legítimo educador que jamais recebi. O objetivo do professor é inocular o vírus das suas ideias para que se mantenham vivas e, mais, se propaguem exponencialmente nas células dos seus discípulos. Percebam que à parte do sacerdócio e do sacrifício inerentes à esta função, o verdadeiro mestre é autoindulgente, ambicioso e persegue, sim, a sua imortalidade intelectual!

A child is not a vessel to be filled, but a lamp to be lit

Hebrew Proverb

Quando desembarquei em São Paulo, fui recebido com honras como se fosse um convidado internacional. Tinha que reiterar a toda hora que era gaúcho de Porto Alegre e estava circulando por ali mais como um auxiliar cirúrgico de ocasião do professor e menos na condição de palestrante. Ainda assim, na noite anterior ao início do evento, o Dr. Paparella me chamou no seu quarto do hotel e me encarregou de proferir a palestra sobre Doença de Meniére na manhã seguinte. A princípio recusei, pois este era um dos seus assuntos prediletos, mas ele foi firme e argumentou que eu estaria 100% preparado, pois estava estudando profundamente esta matéria nos últimos meses (o que , aliás, era verdade). Meio inquieto com este importante convite de última hora, peguei uma caixa de diapositivos e fui para o meu quarto varar a madrugada organizando o material.

Pontualmente às onze horas da manhã, subi ao palco do auditório principal do Centro de Convenções Rebouças para aquela que seria, sem dúvida alguma, uma das palestras mais marcantes das centenas que já proferi em minha vida! E assim, por mais esquisita que fosse esta situação, acabei debutando no cenário científico nacional na heterodoxa condição de convidado internacional! Ao final da conferência (que , aliás, foi muito bem!), me dirigia ao fundo do auditório quando no caminho fui abordado por um colega um pouco mais velho que se identificou como presidente da Sociedade Brasileira de Otologia (SBO). Ele elogiou muito o meu trabalho e me ofereceu, ali mesmo, um título de membro titular da SBO! Saímos caminhando juntos em direção ao átrio do centro de eventos, e já fora da penumbra do auditório pude ler o seu nome inscrito no crachá: Prof. Nelson

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UM CHEVETTE E UM SONHO...

(ou carta para um filho que nunca tive)

Caldas! Prof. Dr. Nelson Costa Rego Caldas de Recife (Pernambuco). Nada mais, nada menos do que um dos integrantes da famosíssima “Santíssima Trindade” da otologia brasileira completada pelos professores Rudolf Lang e Otacílio Lopes Filho! Quis o destino que o saudoso Prof. Nelson Caldas se tornasse uma das minhas maiores referências técnicas, morais e políticas quando retornei ao Brasil. Também quis o destino que, anos mais tarde, eu mesmo viesse a ocupar o cargo de Presidente da tradicional Sociedade Brasileira de Otologia. E mais, tive a honra de contar com o seu mais brilhante e querido pupilo como um dos membros mais atuantes da minha diretoria: seu filho, meu amigo e irmão Sílvio Caldas! Talvez o fato mais importante de toda esta jornada em São Paulo foi ter sido apresentado nesta oportunidade a dois jovens e entusiasmados colegas: Dr. Oswaldo Laércio Mendonça Cruz e Dr. Luiz Carlos Alves de Souza ou, simplesmente o Laércio e o Alemão. Cada um com um estilo bem peculiar e à primeira vista até incompatíveis. O Laércio é o bom senso em pessoa com um perfil cartesiano, muito organizado, extremamente estudioso e técnico. O Alemão é 100% coração. Sempre exagerado, fascinado pela vida e cheio de energia. Mas, por outro lado, partilham muitas características comuns, pois ambos possuem uma retidão e um caráter inflexível, uma empatia atávica, são exímios cirurgiões, clínicos dedicados e brilhantes professores. Mas, sem dúvida alguma a nossa grande confluência, o nosso maior ponto de intersecção é que somos absolutamente entusiasmados e nutrimos uma paixão incurável pela otologia. Não foi uma, nem duas, mas dezenas de vezes que usei e abusei da hospitalidade das suas casas e do carinho das suas famílias durante as minhas inúmeras idas e vindas para São Paulo e Ribeirão Preto. Vi os seus filhos crescerem, sofremos e choramos juntos em algumas oportunidades, testemunhei com orgulho o amadurecimento daquele bando de crianças e tive o privilégio de repartir com emoção a linda chegada da terceira geração. Nossa afinidade cresceu e se consolidou tanto ao longo dos últimos 30 anos que seria subestimar em muito a sua real dimensão se os chamasse de, simplesmente, amigos. Depois de muito procurar, encontrei na genialidade de Shakespeare uma definição mais precisa e robusta e que pode melhor refletir a força e a química desta esta relação: “estes queridos amigos foram os dois irmãos que Deus me permitiu escolher...” Curiosamente, o grupo formado por mim e por estes três últimos personagens (Laércio, Alemão e Silvinho) formou um núcleo forte que assumiu a Sociedade Brasileira de Otologia em 2003 após uma antológica eleição no Rio de Janeiro. Enfrentamos uma chapa carioca e que, por conseguinte “jogava em casa” (o que numa eleição presencial constituía uma grande vantagem) sendo apoiada pela toda poderosa USP/São Paulo. Ainda assim, abrimos mais de cem votos de diferença e iniciamos um processo de fortalecimento e modernização da sociedade.

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Na época, vivíamos um momento delicado pois a Associação Brasileira de Otorrinolaringologia (ABORL), ou sociedade-mãe, era presidida pelo Prof. José Victor Maniglia e já era insustentável o seu descontentamento com respeito à concorrência das chamadas supras. Além de “confiscar” uma parcela do lucro do Congresso Triológico do Rio de Janeiro (que era o acordado à época), a ABORL decidiu que, a partir de 2004, cancelaria também os repasses de uma pequena fração das anuidades que eram vitais para a sobrevivência da SBO. E mais: ela fazia agora pressão sobre a SBO para que esta transferisse todo o seu saldo em conta corrente para os cofres da ABORL, saldo este que, alegava ela, teria sido engordado com base na “benevolência materna. Foi célebre a reunião em que enfrentamos esta situação estoicamente e resistimos à pressão que inviabilizaria a SBO. Após este intenso encontro com debates que duraram um dia inteiro publicamos na nossa página da internet uma frase que se tornou célebre: “Não seremos nós a tocar o réquiem da Sociedade Brasileira de Otologia!”. Nossa condução foi tão bem sucedida e com índices de aprovação tão superlativos que todos os componentes deste núcleo “duro” foram eleitos (praticamente aclamados) nos períodos subsequentes (Luiz Carlos de Souza 2006/2007; Laércio 2008/2009; Sílvio Caldas 2010/2011!)

Mas voltemos no tempo, abril 1988. Após o congresso em São Paulo, estando no Brasil, aproveitei a oportunidade e consegui uma licença com o Professor para visitar Porto Alegre. Foi uma festa. Passei uma semana matando saudades da minha família, dos amigos e da cidade. Visitei os colegas do serviço de otorrinolaringologia do HCPA e ainda fui brindado com uma maravilhosa feijoada na casa do Prof. Piltcher. Retornei para os Estados Unidos no mesmo voo 100 da Varig. Desta vez as despedidas não foram tão emocionadas e não estava nem um pouco ansioso, pois sabia exatamente o que me esperava em Mineápolis.. Nunca imaginaria, entretanto, que ali no saguão do aeroporto Salgado Filho daria um último e rápido abraço em meu pai. Se assim o soubesse, sem dúvidas que ele teria sido mais prolongado e definitivamente muito mais apertado...

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(ou carta para um filho que nunca tive)

Around the corner I have a friend,

In this great city that has no end, Yet the days go by and weeks rush on, And before I know it, a year is gone. And I never see my old friends face, For life is a swift and terrible race, He knows I like him just as well, As in the days when I rang his bell. And he rang mine but we were younger then, And now we are busy, tired men. Tired of playing a foolish game, Tired of trying to make a name. “Tomorrow” I say! “I will call on Jim Just to show that I’m thinking of him”, But tomorrow comes and tomorrow goes, And distance between us grows and grows. Around the corner, yet miles away, “Here’s a telegram sir,” “Jim died today.” And that’s what we get and deserve in the end.

Around the corner, a vanished friend.

Charles Hanson Towne

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Chegando em Mineápolis já sabia exatamente o que fazer e o que iria encontrar. Na verdade, no meu retorno, tecnicamente, já habitava outro patamar. Continuei dividindo meu tempo entre o laboratório e a clínica, mas agora muito mais seguro e focado nos meus projetos. Como diretor de publicações informal da clínica recebia novas atribuições quase todas as semanas: free papers, capítulos de livros, artigos para periódicos enfim trabalho suficiente para me manter ocupado e satisfeito com a minha produção. Sem dúvida alguma, pensava, estava engordando em muito o, outrora ralo, caldo do meu currículo. Da mesma forma, por influência do Dr. Barnett continuei assíduo às reuniões de Rotary. Fazia questão de participar sempre que possível uma vez que achava importantíssimo dar um feedback aos membros dos clubes acerca dos potenciais dividendos advindos do programa de bolsas de estudos, pois afinal de contas eram eles que estavam financiando todo o meu projeto.

Como os Barnetts haviam se tornado a extensão americana da família Selaimen da Costa (e já gozando de relativo prestígio na Minnesota, Ear & Head Clinic) era natural que também os convidasse para os frequentes eventos sociais programados e patrocinados pelos Paparellas! Pouco a pouco foi se criando uma grande afinidade entre eles. Inicialmente nas “pessoas físicas” (Dan Barnett e Michael Paparella) somente para após desencadear um sólida e prolífica relação institucional entre o Bloomington Rotary Club e a International Hearing Foundation. Concorreram muito para isto a atuação fundamental de três pessoas: Daniel Barnett, Pat Schachern e Treva Paparella.

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(ou carta para um filho que nunca tive)

Pat é uma cientista ligada ao grupo do Professor Paparella desde os seus primórdios. Alia à sua extrema competência científica uma simpatia cativante e uma enorme dose de bondade. Assim, é natural que tenha se tornado uma das principais referências para todos os fellows que chegam à Mineápolis em busca de um lugar ao sol. É pragmática e conhece todos os atalhos necessários para que os recém chegados se adaptem com mais facilidade à sua nova cidade e possam dirigir a suas atenções preferencialmente para os projetos que se propõem a executar. Em resumo, é uma grande facilitadora que, como já referido, auxilia a todos que chegam à Mineápolis tanto no âmbito pessoal (promovendo a inclusão de indivíduos com culturas por vezes muito diferentes da americana) quanto acadêmico (conduzindo as atividades científicas e alocando projetos de pesquisa a todos). Treva é a esposa do Professor e, paralelamente às suas atribuições pessoais, é a Diretora Executiva da International Hearing Foundation coordenando todas as suas atividades de filantropia. Humana, atenciosa e sempre disponível é a segunda grande referência dos fellows internacionais compondo junto com o Professor e a Pat a espinha dorsal da Fundação. Pois bem, esta turma toda começou a se reunir com relativa frequência e, entre uma e outra conversa, vários pontos de convergência foram sendo pouco a pouco revelados principalmente na vocação filantrópica de ambas as instituições. Assim a ideia de unirem forças em torno de um ideal comum foi uma consequência mais do que natural destes encontros. Faltava, entretanto, um projeto a ser perseguido e este passou a se materializar com a chegada de um novo fellow advindo da África: Malik Diop de Dacar, Senegal. O Malik era um indivíduo admirável, pois apesar de ter tido a oportunidade de se estabelecer no Canadá quando mais jovem, optou por retornar ao seu país movido pelo nobre sentimento de tentar ajudar o seu sofrido povo. Em rodas de conversas relatava com rara eloquência os inúmeros transtornos enfrentados pelo seu país especialmente na área da saúde pública. Todas àquelas histórias eram muito perturbadoras, principalmente para os americanos, que não estavam habituados a conviver com tamanhas mazelas. No Senegal, explicava Malik, mesmo as ações de saúde mais básicas, mais singelas estavam associadas a enormes graus de dificuldades. Não demorou muito tempo para o pessoal vislumbrar que ali, talvez, residisse um projeto de inefável mérito e que valeria a pena de ser perseguido. Ato contínuo, aglutinaram-se as forças do Bloomington Rotary Club e da International Hearing Foundation para a criação do, para lá de altruísta, “Senegal Project.” Este consistia de dois eixos principais: ao Rotary competia buscar o apoio logístico com a obtenção de suprimentos, materiais cirúrgicos e transportes. À International Hearing Foundation cabia recrutar grupos de médicos que considerasse doar parte do seu tempo (mais especificamente dois meses!) e todo o seu conhecimento em prol da assistência e principalmente do ensino no Senegal. Um projeto bastante ambicioso e tecnicamente difícil de ser viabilizado. Mas a sorte estava lançada, e ambas as instituições não mediram esforços para viabilizá-lo. Sem dúvida alguma, a faceta mais complicada de todo este quebra-cabeça foi angariar material humano razoavelmente qualificado e completamente disponível para enfrentar esta empreitada! Afinal de contas, dois meses em um hospital africano

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sem remuneração não é uma tarefa das mais simples e atrativas... Pois bem, em uma das vindas do Professor Paparella ao Brasil, fomos almoçar no restaurante Família Mancini em São Paulo. O Professor, sua esposa Treva, o Alemão (que ainda não mencionei, mas havia sido fellow em Mineápolis alguns anos antes de mim e nutria uma grande admiração, gratidão, carinho e respeito ao Mestre) e eu. É claro que, em se tratando do Professor, teria de ser uma restaurante italiano. Passamos por lá uma tarde inteira e depois de várias rodadas de massas e petiscos da Calábria, garrafas de ótimos tintos e muita conversa fiada o Professor se deu conta que eu havia sido o elo de ligação entre o Rotary e a Fundação e, por conseguinte, indiretamente o responsável pela criação do Projeto Senegal! Sendo assim, faria o maior sentido que um grupo brasileiro fosse escalado para realizar a “primeira missão no continente africano!” Sem pensar muito (e bem por conta do teor alcoólico já devidamente elevado!), topamos na hora e nos perfilamos como legítimos “soldados da causa” batendo no peito e reiterando: conte conosco Professor. Mais ou menos sessenta dias após, recebi uma ligação do Alemão que, entre eufórico e muito aflito, me perguntava: Turco, tu recebeste as passagens para a África? Ainda não havia recebido, mas elas não demoraram a chegar... Um pouco confuso mas muito excitado com esta aventura, ainda consegui convencer o Dr. Ricardo Gallichio Kroef (o velho Tita, colega da Faculdade de Medicina e hoje diretor-geral do complexo hospitalar da Santa Casa), exímio cirurgião de cabeça e pescoço e com uma bondade e um coração com uma estatura diretamente proporcional à sua altura (e olha que estamos falando de mais de 1,92 metros!) a nos acompanhar nesta incrível empreitada. Três meses após em um voo da Air Afrique desde Nova Iorque, aterrissamos em Dacar para viver uma das experiências (para não dizer, aventuras) mais fascinantes das nossas vidas! Fomos alocados no Hospital A Le Dantec e nossa rotina consistia em atender pacientes, realizar cirurgias e ministrar seminários. Nosso foco principal, entretanto, era tentar semear atitudes para que, após o nosso retorno, os dividendos pudessem ser mantidos e maximizados. Desde o princípio, o projeto era pautado pela necessidade de repassar conhecimento. Sabíamos muito bem que as dezenas de cirurgias e procedimentos que realizamos por lá eram soluções pontuais para poucos pacientes diante do colossal universo de necessidades daquele povo. Sendo assim, mais do que “oferecer uma ínfima quantidade de peixes” o objetivo maior era procurar ensinar a pescar! Sem dúvida alguma, pudemos auferir no mínimo três grandes benefícios da nossa temporada africana. (1) Fomos apresentados a uma série de situações e moléstias as quais jamais havíamos sido confrontados: Noma, Puru-puru, hanseníase, mutilações por agressões tribais e até mordidas de tigres! E tivemos que buscar soluções criativas e totalmente anticonvencionais para otimizar nosso processo de resolução de problemas; (2) Descobrimos uma realidade muito diferente da nossa e voltamos para casa muito mais fortes e maduros e com a sensação de que aquela magnífica jornada havia oferecido dividendos muito maiores e bem mais valiosos para nós do que para todos aqueles pacientes que pudemos atender e ajudar; (3) No nosso retorno da África, fomos apresentados a outro sentimento intrigante: a relativização da nossa condição de terceiro-

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mundistas... Em outras palavras, apesar de todos os nossos problemas e agruras, ao retornar ao Brasil minha primeira atitude foi ajoelhar e beijar o nosso solo! Cheguei à conclusão que com um governo sério e um pouco mais orientado em resolver os problemas do povo e não os seus próprios, estaríamos muito mais perto do admirável primeiro mundo do que da sordidez e imundície (lato e estrito senso) do terceiro... Mas de uma maneira geral, nossa experiência africana foi memorável!

IF YOU REJECT THE FOOD, IGNORE THE CUSTOMS, FEAR THE RELIGION AND AVOID

THE PEOPLE, YOU MIGHT BETTER STAY HOME!

Reproduzido de uma parede do terminal de passageiros do aeroporto de Lisboa

E aqui abro um oportuno parêntese nesta reflexão. Não foram raras as vezes ao longo destes vários anos que fui molestado por aquele sentimento (nossa opção pelo terceiro mundo) reaguçando a minha consciência e tecendo profundas considerações sobre a nossa realidade. Aliás, estou voltando da Austrália neste exato momento revivendo este recorrente sentimento que me aflora principalmente durante viagens a países que hoje são, tudo aquilo que deveríamos e poderíamos ter sido se tivéssemos tido a devida competência pra efetivar a ruptura com a vanguarda do atraso e o com o nosso atávico e ignorante arcaísmo. Vivemos um momento especial no nosso Brasil com mudanças e oscilações marcantes ditando novos ritmos em todas as esferas da vida nacional: política, economia, saúde e educação. Algumas destas oscilações nem sempre se fizeram no sentido mais desejado ou esperado por nós. Ainda que seja irrefutável que avançamos consideravelmente em vários setores, também é fato que algumas das reformas estruturais mais importantes fincaram seus alicerces em terrenos com consistência, no mínimo, discutível. Infelizmente este parece ser o caso em dois dos segmentos mais críticos para todos nós e que seguramente mais nos importam enquanto classe médica: saúde e educação.

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Sem querer generalizar, poderíamos facilmente identificar uma série de ações deflagradas nos últimos anos que, na melhor das hipóteses, maquiaram números francamente desfavoráveis e vergonhosos ao país. Parece que o planejamento estratégico brasileiro foi pouco ambicioso ao estabelecer suas metas nestas áreas ao abdicar do padrão de excelência que todos almejávamos estacionando em patamares muito aquém do que sonhamos e merecemos. A impressão geral é a de que teremos de nos contentar não com o ótimo, mas o razoável, jamais com o ideal, mas o possível. Condenados eternamente a viver na média, na mediana, ou, sejamos claros: tangenciando a mediocridade! Pois bem, como membros de uma classe profissional intelectualizada, politizada e muito bem informada (afinal convivemos diretamente com as mazelas geradas por estas diretrizes) podemos identificar estas distorções e somos dos primeiros a contundentemente denunciá-las apontando prováveis causas e potenciais culpados. Em resumo, somos capazes de lançar um olhar crítico sobre o país e traçar facilmente o inventário de alguns dos nossos rotundos fracassos! Cai o pano, fim do primeiro ato. Ao descerrarmos novamente as cortinas, convido-os a migrar de palco: do macro-ambiente nacional para o nosso nicho específico de atuação: nosso sagrado ofício, nossa valorizada especialidade e nossa pujante associação. E aí emerge uma pergunta para lá de inconveniente? Será que temos empregado estes mesmos rigorosos critérios para julgar nossas próprias ações cotidianas e assuntos de “economia interna”? Como sociedade organizada temos buscado a excelência assistencial e acadêmica que “a priori” dependeria, não exclusivamente, mas muito de nosso próprio esforço e empenho? No plano assistencial, não restam dúvidas que a medicina como um todo e, em particular a otorrinolaringologia, deste país cresceu e com ela cresceram e amadureceram aqueles que se dedicam à sua prática como especialistas. O monumental trabalho desenvolvido por colegas brasileiros catapultou a relevância da especialidade no cenário médico nacional e, extrapolando as fronteiras, tornou as vários segmentos da nossa medicina em referências globais! No âmbito acadêmico também colecionamos conquistas. Só para citar algumas, na otorrinolaringologia, publicamos há décadas uma conceituada e disputada revista cientifica em dois idiomas, editamos o mais ambicioso e abrangente compêndio do mundo, mantemos uma série de atividades pioneiras em educação médica continuada, fomos vanguarda em programas de aperfeiçoamento veiculados via internet (tendo realizado com grande sucesso três congressos transmitidos integralmente pela rede mundial). Nossos eventos situam-se entre os mais movimentados e prestigiados do planeta e organizamos de forma impecável um congresso mundial! Está tudo bem então? Absolutamente... NÃO! Ainda acho que estamos longe, mas muito longe do ideal... Aliás, isto não é uma impressão minha, mas um fato respaldado

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em números. Vamos a eles: Nossa maior vitrine científica, a RBORL, apesar do esforço hercúleo de seus editores e colaboradores ao longo dos anos, ainda padece de problemas. Ingressamos no PubMed em 2005 (somente para constar, o PubMed é um banco de dados para pesquisa bibliográfica de artigos médicos que reúne cerca de 4000 periódicos científicos). Seis anos mais tarde (2011) fomos indexados pelo Institute for Scientific Information (ISI). É importante ressaltar que este passo foi extremamente importante por dois aspectos temporais: (1) retrospectivamente por atestar e levar em conta a qualidade editorial da revista (para que um periódico logre ingressar nesta base de dados ele necessariamente deve reunir inúmeros requisitos como pontualidade, editoração dentro das normas internacionais, revisão dos artigos a serem publicados por pares – peer review, entre outros); (2) prospectivamente possibilitar a sua parametrização com outras revistas a partir do cálculo do seu fator de impacto (FI), uma vez que somente periódicos indexados ao ISI são considerados para este cálculo. O FI é uma medida que reflete o número de citações de artigos científicos publicados em determinado periódico. É empregado para avaliar a importância de um dado periódico em sua área, sendo que aqueles com um maior FI são considerados mais relevantes do que aqueles com um menor FI. O seu valor é obtido dividindo-se o número total de citações dos artigos, acumulados nos últimos dois anos, pelo total de artigos publicados pela revista no respectivo espaço de tempo. Dois anos após (2012) obtivemos o nosso primeiro fator de impacto medido: 0.545. Já na aferição de 2013 passamos a 0.623, ou seja, estamos crescendo, ou melhor: aparecendo (na medida em que temos mais citações). Apesar de sermos a única revista da especialidade na América Latina que ostenta o FI é preciso evoluir e muito (afinal ser a vanguarda do atraso me parece um prêmio de consolação para lá de dispensável!). Mal querendo se comparar, as revistas com maiores fatores de impacto em 2011 foram a Nature (36.280) e a Science (31.201)! Na mesma verificação, somente dezesseis títulos brasileiros apresentam fator de impacto igual ou superior a 1,0. É importante salientar, entretanto, que, pela natureza do cálculo do FI, ele somente deve ser empregado na comparação de periódicos com a mesma vocação (seria no mínimo injusto comparar o FI de uma revista de ciência geral (imenso universo de leitores) com um periódico de especialidades! Ainda assim, apesar da nossa revista ostentar o selo comemorativo dos seus 80 anos, ainda estamos engatinhando cientificamente e nossa maturidade, ou melhor, tão almejada maioridade está por vir. Os desafios para chegarmos lá são de várias ordens e esferas. Talvez nosso maior obstáculo seja superar o que costumo chamar de “ciclo vicioso perverso”. Senão vejamos os fatos: 1. Nossas revistas científicas, com raras exceções, ainda ostentam baixo FI necessitando da submissão contínua de artigos de muito maior peso para prosperar.

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2. As principais fontes nacionais de pesquisas clínicas e experimentais (e, por conseguinte, de potenciais trabalhos de qualidade) são os programas de pós-graduação das nossas melhores universidades que aportam dezenas de novas teses e dissertações todos os anos. 3. Estes programas, por sua vez, cada vez mais cobrados pelas instâncias universitárias superiores, são pontuados pelas nossas agências de fomento após a análise minuciosa de uma série de quesitos. Entre eles, destaca-se mormente o número de artigos publicados pelo grupo (orientadores e alunos) em revistas de grande prestígio e, obviamente, alto fator de impacto. 4. Pressionados pelas circunstâncias, não restam alternativas aos pesquisadores, senão o de direcionar suas melhores publicações a periódicos científicos de porte acadêmico mais robusto gerando uma alça de retroalimentação negativa onde os mais fortes são cada vez mais tonificados e os mais fracos definham à míngua. Como facilmente podemos depreender, encontramo-nos em uma situação crítica, mas as regras do jogo estão postas e são bem estas. Diante deste paradoxo, restam as perguntas: é possível romper este ciclo vicioso? Qual o melhor caminho para proceder esta ruptura? Discutindo estas questões com um grupo de professores da pós-graduação do curso de medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, vislumbramos algumas possibilidades: a primeira seria a de incentivar e consolidar novos grupos de pesquisadores brasileiros com inserção internacional sólida e continuada. Estes grupos, aliados aos nossos vetores acadêmicos já tradicionais, poderiam operar como novas pontas de lança da ciência brasileira no mercado editorial global. Uma vez galgada a notoriedade, o próximo movimento seria o de redirecionar o foco de parcelas generosas de suas publicações para o mercado interno com a certeza de atrair ondas de leitores e pesquisadores já devidamente fidelizados pela sua excelência. Uma segunda abordagem seria a de seguir mais amplamente o exemplo de escolas como Ribeirão Preto e desencadear um processo nacional de estímulo e fomento a pesquisas básicas nas especialidades. Neste sentido, sou um entusiasta da pesquisa interdisciplinar. Nossos programas de pós-graduação devem acolher anatomistas, fisiologistas, geneticistas, bioquímicos, enfim, profissionais que analisam um mesmo problema sobre diferentes perspectivas. Insere-se neste contexto a necessidade de obtermos o compromisso dos nossos melhores programas de PósGraduação de dividir com a RBORL largas fatias dos trabalhos de ponta ali gerados. De nada estas atitudes adiantariam, entretanto, se não fizéssemos, como revista científica, nosso dever de casa: elevar nosso nível de exigência a patamares cada vez mais superlativos. Unirmo-nos em torno do ideal que almejamos; juntarmos esforços no cumprimento de nossas metas. Contaminarmos nosso corpo editorial com o vírus da qualidade total.

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(ou carta para um filho que nunca tive)

Enfim perseguirmos, como um todo, obstinadamente nossa visão de excelência. Temos consciência que processos dessa natureza, todavia, não se produzem num dia, num único mês ou ano. Antes, demandam décadas de trabalho, esforço e dedicação. Ainda assim, parece que o caminho mais curto para aferir bons resultados em curto prazo, passe pela conscientização e treinamento dos nossos corpos editoriais (ações, aliás, que já vem sendo realizadas nos últimos anos). Uma seleção mais criteriosa e exigente de artigos a serem publicados terá um impacto direto e imediato tanto no numerador quanto no denominador da equação de cálculo do FI. Mais trabalhos de qualidade (aumentando paralelamente o índice de citações) sobre uma base geral menor de publicações... e o resto fica por conta da matemática... Este salto de qualidade somente será possível com o engajamento obstinado de todos! Como resultado deste esforço, certamente emergirá um produto mais qualificado e mais próximo, bem mais próximo, daquele que sonhamos. A responsabilidade por estas transformações, tanto em âmbito assistencial (menos) quanto acadêmico (mais), é exclusivamente de cada um de nós. Sem terceirizações, sem dedos apontados! Temos de materializar, individualmente, todas estas mudanças que nos tornarão cada vez mais fortes ou, caso contrário, todos perderão como sociedade. Este sonho, sim, é tangível. Nossa visão, sim, é a excelência! Mas a missão somente estará completa quando definitivamente procedermos a ruptura que transformará este pernicioso ciclo vicioso em um eterno ciclo virtuoso. Bem fechando este longo parêntese, ainda estamos em Mineápolis. Concordo que as vezes estas divagações não seguem um ordenamento temporal muito preciso, mas os nossos pensamentos, bem os nossos pensamentos sempre conspiram contra a cronologia cartesiana não respeitando parágrafos, regras ou fronteiras. Muito pelo contrário, são uns tipinhos absolutamente imprevisíveis, indomáveis e libertários ( e, portanto, adoráveis e instigantes!))

“ ” Cogito ergo Sum

Sócrates

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O ano de 1988 ia encaminhando-se para o seu final e com ele minha primeira temporada americana. Corria contra o tempo para finalizar todos os meus projetos e bem encaminhar aqueles que sabia ainda sobrariam pendentes. Nossa turma da segunda metade de 1988 era incrível: Neil Sperling (Manhattan Eye & Ear, Nova Iorque), Lars Lundmann (Karolinska Institute, Suécia), Christopher de Souza (Mumbai – Índia); Chris Lees (Biochemistry Department , Minnepolis), Carlos Ruah (Lisboa – Portugal), Michael Alleva (Detroit-Michigan), Mahesh Basha (Nova Delhi – Índia), Dick Hoisltead (Seattle – Washington), Tae Yoon (Seul- Coréia do Sul), Mohamed Magdi (Alexandria – Egito), Pat Schachern, Gwen Afton, Ginny Hansen, enfim um grupo de amigos maravilhosos ainda aprendizes nos meandros da ciência que havia nos unido, mas, por outro lado, já mestres na arte de cultivar relações e apreciar as coisas boas vida... Nunca esqueço que o nosso último congresso juntos foi a reunião de 1988 da Academia Americana realizada em Washington D.C. O grupo apresentou uma séries de trabalhos por lá, mas o que mais me marcou naquela ocasião foi a despedida do nosso grande amigo Chris de Souza que iria retornar à Mumbai diretamente de Washington. Estávamos saindo de um bar perto do Capitólio após degustar algumas rodadas. Eu e o Neil tomamos a direção do nosso hotel, já o Chris, completamente atordoado, dirigiu-se apressadamente na direção oposta sem se despedir e sem nem mesmo olhar para trás. O Neil, deu um grito e saiu correndo ao seu encalço trazendo-o de volta (meio a cabresto) com o braço sobre o seu ombro, ambos já com alguma umidade nos olhos. Em um frio final de tarde e na calçada em frente ao bar juntamo-nos em um forte, caloroso e emocionado abraço de despedida (pois ali nos separávamos teoricamente para sempre) e desejando uns aos outros toda a sorte do mundo naquele que seria, tecnicamente, o verdadeiro primeira ano do resto das nossas vidas profissionais. Pronto, pensei, mais uma daquelas terríveis e doloridas batidas de claquete! Quem iria imaginar, que apenas alguns anos mais tarde, através do milagre digital, o mundo fosse encolher tanto, reduzindo os espaços e reaproximando amizades suspensas pela distância...

OUT OF SIGHT, OUT OF MIND... apanágio

TODAY , AFTER MORE THAN A CENTURY OF ELECTRIC TECHNOLOGY, WE HAVE EXTENDED OUR CENTRAL NERVOUS SYSTEM ITSELF IN A GLOBAL EMBRACE; THE WORLD HAS BECOME A GLOBAL

VILLAGE, ABOLISHING BOTH SPACE AND TIME AS FAR AS OUR PLANET IS CONCERNED

MARSHALL McLuhan (The Guttenberg Galaxy : The Making of Typographic Man – 1962-)

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(ou carta para um filho que nunca tive)

Mas estava na reta final do meu Fellowship e me dividia entre organizar minhas despedidas das terras do “Tio Sam” e delinear a minha rentrée acadêmica e assistencial na otorrinolaringologia brasileira. Ainda assim, antes de retornar, cumpri dois compromissos de extrema importância em Minneapolis. O primeiro foi ajudar a preparar um enorme dossiê científico que condensava todos os principais resultados produzidos nos últimos cinco anos pelo “Otitis Media Group” da Universidade de Minnesota. Este grupo multidisciplinar era composto por otorrinolaringologistas, pediatras, audiologistas, biólogos, bioquímicos e dedicava-se ao estudo da patogênese da otite média sendo largamente subsidiado por um polpudo e (potencialmente) renovável “grant” de cinco milhões de dólares bancado pelo todo-poderoso NIH (National Institute of Health – órgão fomentador da pesquisa médica norte-americana -). Naquele dezembro de 1988, um rígido e extremante qualificado comitê de avaliadores veio à Mineápolis. para escrutinar minuciosamente os resultados obtidos nos últimos cinco anos e definir se os progressos verificados teriam musculatura suficiente para garantir a renovação da concessão. Havia um sentimento de apreensão geral, pois uma avaliação negativa implicaria não somente na interrupção de uma tradicional linha de pesquisa, mas na enorme dificuldade de manutenção de vários cargos e empregos associados ao grant e garantidos por estas verbas. Após uma legítima “peleia” de três dias, inúmeros questionamentos, arguições e explicações de parte à parte, a confirmação da renovação do benefício foi celebrada com muita alegria e um muy justificado alívio geral! A segunda tarefa consistia em realizar um círculo final de palestras em Rotary Clubes na região das Twin Cities (Mineápolis e Saint Paul) e também em algumas comunidades vizinhas (Monticello, Brainard – famosa por ser a terra de Paul Bunyan, Minnetonka) com o duplo objetivo de agradecer o suporte recebido ao longo da minha estada e principalmente ressaltar a importância do programa de bolsas da Fundação Rotária. Nestes encontros, o Dr. Barnett e eu, fazíamos questão de salientar o que chamávamos de “The Rippling Factor”. Aqui cabe uma explicação: to ripple é um verbo intransitivo em inglês (sem correspondência no português – que eu saiba -) oriundo da expressão rippling que, por sua vez, refere-se a aquele movimento circular, ondulatório e em expansão criado na superfície de águas paradas (como em lagos) como consequência ao impacto de um objeto ali atirado (em geral uma pedra). Usávamos da seguinte analogia: a pequena pedra e o momento inicial representavam o investimento da Fundação em um determinado bolsista. O ciclo de ondas, assim desencadeado, concêntricas e atingindo raios cada vez maiores eram os potenciais dividendos advindos do programa. Ou seja, através da ação do bolsista na sua comunidade de origem e da imediata aplicação das habilidades e dos conhecimentos adquiridos aquele investimento inicial gerava um equação de multiplicação com um numerador fixo e muito pequeno, denominadores cada vez maiores e produtos crescentes... Mas em 20 de dezembro de 1988 havia chegado o momento de retornar. Arrumei minhas malas e acrescentei à bagagem uma série de artigos científicos, capítulos de livros e referências

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bibliográficas impressas para continuar meus estudos no Brasil. Paguei excesso de peso na viagem de volta, não por trazer, como sói acontecer a todo viajante, uma série de produtos e quinquilharias “made in USA”, mas um calhamaço de papéis que em épocas pré-internet eram tão valiosos para mim que foram acondicionado em uma sacola Nike azul e verde (um dos poucos mimos que me autoconcedi!) e transportados colados a mim como bagagem de mão... Todos os principais amigos no saguão do aeroporto. Abraços, beijos e apertos de mão. Emocionado, sem olhar para trás e com uma sensação de dever mais do que cumprido decolei para o Brasil. Meio mal acomodado numa poltrona da classe turística e dividindo espaço com a sacola Nike, usei aquelas 24 horas de duração da viagem para refletir um pouco sobre a experiência que ali se encerrava e muito acerca do que estava por vir.

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Assim, a preparação da minha volta havia sido, de certa forma, minuciosamente desenhada ainda no exterior, por meio de estabelecimento de contatos e estratégias de vínculos no Brasil, os quais viabilizariam a socialização de todos aqueles conhecimentos que adquiri e/ou lapidei no exterior. Sem dúvidas, durante meu período em Mineápolis, estabeleci laços de amizades e conexões profissionais importantíssimas e que repercutem positivamente na minha vida pessoal e profissional até hoje. Somente para citar: 1. a condição de primeiro pesquisador internacional afiliado à International Hearing Foundation; 2. o estabelecimento de uma sólida conexão com o Rotary Club; 3. e a abertura de um canal de comunicação com ex-fellows do Professor Paparella no Brasil e exterior. Enfim, um novo mundo de oportunidades se apresentava à minha frente e cabia exclusivamente a mim usá-las como agentes catalisadores do meu sucesso. Um misto de sensações foram pouco a pouco me invadindo. Talvez se pudesse algebricamente discriminá-las chegaria ao seguinte resultado: 10% de satisfação; 10% de alegria por voltar para casa; 10% de tristeza por deixar para trás tantos e tão bons amigos; 70% de ansiedade pelo que o futuro me reservava...

E ali logo em frente a esperar pela gente o futuro está!

E o futuro é uma astronave que tentamos pilotar

Não tem tempo nem piedade nem tem hora de chegar.

Sem pedir licença muda nossa vida e depois convida a rir ou chorar...

Toquinho – Aquarela

Aterrissei em Porto Alegre na véspera do Natal de 1988. Fui recepcionado por toda a minha família e alguns bons amigos que se perfilavam estrategicamente na porta de saída do desembarque na expectativa da minha chegada. O clã novamente reunido comemorou com emoção e alegria aquele momento pra lá de especial. Dali seguimos em comboio para a casa da Dona Janethe que obviamente havia preparado um legítimo festival de pratos árabes para adequadamente celebrar a ocasião. Por mais que estivéssemos felizes e excitados com o reencontro após dois anos, uma leve melancolia e um indisfarçável sentimento de ausência permeava por entre as nossas mentes e habitava todos os corações...

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Passei o mês de janeiro de 1989 organizando minhas coisas, restabelecendo contatos e preparando minha nova empreitada acadêmica na Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto. Em meados de fevereiro, ocupei todos os espaços do meu carro com malas de roupas, livros (muitos livros, planilhas e artigos) e alguns itens de utilidade doméstica, novamente me despedi dos meus familiares e amigos mais próximos e parti. Desta vez, a minha porta de saída não foi o aeroporto Salgado Filho nem tampouco embarquei em um Boeing ou Airbus. O destino era Ribeirão Preto via BR 101 a bordo de um flamante Chevette 1986 azul metálico abarrotado de bugigangas. Singrei os 1500 quilômetros que separam as duas cidades cruzando os quatro estados meridionais brasileiros em dois dias (pois havia prometido à minha mãe que não viajaria durante a noite!). Numa tarde ensolarada de domingo cheguei à Ribeirão Preto pela bucólica avenida Francisco Junqueira acompanhado de dois dos meus bens mais preciosos: o “flamante” Chevette 86 que havia recebido de herança do meu pai e um turbilhão de sonhos várias vezes sonhados, mas muitos (muitos mesmo) ainda por serem materializados... Ainda sem um espaço para morar, tive de contar com a hospitalidade da minha querida amiga Wilma Anselmo que me acolheu junto com a sua família no seu aconchegante apartamento localizado à rua Tibiriçá. O espaço, apesar de não ser grande, era muito conveniente pois situava-se próximo ao mais importante e conhecido ponto turístico da região: o famosíssimo Bar-Chope Pinguim! Minha estada na casa das Anselmo (Wilma e sua irmã Sandra) era para ser mais curta (afinal, respeito muito o velho dito popular que reza que “visitas são como peixes: depois de dois ou três dias começam a cheirar mal...”), mas sendo uma cidade universitária, um polo industrial e com forte apelo comercial Ribeirão Preto é o centro geopolítico, de lazer e econômico do pujante noroeste paulista. Assim, sua rede imobiliária, apesar de vasta, era insuficiente para acomodar com qualidade todos os “forasteiros” que para ali acorriam em busca de educação, trabalho, bons negócios ou simplesmente entretenimento. Levei mais de duas semanas até conseguir um lugar para morar que combinasse alguns pré-requisitos que considerava indispensáveis: localização estratégica e preço acessível (sim, minhas demandas por algum luxo e conforto tardariam ainda mais de dez anos para serem seriamente consideradas e, mais ainda, para parcialmente materializarem-se!). O apartamento (se é que podemos denominar assim uma quitinete de 30 m2 ...) apesar de minúsculo, podia receber com folgas a minha enxuta mudança agregada de alguns outros bens adquiridos no forte comércio ribeirão-pretense: uma pequena mesa com cadeiras, um sofá-cama, um refrigerador, uma estande para acomodar livros, uma pequena televisão 14 polegadas e o aparelho de som que havia trazido de Porto Alegre juntamente com a minha preciosa coleção de discos de vinil! Completavam a mobília duas excentricidades que havia me concedido: uma linha telefônica alugada (que acabou sendo o principal canal de comunicação com o sul de uma gauchada que habitava as vizinhanças) e um microcomputador Frankenstein comprado em partes e montado ali mesmo na minha pequena sala

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sob o curioso olhar da vizinhança. Ribeirão Preto, em um primeiro momento, me pareceu a antítese de Mineápolis. Algo provinciana, extremamente quente e impregnada da cultura típica do interior paulista com uma forte influência do sul de Minas. Tive de tentar me adaptar à minha nova realidade que incluía o sotaque característico puxado nos “Rs”, o apreço pela reunião nos finais de tarde em barzinhos muito simples regados à cerveja gelada e frango a passarinho, a nascente epidemia da música sertaneja e, para mim, o supremo horror: a lambada! Vai ser difícil, muito difícil, pensei. Traduzia este sentimento para uma expressão que havia aprendido na América complicada de ser traduzida, mas que expressava como nenhuma outra a minha sensação de estranho no ninho: : “I need to rapidly find a way to get a f...out of here! Não, definitivamente, Ribeirão Preto não foi um amor à primeira vista. Ainda assim, olhando retrospectivamente, acho que o período que passei por lá foi de extrema importância por inúmeros aspectos alguns do quais, mais à frente, terei oportunidade de comentar. Um deles, entretanto, se impõe relatar aqui e agora. Esta cidade e o seu maravilhoso povo me receberam de uma forma muito especial. Possivelmente com um carinho inversamente proporcional às minhas primeiras impressões e atitudes por lá. Desembarquei nesta simpática cidade depois de viver por dois anos fora do Brasil em um centro de excelência científica, profissional e social. Tanto quanto possível, usufruí de todas as benesses que a América pode me oferecer e ao final deste período desfrutava de um status superlativo e desproporcional às minhas próprias aspirações. Pois é, mas esta noção matreiramente inflava meu jovem ego e trazia consigo algumas atitudes algo exacerbadas e definitivamente exageradas. Uma certa soberba foi uma delas. Na verdade, “certa soberba” seria o eufemismo de uma sutil arrogância. Tenho consciência de que voltei de Mineápolis com uma carga de conhecimentos teóricos muito considerável. Afinal havia passado os últimos dois anos estudando e privando da companhia diária de mestres como o Professor Paparella mergulhado de corpo e alma no universo da otologia e bebendo água na fonte da especialidade. O problema é que existe uma monumental diferença entra a teoria e a danada da prática e ninguém se transforma magicamente em um grande profissional por meio de atos institucionais ou decretos. Tinha a nítida clareza de que meu conhecimento extrapolava (em muito) minha competência técnica para resolver problemas razoavelmente complexos. Este descompasso entre a bagagem cultural, eloquência verbal e a real capacidade de manejar situações clínicas (ou o que aparentava ser e o que de fato era) gerava um mecanismo de defesa personificado num simulacro de arrogância que bem no fundo era a mais pura expressão da minha inexperiência e insegurança pós-juvenil. Felizmente, com o passar do tempo, aos poucos fui adquirindo a experiência prática necessária para me tornar um profissional mais completo ao mesmo tempo em que tratava de me livrar desta carapaça indesejável. O problema é que o palco desta transformação foi o Departamento de Oftalmo e Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto... Assim durante este percurso não foram raras as vezes em que travei

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batalhas verbais e tive atritos dispensáveis com colegas e superiores. Fazendo uma análise crítica deste período, concluo que depurei meu caráter e refinei algumas facetas da minha personalidade em Ribeirão Preto. Por conseguinte, guardo um imenso carinho e uma grande dívida moral para com ela que me acolheu com bondade apesar dos meus inúmeros e flagrantes defeitos. Durante o período que por lá vivi, passei a amar aquela cidade, a sua gente e até aquela estranha cultura que inicialmente rejeitava. Ribeirão me ensinou a ser melhor, duplamente melhor: como médico e como pessoa humana. Quando fui embora, levei Ribeirão Preto comigo. Na verdade ela está sempre comigo; guardada no fundo do meu coração...

You never really leave a place you love,

You take a part of it with you

Leaving a part of you behind.

Unknown

Devidamente instalado, concentrei minha atenção no programa de pós-graduação em otorrinolaringologia que recém havia sido criado através de um desmembramento com a oftalmologia. Fui honrado com a orientação do Prof. Dr. José Antônio Aparecido de Oliveira ou mais simplesmente o famoso “Juba”. O Professor José Antônio era egresso de uma esplêndida escola de pesquisadores tendo sido pupilo do Prof. Ricardo Marsellan que, por sua vez, fazia parte de uma qualificada trupe de cientistas egressos da Argentina e que haviam aterrissado em Ribeirão Preto nos primórdios da faculdade de medicina escapando de perseguições políticas no país de origem. Deste grupo, faziam parte anatomistas, bioquímicos e fisiologistas que se formaram na grande escola portenha sob a influência e batuta do Professor Berardo Alberto Houssay, simplesmente até hoje o único Nobel de fisiologia de toda a América Latina. Sem dúvidas, um grupo com larga qualificação, experiência e, acima de tudo, imenso pedigree científico. O Professor José Antônio perseguia uma linha de pesquisa identificada com a eletrofisiologia da audição e, principalmente ototoxicidade (sendo um dos autores mais conhecidos no mundo neste tópico à época). Ainda assim, me acolheu como orientado e concordou com meu projeto de mestrado que versava exclusivamente sobre a histopatologia do osso temporal com ênfase especial à otite média crônica. Uma vez que não havia bolsas disponíveis para todos os pós-graduandos, meu primeiro desafio foi participar de uma prova de seleção com os demais colegas a fim de definir por critérios objetivos quem seriam os contemplados com as bolsas. A prova consistia simplesmente em uma

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análise curricular e do projeto de pesquisa. Após dois anos de vida acadêmica prolífica em Minnesota e com um projeto original e inovador, não tive muitas dificuldades em obter o primeiro lugar na classificação geral garantindo assim um rendimento minimamente razoável para sobreviver com alguma dignidade na cidade. Meu próximo passo, foi escolher com cuidado e coerência as disciplinas que cursaria para obtenção dos créditos necessários ao programa pós-graduação. Entre elas, escolhi uma cadeira relacionado à neurocirurgia e coordenada por aquele que viria a ser meu futuro orientador de doutorado Prof. Dr. Benedito Oscar Colli. Não imaginava que ali se iniciava uma profícuo relação com a tradicional neurocirurgia e a emergente cirurgia da base do crânio que perdura até hoje e materializa-se no grupo interdisciplinar de base do crânio do Hospital de Clínicas de Porto Alegre fundado por min e pelo Prof. Ápio Antunes e hoje coordenado por um dos meus mais brilhantes exalunos: Dr. Maurício Noschang da Silva. Como trazia o trabalho da dissertação praticamente pronto de Mineápolis, pude me dedicar com afinco nas outras atividades relacionadas à pós-graduação. Entre elas, a que mais me dava prazer era a de poder trabalhar com os médicos residentes em uma espécie de consultoria na área da otologia clínica e cirúrgica. Assim, após dois anos afastado destas funções, voltei a ter pacientes sob a minha estrita responsabilidade definindo condutas, planejando terapias e conduzindo ou supervisionando cirurgias. As coisas definitivamente estavam tomando um rumo interessante e meu futuro acadêmico parecia bem encaminhado... Decidi que estava na hora de cumprir uma promessa que havia feito ao Professor Paparella que consistia em procurar o seu antigo fellow (Dr. Luiz Carlos Alves de Sousa) a quem fui apresentado no ano anterior por ocasião da nossa vinda ao Brasil (como já anteriormente relatado). Não foi difícil localizá-lo uma vez que sua clínica se situava estrategicamente na frente do melhor hospital privado de Ribeirão Preto (Hospital São Lucas) e denominava-se convenientemente “Clínica Paparella” numa justa homenagem ao seu (nosso) mestre e mentor! Procurei o Luiz Carlos (ou simplesmente o “Alemão” – apelido que trazia desde a infância e muito mais relacionado à sua aparência do que à etnia...) em um final de tarde quando já encerrava sua agenda de consultas. Fui acolhido desde o princípio com entusiasmo, emoção, respeito e muito carinho (que , aliás aprendi serem suas marcas registradas!). Este primeiro encontro seguiu rigorosamente o roteiro tradicional da hospitalidade ribeirão-pretana tendo se estendido desde um rápido café com biscoitos na clínica para várias rodadas de chopes e pratos de frango a passarinho no maravilhoso bar Pingüim! Impressionante, mas em poucas horas ali à mesa do bar descobrimos uma afinidade tremenda e selamos uma amizade instantânea que deflagraria uma parceria sólida, desinteressada, muito prolífica e que já dura uma vida. O Alemão me apresentou sua família, seus amigos e me ajudou

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a descobrir as delícias e os segredos de Ribeirão Preto. Na verdade, não foram uma nem duas, mas dezenas ou centenas de vezes que privei do conforto da sua casa usando e abusando da hospitalidade da sua (minha) querida família. Só para se ter uma ideia da dimensão desta relação, quando escrevi minha tese de doutorado, fiz um agradecimento especial ao seu primogênito Paulinho (na época com apenas dez anos de idade!) por ter divido seu quarto comigo em tantas oportunidades. Até hoje o Alemão se orgulha de ver o nome do seu filho citado em uma tese defendida na poderosa USP de Ribeirão Preto e aprovada com nota máxima, distinção e louvor! Vi nascer dois de seus filhos: a Isabela (hoje uma promissora advogada!) e o Leonardo (que tornouse o agente catalizador da união daquela família). Já a segunda filha Gabriela (hoje uma promissora produtora de moda em Campinas) foi transformada por minha insistência e influência numa das mais belas e apaixonadas torcedora do glorioso Grêmio de Futebol Porto-Alegrense! Vale aqui contar uma passagem que ilustra como nenhuma outra o carinho e a atenção da família Alves de Sousa para comigo. Quando fui a Ribeirão para defender minha tese de doutorado (Relações Anatômicas da Artéria Carótida Intrapetrosa) hospedei-me mais uma vez na casa púrpura localizada no balão da Avenida Fiúza. Cheguei com muita antecedência à cidade, pois tinha de finalizar a edição final do trabalho e da apresentação. Assim, sem nenhuma cerimônia e sob o olhar complacente da matriarca Jaqueline espalhei todas as minhas coisas (artigos, fotos, referências, notas, diapositivos, etc...) praticamente ocupando todo o espaçoso andar de baixo da casa! As pobres crianças eram praticamente proibidas de circular no meio das

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minhas tralhas e procuravam caminhos alternativos para entrar e sair da casa. A coitada da diarista, então, severamente orientada pela Jaque, somente espiava aquela bagunça da porta entreaberta da cozinha ousando timidamente de tempos em tempos me oferecer um café ou uma água gelada. Pobre família, até para almoçar necessitaram alterar as suas rotinas...mas absolutamente todos estavam convencidos que faziam parte de um time com uma nobre missão: ajudar-me a superar a última barreira para obter o tão sonhado título de Doutor! Esta cumplicidade era flagrante em todos, mas curiosamente, era mais exacerbada nas crianças menores (que possivelmente não guardavam a mínima ideia do porquê aquele circo havia sido montado na sua residência!). Lembro que um dia remexia ansiosamente em uma papelada sobre a mesa da sala de jantar (que como já referi, havia sido 100% confiscada por mim!) e, precisando cortar uma figura solicitei à Jaqueline se ela poderia me providenciar uma tesoura. Enquanto ela saia em disparada escada acima para providenciar uma, comecei a sentir uns delicados puxõezinhos na barra das minhas calças. Percebi que era a Isabela (então com dois anos de idade) tentando chamar a minha atenção. Delicadamente tentei mostrar que naquela hora estava muito ocupado e não teria tempo para atendê-la...mas os puxõezinhos insistentemente persistiram. Meio contrariado, tive de abdicar do que estava fazendo e voltei-me para ela a fim de descobrir o que tanto precisava: quando a vi com os cabelos desgrenhados (seu estilo até hoje...), de pijama e na ponta dos pés descalços tentando me alcançar uma pequena tesourinha vermelha do seu estojo de brinquedos... Minha surpresa só não foi maior do que o infinito remorso que senti naquele preciso momento. A tesourinha vermelha brandindo na mão daquela linda menininha descabelada imediatamente me remeteu para a história da espada do rei Arthur quando o jovem futuro rei, despretensiosa e altruisticamente , é o único a conseguir sacar a espada mágica encalacrada na bigorna! Só em um coração infantil poderemos encontrar a pureza do amor sincero e desinteressado. Só na alma de uma criança pode habitar um espírito tão elevado, pensei. Se a tese já não estivesse imprimida naquele momento, teria que, necessariamente, acrescentar um agradecimento especial à lição de vida ensinada por aquela criança Como disponibilizava de bastante tempo em Ribeirão Preto, procurei ao máximo continuar produzindo cientificamente. Havia um série de trabalhos que houvera trazido de Mineápolis e que precisavam ser concluídos. O objetivo era dar visibilidade nacional às coisas que havia estudado durante meu Fellowship e, para tanto, elegi três assuntos principais: (1) OTOPATOLOGIA TRANSLACIONAL; (2) PATOGÊNESE DAS OTITES MÉDIAS CRÔNICAS; (3) NEUROTOLOGIA E DOENÇA DE MENÉRE. Em relação ao primeiro, apresentei conferência nacional no Congresso da USP de 1989 e desde então tenho revisitado este assunto de várias formas em praticamente todas as minhas conferências e palestras. Posso dizer que a OTOPATOLOGIA transformou-se em um grande paixão e muito por conta dela já retornei inúmeras vezes ao laboratório de histopatologia em Mineápolis para estudar novos casos e revisar antigos. Como exemplo deste reconhecimento, recentemente abri uma das

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minhas conferências na Universidade de Melbourne (Austrália) com um slide que repetia as sábias palavras bíblicas do Profeta Daniel:

Minha ideia original era a de tentar criar uma versão brasileira do laboratório aos moldes do modelo americano. Apesar dos altos custos envolvidos, achava que poderíamos viabilizá-lo com a união de forças entre alguma universidade com nítido pendor à ciência, agências governamentais fomentadoras de recursos e o apoio técnico externo que, neste caso, havia sido reiteradamente garantido pelo Professor Paparella e sua equipe. Ledo engano. Os custos envolvidos eram astronômicos e, mesmo na América, vários centros tradicionais de histopatologia do ossos temporal, para desencanto geral, foram desativados! Hoje permanecem operacionais apenas dois laboratórios: Universidade de Harvard (o pioneiro de todos e que foi por várias décadas liderado pelo Prof. Harold Schuknecht) e da Universidade de Minnesota (que é mantido através de um monumental esforço pessoal – técnico e financeiro – do Prof. Michael M. Paparella!). Para se ter uma ideia do comprometimento e do carinho do Prof. Paparella com o seu laboratório, ele até hoje aporta do seu próprio bolso a improvável quantia anual de 250 mil dólares! Com o objetivo de tornar esta ciência mais conhecida em nosso meio, publiquei, com grande repercussão, na Revista Brasileira de Otorrinolaringologia em 1991 um artigo de revisão simples mas contundente: LABORATÓRIOS DE HISTOPATOLOGIA DO OSSO TEMPORAL: Passado, Presente e Futuro! Já em relação à otite média crônica, encontrei no Brasil um ambiente muito favorável ao desenvolvimento de estudos científicos dada a grande prevalência desta condição em nosso país. Dentre todas as facetas desta intrigante doença, desde Mineápolis, sempre fui muito atraído pelo estudo da sua patogênese. Este interesse sem sombra de dúvidas tem um componente contagioso, já

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que o vírus responsável pelo apreço ao estudo da patogênese me foi inoculado pelo Prof. Paparella, ele mesmo um entusiasta deste assunto. Não foram uma nem duas, mas várias vezes que ele me confessou a vontade de ter como seu epitáfio a seguinte expressão: Aqui jaz Michael M. Paparella: o doutor patogênese! Também dele aprendi a sua melhor e mais abrangente definição: A Patogênese representa a longa e tortuosa jornada percorrida por uma doença desde a sua origem (etiologia) até o seu destino (patologia)! Poderia reunir três artigos daquela época (um original e duas revisões) que foram publicadas na nossa revista e que serviram dois objetivos bem pontuais: (1) revisar com cuidado e profundidade alguns conceitos importantes relacionados à etiopatogênse e tratamento cirúrgico da otite média crônica colestetomatosa: (a) PATOGÊNESE DOS COLESTATOMAS; (b) PROCEDIMENTOS SOBRE O TEMPORAL: Revisando a Nomenclatura; (2) lançar as bases de teorias mais modernas e operacionais sobre a evolução e cronificação dos processos inflamatórios da orelha média: A CLINICALPATHOLOGICAL STUDY OF CHRONIC SILENT OTITIS MEDIA: A preliminary report. Aqui, propus, pela primeira vez no Brasil, algumas hipóteses modernizadoras que radicalmente viriam a modificar, nos anos subsequentes, a maneira de abordar estas prevalentes doenças em nosso meio: • Otite média crônica silenciosa • O Continuum • Modificação da definição da otite média crônica descolando-o da definição clínica/temporal (restritiva) para um abrangente conceito histopatológico. Este tripé conceitual serviu de base para uma série de estudos e hipóteses que foram sendo testadas e aperfeiçoadas ao longo do tempo e à luz de novos conhecimentos. Para tanto, tão logo retornei à Porto Alegre, estabeleci como prioridade a criação de um ambulatório específico ao estudo da otite média crônica abrigado no ambulatório de otorrinolaringologia do Hospital de Clínicas. Ali montei uma estrutura excepcional para o desenvolvimento de estudos clínicos, pois, desde o primeiro paciente atendido, todas as informações pertinentes foram sendo documentadas e arquivadas em um banco de dados especificamente criado para tal finalidade. Este ambulatórios cresceu e ganhou musculatura com a adesão de novos pesquisadores, pós-graduandos e bolsistas sendo rebatizado (com um quê de ufanismo, é verdade) como o Centro de Otite Média do Brasil ou mais simplesmente Com.Br! Voltaremos a falar sobre ele com mais detalhes adiante, mas , por ora retornemos a Ribeirão Como referido anteriormente, desenvolvia minhas atividades de pós-graduação praticamente dentro do Hospital das Clínicas o que era muito conveniente uma vez que ali, concomitantemente, realizava atividades clínicas com pacientes supervisionando médicos-residentes e alunos de graduação.

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Pouco a pouco fui estreitando relações com o pessoal da neurocirurgia do hospital, especialmente com o chefe do setor, Professor Benedito Oscar Colli. Iniciei como colaborador voluntário na sua equipe participando de rounds clínicos e procedimentos cirúrgicos que se situavam na interface das especialidades (tumores do ângulo ponto-cerebelar e acessos à base lateral do crânio). Esta experiência foi fantástica para mim uma vez que ampliava a minha incipiente atuação como otologista para além das fronteiras do osso temporal. A parceria foi tão bem sucedida, que logo em seguida meu status foi ampliado de colaborador voluntário para médico adido do serviço de neurocirurgia. Como já referi, este foi o embrião do meu interesse pela cirurgia da base do crânio e esta parceria teve, pelo menos, três desdobramentos concretos no meu futuro acadêmico e profissional: • Acabei realizando meu doutorado no departamento de cirurgia da USP-Ribeirão Preto sob orientação do Professor Colli. • Retornei à Mineápolis para realização do trabalho micro-anatômico sobre as relações da artéria carótida no interior do osso temporal novamente no laboratório de histopatologia da Universidade de Minnesota. • Anos após, no meu retorno à Porto Alegre, juntamente com meu grande amigo e colega Gérson Maahs e meu ex-aluno e colega Maurício Noschang da Silva, montamos duas equipes de cirurgia da base do crânio. Uma no HCPA junto com o Professor Ápio Antunes e outra em âmbito privado no Hospital Mãe de Deus com o grupo do Dr. Luiz Carlos Allencastro. Por outro lado, já na “cidade”(expressão ribeirão-pretana para expressar o cenário médico fora do âmbito acadêmico da USP – stricto senso), mantive um relacionamento cada vez mais estreito com o Dr. Luiz Carlos Alves de Sousa. Esta afinidade extrapolava em muito a esfera pessoal estendendo-se ao nível acadêmico e associativo. Neste sentido, começamos a agregar ao grupo mais e mais colegas interessados nos nossos projetos de educação médica continuada e formação médica especializada. Fazíamos reuniões semanais ao final do dia na Clínica Paparella que servia como um ponto de encontro para otorrinolaringologistas com algum pendor acadêmico mas que na sua maioria estavam restritos a atividades assistenciais de consultório. Estes encontros eram informais mas estimulávamos sempre a revisão de algum tópico científico mesclada com discussões de casos e curiosidades. É claro que estes debates não raramente estendiam-se ao Pingüim quando então os argumentos tornavam-se calorosos e definitivamente bem mais apaixonados! O fato é que estes encontros formaram o embrião do que viria ser no futuro próximo a Associação Paparella de Otorrinolaringologia ou mais simplesmente APO! A APO foi fundada na primeira metade dos anos noventa tendo o Luiz Carlos como primeiro presidente, cabendo a mim a diretoria científica da recém criada instituição. Ela imediatamente obteve o respaldo da International Hearing Foundation cujo secretário geral era ninguém menos do que o Prof. Paparella!

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Os nossos objetivos iniciais com a APO focavam a (1) Promoção de educação médica continuada; (2) Pesquisa e produção de artigos científicos; (3) Oferecer e compartilhar conhecimentos científicos em Congressos, Simpósios e Jornadas. Ocorre que ela foi tão bem sucedida nesta primeira fase que rapidamente cresceu em ambição, potencial e número de participantes. Na verdade, ela pouco a pouco ampliou as suas metas iniciais agregando um sólido trabalho comunitário com a participação em mutirões e serviços médicos para a população carente onde oferecia assistência médica universal em Otorrinolaringologia e áreas afins. Ainda assim, o que mais caracterizava a associação era o seu grande pendor para desenvolver atividades de filantropia. Talvez o ápice deste processo tenha ocorrido no ano de 1999 quando em uma ação conjunta entre a APO, a International Hearing Foundation, o Rotary Clube de Ribeirão Preto e a Starkey Foundation (maior indústria de aparelhos auditivos do mundo com sede em Saint Paul- MN) organizamos um simpósio internacional de otologia em Ribeirão Preto paralelamente à uma monumental atividade filantrópica na cidade. Sob o ponto de vista científico, no simpósio, conseguimos trazer ao Brasil os principais nomes da Minnesota, Head & Neck Clinic (com a presença do maior de todos: o Prof. Paparella) que se somaram a astros da otologia brasileira numa agenda científica densa e variada. Já na esfera social promovemos a maior doação individual de aparelhos auditivos da história do nosso país realizado por uma instituição não governamental. Ao longo de três dias, nas dependências do teatro municipal Dom Pedro I (palco da doação), mais de 800 deficientes auditivos previamente selecionados e com perfis audiológico devidamente traçados receberam aparelhos novos e potentes das mãos de dezenas de voluntários e colaboradoras numa celebração humanística à caridade, desprendimento e amor ao próximo. As cenas de surpresa e alegria que se repetiam cada vez que um aparelho era acionado não raramente provocavam lágrimas de emoção nos recipientes, familiares e voluntários! O privilégio que tivemos de poder testemunhar tudo aquilo e, mais do que isto, termos colaborado para a construção de um momento tão sublime deixou a todos a certeza de que nossos esforços já haviam sido sobejamente justificados!

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Mas a vida continuava em Ribeirão Preto. De tempos em tempos, tentava retornar à Porto Alegre para visitar a família, rever amigos e analisar o ambiente médico da nossa capital. Naqueles tempos difíceis as longas distâncias entre as duas cidades eram percorridas, ou puramente via rodoviária (24 horas num expresso da viação Cometa com paradas em Curitiba e Florianópolis), ou num circuito misto de táxi, ônibus e avião (ônibus de Ribeirão Preto à São Paulo e avião desde lá à Porto Alegre). Em uma destas vindas cruzei com meu querido amigo Eduardo Pandolfi Passos jovem ginecologista egresso da UFRGS/HCPA em carreira assistencial e acadêmica ascendente. O Eduardo estava, entre outras coisas, participando da elaboração de um livro em parceria com a editora Artes Médicas de Porto Alegre. Seu entusiasmo era contagiante e com grande expectativa aguardava o lançamento do seu primeiro título (viria uma série nos anos seguintes) que se encontrava em fase final de produção: Rotinas em Obstetrícia. O que mais me interessou, entretanto, foi o seu comentário de que os diretores da editora Artes Médicas estavam desenvolvendo uma linha de novos produtos em várias especialidades e que visavam um público alvo razoavelmente diversificado (estudantes de graduação da medicina, médicos-residentes e especialistas) e buscavam no mercado potenciais jovens autores com algum conhecimento, forte tônus e, acima de tudo, muito entusiasmo para conduzir projetos nas suas especialidades. Rapidamente concluí que preenchia aquele perfil e alguns dias após estava reunido no prédio da editora com o seu diretor-presidente Henrique Kiperman e seu filho e braço direito Celso. Ali fui apresentado ao planejamento estratégico da editora para os próximos anos e que focava a produção de livros-textos acessíveis, com índices abrangentes, conteúdos pedagogicamente processados e com graus de complexidade e profundidade crescente. O mais importante, entretanto, era a ousadia em apostar em jovens autores de Porto Alegre (na maioria egressos do Hospital de Clínicas). Ao contrário da realidade daqueles tempos (onde as principais editoras médicas se concentravam no Rio de Janeiro e usavam autores do centro do país) eles estavam convictos de que o aproveitamento de talentos locais criaria uma identificação imediata entre os seus produtos, a sua marca e o potencial mercado consumidor regional. Era uma aposta arriscada, pensei. Mas ao mesmo tempo percebi que diante de mim brilhava uma oportunidade de ouro para desenvolver um trabalho muito interessante onde pudesse aplicar muitos dos ensinamentos que havia aprendido em Mineápolis quando estive envolvido na finalização do monumental livro-texto do Professor Paparella! Confesso que fiquei bastante impressionado com a ousadia da editora e, em especial, com o arrebatamento do seu Henrique, ele mesmo, outrora, um vendedor de livros que anos mais tarde, com muito trabalho e dedicação (e com o inestimável auxílio dos seus filhos Celso e Adriane e o onipresente suporte da sua esposa Leda) ergueria o Grupo A - um império editorial internacional multiprofissional e multimídia. Com um aperto de mãos selamos em tempo recorde uma parceria para a produção do livro Otorrinolaringologia: Princípios e Prática. Mal imaginávamos que a nossa associação iria se consolidar e estender por mais de vinte anos. Sem dúvida alguma, a semente lançada naquele dia encontrou um solo fértil, tendo germinado, crescido

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e frutificado em uma extraordinária abundância de títulos e novos projetos... Ainda assim, o meu maior orgulho é constatar que a minha relação com a querida Família Kiperman extrapolou em muito a esfera profissional, migrando para o âmbito pessoal vindo a sustentar-se sobre um sólido tripé de admiração mútua, profunda amizade e incondicional cumplicidade. Voltei para Ribeirão Preto entusiasmado e repleto de ideias sobre o formato e composição da futura obra. Ainda assim, tinha a perfeita noção de que se tratava de um projeto grande demais para ser tocado exclusivamente por mim. Fiquei pensando em potenciais nomes capazes de me ajudar a completar esta tarefa. Na época não possuía um conhecimento assim tão amplo sobre o cenário otorrinolaringológico nacional, mas tinha a certeza de que este nome teria de, necessariamente, reunir algumas características básicas: (1) estatura científica; (2) disponibilidade; (3) apreço pelo projeto. Também considerava importante que este parceiro atuasse mais no centro do país e, preferencialmente, São Paulo. Sendo o estado mais populoso do Brasil e, por conseguinte, acumulando uma densidade superlativa de otorrinolaringologistas, escolas de medicina e serviços de residência médica, São Paulo era (e continua sendo) o maior e mais valioso mercado a ser explorado. Assim, seria importantíssimo agregar alguém daquele estado que resumisse todas as características que julgava necessárias para “tocar o barco” comigo. Revirando o baú da minha memória, o primeiro nome que lembrei foi o do Prof. Dr. Oswaldo Laércio Mendonça Cruz, à época jovem e promissor professor assistente da disciplina de otorrinolaringologia da toda poderosa USPSão Paulo. Havia sido apresentado ao Laércio quando da minha vinda ao Brasil com o Prof. Paparella um par de anos antes. Curiosamente, coube ao Laércio a missão de nos levar ao aeroporto no final do curso. Lembrava muito bem dele durante o simpósio e, mais ainda, quando chegou ao hotel Cad’oro (pontualmente no horário marcado) num Gol 1986 branco pérola. O Príncipe (apelido pelo qual, justificadamente, atende até hoje!) nos saudou no saguão do hotel impecavelmente trajado de branco (aliás, marca registrada dos médicos paulistas). Após carregar o porta-malas, acomodamonos no flamante Volkswagen e partimos em direção ao aeroporto de Guarulhos. O trajeto de 29 km que em condições normais deveria ser cumprido em 40 minutos (dados que obtive neste momento após uma rápida consulta ao Google maps!) nos tomou quase duas horas devido ao pesado tráfego nas marginais da cidade. Aproveitamos este tempo para falar do que mais no agradava naquele momento: ciência. Ocupando o banco de trás do carro, acompanhei mais como um coadjuvante pouco participativo as conversas que rolavam na frente e as trocas de ideias entre o Professor e o Laércio. Fiquei bem impressionado com as ponderações e conceitos do Laércio e, mais ainda, com os seus conhecimentos sobre a otorrinolaringologia em geral e, mais especificamente, a otologia. Entendi que havia concluído seu curso de graduação na Escola Paulista de Medicina e a residência médica no Hospital de Clínicas da USP. Ansioso por uma formação suplementar, conseguiu a bolsa da Fundação Portmann para estagiar por dois anos em Bordeaux que até hoje representa uma das Mecas da otologia global e um dos destinos mais desejados por jovens otologistas do mundo

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inteiro! Pois bem, após seu período em solo francês, havia retornado à terra da garoa e iniciado uma promissora carreira assistencial e acadêmica na USP. Taí, pensei: vou ligar para o Laércio! Ato continuo e após rápida pesquisa ao número 102-São Paulo (para os mais jovens, o auxílio à lista telefônica) liguei do meu aparelho alugado para a sua casa em São Paulo a fim de fazer um primeiro contato e prospectar do seu interesse em editorar o livro comigo. Sua resposta não poderia ter sido mais entusiasmada e afirmativa. Marcamos um encontro no final de semana seguinte na sua casa em São Paulo para onde rumei em um sábado à tarde num conveniente ônibus da companhia Rápido Ribeirão. É curioso, mas em momentos importantes como este (é claro que a noção desta importância é um fruto que somente será colhido anos após...) lembramos de pequenos detalhes periféricos que nos intrigam... Por exemplo, viajava para participar de uma reunião que poderia impactar profundamente algumas facetas da minha vida acadêmica e daquela jornada minhas mais vívidas lembranças foram um encontro com um grupo de estudantes canadenses durante as 4 horas da viagem de ônibus de Ribeirão à São Paulo, um jantar caseiro maravilhoso preparado pela esposa do Laércio (aliás o primeiro de incontáveis ágapes caprichosamente produzidos pela Maria Luiza – Zinha – desde então!) e de um disco do Vanila Ice que encontrei no quarto do Luís Guilherme (segundo filho do Laércio) que havia sido interditado para que eu o ocupasse na noite de sábado para domingo. Bom, é claro que também lembro que trabalhamos febrilmente na montagem de um índice coerente e de uma lista de colaboradores representativa e cientificamente indiscutível. No domingo à noite antes de nos despedirmos, combinamos um novo encontro presencial que seria realizado no feriado de Páscoa na casa da Dona Amelinha (sogra do Laércio) que morava convenientemente em Batatais, cidade situada a menos de 50 Km de Ribeirão Preto. Depois de várias reuniões chegamos à conclusão que seria interessante reforçarmos nosso lista de editores e decidimos convidar o Prof. Dr. José Antônio Aparecido de Oliveira (historicamente identificado com a pesquisa básica e nome de peso da otorrinolaringologia nacional) para cerrar fileiras conosco. Após muito refletir definimos que nosso sumário seria dividido em quatro grandes secções: otologia, rinologia, laringologia & cabeça e pescoço e temas especiais. Cada uma delas obedeceria a um roteiro pré-definido que partia de um tripé comum: anatomia da região, bases fisiológicas e semiologia. A partir de então listávamos as doenças específicas de cada região segundo sua prevalência. Os assuntos deveriam ser abordados, dentro de cada seção, de forma didática, lógica e organizada, obedecendo a graus de complexidade e de profundidade crescentes criando uma obra de conteúdo amplo, sendo dirigido não somente ao especialista, mas à classe biomédica como um todo. Foi na criação da lista de colaboradores, entretanto, que dedicamos nossos maiores e melhores esforços. Especialistas renomados internacionalmente foram convidados a contribuir naqueles assuntos que mais dominavam, emprestando altruisticamente seu padrão de excelência aos nossos potenciais leitores. Ao mesmo tempo em que contávamos com a colaboração desses profissionais

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de reconhecido saber, buscamos a valorização de colegas emergentes e entusiasmados com os novos rumos assumidos pela nossa especialidade. O resultado final desses esforços de mais de três anos de trabalho foi um livro-texto que mesclava e, por vezes, confrontava a experiência à juventude, o tradicional à vanguarda, o conhecimento básico e imutável à experimentação científica, às nuances de técnica e ao pioneirismo. Depois de mais de três anos de trabalhos, 61 capítulos e acima de setenta colaboradores, lançamos em 1994 no mezanino do Hospital de Clínicas em Porto Alegre a primeira edição do livro Otorrinolaringologia: Princípios e Prática. Nos

anos

seguintes,

com

satisfação,

percebemos que o livro havia sido recebido com entusiasmo pelo mercado e passava a preencher uma vasta lacuna editorial no Brasil que abrangia, como planejado, principalmente estudantes de medicina e fonoaudiologia, médicos-residentes, fonoaudiólogas e especialistas (especialmente os que atuavam fora dos grandes centros). Como comentei anteriormente, o projeto deste livro foi o marco inicial de uma longa relação com a editora Artes Médicas (hoje Grupo A) que se estende até os dias de hoje. O sucesso da primeira edição trouxe-nos, ao mesmo tempo, uma grande satisfação e uma enorme responsabilidade. Em outras palavras, paralelamente à felicidade de acompanharmos nossa obra difundindo-se no cenário acadêmico nacional, perturbava-nos a ansiedade de cumprir um desafio ainda maior e mais complexo: consolidar o livro no mercado produzindo uma 2ª edição mais estruturada, politemática e atualizada.

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Otorrinolaringologia: Princípios e Prática, 2ª edição, chegou em 2006 com mais de cem capítulos e reunindo em torno de 150 colaboradores para dar seguimento a essa trajetória vitoriosa. É importante ressaltar que o conteúdo desta publicação já habitava patamares mais elevados e muito além do que se poderia esperar de uma pura e simples revisão crítica do sumário original. Pelo contrário, ele foi concebido após uma profunda reflexão, em que se buscou ratificar todos os acertos da 1ª edição e corrigir eventuais equívocos. Procuramos dar maior consistência aos capítulos referentes às áreas básicas, priorizando tópicos de anatomia e fisiologia, sem, entretanto, perder o foco na abordagem completa e pragmática de temas prevalentes e relevantes ao cotidiano médico. Agregamos uma série de avanços verificados na Otorrinolaringologia naqueles anos, como a biologia molecular da surdez, a regeneração de células ciliadas, os mecanismos de otoproteção, a autoimunidade, as alergias, a cirurgia endoscópica, a robótica aplicada à medicina, entre outros. Estreitamos laços com especialidades afins, entre elas a clínica médica, a neurologia, a pediatria, a anestesiologia, a estomatologia, a medicina comunitária e a fonoaudiologia. Ampliamos nossa lista de colaboradores, buscando novamente mesclar autores e pesquisadores consagrados com promissores jovens talentos. Enfim, dedicamos grande parte dos nossos esforços para oferecer à classe médica brasileira – e à Otorrinolaringologia em particular – uma obra que celebrava todas as suas monumentais conquistas e avanços. Nos estertores da década de 90, observando uma lacuna no mercado editorial brasileiro que se ressentia da falta de uma obra que abordasse exclusivamente as doenças do ouvido e atendendo a um convite da editora Revinter do Rio de Janeiro, o meu amigo Oswaldo Laércio decidiu que havia

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chegado o momento de se lançar em uma nova e desafiadora empreitada: editar um livro de otologia voltado para o público nacional. É claro que, ao aceitar esta tarefa, ele já sabia que poderia contar com o meu irrestrito apoio e quando me telefonou para contar a “novidade” cumpriu apenas uma formalidade. O convite já havia sido aceito e condicionado à reedição da nossa tradicional e prolífica parceria! A experiência acumulada nos nossos outros projetos foi muito importante na agilização desta obra , uma vez que já dominávamos várias nuances do processo editorial: tínhamos perfeita noção do nosso sumário, conhecíamos exatamente quais os autores mais indicados para cada capítulo e, mais importante, o sucesso das nossas empreitadas anteriores nos dava muito mais autoridade para cobrar o cumprimento rígido de prazos e a observação de um padrão de qualidade superior. Assim o livro “Otologia Clínica e Cirúrgica” foi lançado com grande sucesso em meados do ano 2000. O livro condensava um vasto conteúdo de informações atualizadas cobrindo um largo espectro das patologias otológicas. Um dos seus maiores diferenciais, entretanto, era o fato de ser magnificamente ilustrado. Como exemplo, o capítulo de abertura empregava imagens espetaculares da anatomia do osso temporal extraídas da famosa coleção do Professor Albert Rothon Junior (Gainesville/EUA), assim como as descrições de técnicas cirúrgicas que foram graficamente detalhadas através de espetaculares figuras desenhadas “sob encomenda” por um ilustrador médico profissional. Um último e curioso detalhe sobre este livro era a beleza da sua capa que foi criada pelo famoso artista plástico brasileiro Arcangelo Ianelli, paciente e amigo pessoal do Laércio.

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Por mais que o computador, o ensino à distância, a internet e outras ferramentas tecnológicas tenham, de certa forma, prejudicado o mercado editorial tradicional, o livro (acrescido das necessárias adaptações da modernidade) ainda é o vetor de transmissão de conhecimento mais clássico, confiável e aprovado.

Não!... Nem templos feitos de ossos,

Nem gládios a cavar fossos São degraus do progredir... Lá brada César morrendo: “No pugilato tremendo “Quem sempre vence é o porvir!” 
Filhos do sec’lo das luzes! Filhos da Grande nação! Quando ante Deus vos mostrardes, Tereis um livro na mão: O livro — esse audaz guerreiro Que conquista o mundo inteiro Sem nunca ter Waterloo... Eólo de pensamentos, Que abrira a gruta dos ventos Donde a Igualdade vooul... Por isso na impaciência Desta sede de saber, Como as aves do deserto As almas buscam beber... Oh! Bendito o que semeia Livros... livros à mão cheia... E manda o povo pensar! O livro caindo n’alma É germe — que faz a palma,

É chuva — que faz o mar.

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O Livro e a América (Castro Alves)


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Bem, fechando este novo parêntesis, a vida continuava em Ribeirão Preto. Minha atividade assistencial e de ensino (que era informal junto aos residentes) foi oficializada através da minha aprovação em um concurso público para o cargo de médico-contratado do serviço de otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da USP/RP. Esta mudança de status quo me trouxe um diferencial de prestígio e financeiro uma vez que o salário que passei a perceber era bem melhor do que a bolsa de mestrado que recebia até então. Assim, dividia meu tempo cursando as disciplinas da pós-graduação (fazendo as necessárias para o mestrado e, sempre que possível, adiantando créditos para o doutorado), escrevendo o texto final da minha dissertação, e orientando os residentes no ambulatório de otologia, nos rounds e no centro cirúrgico. É claro que nos finais de tarde, me dirigia até a Clínica Paparella para encontrar os amigos e discutir as nossas futuras ações como Associação. Em meados de 1991, após inventariar minha produção acadêmica em uma reunião com o meu orientador, chegamos à conclusão que estava com meu projeto de mestrado pronto e, portanto, apto para a defesa. Cumprimos todos os trâmites burocráticos junto à Faculdade de Medicina, selecionamos criteriosamente a banca examinadora e, finalmente, agendamos a defesa. Assim em Junho de 1991 perante uma banca examinadora composta pelos Professores Doutores José Antônio Aparecido de Oliveira (orientador), Oswaldo Laércio Mendonça Cruz (Otorrinolaringologia USP- São Paulo) e José Barbieri (Patologia USP-Ribeirão Preto) procedi à defesa pública da dissertação de mestrado intitulada “Contribuição ao Estudo da Otite Média Crônica”. Foi com imensa satisfação e inefável orgulho que, após um fogo cruzado pesado de mais de quatro horas, fui honrado com a aprovação de todos os membros da banca com um unânime conceito máximo (10) acrescido das láureas de distinção e louvor! Que maravilha, pensei. Mais uma etapa concluída com pleno sucesso! Mas, no fundo, no fundo sabia que meu tão sonhado e acalentado objetivo maior ainda estava por vir...

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Esta dissertação, sem dúvida alguma, foi uma dos trabalhos mais importantes que eu já produzi. O seu conteúdo pautou a minha atividade acadêmica e assistencial desde então e, sem falsa modéstia, inaugurou alguns conceitos revolucionários que pouco a pouco foram sendo assimilados pela nossa comunidade científica. Como exemplo, posso citar a teoria do Continuum como hipótese angular na patogênese das otites médias crônicas, a otite média crônica silenciosa, o acesso flexível à orelha média, a interação entre a orelha média e a interna, a ocorrência de patologias otológicas múltiplas, a compartimentalização do espaço intratimpânico, enfim, uma série de ideias que se provaram operacionais ao longo dos anos. As duas principais mensagens, entretanto, contidas na dissertação eram (1) a hipótese do continuum para explicar a patogênese das otites médias. Teoria esta que sugere que todos os subgrupos de otite média (serosa, purulenta, mucoide e crônica) na verdade representam fases distintas de um mesmo processo evolutivo (daí a denominação “continuum”) e que isto ocorreria ao longo de uma série de eventos epiteliais e subepiteliais deflagrados a partir de uma agressão inicial consistente e de natureza diversa; (2) a clara demonstração histológica da existência da chamada otite média crônica silenciosa ou em outras palavras de que a presença de uma membrana timpânica intacta não excluiria a presença de patologias inflamatórias em atividade na fenda auditiva o que de certa maneira redefine as otites médias crônicas independentemente de sua associação com perfuração timpânica, otorréia, ou mesmo de evoluções temporais arrastadas. Discorri sobre estes conceitos em inúmeras ocasiões e nos mais variados fóruns. Em 1992, publiquei em uma das nossas mais prestigiadas revistas, The Laryngoscope, um resumo que ilustrava algumas sequências deste novo modelo. O artigo “Costa SS, Paparella MM, Schachem PA, Yoon TH, Kimberley BP. Temporal bone histopathology in chronically infected ears with intact and perforated tympanic membranes. The Laryngoscope. 1992;102:1229-36” foi extremamente bem recebido pela comunidade científica internacional tendo recebido cotação máxima na resenha do Current Conn’s Opinion daquele ano. Ainda assim, talvez a minha maior contribuição (juntamente com o Prof. Marcelo Miguel Hueb que defendeu sua dissertação de mestrado na USP-RP no mesmo dia pela manhã e que versava sobre otosclerose) foi a de introduzir no Brasil a fundamental importância do estudo da histopatologia do osso temporal. Desde então, temos ilustrado nossos artigos, conferências e capítulos com as belíssimas imagens de cortes anatômicos (com ou sem doenças) trazidas de nossa experiência no laboratório de otopatologia da Universidade de Minnesota. Sem dúvida alguma, até hoje um dos meus temas preferidos é a chamada otopatologia translacional , ou em outras palavras, transportar para o ambiente clínico todas aquelas situações reveladas na intimidade da análise patológica do temporal. Como exemplo, duas das minhas conferências internacionais proferidas neste ano versavam

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diretamente sobre as implicações clínicas dos achados patológicos. Na Universidade de Melbourne onde cumpri período de Professor-Visitante abordei o tema “ Otopatologia Translacional: Do Laboratório para a Prática Clínica.”

Já no tradicional curso de cirurgia otológica da Clínica Causse (Bezier-Sul da França) abordei o tema “Otosclerose: Do laboratório para a Clínica.”

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Até hoje retorno à Minnesota anualmente para estudar e documentar novos casos e o meu fascínio por esta ciência é crescente! No início dos anos 90, com o objetivo de estimular o interesse dos colegas brasileiros pela otopatologia, publiquei com o auxílio do staff do laboratório um esclarecedor artigo de revisão na Revista Brasileira de Otorrinolaringologia intitulado: Laboratórios de Histopatologia do Osso Temporal. Passado, Presente e Futuro. Após a obtenção do grau de mestre, continuei minha rotina no noroeste paulista muito satisfeito com o meu trabalho, mas, ao mesmo tempo, sempre na expectativa de um dia poder voltar à Porto Alegre. Não cogitava, entretanto, retornar à minha cidade natal para cumprir uma agenda estritamente assistencial. Meu regresso, apesar das saudades dos pagos, necessariamente deveria estar vinculado, pelo menos parcialmente, à uma atividade acadêmica de preferência no meu serviço de origem. Em Ribeirão Preto, de certa forma, desenvolvia uma vida universitária, pois já havia sido aceito no programa de doutorado do departamento de cirurgia (com ênfase na neurocirurgia), era médico contratado de um hospital de ponta e mantinha uma produção científica consistente. Lembro bem que em uma das minhas inúmeras vindas à Porto Alegre, tive uma longa conversa com a minha mãe que, muito pragmática, ponderava que já estava com quase trinta anos e ainda longe de atingir uma estabilidade financeira. Citava como exemplos alguns colegas de turma que, logo após o final da residência, já haviam instalado seus consultórios e, felizes, nitidamente prosperavam em suas clínicas. Retruquei a ela, que considerava a felicidade um conceito muito abstrato (aliás, longe de descobrir a América com esta observação) e que as pessoas aparentemente semelhantes poderiam ser felizes de maneiras diferentes. Por exemplo, se para um colega meu a felicidade estava traduzida em uma agenda concorrida ou em um carro novo, para mim, naquele momento, ela assumia outras formas como um título acadêmico obtido, o convite para uma conferência nacional ou um novo artigo publicado em uma revista de prestígio... Absolutamente não me importava de ainda habitar uma quitinete alugada e pilotar meu flamante Chevette azul. Num dia de semana qualquer, mirava despretensiosamente o mural de avisos do departamento de Oftalmo e Otorrinolaringologia da USP-RP quando me deparei com um edital recrutando candidatos para um concurso público a fim de preencher uma vaga docente de Otorrinolaringologia na Universidade Estadual de Londrina (UEL) – Paraná. Fiquei bastante animado em participar, no mínimo por duas importantes razões: 1) tentar uma aprovação a fim de engrossar meu currículo no quesito concursos públicos; 2) Treinar e testar minhas aptidões acadêmicas e o meu grau de competitividade em uma seleção para valer. Ato contínuo, fiz minha inscrição e encaminhei os documentos necessários via Sedex para o protocolo da Universidade, recebendo a confirmação da minha inscrição por telegrama alguns dias após. Não tive nem tempo para me preparar e três semanas depois, abarrotei duas malas com livros e artigos que imaginei fossem importantes para a prova com consultas e embarquei em um ônibus noturno semi-leito para Londrina.

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Ao chegar pela manhã, consegui um pequeno quarto de hotel perto da rodoviária onde esparramei no chão meus livros e artigos sem não antes pregar na porta um oportuníssimo aviso de não perturbar...Fiquei agradavelmente surpreso com Londrina. A cidade limpa e organizada me lembrava muito Ribeirão Preto em uma versão compacta. O campus da UEL também me impressionou, muito bonito e arborizado novamente me trouxe boas lembranças da própria USPRP. Na hora do concurso, fui apresentado aos membros da banca examinadora que era presidida pelo Prof. Dr. Marcos Mocellin, (Professor Titular da Universidade Federal do Paraná). Os outros dois componentes eram um Professor da Oftalmologia (cujo nome não recordo) e o Professor Orley Ferraz (chefe da otorrinolaringologia da universidade). O tópico sorteado para a prova escrita foi o de paralisia facial. Já na prova didática tive de discorrer sobre obstrução nasal (a área de expertise do Prof. Mocellin – o que aumentou exponencialmente a minha responsabilidade). Lembro que, munido de um estojo colorido de lápis hidrocor, preparei de última hora uma sequência de lâminas de retroprojetor a fim de oferecer suporte didático para a minha apresentação. Ao término de dois dias de provas, foi promulgado o resultado e havia obtido, mais do que a aprovação, o concorrido primeiro lugar. Acabei não assumindo a posição acadêmica para qual havia sido selecionado, mas confesso que balancei nas minhas convicções e seriamente considerei a possibilidade de me instalar em Londrina. Deste episódio, acabei trazendo uma honrosa aprovação em primeiro lugar em concurso público para uma posição acadêmica numa instituição de prestígio, a descoberta e posterior consolidação de uma amizade fraterna e duradoura com os Professores Mocellin e Ferraz e uma satisfação maiúscula de ter enfrentado com altivez e vencido com desenvoltura mais um grande desafio! Na sexta-feira à noite embarquei novamente no semi-leito agora de volta a Ribeirão Preto e aproveitei o percurso para refletir sobre a vida, minhas escolhas, ambições, projetos e devaneios. Repensava minhas estratégias, recordava o passado, analisava o presente e tentava desenhar o meu tão imaginado futuro... Embalado pela suspensão a ar do coletivo adormeci e sonhei. Sonhei que estava passeando de carro num belíssimo sábado à tarde de sol na minha amada Porto Alegre. Sonhei com as nossas maravilhosas e divertidíssimas festas de natal em família cercado pelos meus queridos e hilários irmãos e primos. Sonhei com os suculentos churrascos de final de tarde regados a cerveja na companhia dos meus melhores e mais próximos e caros amigos. Sonhei com um sábado à noite no bar Sargent Pepper ouvindo uma banda cover dos Beatles e tomando um Johnny Walker Red num copo alto, borda fina, um pouco de água e muito gelo. Sonhei que estava prestes a, quem sabe, realizar o meu maior sonho... O solavanco do ônibus no quebra-molas me despertou bem na entrada da rodoviária de Ribeirão e me trouxe de volta à realidade. Mas que péssima hora para me acordar, pensei. Enquanto resgatava minhas pesadas malas cheias de livros ainda tive tempo de refletir: a luta continua companheiro!

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A melhor maneira de prever o futuro é criá-lo.

E quanto ao Futuro? Bem, o futuro não nos compete prevê-lo, mas torná-lo possível.

Peter Drucker

Novamente em Ribeirão, cumpria minha rotina semanal com prazer e alegria, pois no fundo considerava todo aquele período como um rito de passagem. Curiosamente a desejada “terra prometida” era a minha própria da qual havia saído por livre e espontânea vontade anos antes! Procurava aproveitar todas as oportunidades para aprender e me aperfeiçoar. Assim, buscava enxergar as qualidades pessoais e profissionais que mais admirava nos meus professores da USPRP. Tentei incorporar, em escala menor e pelo menos parcialmente, vários destes diferenciais. Poderia citar como maiores exemplos a fantástica didática do Prof. José Antônio (que foi burilada ao longo de vários anos como um dos professores de cursinhos pré-vestibulares mais populares da cidade), o seu apreço pela ciência básica que cultivava desde os seus tempos na fisiologia assistindo o Prof. Ricardo Marsellan, e a sua atávica paixão pela anatomia comparada. Do Prof. Harley Biccas (Professor Titular da Oftalmologia e pesquisador na área de estrabismo reconhecido mundialmente) admirava a erudição, genialidade e fluência. Aliás, o Prof. Harley, sempre mergulhado nos seus cálculos de ângulos e prismas parecia mais uma matemático do que médico e gozava de uma certa fama de inacessível. Pois acabei conhecendo-o melhor através de amigos comuns fora do ambiente universitário e cheguei até em algumas ocasiões a frequentar a sua bela casa em um condomínio de luxo na Ribeirânea. Nestas ocasiões, adorava puxar conversa com ele quando então podia apreciar a sua monumental inteligência e o estilo bastante peculiar. Acho que ele também vislumbrava algumas qualidades em mim, pois em uma ocasião no meio de uma festa (na qual eu não estava presente) comentou com amigos que, do alto da sua experiência médica e docente, previa que meu futuro profissional seria de destaque. Desafiado se poderia documentar esta afirmação, ele tomou um pedaço de papel e reproduziu com sua própria letra o que acabara de dizer. Este bilhete chegou às minhas mãos pouco tempo depois e ao revelar seu conteúdo fiquei paradoxalmente muito feliz e extremamente ansioso. Feliz pelo reconhecimento. Ansioso pela responsabilidade...Hei de honrar este bilhete, pensei. Vinte anos se passaram e em novembro de 2012, estava no Centro de Convenções de Recife na assembleia geral da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia quando foi proclamado o resultado da eleição geral para Presidente da entidade. Eu havia vencido a chapa de Brasília sendo eleito com a impressionante margem de 95% dos votos válidos! Que júbilo. Que felicidade. Que espetacular reconhecimento dos meus pares! Por outro lado, que monumental tarefa a de tentar retribuir tamanha confiança depositada.

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(ou carta para um filho que nunca tive)

No avião, voltando para Porto Alegre, vim inventariando minha trajetória quando me lembrei do bilhete do Prof. Harley. Ele nem deve se lembrar de mim, pensei, mas tinha o dever moral de tentar honrar aquela dívida. Na segunda-feira pela manhã meu primeiro telefonema não foi de agradecimento aos parceiros que me apoiaram e trabalharam pela minha candidatura. Tampouco para os bons colegas da chapa de Brasília que havia acabado de vencer. Minha primeira ligação foi para a sala do Prof. Harley no décimo-primeiro andar do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto. Reconheci de imediato a sua voz e me apresentei. Ato contínuo, expliquei o motivo da minha ligação. Depois de alguns minutos de animada conversa recoloquei o telefone no gancho, e me senti feliz. Duplamente feliz: por ter resgatado aquela dívida de confiança e por perceber que, incrivelmente, mesmo após tantos anos, ele ainda perfeitamente lembrava do profético bilhete... Já a Professora Wilma Anselmo e o Professor Benedito Oscar Colli comungavam de qualidades e características muito parecidas. Entre elas, a obstinação na perseguição dos seus projetos, a garra com que buscavam suas conquistas, a energia que colocavam a serviço dos seus departamentos e, acima de tudo, o imenso amor que nutriam pelo Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto e pela Faculdade de Medicina da USP! Em um sábado pela manhã, ainda me espreguiçava preguiçosamente na cama quando o meu telefone tocou. Atendi apressado, pois não costumava receber chamadas àquela hora. Do outro lado da linha, uma voz conhecida. Meu amigo Celso Dall’Igna, médico contratado da otorrino do HCPA. Entre surpreso e curioso pela inusitada, ligação perguntei do que se tratava, no que ele respondeu: - Foi publicado na Zero Hora de hoje edital abrindo inscrições para concurso público com vistas a preenchimento de vagas em diversos níveis funcionais e setores do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Entre elas, uma oportunidade dourada e sob medida para ti: uma vaga para médico contratado do serviço de otorrinolaringologia do HCPA! Fez-se um silêncio ensurdecedor, que foi quebrado com sua observação final: acho que está para ti! Agradeci a sua atenção e gentileza e tão logo desliguei, o telefone voltou a tocar. Desta vez era meu grande amigo e irmão Eduardo Pandolfi Passos. Nem deixei-o falar, pois minha pergunta subentendia que já estava sabendo do concurso: e aí Eduardo, o que tu achas? Sua resposta me emociona até os dias de hoje... – O que eu acho? Eu acho que chegou a hora de começares a pensar em voltar! Como é bom ter amigos como o Celso e o Eduardo, foi a primeira coisa que pensei. Logo a seguir, caiu a minha ficha. Minha hora de voltar para casa? Como tinha meus documentos e currículo atualizados por conta do concurso em Londrina,

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encaminhei toda a minha papelada com presteza ao setor de concursos do HCPA. Recolhi as devidas taxas, chequei o programa e passei a preparar os tópicos do concurso com afinco e profundidade. Poucas semanas depois, estava sentado em uma sala do HCPA juntamente a vários colegas para realizar a prova escrita (o edital previa uma prova escrita e a análise curricular). Conjecturei , novamente, que todos estavam ali perseguindo as suas aspirações, metas e seus legítimos sonhos. A questão é que os meus próprios anseios restavam entre eles, e ninguém (mas ninguém mesmo!) havia se preparado tanto para transformar este sonho em realidade como eu! No final de semana seguinte já festejava num churrasco em família a aprovação e a obtenção do primeiro lugar com razoável margem de segurança (e consequentemente da vaga!). Minha mãe, entre orgulhosa e muito feliz, já reorganizava o apartamento na rua Pedro Américo na expectativa de receber de volta o seu filho pródigo que estava distante por tanto tempo. É claro que naquele primeiro momento não cogitava morar em outro lugar até porque voltaria para minha cidade com várias conquistas acadêmicas mas literalmente com uma mão na frente e outra atrás! Ainda meio sestroso (afinal, reza o ditado, que quando a gorjeta é demais o santo desconfia!) não me demiti mas decidi solicitar uma licença para tratamento de interesses ao Hospital das Clínicas de Ribeirão, no que fui prontamente atendido. Optei também por manter minha quitinete montada na cidade, só por via das dúvidas e peguei o rumo do Rio Grande no velho esquema táxi-ônibus-avião. Chegando em Porto Alegre já no dia seguinte, ansioso, me apresentei ao setor de recursos humanos para uma gentil entrevista conduzida por uma jovem psicóloga do hospital (até hoje cruzo com ela nos corredores do Clínicas). Após o sinal verde da psicologia fui lidar com os trâmites burocráticos propriamente ditos. Um funcionário do RH me deu uma série de informações em um tutorial maçante e prolongado (como se eu estivesse entrando pela primeira vez na vida naquele hospital). Aguardei pacientemente ele concluir minuciosamente todas as suas explicações (que funcionário eficiente, pensei!) e finalmente recebi o calhamaço de folhas do contrato. Enquanto folhava-o meio despretensiosamente o funcionário continuava na sua homilia até que um dos seus comentários despertou toda a minha atenção. Pois é, ponderava ele, o senhor está assinando um contrato de trabalho temporário. Como assim, temporário, perguntei? Ninguém havia me falado deste “detalhe” até então. Ele explicou que o meu posto de trabalho estava condicionado à uma licença de um dos médicos-contratados que havia assumido uma vaga de Professor-Substituto no departamento de Oftalmo e Otorrinolaringologia da UFRGS (também temporária e que poderia ser renovada de seis em seis meses com duração máxima de dois anos!). Obviamente, suspendi a assinatura do contrato, agradeci a sua dedicada atenção e fui direto à sala da chefia do serviço de otorrino na zona 19 onde por sorte encontrei reunidos o saudoso Prof. Schermann (chefe do serviço) e seu braço-direito meu querido amigo Prof. Simão Piltcher. Expliquei a situação e ponderei que, por

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mais que eu gostasse do HCPA, não poderia em hipótese alguma trocar um cargo com estabilidade em Ribeirão Preto por uma aventura de, no máximo, dois anos em Porto Alegre. Eles acharam até graça da minha preocupação e argumentaram que dezenas de médicos haviam ingressado nos quadros do hospital sem terem prestado concurso público. Assim, caso houvesse alguma colisão de cargos e funções, não seria logo eu (que enfrentara e vencera todas as etapas legais para uma contratação) que viria a perder o emprego! Pensei muito sobre a situação e, apesar de bastante desconfiado, achei que a opinião dos Professores (que por conhecê-los bem sabia ser 100% honesta) fazia sentido. Vou assinar, conclui, mas gozarei minha licença em Ribeirão Preto até expirar o último prazo! Seguiram-se dois meses muito atribulados, pois além de ingressar como contratado do Clínicas, tive de começar a organizar finalmente meu próprio consultório. Por sorte, quando ainda estava em Mineápolis, meus dois irmãos haviam reestabelecido seus gabinetes de odontologia e cardiologia em um apartamento térreo (que fora reformado por eles para acomodar uma pequena clínica) pertencente ao meu pai que condicionou a doação da área à reserva de um espaço onde eu, futuramente, poderia atender. Até meu nome com a respectiva especialidade já figuravam em uma placa estrategicamente colocada no parede frontal da clínica. Estas facilidades eram para lá de adequadas para aquele nosso momento profissional. Dividia uma sala com meu irmão Amir, a recepção era centralizada e comum para todos nós, e o Emir atendia na outra extremidade. Dispúnhamos de uma ligação na parte de trás da clínica (entre os consultórios) que levava à uma pequena cozinha e, não raramente, nos encontrávamos ali para um café entre consultas. Paralelamente à constituição física do consultório, precisava obviamente de recheá-lo de pacientes. Consciente de que meu movimento de particulares não seria suficiente para pagar nem o telefone da clinica, sai em busca de credenciamentos para turbinar minha agenda. Assim pouco depois já atendia o convênio do IPE (Instituto da Previdência do Estado), Cassi (Caixa do Banco do Brasil) e, bem mais tarde, UNIMED-Porto Alegre. As coisas caminhavam bem. É claro que o que mais almejava era uma posição acadêmica Stricto Senso (preferencialmente na UFRGS), mas trabalhar regularmente com os médicos-residentes e, de vez em quando, substituir um Professor com um grupo de alunos de graduação já me era pra lá de especial. Pouco a pouco fui ganhando confiança de que todas aquelas recentes e pequenas conquistas haviam vindo para permanecer e que passava a, finalmente, construir uma carreira assistencial e acadêmica sólidas e mescladas em doses corretas. Meu prazo de licenciamento estava se esgotando e decidi, finalmente, que havia chegado a hora de efetivar minha demissão em São Paulo e apostar todas as minhas fichas na minha nova, estável e promissora carreira em Porto Alegre. Ledo engano...

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Viajei para Ribeirão Preto para definir algumas pendências por lá. É claro que não precisei ensaiar nenhuma despedida solene, pois além de estar regularmente inscrito e cursando o doutorado na USP-RP, não havia abdicado das minhas atribuições na Associação Paparella, tampouco do convívio regular com as minhas fraternas amizades. Aliás, guardo Ribeirão Preto no coração até hoje. Nutro um carinho imenso por tudo aquilo que esta bela cidade e seu querido povo representaram em minha vida. Ela foi extremamente tolerante comigo e, admito, que nos meus primeiros meses por lá retribuiu com calor a minha frieza, com compreensão a minha ansiedade e com paciência a minha injustificada arrogância. Enfim, a cidade me fez crescer (bem) mais maduro e melhor. Pois, bem passei no RH do Hospital das Clinicas (como curiosidade, em Ribeirão o Hospital Universitário é chamado de “das Clínicas”. Em Porto Alegre “de Clínicas”) e formalizei a minha demissão. Dali me dirigi à imobiliária responsável pelo meu apartamento e rescindi o contrato devolvendo o imóvel. No sábado esvaziei minha quitinete e supervisionei pessoalmente minha pequena mobília ser acomodada em um caminhão de mudança com destino à Porto Alegre. No domingo à noite já estava definitivamente instalado na casa da minha mãe em Porto Alegre. Segunda-feira pela manhã, me dirigi ao HCPA. Estacionei meu carro e, como de praxe, segui à portaria lateral para dar entrada no meu ponto. Quando cheguei ao quadro de cartões, o meu não se encontrava e no seu lugar havia um pequeno bilhete com a lacônica e ameaçadora mensagem: compareça com urgência no setor de recursos humanos. Sem demora, subi ao segundo andar pelas escadas e entrei na sala do RH em busca de informações adicionais. Fui delicadamente recebido por uma funcionária que me transmitiu a terrível notícia de que havia sido demitido de forma irrevogável por excesso de pessoal! Assim que recobrei a cor e, minimamente, o ânimo sai correndo pelo corredor dos fundos do hospital e desci pelo elevador até o subsolo. Adentrei mais uma vez a zona 19 em pânico rompendo a preguiçosa tranquilidade daquela segunda-feira. Encontrei o Dr. Schermann que, tanto quanto possível, tentou me acalmar para logo após explicar a situação. O fato era que um dos nossos médicos contratados havia sido guindado ao posto de professor substituto da disciplina de otorrinolaringologia da UFRGS (bem, disto eu já tinha pleno conhecimento). Esta posição poderia ser mantida no máximo até dois anos com renovações semestrais (que eram automáticas uma vez havendo interesse das partes). Ocorre que a universidade, naquele semestre, havia mudado as suas normas, exigindo a partir de então a realização de um concurso público mesmo para os cargos de professores temporários. Ciente de que (ao contrário de mim!) nunca deveríamos trocar o certo pelo duvidoso, o colega que ocupava a posição na disciplina imediatamente se exonerou e, ato contínuo, solicitou seu retorno imediato ao HCPA. Lembrei-me das minhas aulas de física no colégio Anchieta quando aprendi que dois corpos sólidos não podem ocupar a mesma posição no espaço e, para fazer uma longa história breve, literalmente “dancei”! Na verdade, não culpei ninguém pelo imbróglio. Fiquei realmente decepcionado comigo mesmo e como pudera, irresponsavelmente, trocar uma

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situação de risco no Hospital de Clínicas de Porto Alegre pela minha estabilidade no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto! Que mancada, pensei (para ser pra lá de eufêmico!). Tentando me consolar o Dr. Schermann ponderou que eu poderia prestar a seleção com altas chances de sair vitorioso (no que ele tinha razão), mas tratava-se de um cargo temporário e, apesar de ter grandes chances, enfrentava riscos reais de não galgar sucesso. Nunca tive receio de concursos. Ansiava na verdade por realizá-los a fim de atingir meu objetivo maior, assim, não era o processo seletivo que me inquietava, mas o fato de jogar todas as minhas fichas em um cargo temporário. Mas não havia opções, tinha de encarar a seleção... Minha sorte era que contava com um currículo pronto e atualizado. Somente acrescentei a aprovação em primeiro lugar no fatídico concurso para médicocontratado do Clínicas e entreguei toda a minha papelada no quarto andar da reitoria na esperança de que aquele processo ocorresse com celeridade. Não esperava, entretanto, que justo naquela semana eclodisse uma das mais prolongadas greves gerais já ocorridas na Universidade nas últimas décadas.... Todos os processos internos foram interrompidos e amarguei uma espera de mais de um semestre para que as atividades fossem retomadas na plenitude. Entendia os motivos da greve, mas lamentava o meu azar de ver que bem na minha hora os meus futuros colegas haviam decidido que estava mais do que na hora que seus vencimentos fossem repostos após anos de corrosão e perdas salariais provocadas pelos planos econômicos “Bresser”, “Verão” e “Collor 1”! Muito decepcionado, consideravelmente preocupado e basicamente desocupado, saí em busca de alternativas. O consultório se mantinha com encaminhamentos dos meus irmãos e parentes, de referências da vizinhança (pois estava localizado exatamente na rua onde havia crescido) e na tradicional propaganda boca a boca. Através de contatos consegui uma posição docente para ministrar a cadeira de otorrinolaringologia no recém-criado curso de fonoaudiologia do Instituto Metodista (IPA). Bom já tinha conseguido preencher minhas quintas-feiras à noite, mas ainda restavam várias brechas ao longo da semana! Após um semestre, a Universidade finalmente retornou às suas atividades. É claro que durante esta retomada o concurso para professor substituto da otorrino não fazia parte das suas prioridades. Assim, ainda aguardei mais dois ou três meses para finalmente voltarmos à pauta. Uma vez constituída a banca examinadora, ficamos sabendo que o concurso constaria exclusivamente de uma análise curricular dispensando a realização de outras provas. Desta vez, não demorou muito para sair o resultado e, novamente, havia sido aprovado em primeiro lugar. Recebi a noticia com uma alegria contida e indisfarçável apreensão, afinal não sabia por quanto tempo permaneceria no quadro de docentes da UFRGS. Conversando com amigos cheguei à conclusão que, de qualquer forma, deveria aproveitar ao máximo aquele momento. Dane-se o futuro, pensei. Que este instante seja eterno enquanto dure...

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A verdade é que de fato durou muito pouco. Depois de um único semestre recebemos a noticia de que a vaga seria revogada e um novo concurso instituído para preenchimento de uma posição docente no departamento. A diferença é que agora seria, finalmente, para uma vaga permanente. Na prática, voltei à estaca zero, mas com boas perspectivas. Fiquei muito mais animado pela possibilidade de encerrar este calvário de uma vez por todas do que triste pelo fato de, novamente, ceder minha posição... mas agora era para valer. Tudo ou nada. A sorte estava lançada e todas as minhas fichas restavam sobre a mesa. Preparei aquele novo concurso como nunca. A vaga não contemplava uma subárea, mas a otorrinolaringologia como um todo. Vários candidatos, um programa extenso, quatro provas (prática, didática, escrita e de títulos) e uma pressão quase insuportável (ao menos para mim que despontava como um dos principais favoritos)! A banca examinadora foi composta pelos Professores Arnaldo Linden, Luiz Lavinsky e Simão Piltcher. Lembro bem que o ponto da prova escrita foi de Paralisia Facial e sorteei o tópico “Massas Cervicais” para a prova didática. Todos ali sabiam que este tema era o mais distante possível da minha prática clinica e acadêmica, mas não havia tempo para lamúrias ou ranger de dentes! Nas vinte e quatro horas que antecederam a aula preparei uma resenha muito consistente sobre o assunto (que na verdade, descobri ser apaixonante!) e, ao contrário do que todos que conheciam a minha trajetória imaginavam (que fosse me desculpar por não dominar a matéria ou lamentar a imensa desfortuna no sorteio!) abri a minha a aula com uma improvável, entusiasmada e sincera introdução: “as massas cervicais constituem-se em um dos capítulos mais fascinantes da patologia otorrinolaringológica! Aqui o médico exerce a sua ciência na plenitude, fazendo às vezes de clinico astuto, microcirurgião delicado e cirurgião radical!” Ponto para mim. Nota dez nas provas didática, escrita e prática! Deixei de gabaritar o concurso por ainda não ter defendido o doutorado à época. Mas a noticia da minha aprovação com o primeiro lugar e a tão sonhada vaga de docente permanente da disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul foi absolutamente redentora! Depois de percorrer um caminho difícil e por vezes penoso por vários anos, finalmente havia chegado ao meu objetivo maior. Refleti várias vezes sobre o encanto desta travessia e de como, ao longo do percurso, misturei, conflitei meus sentimentos, revezando fortalezas e fraquezas, certezas e incertezas, entusiasmos e desânimos, alegrias e tristezas, fracassos e triunfos. Dizem que a arte imita a vida. Penso que fragmentos da vida imitam a vida, pois hoje analisando esta história retrospectivamente nada me parece mais especial e humano do que sentir este banho de adrenalina e ansiedade quase insuportáveis que quando bem elaboradas e traduzidas em energia viva formam o combustível e o gatilho para detonar atitudes positivas capacitando a transformação dos nossos mais desvairados sonhos em flamantes realidades. Estes desafios, não tão somente os vencidos, mas principalmente os altivamente enfrentados, constituem-se no fermento e, em certos aspectos, no tempero das nossas

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existências. Em outras palavras, os agentes catalizadores na busca da felicidade, da harmonia, do bem-estar e da tranquilidade partilhada por aqueles que, mais do que com a vitória ou os resultados, guardam a capacidade de vibrar e estão intransigentemente comprometidos com a perseguição dos seus projetos. Talvez este seja, afinal, o tão perseguido, almejado e celebrado sentido das nossas vidas. Cheguei à óbvia conclusão de que mais importante do que concretizar objetivos é a capacidade de continuar sonhando e identificando novas metas, traçando estratégias de ação e galgando novas e, por nossa maneira de ser, efêmeras glórias. E assim, numa sucessão de erros e acertos, crescemos e progredimos, tentando instilar, sempre que possível, uma dose de loucura na nossa conhecida, velha e reacionária prudência! E é exatamente isso que a Bíblia nos ensina na carta de Laudicéia:

“ “

SEJA QUENTE OU SEJA FRIO. NÃO SEJA MORNO, SENÃO TE VOMITO

APOCALIPSE 3:16

É preferível o erro à omissão; o fracasso ao tédio; O escândalo ao vazio.

Ninguém narra o ócio, a acomodação, o não fazer, o remanso.

Afinal, a rotina, a mesmice e a pasmaceira nunca construíram biografias!

Nizan Guanaes

Ingressei no corpo permanente de docentes da UFRGS como Professor Auxiliar de Ensino (cargo para o qual havia realizado o concurso), mas como já havia concluído o mestrado, imediatamente fui guindado ao posto de Professor Assistente I. Nem mesmo cheguei a progredir à Assistente III por tempo de serviço, pois antes do prazo já pulava a Adjunto I por titulação (uma vez que obtive o grau de Doutor em Medicina em 1996 - antes de completar o segundo biênio -). Estreei com força total nas atividades de Graduação (como não poderia deixar de ser, afinal foram tantos anos para chegar até ali...). Como era o mais novo membro do Departamento assumi de pronto a regência da Disciplina de Otorrinolaringologia, função na qual permaneci por mais de uma década. Como regente, minha primeira ação foi radicalmente modificar nosso plano de ensino (que já conhecia muito bem desde meu período de substituto) propondo algumas alterações metodológicas profundas e tentando modernizar as técnicas e ferramentas de transmissão de conhecimento. Em

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consonância com os demais docentes da disciplina MED 663, definimos objetivos claros a serem atingidos pelos alunos ao final do semestre e listamos um conjunto básico de conhecimentos e habilidades teórico-práticas a serem trabalhadas. Também descrevemos uma lista mínima de atitudes as quais deveriam ser observadas pelo corpo discente e, entre elas, algumas inegociáveis: 1. 1. Estabelecimento de uma relação médica com o paciente adequada. 2. 2. A rígida observação dos preceitos e normas éticas envolvidas no exercício da medicina (sigilo, privacidade, respeito aos direitos do paciente, etc...). 3. 3. Reconhecimento das inúmeras interfaces, o alcance e as limitações da especialidade. Reorganizamos a sequência de conteúdos mesclando aulas expositivas tradicionais, com práticas de ambulatório (com os alunos divididos em pequenos grupos), discussões de casos clínicos e, sempre que possível, demonstrações cirúrgicas. Finalmente, fizemos algumas modificações no sistema de avaliação levando em consideração a frequência e participação nas aulas práticas, mas ainda mantendo um peso considerável na prova escrita para composição do conceito final. Sempre acreditei no valor da avaliação formal e escrita. Desde a minha época de aluno estudava diariamente em doses “homeopáticas” tentando atualizar os conteúdos aprendidos ao longo das aulas. Ainda assim, tinha plena noção da importância das provas de final de semestre que exigiam doses extras de dedicação e muita preparação a fim de sedimentar o conhecimento e galgar aprovação. Sempre fui um aluno dedicado e lembro-me de varar noites a fio estudando sozinho ou com um grupo de colegas para testes das mais diferentes matérias. Não guardo nenhuma sequela por todas aquelas noites mal dormidas nem tampouco trauma de alguns mestres mais severos e/ou inflexíveis. Muito antes pelo contrário, só tenho o que agradecer por ter sido demandado ao extremo durante todos os seis anos da faculdade de medicina. Sendo assim, e com todo devido respeito às novas linhas pedagógicas, sou alinhado às escolas que mantém níveis de exigência superlativos principalmente em se tratando de alunos do curso de medicina. Neste sentido, jocosamente, sempre comento com os próprios estudantes da UFRGS, que eles se comportam como massa para fazer pão: quanto mais são sovados, mais crescem! Tenho a noção de que não sou, nunca fui e tampouco quero vir a ser um Professor que esbanje simpatia, mas tenho um método de ensino que tenta priorizar a didática (nas aulas expositivas) e a repetição (nas aulas práticas). Expandindo um pouco estes conceitos, considero que as aulas expositivas são excelentes oportunidades para introduzir assuntos e despertar o interesse do aluno sobre os temas abordados. Para tanto, o professor deve oferecer um material caprichosamente produzido tanto no seu conteúdo quanto na forma. A atualização deve ser constante principalmente nos dias de hoje quando os alunos estão a apenas um clique de montanhas de conhecimento e informações (nem sempre de qualidade, é verdade...). Quanto às aulas práticas, criei

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um documento chamado de “guia da anamnese” (hoje bastante difundido entre gerações de alunos) que funciona como um roteiro para obtenção da história e exame-físico em otorrinolaringologia. Exijo que esta cartilha seja repetida na íntegra em todos os atendimentos clínicos, sem concessões, improvisos, atalhos ou elaborações individuais. Explico que o caminho do conhecimento médico (à minha visão pessoal) é o estudo e a experiência clínica, e esta advém da rotina. Tento transmitir aos meus alunos e residentes que ao final de um dia de consultório cheio, o bom profissional deve sentir-se absolutamente entediado por ter repetido tantas vezes quantas necessárias uma mesma ordenação de coleta de dados que possam interessar ao raciocínio diagnóstico. Da mesma forma, o exame-físico deve respeitar uma rotina (quase) litúrgica obedecendo sempre uma sequência pré-estabelecida. Esta sequência só deverá ser modificada nos casos de urgências ou em algum atendimento infantil onde o choro possa atrapalhar a qualidade do exame de alguma região (a otoscopia como exemplo-). Exercer a rotina Ad Nauseam, eis um dos segredos de um bom atendimento! Agindo desta forma o iniciante cumprirá algumas etapas até aprimorar a sua prática clínica: 1. Estabelecimento de um padrão geral de normalidade 2. Perceber um padrão anormal ou atípico 3. Discriminar a anormalidade (através dos exames clínicos e complementares direcionados) 4. Efetivar o diagnóstico 5. Desenhar um plano de atuação individualizado. A tal da experiência, até então não comentada, advirá após vários anos de exercício, sequencias de casos e, infelizmente, uma série de insucessos! Este projeto de ensino foi tão exitoso que sua estrutura geral é mantida até hoje (obviamente com necessárias adequações) com índices de aprovação superlativos nas avaliações do corpo discente.

GOOD JUDGEMENT COMES FROM EXPERIENCE,

WHICH COMES FROM BAD JUDGEMENT!

Michael Hawke

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Minhas atividades de extensão foram concentradas quase exclusivamente no programa de residência médica do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital de Clínicas onde desde o início constituí uma equipe própria dentro da subárea de otologia. Por historicamente nutrir uma grande afinidade e admiração pelo Prof. Arnaldo Linden, nossa aproximação foi natural e passei a auxiliálo em duas das suas maiores paixões: (1) Banco de Homoenxertos e Próteses para reconstrução parcial e total da cadeia ossicular do ouvido médio; (2) Programa de Ensino e Treinamento em Cirurgia Otológica. Os desdobramentos desta parceria perduram até os dias de hoje. Infelizmente o Banco de Homoenxertos (que coletava dura-máter e tecido ósseo humano para reconstruções ossiculares) foi completamente desativado pela impossibilidade de controlar-se adequadamente o primer do vírus transmissor da doença de Creutzfeldt-Jacob. Já o processo de confecção das delicadas próteses ossiculares parciais e totais (que substituem os ossículos da orelha média - quando danificados por doença ou trauma - possibilitando a recuperação de perdas auditivas condutivas) foi sendo aperfeiçoado ao longo dos anos tendo recebido recentemente um monumental impulso pelo estabelecimento de uma parceria institucional entre a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Hospital de Clínicas de Porto Alegre e a PROMM indústria de materiais cirúrgicos. No convênio celebrado entre as partes o desenvolvimento das próteses e a propriedade intelectual são exclusivos do HCPA/UFRGS. Já a fabricação e comercialização ficarão a cargo da PROMM com o pagamento dos respectivos royalties. Assim encontra-se em fase final de aprovação pela ANVISA o primeiro conjunto de próteses de reconstrução ossicular produzida no Brasil à base de titânio (componente sabidamente biointegrável e biocompatível). O Programa de Ensino e Treinamento em Cirurgia Otológica tem como objetivos o conhecimento detalhado da anatomia do osso temporal e a possibilidade de simular procedimentos otológicos complexos em peças anatômicas. A importância deste treinamento jamais poderá ser enfatizada o bastante e o ambiente para a sua realização sempre foi o laboratório de dissecção do osso temporal localizado inicialmente nas dependências da zona 18 no HCPA. Ele foi erguido e montado a partir de uma iniciativa do Prof. Linden que foi o responsável exclusivo pela sua viabilização técnica e financeira. Tendo sido ProfessorVisitante em Los Angeles na década de 70, o Dr. Linden construiu o laboratório à imagem e semelhança do famoso Temporal Bone Lab localizado no House Ear Institute que era a Meca da otologia mundial na segunda metade do século XX e atraia otologistas dos cinco continentes para frequentar seus tradicionais e famosos cursos de instrução. A cirurgia otológica tem características muito peculiares que a diferencia de outras especialidades principalmente por envolver técnicas muito delicadas e de absoluta precisão em uma região anatômica muito nobre, complexa e explosiva. Ali os limites entre o sucesso e o fracasso são demarcados por linhas bastante tênues. Dessa forma ainda que o seu

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resultado final represente a somatória de uma série de detalhes é indiscutível que o domínio da técnica operatória é um pré-requisito básico para o êxito de qualquer procedimento cirúrgico. Sabemos também que esse domínio não advém magicamente de uma habilidade inata e instantânea, mas é o resultado final de um longo e árduo período de aprendizados e de treinamentos teórico-práticos onde uma série de fundamentos devem ser rigorosamente exercitados. O conhecimento profundo da anatomia clássica desta região insere-se neste contexto como uma condição absolutamente indispensável para que qualquer cirurgião venha a considerar a possibilidade de atuar no osso temporal e na base lateral do crânio. Paralelamente ao estudo anatômico tradicional, é necessário que se tenha conceitos bem sedimentados em anatomia cirúrgica e patológica, uma vez que os critérios de acessibilidade e ressecabilidade de uma lesão advêm da análise de todo um conjunto de características próprias à doença em si, à extensão do seu comprometimento e às condições gerais do paciente. Em outras palavras, o estudo anatômico deve ser ampliado e adequado às necessidades do cirurgião estabelecendo claramente os marcos divisores entre o factível e o impossível. Esta abordagem pragmática, característica da anatomia cirúrgica, envolve a elaboração de uma estratégia operatória racional que incluirá o reconhecimento de vários reparos anatômicos desde a superfície até os planos mais profundos. A estas estruturas sinalizadoras encontradas ao longo da nossa jornada cirúrgica definimos como pontos de referência. Todo

este

impressionante

volume

de

conhecimentos e habilidades pode e deve ser exercitado em longas sessões de dissecções em peças anatômicas. Como referimos anteriormente, o

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palco destes treinamentos em otologia, otoneurologia e cirurgia da base do crânio é o Laboratório de Cirurgia Experimental do Osso Temporal. Com a reestruturação dos ambulatórios do subsolo do HCPA, coordenamos a migração do nosso antigo espaço na Zona 18 para uma área nobre e confortável dentro das dependências da Zona 19. Ali conseguimos montar oito estações de dissecção completamente equipadas com novos microscópios, sistemas de fresagem e aspiração, suportes para fixação das peças, refrigeradores, tanques de formol, enfim todo o aparato que seria necessário para um excelente trabalho de instrução e treinamento. Reinauguramos o espaço com muita alegria e fizemos absoluta questão em denominá-lo com o único nome que poderia merecer tamanha deferência: Laboratório Arnaldo Linden.

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Desfrutando de uma facilidade espetacular como esta, nossos residentes poderiam se engajar sistematicamente em programas de treinamento individuais e coletivos. Muito influenciado pela escola de Los Angeles (onde havia realizado estágio de dois meses e frequentado como aluno o seu famoso curso de dissecção) decidi que seria importante importarmos aquele modelo de curso para o nosso próprio serviço. Assim, em 1995 organizamos de forma ainda semi-artesanal o primeiro curso prático de anatomia cirúrgica do osso temporal em nosso laboratório. O sucesso foi tamanho que a fim de expandir esta iniciativa acabamos estabelecendo associações com grandes instituições nacionais e internacionais com o objetivo de viabilizar técnica e cientificamente novas edições. Entre estas parcerias podemos salientar a Fundação Fisch (Zurique-Suíça) que realizou um evento conjunto no Hospital de Clinicas em 2004, a Associação Paparella de Otorrinolaringologia (SP), a

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Sociedade Brasileira de Otologia (que incorporou esta atividade sob o formato de cursos itinerantes ministrados em todas as regiões do Brasil), e Associação Brasileira de Otorrinolaringologia. O ápice de toda esta evolução foi atingido recentemente quando uniram forças três grandes universidades brasileiras (Universidades Federal do Rio Grande do Sul, Pernambuco e São Paulo) juntamente com a divisão de ensino e pesquisa do Hospital Sírio-Libanês (SP) para oferecer um dos mais completos e concorridos cursos de dissecção do osso temporal da América Latina. Tendo realizado treinamento em histopatologia e microanatomia do osso temporal em Mineápolis e trabalhando ativamente em projetos relevantes de anatomia cirúrgica no Brasil a decisão de unir estas duas ciências como matéria prima para minha tese de doutorado foi muito natural e lógica. Já havia deliberado que migraria de área no curso de doutorado e através das minhas excelentes relações com o grupo de neurocirurgia da USP-Ribeirão (especialmente com o Prof. Benedito Oscar Colli), consegui uma vaga de aluno no programa sob a sua orientação. O ponto de confluência dos nossos interesses era o capítulo da emergente cirurgia da base lateral do crânio que iniciava a adquirir popularidade e reconhecimento mundial. O entrelaçamento de estruturas anatômicas nobilíssimas pertencentes aos sistemas vascular e nervoso na intimidade e adjacências do osso mais resistente do corpo humano faz do estudo desta região um capítulo fundamental dentro das disciplinas de neurocirurgia e otorrinolaringologia. Uma série de procedimentos envolvem ressecções parciais ou totais do osso temporal guardando entre si um fundamento comum e essencial: a identificação e o isolamento da artéria carótida interna. Este fundamento ganha importância à medida que os pontos de referência normalmente empregados para o reconhecimento deste vaso podem apresentar-se distorcidos ou mesmo ausentes como consequência ao próprio processo patológico ou a tratamentos efetuados previamente. Sendo assim, uma abordagem tridimensional que ofereça a correta identificação e o seguro isolamento deste vaso arterial, independentemente das distorções causadas pela doença primária, somente será possível através de um conhecimento completo e minucioso das suas inúmeras relações anatômicas. Estava decidido: iria realizar um estudo de anatomia cirúrgica da artéria carótida em ossos temporais humanos e mais do que isto buscaria medidas com precisões milimétricas através do emprego de cortes histológicos proveniente do laboratório de histopatologia da Universidade de Minnesota! O trabalho proposto por nós teve como principal objetivo o estabelecimento de pontos de referência constantes na identificação da porção petrosa da artéria carótida interna durante acessos laterais à base do crânio (laterais ou via fossa média), assim como as suas relações com estruturas adjacentes, em particular as localizadas na intimidade do osso temporal. Propusemos um trabalho

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de natureza múltipla: observacional, descritivo, e inferencial (correlação e comparação de grupos ou variáveis) em secções axiais seriadas de ossos temporais humanos. A realização do meu doutorado fez com que eu voltasse a residir em Ribeirão Preto por um semestre em 1994 a fim de cumprir alguns créditos adicionais e também para (em um mundo préinternet) possibilitar um convívio mais próximo com o meu orientador durante a elaboração da tese. Da mesma forma, retornei à Mineápolis por alguns meses a fim de realizar a parte prática do trabalho. Finalmente em 16 de Agosto de 1996 defendi na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, (UPS) minha tese de doutorado intitulada Relações “Anatômicas da Porção Petrosa da Artéria Carótida Interna” perante uma banca formada pelos Professores Doutores Benedito Oscar Colli (Orientador- neurocirurgião), José Antônio A. de Oliveira (otorrinolaringologista); Dr. Oswaldo Laércio M. Cruz (otorrinolaringologista); Jair Campos Soares (anatomista); Hélio Rubens Machado (neurocirurgião) sendo aprovado com o grau DEZ acrescido das láureas de DISTINÇÃO E LOUVOR! Uma vez concluído o doutorado progredi na carreira acadêmica por titulação ascendendo diretamente ao cargo de Professor Adjunto I. Paralelamente às minhas atividades na graduação e extensão assumi funções relevantes de gestão acadêmica chefiando e representando o departamento de Oftalmologia & Otorrinolaringologia em cargos e comissões importantes da esfera universitária. Dentre estas atribuições poderia salientar algumas: • Membro da Comissão de Extensão da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Período: 1995, 1997-1999 e 1999-2001. • Membro da Comissão de Avaliação do Desempenho Didático dos Docentes da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Período: 1995. • Membro do Núcleo de Avaliação do Ensino da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Período: 1993-1994. • Membro da Comissão de Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Período: 01/04/2007 a 31/03/2009 e 14/04/2011 a 13/04/2013 • Membro do Colegiado do Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Período: 1993 (em andamento) • Chefe Substituto do Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Período: 1997-1999; 1999-2001.

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• Chefe do Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Período: 2001-2003. Somados, todos estes períodos contabilizam quase vinte anos de atividades administrativas e de gestão acadêmica na Faculdade de Medicina da UFRGS. Analisando sobre outra perspectiva, em 80% do meu período na universidade exerci atividades em prol do departamento concomitantes à minha carga de trabalho na graduação, pesquisa e extensão. O que pareceria uma disponibilidade elogiável, na verdade, não representa uma contribuição tão significativa assim na medida em que nosso departamento sempre teve um número reduzido de membros – em torno de 15 no total – e a divisão e revezamento em tarefas de cunho burocrático sempre fez parte da nossa rotina! Por outro lado, durante todo este período assumi várias funções junto ao serviço de otorrinolaringologia do HCPA. Entre elas, fui chefe substituto por inúmeras vezes, sou coordenador do programa de implantes otológicos, supervisor do laboratório de anatomia e ocupo uma posição quase cativa de coordenador científico da unidade. Por que nunca fui chefe do serviço durante todo este tempo? Bom, esta questão eu deixarei para ser respondida mais adiante. Em relação à pesquisa, desde que ingressei na UFRGS e no HCPA busquei manter uma produtividade regular e o tônus de publicações que, sem dúvida alguma, havia me conduzido até ali. Com um verdadeiro leque de possibilidades à minha disposição, decidi que primeiramente deveria seguir as linhas de pesquisa que desenvolvia na Universidade de Minnesota principalmente as relacionadas à patogênese da otite média crônica. Apesar de não contar com uma estrutura de laboratórios sofisticados, pessoal de apoio qualificado e, acima de tudo, patrocínios (grants) milionários, eu contava com um material humano espetacular e uma incrível ambição para desenvolver uma miríade de estudos clínicos. Comecei por estudos menores com pequenas séries de casos, mas ainda sobrevivia cientificamente mais dos resquícios da minha ”herança” americana e da tarefa de popularizar os novos conceitos e teorias propostos na minha dissertação de mestrado. Não era muito, mas ainda assim me garantia certa visibilidade no cenário científico nacional. Minha maior dificuldade para estudar os casos (que sobejavam nos nossos ambulatórios do Clínicas) era a extrema dificuldade de obter dados verossímeis através das revisões de prontuários médicos, uma vez que estes eram preenchidos sem nenhum protocolo de coleta ou um mínimo viés para a pesquisa. A situação começou a mudar quando finalmente me dei conta que aquela montanha de dados que tinha ao meu alcance era não somente desorganizada como absurdamente incompleta. Em resumo, um vasto material desperdiçado e absolutamente inadequado para a realização de qualquer estudo razoavelmente confiável. Tudo o que havia reunido de material até

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então deveria ser completamente descartado. Conclui que teria de iniciar uma vida nova partindo do marco ZERO, ou melhor, do paciente número 001! Se por um lado perdia em volume, por outro ganharia em organização e confiabilidade. Fiz algumas reuniões com a minha modesta equipe de colaboradores e definimos que iríamos reestruturar toda a nossa metodologia de atendimento, coleta e armazenamento de dados. Nossa primeira providência foi transferir nosso horário de atendimento para os improváveis segundo e terceiro turnos das sextas-feiras! Assim com a Zona 19 praticamente deserta poderíamos ocupar tantas salas de atendimento quantas fossem necessárias. Isto era muito importante uma vez que estruturamos o atendimento em vários níveis: (1) primeira consulta; (2) avaliação pré-operatória; (3) acompanhamento pós-operatório. Cada paciente circulava por estas salas ao longo de todo o seu atendimento sendo catalogado através de um número específico. Como critério de inclusão neste projeto não havia restrição de faixa etária, mas os pacientes não poderiam ter sido submetidos a procedimentos cirúrgicos maiores (exceto timpanotomia para inserção de tubos de ventilação). No primeiro atendimento era realizada uma anamnese detalhada e dirigida seguida de uma videotoscopia com fibra rígida de quatro milímetros de diâmetro e ângulo de 0º (após toalete de ambas as orelhas com remoção de cerume, secreções e restos epiteliais), sendo gravados os dois lados de forma sequencial com identificação clara do paciente. Ainda no primeiro atendimento os pacientes eram submetidos à audiometria tonal e vocal, com determinação de limiares de via aérea e via óssea e, sempre que indicada, imitanciometria. Quando todos os atendimentos eram finalizados, o grupo inteiro se reunia em uma sala de atendimento e revisava todos os casos de primeira consulta quando as imagens de otoscopias eram discutidas e descritas pelo pesquisador principal em protocolos bem específicos. Todas estas informações eram arquivadas em base de dados. Assim criamos pastas digitalizadas com todos os dados de cada paciente. As imagens, inicialmente, eram gravadas em fitas cassetes, mas alguns anos mais tarde fizemos um investimento grande em tecnologia e passamos a digitalizar todas as informações. O ambulatório estava muito bem organizado com uma hierarquia e distribuição de tarefas bem definidas. Assim, estagiários, médicos-residentes do primeiro, segundo e terceiro ano, audiologistas, docente e colaboradores tinham suas atribuições e competências absolutamente claras e determinadas. Nos primeiros meses os nossos números não entusiasmavam muito, mas o fato de termos estabelecido metas a serem cumpridas no médio e longo prazo nos trazia algum consolo. Tínhamos tanta confiança no sucesso deste projeto, que decidimos rebatizá-lo: de ambulatório de otite média

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crônica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (AOMC-HCPA) passamos a chamá-lo com o pomposo (e algo megalomaníaco) nome de Centro de Otite Média do Brasil (Com.Br)!

Atendíamos de 5 a 8 pacientes novos por semana e, na tentativa de motivar o grupo, prometia que quando chegássemos ao centésimo patrocinaria uma pequena confraternização (o churrasco da mudança de centena passou a ser uma tradiçã desde então!).

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Mas o tempo foi passando e os números se tornando cada vez mais inflados. Para se ter uma ideia, em 2005 já contávamos com quase 500 pacientes bem documentados e perfeitamente catalogados. Começamos a apresentar nossos resultados inicialmente em simpósios regionais, nacionais e posteriormente internacionais. Pelas características do nosso ambulatório (que na verdade era uma unidade assistencial com uma roupagem cientifica), nossos primeiros trabalhos eram analíticos transversais. Da mesma forma que dividíamos funções respeitando uma hierarquia de antiguidade e conhecimento, nossos trabalhos também observavam esta sistematização. Assim as produções teoricamente mais simples eram apresentadas pelos estagiários em eventos menos específicos. Os residentes se encarregavam de levar nossas mensagens sob o formato de temas livres para os congressos nacionais e a mim cabia divulgá-los dentro das minhas conferências dentro e fora do Brasil. Olhando retrospectivamente este período, hoje eu percebo claramente uma transição no conteúdo e na forma das minhas apresentações sobre otite média que foi ocorrendo na medida em que o ambulatório ganhava musculatura e as nossas discussões internas sobre o assunto se tornavam mais densas. Na verdade, não era a substância das palestras que mudava, mas a maneira com que passei a entender a patogênese das otites médias crônicas reavaliando criticamente todos aqueles conceitos que havia absorvido quase passivamente durante os dois anos em que estudei no Otitis Media Group em Mineápolis. Não que a maioria das brilhantes ideias do Prof. Paparella não tivessem se provado, na prática, operacionais. Longe disso! A questão é que passei a enxergar algumas lacunas nas teorias originais do grupo de Mineápolis quase todas testadas em modelos experimentais animais. Como já nos referimos anteriormente, seguíamos o modelo de patogênese nascido a partir de estudos experimentais, o chamado Continuum. Em outras palavras, tal condição pareceria existir ao longo de uma série de eventos contínuos nos quais, após ser deflagrada a otite média serosa ou aguda transitaria lentamente para os estágios seromucóide, mucóide e, finalmente (caso não houvesse regressão espontânea ou terapêutica), crônica. Notamos ao longo do nosso percurso que pesquisadores de diferentes partes do mundo buscavam uma classificação racional para enquadrar as otites médias. Entretanto ao tentarem agrupar as características clínicas, patológicas e temporais estudadas, não conseguiam emitir conceitos claros e tampouco definitivos. O seguimento longitudinal da nossa série crescente de pacientes indicava claramente que tal dificuldade não se restringia aos experimentos de laboratórios uma vez que era intrínseca ao nosso trabalho diário! Encontrávamos respaldo na literatura que mostrava que mesmo quando ossos temporais de animais e de humanos com otite média eram estudados pelos mais talentosos

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otopatologistas através das lentes poderosas dos microscópios de última geração, os limites histopatológicos entre as diferentes formas eram tênues, senão interseccionados (o que, aliás, foi consubstanciado na minha dissertação de mestrado!). Em resumo, tudo apontava na direção de que as várias formas e apresentações desta interessante doença resumiam uma única condição com potencial de atravessar estágios progressivos. Esta evolução certamente não era assim tão linear, sendo influenciada por cofatores geralmente relacionados à entidade agressora, ao próprio paciente e a circunstâncias facilitadoras ou moderadoras! Todas estas descobertas foram sendo realizadas aos poucos e ao longo destes 16 anos de atividades e 2083 pacientes tratados (em torno de 3200 orelhas afetadas)! Sem dúvida alguma, a maior vocação científica do nosso ambulatório foi sempre a de tentar desvendar os segredos por trás da patogênese da otite média. Para tanto, escolhemos como protótipo de estudo a otite média crônica porque é a que mais suscita controvérsias, tem a maior morbidade e potencialmente abriga uma miríade de alterações patológicas mais variadas. Levamos também em consideração o fato dela ser uma estação final, ou no mínimo intermediária, no caminho percorrido pelas otites. A análise desta estação talvez nos ajude a responder questões fundamentais e ainda obscuras relacionadas a esta marcha: sua origem e seu destino. Dentre os vários dividendos positivos advindos na execução deste projeto, talvez o mais significativo para mim como professor foi que ele passou a ser reconhecido em âmbito acadêmico como uma verdadeira usina geradora de trabalhos científicos. Desta forma, passou a atrair o interesse de alunos, jovens aprendizes e potenciais pesquisadores que vislumbraram ali uma excelente alternativa para se iniciarem em pesquisa clínica e catapultarem seus currículos. Já temos uma história antiga o suficiente para testemunhar que vários dos nossos alunos de iniciação científica que percorreram seus primeiros passos na especialidade no Com.Br acabaram optando pela otorrinolaringologia (a maioria tendo realizado a residência médica no próprio HCPA) e hoje ocupam posições de destaque no cenário nacional e internacional. O exemplo mais bem acabado desta identificação pode ser personificado na Dra. Letícia Petersen Schmidt Rosito que fez parte do núcleo inicial do projeto ainda como aluna de graduação da Medicina da UFRGS. A Letícia literalmente incorporou o espírito do nosso ambulatório, perseguindo uma formação exemplar como monitora da disciplina, doutoranda, residente, fellow e Médica-Contratada do Serviço com dedicação exclusiva à otologia. Realizou mestrado (seguindo meu caminho e desenvolvendo seu trabalho no Laboratório de Histopatologia do Osso Temporal da Universidade de Minnesota!) e doutorado com material exclusivamente extraído do ambulatório que ajudou a construir. Sua tese de doutorado intitulada “Colesteatoma Adquirido da Orelha Média: Observações a Propósito de 356 Pacientes” mudou uma série de antigos paradigmas tendo gerado mais de sete publicações em revistas de prestígio e reconhecimento internacional. Com esta vasta bagagem científica, a Dra.

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Letícia atualmente se prepara para ingressar na carreira docente da UFRGS com todos os méritos possíveis e, incontestavelmente, pela porta da frente. Outro pupilo de destaque é o Dr. Maurício Noschang da Silva que também trilhou por todas as fases do ambulatório, posteriormente a residência e o Fellowship em otologia. O Maurício atualmente é médico contratado do serviço de otorrinolaringologia do HCPA e, seguramente, um dos mais brilhantes cirurgiões otológicos da sua geração no Brasil. Hoje é o maior responsável pelo unidade de base do crânio do nosso hospital e com o seu entusiasmo consegue atrair a turma de colegas mais antigos (eu , o Professor Ápio Antunes e o Prof. Gérson Maahs) para jornadas cirúrgicas que, não raramente, se prolongam por mais de 12 horas! Cada vez que ele nos comunica que separou um caso para a sexta-feira, já “trememos nas bases” pois sabemos que isto significa um dia inteiro de clausura no bloco cirúrgico. É interessante analisar a evolução dos nossos alunos, principalmente aqueles que ficam mais vinculados a nós. A Letícia e o Maurício, das dezenas de residentes que treinei, foram os que mais se entusiasmaram pelos novos rumos da otologia mesmo em um época em que a rinologia e a plástica facial eram as subespecialidades da moda. De fato, ambos eram atavicamente vocacionados para seguir este caminho e tive a sorte e o privilégio de acolhê-los no meu grupo de trabalho. Por acompanhá-los no dia à dia, posso identificar muitos traços da minha própria personalidade “ imprintados “ nos dois. Um exemplo singelo mas muito revelador é a postura no campo operatório quando percebo as minhas técnicas e conceitos sendo empregados e aprimorados pelas suas engenhosas mentes e habilidosas mãos. A maneira como eles seguram o gelfoam com o auxílio do aspirador na mão esquerda, então, é muito emblemática e comprova que alguns dos genes que herdei do Professor Paparella cruzaram a minha geração e se expressam no fenótipo dos meus discípulos... O fato de ter decolado com um quadro enxuto de colaboradores, foi um feito admirável para o Com.Br. Porém, para alçar voos ainda maiores e se aproximar do seu bench-mark americano (Otitis Media Group) era nítida a necessidade de arregimentarmos colaboradores com maior experiência em pesquisas advindos outras áreas médicas e ciências afins. Desde os meus tempos de Mineápolis me tornei um entusiasta do trabalho multidisciplinar principalmente em pesquisa. A otite média (assim como várias outras condições), é uma patologia multifacetada e, sendo assim, o seu completo

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entendimento somente nascerá da análise e estudo minucioso de cada uma destas pequenas facetas. Estes estudos terão de ser hábeis o suficiente para dissecarem aspectos individuais desta doença sem, entretanto, sonegarem o fato de que eles estão orgânica e evolutivamente interligados. Analogamente seria como se tentássemos entender uma corrente examinando apenas um dos seus elos e apostando, que da análise desta individualidade, todas as respostas sobre a composição, forma e função desta corrente fossem emergir. Assim uma abordagem crítica, inquisitiva e, principalmente, em diferentes ângulos sempre me pareceu como uma das maneiras mais eficazes na verificação de hipóteses e consolidação de pontos de vistas. Concluí que, em uma universidade tradicional e com vocação à pesquisa como a UFRGS o nicho mais adequado para recrutar mentes abertas e espíritos questionadores, sem dúvida alguma, seria no programa de pós-graduação. O problema era que a otorrinolaringologia não possuía um programa de pós-graduação exclusivo dela e, por conta disso, o meu grupo teria de se abrigar em alguma linha de pesquisa já existente e em atividade. Mas como compatibilizar minha principal linha de investigação que era sobre a patogênese das otites médias com grupos de estudos da cirurgia geral, urologia, ortopedia ou plástica? Aparentemente impossível! Refletia sobre alternativas quando um dia passeando pelos corredores da Zona 15 do Hospital de Clínicas me deparei com o centro de referência para diagnóstico e tratamento das fissuras labiopalatais coordenado pelo Dr. Marcos Vinícius Collares. Refleti que a população de pacientes com malformações craniomaxilofaciais (especialmente com fissuras palatinas), poderia constituir um excepcional modelo para o estudo das patologias da orelha média causadas pelas disfunções tubárias permanentes. Como estas disfunções teoricamente persistem, mesmo após a realização das palatoplastias, pensei que poderíamos desenhar estudos sobre o Continuum empregando um modelo humano o que eticamente seria inviável sob outras circunstâncias! Conversei com o Dr. Collares que, muito animado, imediatamente aceitou a ideia e juntos fomos ao Coordenador da Pós-graduação da cirurgia para apresentar a nossa proposta. Na verdade, tratavase de uma parceria “win-win”, pois ao criarmos um ambulatório especifico de otorrinolaringologia para esta população estaríamos preenchendo uma lacuna no atendimento destes pacientes – sabidamente multidisciplinares - ao mesmo tempo em que colheríamos importantes dados sobre a sua saúde otorrinolaringológica. A pós-graduação em cirurgia aprovou com naturalidade nosso pleito uma vez que esta associação evitaria uma indesejável abertura de novas linhas de pesquisa ao mesmo tempo em que potencialmente agregaria um robusto grupo de investigadores ao programa. Assim, em dezembro de 2003 a aluna Lucia Helena Severo Kluwe Carvalhal defendeu a primeira dissertação de mestrado orientada por mim e co-orientada pelo Prof. Collares intitulada “Descrição das alterações otológicas de pacientes com fissura labiopalatal ou palatina isolada”. Este trabalho analisou 180 pacientes portadores de fenda palatina e mostrou

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categoricamente que apesar da ampla maioria (72,2%) não apresentar queixas espontâneas relacionadas ao ouvido, quando inicialmente avaliados, neste mesmo momento, alterações otológicas silentes já estavam presentes ao exame clínico num percentual muito significativo do grupo (57,8%). Mais ainda, nas faixas etárias precoces, predominavam as efusões da orelha média, enquanto que no grupo mais velho passavam a serem frequentes os processos inflamatórios crônicos! Em outras palavras, sublinhadas as diferenças de modelos, reproduzia-se pela primeira vez num estudo transversal em humanos, a ideia do Continuum já tão sobejamente demonstrada em experimentos animais longitudinais! Este primeira dissertação nos agregou informações muito valiosas, mas como sói acontecer em ciência, nos trouxe mais dúvidas do que certezas sobre outros aspectos do atendimento desta população. Assim nossos questionamentos foram sendo traduzidos em novos estudos como, por exemplo, se a palatoplastia precoce poderia reduzir os eventos inflamatórios verificados na orelha media dos pacientes com fenda palatina (dissertação defendida pela aluna Lisiane Segato Kruse) ou ainda analisar as repercussões da disfunção velofaríngea na orelha média de pacientes com fissura palatina corrigida (Daniela Preto da Silva). Não poderia estar mais satisfeito com os desdobramentos e os excelentes dividendos auferidos pela nossa associação com o grupo de cirurgia plástica e agradecíamos sempre o Prof. Collares por ter aberto esta ótima janela de oportunidades para a nossa equipe. Ainda assim, estávamos inquietos, pois a pós-graduação de cirurgia (PPGC) impunha-nos a condição de perseguir exclusivamente uma única linha de pesquisa com o agravante de não admitir alunos, tanto em nível de mestrado como doutorado, que não fossem médicos. Nesta época o nosso ambulatório já desenvolvia uma atividade intensa e fervilhava de colaboradores de várias interfaces médicas como audiologistas, biólogos, enfermeiras, engenheiros, programadores, etc... A grande maioria destes profissionais estava emprestando seu tempo e o melhor do seu empenho ao ambulatório com a perspectiva de cursar uma pós-graduação stricto-senso na Faculdade de Medicina da UFRGS. Pressionado para tentar atender a esta demanda (até porque guardava o máximo interesse em formalizar a situação da minha equipe) bati à porta do programa de pós-graduação da Saúde da Criança e do Adolescente (PPGSCA) na tentativa de obter meu credenciamento como ProfessorOrientador. As razões pelas quais havia escolhido o PPGSA eram múltiplas e de diversas ordens. Entre elas, salientavam-se o prestígio obtido pelo programa junto à comunidade científica nacional; a erudição e excelência dos membros do seu corpo docente; as inúmeras afinidades entre os projetos de pesquisa que vinha desenvolvendo desde 1987 e o universo de atuação da pediatria; e

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a possibilidade de elaborar protocolos de ação verdadeiramente multidisciplinares proporcionando uma rede de interações entre as nossas especialidades. Foi com muita alegria, que recebi a resposta positiva do Prof. Dr. Renato Procianoy, então coordenador do PPGSCA. Na verdade, não somente fui credenciado com Professor Orientador do programa como ainda obtivemos um bônus pela possibilidade de flexibilizarmos nossas linhas de pesquisa desde que, obviamente, nossos estudos focassem exclusivamente a população infantil. Como já contávamos com excelentes candidatos na expectativa de ingressarem no mestrado, rapidamente concluímos as duas primeiras dissertações: “Colesteatomas adquiridos: análise comparativa da perimatriz entre pacientes pediátricos e adultos” (Cristina Carvalho Dornelles; 2004) “Potencial evocado auditivo de tronco encefálico em crianças nascidas pré-termo e a termo.” (Pricila Sleifer; 2005) Mirando pelo retrovisor, hoje identifico claramente que naquele determinado momento quatro fatores passaram a conspirar a nosso favor: 1. A possibilidade de desenvolver linhas de pesquisa em dois excelentes programas de pósgraduação; 2. A montanha de dados cuidadosamente colhidos, compilados e armazenados no Com.Br; 3. O crescente interesse de jovens pesquisadores em embarcar nos nossos projetos; 4. A maturidade técnico-científica do grupo de trabalho original. Como consequência, o ambulatório passou a vivenciar um prolífico ciclo de intensas atividades de pesquisa e uma efervescente profusão de ideias e novas teorias. O produto final desta combinação foi a explosão da nossa produtividade científica que passou a ser veiculada por uma série de atividades-vetores o que, por sua vez, levou a um crescente reconhecimento do nosso grupo tanto no Brasil como no exterior! Para se ter uma noção dos nossos números ao longo dos últimos anos, podemos tentar pontualmente resumi-los como a seguir: • 200 temas-livres • 50 artigos científicos • 35 capítulos de livros • 3 livros • dez dissertações de mestrado • cinco teses de doutorado

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Analisando criticamente nosso banco de dados (idealizado desde os primórdios para armazenar todas as informações dos pacientes do Com.Br) chegamos a algumas importantes conclusões: se por um lado possuíamos o completo controle dos dados quantitativos (limiares audiométricos e protocolos de entrevista) o mesmo não se aplicava, pelo menos na plenitude, aos nossos dados qualitativos (imagens otológicas, por exemplo). É claro que eu mesmo estava incumbido da missão de descrever absolutamente todas as otoscopias (tarefa que até hoje nunca foi terceirizada – e olha que estamos próximos de cinco mil exames), mas duas condições necessitavam de medições adicionais: as dimensões e posições das perfurações timpânicas nos casos de otite média crônica não-colesteatomatosa e as placas de timpanoesclerose espalhadas sobre a superfície do tímpano. Assim passamos a pesquisar ferramentas que possibilitassem incrementar a precisão das nossas observações. Depois de muito navegar pela internet em busca de potenciais soluções, nos deparamos com o interessantíssimo trabalho desenvolvido por um grupo de jovens pesquisadores ligados à Universidade Federal de Santa Catarina: Vilson Heck Júnior, Daniel Duarte Abdala, Eros Comunello e o Professor Doutor Aldo von Wangenheim. Eles haviam constituído um projeto denominado de Laboratório de Processamento Digital de Imagens (LAPIX). Após um contato inicial, pudemos constatar que aquela equipe possuía um entusiasmo contagiante e uma motivação inigualável para desenvolver novos projetos. Após uma série de contatos via internet e algumas viagens entre Florianópolis e Porto Alegre, estabelecemos um grupo de trabalho com o objetivo de criar uma metodologia computacional que auxiliasse na execução do processo de mensuração da extensão de patologias timpânicas. Partimos do pressuposto que era possível separar as patologias que afetavam a orelha média em dois grupos: 1) as mensuráveis por extensão; 2) as mensuráveis por parâmetros. As patologias mensuráveis por extensão são alterações na superfície do tímpano, visíveis claramente a um exame otoscópico; já a mensurável por parâmetro é classificada conforme uma escala e região abrangida, dependendo da área do tímpano afetada e do grau de severidade. Assim, para o estudo dos efeitos e evolução das patologias mensuráveis por extensão, é necessário conhecer a área afetada pela patologia. Neste contexto, depois de muito discutir criamos uma plataforma de auxílio ao diagnóstico otológico denominada de Cyclops Auris. Tratava-se de uma metodologia computacional que objetivava simplificar os processos de mensuração da extensão de perfurações timpânicas e placas de timpanoesclerose de uma maneira rápida e simples, e, mais importante, extrema precisão. A plataforma era muito prática de ser utilizada não impondo nenhum esforço adicional aos nossos protocolos de aquisição e diagnóstico! Pela originalidade e simplicidade do método, o Cyclops Auris trouxe uma grande visibilidade ao Com.Br e vários centros de referência no Brasil e ao redor do mundo passaram a nos contatar com o objetivo de obter esta ferramenta.

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Curiosamente, a sua mais contundente aplicação não foi na área da otologia! Anos após a descrição original adaptamos a plataforma para ser usada com outros objetivos. Assim nasceu o Cyclops Pharyngeus que foi empregado para analisar a movimentação do esfíncter velofaríngeo como auxílio na avaliação vocal a da deglutição de pacientes com fenda palatina. Este trabalho acabou virando a tese de doutoramento da Fonoaudióloga Sílvia Dornelles em 2009 e até hoje é largamente utilizado com estes fins. Paralelamente, o Com.Br continuou gerando novos projetos. Dentre eles, caberia salientar pelo menos três de extrema relevância: 1.Bilateralidade da Otite Média Crônica; 2.Estudo da Orelha Contralateral na Otite Média Crônica; 3. Perda Auditiva Sensorioneural na Otite Média Crônica. A essência destes estudos e o raciocínio clínico que os permeava foram todos sintetizados em artigos publicados em periódicos internacionais e divulgados em inúmeras conferências nacionais e internacionais. Tive a oportunidade de discuti-los com verdadeiras lendas da otologia mundial que dedicaram partes das suas vidas para pesquisar estes temas como os Professores Michael Paparella (EUA), Jacob Sadé (ISRAEL), Marcos Goycoolea (CHILE); Richard Rosenfeld (EUA), Stephen O’Leary (AUSTRÁLIA), Benoit Grapat (FRANÇA), Thomas Lenartz (ALEMANHA), Ugo Fisch (SUIÇA), Marc Bassim (LÍBANO) entre outros... É claro que a unanimidade passava ao largo destas apaixonadas discussões (afinal o a necessidade e o contraponto de opiniões sempre foram os agentes catalisadores das grandes realizações!), mas, pouco a pouco, passei a ter respeitabilidade, reconhecimento e voz neste seleto grupo estando sempre embasado na robusteza e contundência dos meus dados!

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Devo à minha carreira acadêmica grande parte da minha visibilidade profissional. É claro que a minha vida assistencial também cresceu num ritmo constante principalmente após ter me estabelecido definitivamente em Porto Alegre. Compatibilizar estas duas atividades, na minha maneira de ver, consistia em um mera formalidade, pois nunca consegui demarcar claramente as linhas divisórias entre elas. Na verdade, sempre existiu uma grande simbiose entre o doutor e o professor Sady. Assim, frequentemente me descobri proferindo legítimas conferências para meus pacientes do consultório e, por outro lado, carregava para a universidade a experiência advinda de milhares de atendimentos e procedimentos externos. Sempre admirei o exemplo americano, onde ao professor universitário é permitido e incentivado exercer a docência e a assistência privada em um mesmo ambiente. Infelizmente nós não contávamos com esta possibilidade na UFRGS assim como na maioria das universidades brasileiras. Sendo a otorrinolaringologia uma especialidade médica eminentemente teórico-prática, para adequadamente ensiná-la é imperioso vivê-la na plenitude e intensamente ou, em outras palavras, enfrentar todos os seus desafios do cotidiano. Assim, neste âmbito, nunca acreditei em professores formados exclusivamente em bases teóricas e sem uma sólida bagagem prática. É claro que a teoria é, mais do que importante, fundamental na construção de um docente qualificado (ou de qualquer outro profissional!). Mas sempre entendi que o ideal seria tentar oferecer aos meus alunos informações de ponta lastreadas por uma vasta experiência pessoal. Assim a eterna rotina do meu consultório e as crescentes demandas dos meus pacientes (impossíveis de serem terceirizadas) foram agentes essenciais no meu crescimento e na longa, laboriosa e dialética elaboração da minha personalidade acadêmica. Aliás, é curioso observar estes diferentes perfis nos meus próprios alunos de mestrado e doutorado. Esta semana mesmo, durante a defesa pública da tese de doutorado de uma das minhas alunas, admirava a sua altivez e desenvoltura ao responder às arguições da qualificada e exigente banca examinadora. Pensei comigo mesmo, como está preparada esta candidata à doutora! Nos meus comentários que seguiram a aprovação unânime, revisitei esta questão lembrando que os meus alunos mestrandos, normalmente eram jovens recém-egressos das suas respectivas faculdades. Sobram em entusiasmo e energia, mas se ressentem da falta de uma experiência prática mais consistente e, por conseguinte, via de regra travam debates mais tímidos com os seus examinadores. Já os doutorandos, mesclam mais claramente determinação, conhecimento e esbanjam experiência. E é realmente incrível que todas estas naturais e esperadas diferenças de maturidade frequentemente afloram e se tornam muito mais nítidas no sublime momento da defesa! Mas o gene do ensino sempre me acompanhou, assim mesmo fora da universidade me engajei em uma série de atividades de ensino “extramuros”. Foram inúmeras, mas pelo menos cinco delas faço questão de ressaltar: o Simpósio de Doenças de Inverno; o Curso de Dissecção do Osso Temporal; o Curso de Cirurgia Otológica da Clínica Causse; o Simpósio de Audição e Linguagem do HCPA; e o NOA (Núcleo de Otologia Avançada);

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(ou carta para um filho que nunca tive)

O Simpósio de Doenças de Inverno foi criado a partir de uma iniciativa pioneira e corajosa da minha querida colega e amiga (desde os tempos da residência médica) Elisabete Araújo Pereira. A Bete concebeu este evento em 1997 como o primeiro Simpósio de Rinites, Sinusites e Asma. Nesta primeira edição, utilizou as dependências do centro de convenções do hotel Plaza São Rafael conseguindo realizar nas facilidades deste elegante local um curso prático de anatomia cirúrgica nasossinusal! Para se ter uma ideia do que isto envolvia, ela literalmente construiu um completo, equipado e muito confortável laboratório de dissecção anatômica no hotel. Mais do que isto, conseguiu a proeza de “contrabandear” para o interior do Plaza (que recebia à época as mais tradicionais e sofisticadas festas da sociedade portoalegrense)

oito metades de cabeças humanas

(acondicionadas em elegantes bolsas azuis – obviamente de grife -) para que fossem dissecadas impiedosamente pelos alunos e preceptores do curso! Era muita ousadia para aqueles tempos. Ainda assim, uma iniciativa inovadora, criativa e impetuosa destas estava, desde os seus primórdios, fadada à longevidade e ao sucesso. Provavelmente exausta com esta primeira experiência, no ano seguinte convidou um pequeno grupo para assumir este projeto com ela. Assim foi criado o Grupo de Pesquisa em Otorrinolaringologia (que adquiriu personalidade jurídica em 2000) e que tinha como sócios-fundadores os colegas e fraternos amigos Elisabete Araújo Pereira, Berenice Dias Ramos, Maria Beatriz Rotta Pereira, Celso Dall’Igna e Sady Selaimen da Costa. Para se fazer um longa história breve, o simpósio completou em 2017 o seu vigésimo ano de edições ininterruptas já situandose como um membro cativo e dos mais tradicionais

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do calendário de eventos da medicina brasileira. A receita de tanto sucesso é simples e pode ser resumida no esforço para criar um programa científico denso, abrangente e em absoluta sintonia com as dificuldades cotidianas enfrentadas por todos nós; no formato interativo com mesas e painéis (focadas no manejo de casos clínicos); no padrão de excelência do seleto corpo docente composto por um rosário de convidados nacionais e internacionais; pelos esperadíssimos Happyhours científicos diários e os oportuníssimos e indefectíveis bate-papos de corredor! Tudo isto fez do Doenças de Inverno um congresso “butique” e um legítimo case de sucesso: singular, muito querido e sempre aguardado pela comunidade médica rio-grandense! Quanto ao Curso de Microanatomia do Osso Temporal (já abordado anteriormente) ele foi fruto de uma afinidade científica, filosófica e, principalmente, pessoal entre três colegas de diferentes regiões do país: Oswaldo Laércio Mendonça Cruz de São Paulo (SP); Dr. Sílvio Caldas de Recife (PE); e por mim. Este curso teórico-prático manteve sua estrutura central inalterada ao longo do tempo mantendo o foco no ensino de conceitos básicos em cirurgia otológica. Pelo interesse que sempre despertou, viajou o Brasil de norte a sul tendo sido encampado por diferentes instituições (ABORL, SBO, UFRGS, UFP, etc...). Hoje, sob a eterna coordenação do Dr. Oswaldo Laércio (seu principal entusiasta e realizador) encontra-se abrigado nas espetaculares dependências do Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Sírio-Libanês na capital paulista. Para ser ter uma noção da sua dimensão, acabamos de comemorar sua edição de número cinquenta que foi devidamente celebrada com um simpósio paralelo denominado OTOLOGIA DO SÉCULO XXI! Em 2003 fui apresentado pelo meu íntimo amigo Neil Sperling aos organizadores do Curso de Cirurgia Otológica da Clínica Causse (Bezier/França) durante um congresso da Academia Americana de Otorrinolaringologia realizado em Nova Iorque. Fiquei muito bem impressionado com o material exibido por eles e a qualidade das suas apresentações. Após uma série de conversas com os doutores Robert Vincent e John Oates (onde descobrimos uma afinidade de interesses e uma grande convergência filosófica), eles me convidaram para participar da edição de 2004 do curso que seria realizado, como sempre, no final do mês de Junho na cidade de Bezier localizada no sul da França. Assenti ao honroso convite e meses depois estava aterrissando pela primeira vez no aeroporto de Montpellier onde aguardei por algum tempo a chegada de um transporte providenciado pela clínica. Quando finalmente a Van chegou, notei que não viajaria sozinho, pois embarcava comigo um casal mais velho e extremamente simpático. Descobri logo no início da viagem de 45 minutos que sentava ao meu lado nada mais nada menos que o Dr. Jacob Sade, Professor Titular Emérito de Otorrinolaringologia da Universidade de Tel Aviv (Israel) e uma das maiores autoridades do mundo (senão a maior) no estudo da biologia do Colesteatoma.

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O curso foi espetacular e ultrapassou todas as minhas expectativas. Mais focado no tratamento cirúrgico da surdez trazia uma ênfase em dois assuntos que muito me interessavam: reconstruções ossiculares nas sequelas de otite média crônica e otosclerose. Apesar de se localizar em uma cidade de apenas cinco mil habitantes, a Clínica Causse havia se transformado em uma das Mecas mundiais da Estapedectomia (microcirurgia extremamente delicada indicada no tratamento da otosclerose e que consiste na substituição do estribo - menor osso do corpo humano – por uma prótese de teflon). Esta fama mundial era decorrente do brilhante trabalho lá desenvolvido por Jean Bernard Causse, um cirurgião genial e que havia levado a Estapedectomia literalmente ao seu estado de arte. O Dr. Causse (que ergueu e deu o nome à clínica) falecera precocemente alguns anos antes, cabendo ao seu pupilo dileto, Robert Vincent, as difíceis tarefas de sucedê-lo e dar seguimento ao seu legado. Paralelamente ao ótimo programa científico que combinava exposições teóricas, mesasredondas e demonstrações cirúrgicas ao vivo, o que mais me surpreendeu foi a extrema receptividade e cativante simpatia dos anfitriões. Tanto o corpo docente quanto discente do curso era internacional com colegas advindos de todos os cinco continentes. É claro que dentre todos os presentes, me identifiquei principalmente com o Professor Sadé haja vista que, guardadas as devidas proporções, possuíamos interesses comuns e pesquisávamos o mesmo assunto: otite média crônica. Descobri nele uma grandeza superlativa e uma sabedoria que era diretamente proporcional à sua humildade! Minha admiração pela sua figura, que já era enorme, se tornou ainda maior e mais justificada. Acabamos por selar uma grande amizade que se renovava em Bezier anualmente e agora se mantém através de uma regular troca de e-mails.

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A informalidade do curso era uma das suas marcas registradas e este clima de camaradagem entre professores e alunos era muito estimulada e facilitada pela agenda social (regada a vinho e espumante francês) que se desenvolvia concomitantemente. Contribuía também para isto o fato dele ser sempre realizado no meio do forte verão europeu. O fato é que os laços estabelecidos após aquele primeiro contato em Nova Iorque foram definitivamente fortalecidos com esta minha primeira participação no curso. Como resultado prático, fui convidado a voltar em 2005 com o status de um dos convidados internacionais do evento. Obviamente que escolhi apresentar temas que dominava e pesquisava e o sucesso desta participação fez com que, nos anos subsequentes, aumentasse a minha agenda no programa científico. Pouco tempo após, eu já fazia parte do “faculty” permanente do curso juntamente com um qualificado grupo internacional de colegas: Robert Vincent, Benoit Grapat e Thibaud Dumon (França); Neil Sperling (EUA); Jacob Sade (Israel); John Oates, Cristopher Aldren and David Bowdler (Inglaterra);

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Thomas Lenartz (Alemanha); Ashim Desai (Índia); Duane Mol (África do Sul); Wilko Grolhman (Holanda); Marc Bassin (Líbano); Manohar Bance (Canadá). Pouco tempo após, consegui agregar meus dois parceiros brasileiros ao grupo: Dr. Oswaldo Laércio Cruz e Sílvio Caldas. Hoje já são doze anos ininterruptos de convivência e já me “conformei” em ter que celebrar quase sempre o meu aniversário (30 de Junho) no sul da França ou no nosso recorrente destino pós-curso: um mini-cruzeiro no espetacular iate do proprietário da Clínica Causse (Sr. Roger Vauthier) singrando as águas cristalinas do Mediterrâneo em Empuria Brava na Espanha. Uma das iniciativas mais legais e inovadoras deste grupo, foi aproveitar o seu caráter eminentemente internacional para criar em 2006 a Fundação LION (Live International Otology Network). Trata-se de uma organização sem fins lucrativos dedicada a promover programas de educação continuada médica e cirúrgica de alta qualidade. O objetivo principal do LION é criar uma rede interativa permanente de alta velocidade para a Educação Continuada em Otorrinolaringologia e promover a aprendizagem à distância usando modernas tecnologias de videoconferência. O programa anual oferece aos participantes em todo o mundo acesso direto e interativo a especialistas internacionais nos vários campos da Otorrinolaringologia. Tais sessões multicêntricas maximizam as vantagens de reuniões internacionais, permitindo o intercâmbio de ideias e experiências. Um dos seus subprodutos mais interessantes é o Global Live Surgical Broadcast que somente na sua última edição transmitiu via internet ao vivo mais de quarenta cirurgias realizadas em diversas partes do mundo. O grupo brasileiro do LION, nem sempre consegue operacionalizar as transmissões, mas quando logramos em fazê-las utilizamos as facilidades do hospital Sírio-Libanês em São Paulo. Para tornar estas datas ainda mais atrativas criamos uma pequena agenda teórica paralela presencial que pouco a pouco foi crescendo e hoje transformou-se em um evento nacional de vanguarda otológica chamado de EAR BRAZIL!

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O núcleo “duro” de Bezier constitui-se hoje em uma verdadeira fraternidade sendo que o convívio entre os seus membros extrapolou há muito tempo o âmbito acadêmico/assistencial tornando-se fundamentalmente familiar. Como exemplo, em várias oportunidades já recebi filhos e filhas dos meus amigos na minha casa em Porto Alegre e, da mesma forma, eu e minha esposa em muitas ocasiões já usufruímos das suas amáveis hospitalidades! Por tudo isto, no meu ponto de vista, o maior dividendo destes contatos internacionais são as fortes e duradouras relações que se estabelecem. E esta, na minha opinião, é uma das grandes vantagens em praticar a medicina acadêmica, pois somente ela é capaz de abrir leques de oportunidades a cada novo evento. Mal comparando, uso a analogia de um popular jogo de computador conhecido como Campo Minado onde a cada escolha acertada descortinamos um halo de novas possibilidades para progredir e seguir em frente. Cada novo contato que estabelecemos, cada nova parceria que firmamos turbinam a nossa rede de relações em uma impressionante progressão geométrica. A manutenção e expansão deste verdadeiro network é muito facilitada nos dias de hoje pela universalização do emprego da internet e pela popularização das redes sociais. Comento sempre com a Sílvia, minha esposa, que nossas viagens ao exterior (para nem citar as nacionais!) são quase sempre simplificadas por referências locais que nos guiam, orientam e, não raramente, acolhem em seus lares.

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O quarto evento que quero abordar foi um Simpósio que organizei em 1998 no HCPA chamado de Audição, Comunicação e Linguagem. Se pudesse apontar as maiores influências na minha carreira advindas do convívio com o meu orientador de mestrado, Prof. José Antônio Aparecido de Oliveira, não teria receio de apontar pelo menos três: a paixão pela anatomia comparada; a sua impressionante didática; e o fato de ter me apresentado o que ele costumava chamar de “circuito eletroacústico da comunicação humana” e que passarei a rapidamente explicar. A fim de que a linguagem auditivo-oral se processe adequadamente impõem-se o pleno desenvolvimento das funções auditivas e fonatórias. Visitando a anatomia comparada notamos que várias espécies animais apresentam estruturas receptoras e produtoras de sons até mais desenvolvidas que as do homem. Ainda assim a capacidade humana de se comunicar excede flagrantemente a de qualquer outra espécie animal. Ocorre que, apesar do aparelho auditivo e do aparato fonador serem as colunas de sustentação da estrutura linguística, uma série de outros centros de associações cognitivas desempenham um papel maiúsculo na viabilização do chamado circuito eletroacústico da comunicação humana. Neste sentido cabe ressaltar que de nada adiantaria a existência de polos auditivos e fonatórios extremamente bem desenvolvidos se estes não fossem habilmente integrados por uma função ainda maior. Dentre todas as espécies animais, é no homem que esta função atinge o seu “estado da arte” particularmente graças a um cérebro extremamente bem desenvolvido. Em nenhuma outra espécie as informações recebidas ou repassadas recebem um tratamento tão especial e diferenciado como no homem. Somente aqui este fluxo contínuo de informações será tão minuciosamente analisado por legítimas malhas neuronais, decomposto às suas formas mais básicas e, a seguir, modulado pela inteligência e pelas emoções.

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Sempre fui fascinado por este complexo sistema e decidi organizar este curso de forma a analisar cada estação percorrida pela informação auditiva, a compreensão desta mensagem, a elaboração de uma resposta e os comandos necessários para a sua realização (finalmente fechando o circuito). O evento teria um público bastante heterogêneo com médicos, foniatras, fonoaudiólogos, psicólogos, etc... Recrutei os melhores especialistas para discorrerem sobre as diferentes estações do circuito. Esbarrei, entretanto, em uma dificuldade: não conhecia ninguém em Porto Alegre que pudesse falar sobre processamento auditivo central. Como a minha verba para convidados nacionais já havia sido contingenciada, (havia já confirmado a presença dos professores Orozimbo Costa, Maria Cecília Bevilacqua de Bauru e o Luiz Carlos de Sousa –Alemão- de Ribeirão Preto) tinha de, necessariamente, apelar para uma solução caseira. Acabei ligando para um colega que trabalhava na Universidade Luterana do Brasil em busca de auxílio, pois lembrei que eles contavam com um curso de graduação de fonoaudiologia muito conceituado. Sem pensar muito, ele imediatamente sugeriu que eu convidasse uma professora que recém havia ingressado no curso chamada Sílvia Dornelles. Sem muitas opções acatei a sua indicação, Ele me passou o contato e ato contínuo, liguei. Muito delicada, prontamente aceitou meu convite. Fiquei sabendo durante a ligação que ela era natural de Santa Maria, onde havia se graduado em Fonoaudiologia pela Universidade Federal (UFSM) e, logo após, mudou-se para São Paulo para perseguir um curso de especialização e o programa de mestrado na antiga Escola Paulista de Medicina. Simpática esta moça, pensei após desligar o telefone. O evento foi um sucesso e lotou o auditório maior do HCPA. Lembro bem que estava sentado ao lado do Alemão assistindo a uma das palestras quando adentrou apressadamente no recinto uma linda morena elegantemente vestida. Inquieto com a visão, cutuquei o Alemão e mostrei: olha só que baita gata! Qual não foi a minha surpresa quando, alguns minutos após, o coordenador da sessão chamou ao púlpito a próxima palestrante: A morena, aliás, a tal da Prof. Sílvia Dornelles! Durante a miniconferência, além dos seus atributos físicos, descobri outros predicados na professora: Alemão, sussurrei, além de bonita não é que ela entende do riscado, é articulada e fala muito bem! Nunca fiquei tão contente em ter de fazer as honras da casa ao final da sessão. Cumprimentei a todos os palestrantes e me apresentei à Prof. Sílvia já convidando a todos para almoçar (o que estava fora do orçamento do curso, mas assumi o custo como um possível investimento!). Para meu azar, durante o almoço formou-se um pequeno grupo de egressos de Santa Maria liderado pelos Professores Pedro Coser e Cláudio Cechella que passaram a relembrar os velhos tempos mais ou menos alheios às conversas do resto da mesa. Ainda assim, tentei desferir alguma tijoladas na direção da professora, mas, admito, todas muito periféricas e infrutíferas...Pior, no nosso pouco contato, ainda tive a infelicidade de descobrir que ela tinha um namorado e parecia muito séria. Bom, como diria o outro, c’ést la vie! A verdade é que ali nascia uma grande amizade e admiração mútua que já dura quase duas décadas. Durante os primeiros

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anos desta convivência fomos percebendo uma série de interesses comuns e muitas afinidades. Cada um para o seu lado apreciando e respeitando as suas respectivas parcerias, mas, ainda assim, ambos morrendo de medo de assumir um compromisso definitivo travestido na palavra casamento. Em 2005 estes dois celibatários convictos se reencontraram num show do Roger Waters no estádio Olímpico pela primeira vez sem estarem, ao mesmo tempo, engajados em algum relacionamento. Após o concerto, estendemos a noite em um bar na Cidade Baixa passando a limpo os últimos anos e colocando as nossas conversas em dia. Tive uma desculpa indiscutível para sair mais cedo do meu ambulatório de otite média no final da tarde do dia vinte e quatro de junho de 2010. Estava atrasado para encontrar a Sílvia no Cartório de Registro Civil da 1ª Zona onde já nos aguardavam nossas testemunhas: o meu amigo José Augusto Motta e o primo da Sílvia, Laviera Laurino. Depois do casamento partimos diretamente em lua de mel para a França. O que era para ser uma ocasião íntima e discreta, acabou sendo alardeada com estardalhaço na mídia do estado inteiro pela indiscrição de um dos meus pacientes mais irreverentes e populares: o saudoso e querido amigo, jornalista Paulo Santana.

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Minha melhor lembrança é esse instante no qual,

pela primeira vez, me entrou pela retina tua silhueta provocante e fina como um punhal.

E agora que te tenho em minhas mãos, e sei que os teus nervos se enfeixam todos em meus dedos e os teus sentidos são cinco brinquedos com que brinquei; agora que não mais me és inédita; agora que compreendo que, tal como eu te vira outrora, ainda mais te verei;

agora que, de ti, por muito que me dês, novamente podes dar a impressão que me deste, a primeira impressão que me fizeste; — louco, talvez, tenho ciúmes de quem não te conhece ainda e, cedo ou tarde, te verá, pálida e linda,

pela primeira vez!

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Guilherme De Almeida – Poemas escolhidos, 1931.


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O quinto evento que passo a abordar foi o primeiro (e único) simpósio organizado pelo NOA (Núcleo de Otologia Avançada). Para poder discorrer melhor sobre a sua importância, teremos de regredir um pouco no tempo e recapitular algumas páginas seminais da otologia e da própria otorrinolaringologia brasileira. No início do terceiro milênio, um sentimento geral era compartilhado pelos otorrinolaringologistas de todo o planeta: éramos todos testemunhas privilegiadas do enorme crescimento da nossa ,outrora, tímida especialidade que vivenciava uma verdadeira revolução verificada no campo dos conceitos, dos recursos tecnológicos a nas ações terapêuticas que havia catapultado esta ciência a patamares talvez nunca sonhados por seus pioneiros. A otorrinolaringologia, em constante expansão, lança pseudópodos em direção às mais variadas áreas do conhecimento médico. É notória a nossa capacidade atual de circular com desenvoltura em áreas tão outrora distantes como a neurologia, neurocirurgia, genética e clínica médica. De fato, a otorrinolaringologia contemporânea emergiu no século XXI como uma ciência consolidada, reconhecida e pluripotencial. Ainda que todo este crescimento tenha sido uma legítima construção coletiva, a otologia merece um destaque especial por ter, de certa maneira, historicamente sempre liderado este processo. A introdução e popularização das técnicas microcirúrgicas, o microscópio operatório, as brocas de alta rotação, a pioneirismo na pesquisa experimental da orelha interna (que rendeu dois prêmios Nobel da especialidade), os implantes cocleares, a pavimentação do caminho à cirurgia da base do crânio entre outras tantas conquistas conferem à otologia uma posição maiúscula e de ponta-delança dentro da otorrinolaringologia. Curiosamente, mesmo após estas monumentais conquistas, naquele momento do tempo e do espaço (Brasil entre 1995-2000) especulava-se que a otologia estaria apresentando sinais de decadência ou encolhimento. Tal suposição era inverídica e totalmente descabida de qualquer sentido ou embasamento técnico-científico. Para provar tal equívoco, bastava folhear qualquer grande revista da nossa especialidade para constatar que os temas relacionados à otologia ainda ocupavam a maior parte do seu conteúdo. Da mesma forma, uma rápida consulta ao index médico à procura de artigos publicados nos últimos cinco anos tendo como palavras-chave otologia, ouvido e audição resulta em impressionantes 50.000 entradas !!! Em relação ao meio acadêmico, uma vez mais, a influência da otologia era enorme sendo responsável por 50% das teses apresentadas em todos os programas de pós-graduação nacionais. Assim, na nossa opinião, o que poderia representar uma crise de identidade ou de mercado da otologia, na verdade era apenas o reflexo de algumas singularidades próprias da otorrinolaringologia moderna associadas à evolução extemporânea das outras subespecialidades. A fim de discorrer sobre estas mudanças, reunimos no início de 2001 um punhado de profissionais identificados com a otologia e afinados científica, técnica e filosoficamente. Para tanto,

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pinçamos no cenário médico nacional cinco colegas que eram expoentes nas suas áreas de atuação para compor o que batizamos de NOA (núcleo de otologia avançada). Faziam parte deste grupo o Professor Orozimbo Costa (um dos precursores dos implantes cocleares no Brasil); Oswaldo Laércio Cruz (reconhecido por seus cursos de anatomia cirúrgica do osso temporal e tratamento das doenças da base do crânio); Luiz Carlos Alves de Sousa e Marcelo Ribeiro de Toledo Piza (dois dos maiores expoentes médicos na eletrofisiologia da audição). O time era completado por mim já lastreado pela bagagem de múltiplos estudos sobre a patogênese das otites médias iniciados nos meus anos de Mineápolis e que prosseguiram em Porto Alegre com o Com.Br. Depois de várias reuniões, decidimos que era chegada a hora de estender nossas discussões e ampliar e aprofundar estes debates com os demais colegas de todo o Brasil também entusiasmados com os rumos da otologia. O caminho mais adequado para tanto seria a organização de um pequeno encontro científico. Assim entre 17 e 18 de maio de 2002 no hotel JP em Ribeirão Preto promovemos o 1° Simpósio do Núcleo de Otologia Avançada composto de quatro módulos: 1. Anatomia Cirúrgica do Osso Temporal; 2. Patologias Inflamatórias da Orelha Média; 3.Tratamento Avançado da Surdez (Implantes Cocleares); Eletrofisiologia da Audição; 5. Distúrbios do Equilíbrio e Reabilitação Labiríntica.

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Admito que o encontro foi um sucesso muito maior de crítica do que de público. O mais importante, entretanto, é que fomos pioneiros na criação deste formato em módulos e plantamos algumas sementes que não tardariam a germinar... Passamos a discutir abertamente a enorme importância e o impressionante protagonismo da otologia e otoneurologia no cenário médico nacional tanto em nível acadêmico como, principalmente, assistencial. Uma análise mais atenta do histórico das ações daquele grupo, revela que o seu maior objetivo era o de deflagrar uma legítima campanha de valorização da otologia. A publicação de inúmeras teses e trabalhos científicos no país e exterior, a edição de três livros (entre eles o tratado de otologia clínica e cirúrgica mais completo do país), os incontáveis cursos de dissecção do osso temporal organizados pelo Laércio que cruzaram este país de norte a sul, a defesa apaixonada da eletrofisiologia da audição pelo Luiz Carlos, o monumental trabalho do Orozimbo com os implantes cocleares, são alguns exemplos deste comprometimento e, por que não, desta paixão pela otologia. Assim a ideia da apresentação de uma chapa para concorrer à direção da Sociedade Brasileira de Otologia nasceu como uma decorrência natural destes encontros com o objetivo precípuo de discutir a otologia com todo o cuidado, a profundidade e abrangência que ela assim exigia e merecia. Nosso compromisso firmado era o de difundir todo este monumental avanço da Otologia moderna a todos os colegas interessados em nosso país. Nosso grupo, compunha-se também de outros brilhantes colegas sabidamente identificados com esta ciência e que trabalhavam ativamente em prol do seu progresso. Além disto, a nossa equipe mesclava colegas de maior experiência com novas lideranças e jovens pesquisadores, procurando, desta maneira, proporcionar o impulso modernizador que sempre caracterizou a Otologia Brasileira. De minha parte, me senti profundamente honrado em ter sido indicado o líder desse grupo! Lembro bem que estava no bloco cirúrgico do HCPA numa tarde de terça-feira na primavera de 2002 quando recebi uma ligação do meu amigo Oswaldo Laércio. Depois das saudações de praxe ele foi direto ao ponto: Tchê (apelido pelo qual até hoje me chama!), nós estamos aqui reunidos na sede da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia discutindo a sucessão na Sociedade de Otologia e chegamos à uma conclusão unânime que deves ser um dos candidatos à presidência e para tanto tens nosso total apoio! Meio surpreso, desconfiado e muito indeciso (confesso que estes foram os meus primeiros sentimentos, pois a lisonja e a massagem no ego ficaram para bem depois...) , minha primeira pergunta só poderia ter sido esta: Nós? Mas nós quem cara pálida? Sua resposta foi categórica: Toda a diretoria executiva da ABORL. Era uma turma excepcional, prolífica e muito atuante, reconhecia. Mas o xadrez político da nossa associação naquela época estava muito confuso com dois grupos rivais alternando-se no poder em processos eleitorais que às vezes tangenciavam a baixaria! O grupo azul contava principalmente com colegas egressos da Escola Paulista de Medicina e da Santa Casa de São Paulo. O vermelho era originário, na sua maioria, da Universidade de São Paulo. À bem da

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verdade, uma briga paroquial entre paulistas que havia, incompreensivelmente, saído de controle espraiando-se por todo o território nacional. Eu tentava me manter neutro nesta pendenga, mas tenho que admitir que nutria uma simpatia maior pelos valores do grupo azul (e aqui não faço nenhuma alusão a preferências ou paixões clubísticas!). Pedi algum tempo para refletir, fazer alguns contatos, solicitar conselhos, enfim, consultar as minhas “bases”. Sabia que se aceitasse, seria rotulado como um representante do grupo “azul” e levaria esta rivalidade para dentro da Brasileira de Otologia. Tinha consciência também que do lado dos “rubros” surgiria uma candidatura tão legítima quanto a minha. E foi exatamente isto que aconteceu. Apoiado por um rosário de colegas de destaque (onde se sobressaíam aqueles que haviam criado o NOA comigo) e uma série de tradicionais serviços universitários, aceitei o desafio e lancei minha candidatura. Não tardou para surgir no horizonte o meu adversário: o meu amigo Marcelo Tepedino, conceituado otologista e Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sinceramente, achava que organizara uma plataforma mais consolidada do que a do Marcelo, assim como minha rede de apoios era mais ampla e heterogênea. O problema era que a eleição seria presencial e no Rio de Janeiro, ou seja, no campo do adversário. Não precisa ser um gênio do marketing político para depreender que, obviamente, um congresso na cidade maravilhosa estaria apinhado de cariocas (potenciais eleitores do candidato da casa!). Ao contrário do que se esperava (pelos antecedentes pouco civilizados das últimas eleições na ABORL), ambas campanhas esbanjaram civilidade e se caracterizaram por duas plataformas propositivas, bem elaboradas e, sobretudo, por um sentimento de cordialidade e respeito mútuo. Finalmente, durante o Congresso Triológico de 2002 fomos para a hora da verdade. Apesar de favorito, fiquei muito apreensivo durante toda a votação e apuração dos votos. Algumas horas depois, foi com flagrante emoção e inefável orgulho que recebi o resultado das urnas: havia sido eleito pelos meus pares o décimo-primeiro Presidente da Sociedade Brasileira de Otologia!

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Minha gestão compreendia o biênio 2004 – 2005 e, como não poderia deixar de ser, recrutei uma turma de confiança para compor minha diretoria: Presidente: Sady Selaimen da Costa (RS) Vice Presidentes: Silvio Caldas Neto (PE); Osvaldo Laércio M. Cruz (SP); Marcelo Miguel Hueb (MG) 1o Secretário:

2o Secretário:

Luiz Carlos Alves de Sousa (SP)

Marcelo Ribeiro de Toledo Piza (SP)

1o Tesoureiro:

2o Tesoureiro:

Celso Dall´Igna (RS)

Ciríaco Atherino Kotzias (SC)

Nossa gestão foi caracterizada por alguns projetos muito interessantes. Entre eles, a intenção de promover um amplo debate com o objetivo de elaborar um programa de ensino básico em otologia no país (realista e coerente com as nossas necessidades) e ao mesmo tempo mapear as atuais condições oferecidas para o seu aprendizado nos serviços de residência médica reconhecidos pela ABORL. Desta análise criamos um projeto de qualificação do ensino da otologia em âmbito acadêmico (serviços de residência médica) e assistencial (sociedades afiliadas) a fim de minimizar diferenças regionais e harmonizar programas de treinamento em otologia através de uma série de atividades-vetores. Ato contínuo, elaboramos um extenso programa de educação médica continuada com cursos satélites nas cinco regiões do país. A organização e logística destes eventos ficavam a cargo dos serviços ou das regionais. A intermediação com a SBO necessariamente transitava pelas respectivas vice-presidências regionais. À SBO cabia a elaboração do programa e a designação do corpo docente. Para cumprir tal compromisso, a SBO recrutou junto aos sócios equipes de orientação permanente em pelo menos quatro áreas: (1) Anatomia cirúrgica e dissecção do osso temporal e Doenças inflamatórias da orelha média; (2) Audiologia clínica e Eletrofisiologia da audição; (3) Avanços no diagnóstico e tratamento da surdez sensorioneural/Implantes cocleares ; (4) Distúrbios do equilíbrio e reabilitação labiríntica. Estes quatro grandes módulos (que foram extraídos do programa de ensino do NOA!) eram coordenados por profissionais que realmente ocupavam-se destas áreas tanto em nível assistencial quanto acadêmico. A abordagem dos assuntos era realizada de uma maneira pontual, completa e com graus de profundidade e complexidade crescentes. Batizamos este programa como “Cursos Itinerantes em Otologia”. Um segundo projeto desenvolvido pela nossa diretoria foi a Iª CAMPANHA NACIONAL DE SAÚDE AUDITIVA (CNSA-SBO). Esta campanha era uma iniciativa oficial e exclusiva da SBO sem

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nenhum fim lucrativo e que tinha, como objetivo geral, levar informações com credibilidade à população brasileira em relação ao profundo impacto pessoal, social e profissional causado pelas deficiências auditivas. Como não dispúnhamos de recursos para comprar espaços na mídia, fizemos uma parceria inédita com as indústrias de aparelhos auditivos (extremamente interessadas no sucesso da campanha!) que se cotizavam para pagar uma agência de publicidade que, por sua vez, tinha o papel de plantar nossas mensagens nos órgãos de comunicação. Para tanto, a sociedade constituiu um núcleo de geração de informações sérias e cientificamente respaldadas referentes a este prevalente problema. Estas informações eram transformadas em uma linguagem leiga e bastante acessível para posteriormente serem repassadas aos diversos segmentos da mídia. Esta, então, ocupa-se em distribuir, sob diferentes formatos, estas informações a todas as camadas da pirâmide social. Como objetivos pontuais e específicos da nossa campanha estabelecemos quatros metas a serem atingidas: 1. Valorizar o sentido da audição enfatizando que a sua privação parcial ou total pode representar um maiúsculo infortúnio pessoal; 2. Auxiliar a identificação e diagnóstico precoce das perdas auditivas principalmente nos extremos da vida; 3. Informar a população sobre as várias formas de tratamento deste problema assim como veicular noções gerais de habilitação e reabilitação auditiva; 4. Desmistificar o uso dos aparelhos de amplificação sonora individual sempre que bem indicados (aparelhos auditivos). Dentre estes quatro objetivos, buscamos priorizar, em um primeiríssimo plano, a valorização e a celebração da função auditiva tornando público a ideia de que a maioria dos distúrbios da audição tinham solução. Concomitantemente, buscávamos espaços em todas as mídias (sempre auxiliados por uma competente assessoria de imprensa) a fim de tentar desmistificar a resistência ao uso de aparelhos auditivos convencionais (quando estes fossem considerados a melhor opção de tratamento para o paciente). Almejávamos como um objetivo longínquo mas plausível triunfarmos sobre um dos preconceitos médico-sociais mais perversos e um dos dogmas mais injustificados: sofrer anos a fio no isolamento do silêncio pelo medo de ser absurdamente discriminado por utilizar, escondido nas circunvoluções do pavilhão auricular, um pequeno artefato que em última instância pode representar a monumental diferença entre a inclusão ou marginalização social.

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Esta campanha gerou uma avalanche de notícias fazendo das questões relativas à audição (ou à falta dela) uma pauta recorrente nos veículos de comunicação. Os nossos serviços de clipping identificaram, somente no primeiro ano, mais de 600 reportagens e entrevistas na mídia impressa e eletrônica! Aproveitando este mesmo formato, passamos a expandir o nosso enfoque também para o labirinto posterior e os terríveis distúrbios do equilíbrio. É impressionante saber que as quedas na terceira idade são as principais causas de morte acidental em pessoas com mais de 65 anos. Estima-se que 30% das pessoas acima dessa faixa etária sofrem quedas ao menos uma vez por ano no Brasil. A lesão acidental é a sexta causa de mortalidade em pessoas de 75 anos ou mais. A queda é responsável por 70% dessa mortalidade! Cientes e preocupados com estes números impressionantes a SBO lançou uma segunda campanha intitulada: “CAMPANHA NACIONAL DE PREVENÇÃO A QUEDAS NA TERCEIRA IDADE”. O objetivo principal era o de conscientizar a população para a prevenção deste grave problema a fim de interromper a cadeia de eventos antes de sua ocorrência e/ou minimizar os

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efeitos nocivos subsequentes. De acordo com os levantamentos, cerca de 60% das quedas ocorrem em casa, durante as atividades diárias e 25% delas são resultantes de “perigos domésticos”, como pisos escorregadios, pouca luminosidade e disposição inadequada de móveis. Assim o nosso foco era estimular que a comunidade procurasse identificar e eliminar os principais fatores de risco através de medidas domésticas simples e banais. Mais um grande sucesso! Voltamos com tudo para as páginas dos jornais e revistas, às telas das televisões, aos programas de rádios e aos sites especializados da internet.

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Um dos eventos mais tradicionais e concorridos da otorrinolaringologia brasileira era a Reunião da Sociedade Brasileira de Otologia criada a partir da sua fundação em 1969. A partir dos anos 90 identificou-se uma clara tendência da ABORL de encampar as chamadas sociedades de subespecialidades ou simplesmente “supras”(SBO, Sociedade Brasileira de Laringologia e Voz, Sociedade Brasileira de Rinologia) extinguindo-as enquanto personalidade jurídica e as transformando em grandes departamentos. Assim já em 2003 se percebia uma clara mudança na atitude da ABORL suprimindo seus encontros da grade do congresso Triológico. Segundo, contrariando o acordo inicial, a sociedade mãe (aqui e acolá apelidada de “madrasta” por línguas mais ferinas), que controlava toda a parte administrativa e financeira do congresso, resolveu “confiscar” a parte das supras no lucro do evento. Havia uma certa lógica nesta atitude: não era, de fato, muito justo que as supras não tivessem qualquer despesa e ficasse simplesmente engordando os seus cofres (principalmente a SBO) enquanto a ABORL, que investia grande esforço e recursos para se profissionalizar e estruturar, em assuntos de defesa profissional, ensino e treinamento, título de especialista e tantas outras ações dirigidas a todos os otorrinolaringologistas, fossem eles oto, rino ou laringologistas! Era necessário rever o acordo, pois começava a faltar dinheiro para essas ações de suma importância para todos. O problema era o danado do ditado que dizia que “o combinado nem é caro nem é barato... é o combinado”. Parece, porém, que a ABORL decidiu resolver a questão unilateralmente, “sem conversar muito bem com os russos”, como diria um célebre anjo de pernas tortas. Quando ganhei a eleição disputada durante o Triológico do Rio de Janeiro, a ABORL era presidida pelo Prof. José Victor Maniglia e já era insustentável o descontentamento da sociedade mãe com respeito à concorrência das supras. Esta situação foi magnificamente resumida no prefácio do livro “História da Otologia no Brasil” escrito pelo meu bom e fiel amigo e parceiro Sílvio Caldas que a seguir transcrevo: Além de “confiscar” o lucro do Triológico, a ABORL decidiu que, a partir de 2004, cancelaria os repasses também das anuidades das supras. E mais: ela fazia agora pressão sobre as supras para que estas transferissem todo o seu saldo em conta corrente para os cofres da SBORL, saldo este que, alegava ela, teria sido engordado com base na benevolência materna. É célebre a reunião em que o Prof. Sady resistiu a esta pressão e, criativo que era e chegado a frases de efeito, saiu-se com uma impublicável, a respeito de certa festa a fantasia, que deixou o pessoal da SBORL sem argumentos. Ou com aquela em que depois diria em tom firme e grave: “Não serei eu a tocar o réquiem da Sociedade Brasileira de Otologia!”. E estávamos mesmo caminhando para a morte, pois já não tínhamos mais um corpo bem definido de sócios (os nossos sócios eram os sócios da ABORL) e nem tínhamos um evento científico (o Triológico nos havia fagocitado).Uma morte perfeitamente evitável, afinal, a SBO desfrutava então de uma situação financeira confortável que lhe dava a condição de, no limite, partir para voos

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solos. E não tinha só um bom saldo bancário. Tinha um patrimônio muito maior: patrocinadores robustos. Enquanto o governo federal tinha “presenteado” os laboratórios farmacêuticos com a lei dos medicamentos genéricos, tinha entregue de lambuja, para as empresas de próteses auditivas e de implantes, o programa de Atenção à Saúde Auditiva, com sua profusão de “APACs” e de portarias ministeriais. Os eventos da SBO estavam definitivamente garantidos. Era só querermos. E não é que, de fato, resolvemos querer? Assim, em substituição às históricas Reuniões da Sociedade de Otologia concebemos um novo evento com uma roupagem nova e tendências modernizadoras. Para tanto a SBO convocou seus parceiros comerciais de primeiríssima hora e criou o chamado “Four Otology” que nascia com o objetivo de reunir, sempre, quatro escolas com reconhecida tradição em pesquisa, assistência, geração e difusão de conhecimentos nas áreas de otologia, otoneurologia e cirurgia da base do crânio. Já na primeira edição contamos com uma constelação de estrelas mundiais, um verdadeiro dream team da otologia global: Michael Paparella e Hamed Sajjadi da escola de Mineápolis; os Professores Michel Portmann, Didier Portmann, Jean Pierre Bebear e Vincent Darrouzet do Instituto Portmann de Bordeuax; Antonio de La Cuz e William Hitselberger do House Ear Institute de Los Angeles! , Lee Harker de Portland, Oregon. É claro que a Otologia brasileira estava muito bem representada no programa do evento, especialmente na coordenação das sessões e encaminhamento dos debates. Neste sentido, o formato desta reunião foi concebido para oportunizar a constante troca de experiências entre as escolas, discussão e confrontação de condutas em tópicos polêmicos e definições de diretrizes sempre que houvesse consensos. Para tanto, o evento foi realizado no elegante centro de Convenções do Hotel Maksoud Plaza (SP) em auditórios único, sem sessões paralelas e com microfones à disposição da audiência. Assim, sempre ao final das sessões, os participantes eram estimulados a questionar os painelistas diretamente e sem intermediários. Previamente ao evento principal, oferecemos como funções pré-congresso todos os nossos cursos itinerantes (anatomia cirúrgica do osso temporal, otite média, audiologia clínica, eletrofisiologia da audição e distúrbios do equilíbrio e reabilitação vestibular). O evento foi primoroso sob o ponto de vista científico e social e um estrondoso sucesso de público uma vez que contamos com quase mil colegas inscritos! Talvez até hoje este seja o encontro mais celebrado e lembrado da história da otologia brasileira. É claro que a partir do seu êxito, ele tem sido repetido exatamente com o mesmo formato por vários anos chegando atualmente à sua quinta edição!

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Cheguei ao encerramento da minha gestão na SBO completamente realizado, pois, a meu ver, superamos às nossas próprias metas e expectativas. Ainda assim, gostaria de comentar dois importantes desdobramentos deste período. O primeiro foi a qualidade dos debates e o alto nível do processo eleitoral. Tanto eu quanto o Marcelo Tepedino (que chegaria finalmente à presidência da SBO em 2011 – inclusive com o meu apoio!- ) observamos uma postura elegante e respeitosa durante

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toda a campanha, rigorosamente, ignorando as batalhas que vinham sendo travadas por terceiros nos bastidores da nossa querida ABORL. Recordo que quando voltei para Porto Alegre, o primeiro telefonema que recebi de congratulações e com votos de sucesso foi exatamente do meu querido amigo Marcelo! Podemos ousar dizer que fomos nós os primeiros a colocar água na inconcebível fervura política da otorrinolaringologia nacional. O segundo fato, que ao meu ver atesta a aprovação da nossa gestão, foram as eleições sucessivas (por aclamação) de todos os componentes do meu chamado núcleo “duro” de comando. Assim tornaram-se presidentes da SBO e deram continuidade aos nossos projetos os colegas Luiz Carlos Alves de Sousa (2006-2007); Oswaldo Laércio Mendonça Cruz (2008-2009) e Sílvio Caldas (2010-2011)! Nos estertores da minha gestão na SBO teve início mais uma disputada corrida eleitoral para preenchimento do cargo de presidente da ABORL. Novamente um confronto entre as chapas azul e vermelha com os seus respectivos candidatos: Prof. José Eduardo Lutaif Dolci pelos anilados e o Prof. Richard Voegels pela ala rubra. É bem verdade que naquele momento os ânimos estavam bem menos exaltados, mas ainda assim era um pleito imprevisível e potencialmente explosivo. Ambos os candidatos eram excelentes e, novamente, esperava-se uma divisão do eleitorado prevendo-se um acirrado páreo cabeça à cabeça com provável decisão no photochart! Apesar de gozar da amizade dos dois, tinha uma afinidade política maior com o Dolci até porque ele havia sido um dos articuladores e maiores incentivadores da minha candidatura à presidência da SBO. Assim, quando solicitado a expressar o meu apoio explícito à sua candidatura, não titubeei e o fiz através de uma contundente carta aberta onde claramente tornava pública a minha posição. O resultado da eleição foi conhecido durante o Congresso Triológico de São Paulo em novembro de 2005 e a chapa encabeçada por Voegels e Shiro Tomita (vice-presidente) foi proclamada legitimamente vitoriosa por uma estreita margem de votos. Bom, pelo menos são duas cabeças privilegiada pensei comigo. Não há dúvidas que a ABORL continuará em ótimas mãos. Como estava encerrando o meu mandato de dois anos à testa da SBO, para mim, na prática não haveria muita diferença entre um e outro (na medida em que ambos possuíam méritos inegáveis para ocupar o cargo). Cumprimentei a todos os envolvidos no processo, desejei muita sorte aos vencedores e voltei para Porto Alegre com a certeza de que estava virando a página da minha vida associativa. Uma semana após, estava no consultório quando recebi uma ligação do Presidente eleito Richard Voegels. Após as considerações iniciais, ele foi direto ao ponto: queria que eu fosse trabalhar com ele na ABORL ocupando o cargo de diretor da Comissão de Educação Médica Continuada. Confesso que fui pego meio de surpresa, mas logo após me recompor fiz questão de lembrá-lo que não havia votado na sua chapa e, aliás, havia apoiado explicitamente o seu adversário! A sua resposta

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demonstrou uma grandeza de espírito e um altruísmo associativo que raras vezes pude identificar no cenário político brasileiro: a eleição já são águas passadas, disse ele. Agora o momento é de espantar os sectarismos e arregimentarmos, sem concessões, todas as forças do bem (independentemente das suas posições) em torno de um objetivo comum e um ideal maior. A ABORL não poderá seguir rachada! Somente com a força da nossa união é que conseguiremos espantar as grandes ameaças externas que continuam pairando sobre nós. Temos de rechaçar veementemente os ranços históricos, oxigenar e aperfeiçoar todos os nossos processos internos se realmente queremos atingir as nossas metas. Para tanto, o talento e a virtude se impõe como valores indispensáveis independentemente das cores ou matizes ideológicas. Aqui não temos mais opções: ou nos tornaremos vitoriosos como sociedade ou afundaremos como indivíduos! Pronto, que petardo! Tudo o que eu esperava (e queria) ouvir de um presidente recém eleito! No dia seguinte já estava ligando para o Brasil inteiro e convocando a primeira reunião presencial da nossa querida Comissão de Educação Médica Continuada!

Mas a vida continuava e além do meu consultório particular que crescia a cada dia me aventurei em outras atividades relacionadas à medicina. Assim, em 2002 juntamente com os colegas Nédio Steffen, Gérson Maahs, Elisabete Pereira e Maria Beatriz Rotta Pereira abrimos um serviço de otorrinolaringologia e cirurgia de cabeça e pescoço no recém-criado Mãe de Deus Center. Ali acolhemos em torno de 15 otorrinolaringologistas que transferiram seus consultórios para este local e ajudaram a montar o que é hoje um dos serviços mais tradicionais da cidade na especialidade. A partir do sucesso verificado nesta empreitada, fomos convidados pela direção do Sistema Mãe de Deus a assumir a todas a gestão da otorrinolaringologia em todas as suas unidades.

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Possivelmente por conta da minha atuação assistencial no Rio Grande do Sul e acadêmica na UFRGS e no resto do país, fui por três anos (2008, 2009 e 2013) agraciado com o prêmio “MAIS ADMIRADOS PELOS PRÓPRIOS MÉDICOS” na minha especialidade concedido pela revista ANÁLISE SAÚDE. Normalmente, não ligo muito para estas “láureas” , mas esta tinha uma característica bem especial: era outorgada a partir de uma votação por amostragem no Brasil inteiro e o “colégio eleitoral” eram os meus próprios pares, ou seja, colegas médicos. Indiretamente, quis acreditar que esta poderia ser a minha imagem perante a sociedade médica. Quem bom pensei. Sai para celebrar com os dois outros “premiados” gaúchos: Luiz Lavinsky e Nédio Steffen.

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Ainda que minha atividade assistencial fincasse cada vez mais minhas raízes em Porto Alegre, já havia sido inoculado com o vírus da inquietude há muitos anos e trazia no meu genoma a característica fenícia mais marcante que era do gosto por uma vida itinerante. Assim, não vacilei quando fui agraciado com um convite e uma bolsa de estudos da Fundação Fisch para realizar um Visiting Fellowship na Universidade de Zurique. Organizei todas as minhas atividades assistenciais e acadêmicas, emendei umas férias com uma licença e parti para a Suíça. Passei três meses entre Zurique (onde acompanhava o Prof. Fisch) e Lucerna (com o meu amigo Thomas Linder). Foi uma experiência muito proveitosa na medida em que, mais velho e mais maduro, pude observar mais criticamente as condutas e conceitos do Professor. Muito interessante também foi já ter discernimento para comparar semelhanças e diferenças entre as filosofias dos mestres Fisch e Paparella. Citarei duas que me chamaram muito a atenção. Cirurgicamente o Dr. Paparella era extremamente rápido, habilidoso e tecnicamente perfeito, mas concentrava seu campo de atuação nas operações de orelha externa, média e Saco Endolinfático (ficou célebre sua observação de espanto quanto lhe comuniquei que queria me aventurar pelas cirurgias da base do crânio: Sady, life is short and this kind of surgery in too damn long! Já o Professor Fisch era extremamente perfeccionista em qualquer circunstância e era um dos maiores entusiastas e incentivadores das longas cirurgias da base lateral do crânio. Filosoficamente o Dr. Paparella tratava as doenças com uma abordagem baseada na patogênese, enquanto o Prof. Fisch era 100% orientado pela patologia! Pessoalmente, ambos eram grandes figuras, cada um à sua maneira. Impossível comparar, mas guardavam alguma similitude genética uma vez que um era ítalo-americano e o outro ítalo-suíço! Estabeleci uma ótima relação de amizade e profissional com o Professor Fisch e com o Thomas Linder. Tanto é que, um ano após voltei à Zurique como um dos instrutores convidados do seu famoso curso de cirurgia do osso temporal ! Tratei de homenagear estes dois grandes mestres combinando suas características em um artigo que publiquei na prestigiada revista Otolaryngologic Clinics of North America: The Flexible Endaural Tympanoplasty. Pathology Guided, Pathogenesis Oriented Surgery for the Middle Ear.

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Neste período também fiz várias visitas à Mineápolis com o objetivo precípuo de rever os meus amigos, voltar ao laboratório de histopatologia do osso temporal e ao Otitis Media Group, mas, principalmente, para usufruir da companhia do meu grande amigo, mestre e mentor Dr. Michael Paparella. O Professor sempre foi um educador por excelência reunindo todas as características de um grande professor: conhecimento, curiosidade, experiência e acima de tudo, disponibilidade para sentar e conversar e generosidade para dividir o seu vasto cabedal de conhecimento. Não foram nem uma ou duas, mas inúmeras vezes que os nossos encontros de “lazer” derivavam para longas conversas sobre os temas que mais nos uniam e identificavam: história da otorrinolaringologia, tênis, patogênese das otites médias e doença de Meniére!

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Fui o orador representante de todos os seus alunos na festa do seu aniversário de 75 anos e dividi com mais de 300 convidados algumas das suas melhores pérolas: • “Se a vida lhe alcançar limão, não reclame: faça uma limonada”! • “Nossos problemas são como um copo de água preenchido até a metade. E este fato nos remete a duas atitudes possíveis: passar a vida inteira lamentando da metade que falta ou celebrar e valorizar o que existe. A decisão é nossa!” • “Patogênese é a jornada entre a etiologia e a patologia” • “Quando eu morrer , quero que conste no meu epitáfio: aqui jaz o Dr. Patogênese! • “Ajude as pessoas, faça a caridade, herança multifatorial!” Mas o nosso assunto predileto mesmo era sobre medicina e, particularmente, sobre os progressos dos meus estudos clínicos em otite média. Na verdade, todo o nosso grupo de pesquisa do HCPA/UFRGS (Com.Br) estava muito empenhado em adequadamente embasar os conceitos teóricos propostos pelo Prof. Paparella na teoria do Continuum. Mas, a maturidade do nosso próprio grupo passou a fazer com que não assimilássemos automaticamente todas aquelas ideias sem antes analisar criticamente algumas das suas facetas mais obscuras. Assim ousamos questionar o Professor descartando algumas hipóteses, ampliando e aprofundando outras, enfim, tentando chegar mais próximos da intangível verdade absoluta!

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Pouco A Pouco A Razão Vai Obscurecendo Aqueles Conceitos Que, Intutitivamente, Pareciam Tão Óbvios

Muito animado com a produtividade do nosso time de pesquisa na UFGRS, o Professor Paparella decidiu que havia chegado a hora de propor o meu nome como potencial membro do “Collegium Oto-Rhino-Laryngologicum Amicitiae Sacrum” (CORLAS). Confesso que nunca havia ouvido falar nesta sociedade que de fato era quase secreta e, mais tarde aprendi, funcionava com uma espécie de maçonaria da otorrinolaringologia mundial constituindo-se na mais importante e influente sociedade científica internacional da especialidade! A importância do CORLAS é inegável em seu quase um século de atuação. Após a Primeira Guerra Mundial ter deixado milhões de mortos e/ou feridos, o CORLAS surgiu, em 1926, oferecendo um cenário científico no norte dos Países Baixos, onde os líderes internacionais a partir de “ambos os lados” poderiam voltar a trocar conhecimentos científicos, partindo esta ideia notável de dois cientistas holandeses: Charles Emile Benjamins e Adriaan De Kleyn. A solidez deste projeto desafiador foi plenamente demonstrado pelo crescente comparecimento às seguintes reuniões anuais e a elaboração de regras de salvaguarda do espírito no qual o Collegium Oto-Rhino-Laryngologicum Amicitiae Sacrum está inserido. Desde então, a caravana do CORLAS se reúne anualmente em diferentes países congregando pesquisadores e clínicos de destaque dos cinco continentes. Entre seus membros são encontrados expoentes antigos e atuais da otorrinolaringologia global que, com o seu trabalho, ajudaram na construção da nossa especialidade. Entre eles, o mais proeminente, Prof. George Von Bèkésy, que com seus estudos da função auditiva, mais particularmente na descrição das ondas viajantes cocleares, recebeu o prêmio Nobel em Fisiologia - Medicina em 1961. Importante salientar que o ingresso ao Collegium é feito exclusivamente através da indicação dos novos candidatos pelos seus representantes nacionais após uma análise minuciosa da sua bagagem científica por um comitê independente e internacional. Neste processo, o Collegium aceita até 10 membros de cada país e, para tal, o postulante deve ter menos de 50 anos de idade e, como mencionado, demonstrar reconhecida capacidade técnico-científica. Até aquele momento apenas três brasileiros faziam parte dos seus quadros: Prof. Pedro Luís Mangabeira Albernaz, Prof. Maurício Malavasi Ganança e Prof. Ricardo Ferreira Bento. Fui indicado para o CORLAS pelos três colegas brasileiros tendo recebido um tremendo suporte dos Professores Paparella (EUA) e Marcos Goycoolea (Chile). Sem dúvida alguma, a minha aprovação

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para ingressar neste seleto grupo deveu-se, fundamentalmente, à pesquisa dita translacional desenvolvida ao longo de vários anos com os pacientes portadores de otite média crônica no nosso ambulatório das sextas-feiras no Hospital de Clínicas. Aprovado pelo comitê científico assumi como membro titular do CORLAS em 2008 com toda a pompa e circunstância inerentes ao cerimonial da instituição em um jantar de gala no Palácio Real em Budapeste (Hungria). Como palestra de estreia abordei, como não poderia deixar de ser, um tópico que realçava a nossa principal linha de pesquisa sobre a patogênese das otites médias: “Contralateral Ear in Chronic Otitis Media”.

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Aproveitava cada uma destas janelas de oportunidade para divulgar o nosso trabalho da melhor maneira possível. Para tanto tratei de aperfeiçoar

minhas

apresentações

que

eram

construídas com muito esmero e extrema atenção aos detalhes. Tinha absoluta certeza de que, sendo um representante do terceiro mundo, teria de reiteradamente superar expectativas e quebrar estigmas pré-concebidos para poder espraiar as nossas ideias e teorias. Depois de muito treinar, tornei-me um verdadeiro ás do PowerPoint e, modéstia à parte, criei um estilo de apresentações que

usava e abusava das formas sem jamais

prescindir do conteúdo! Todo este trabalho era muito facilitado pelo nosso monumental bando de dados e imagens. Ao final de cada uma destas palestras eu louvava em agradecimento o dia em que decidi criar o Com.Br! Assim, foi com enorme satisfação que passei a perceber que o nosso trabalho passava a ter cada vez mais visibilidade sendo definitivamente reconhecido fora do Brasil. Recapitulando meus roteiros de viagens, concluo que os dividendos deste reconhecimento vieram sob forma de convites para expor o nosso trabalho nos cinco continentes: Montevideo, Punta del Este, Buenos Aires, Arequipa, Lima, Mineápolis, Nova Iorque, Dallas, Orlando, Miami, Chicago, San Diego, Los Angeles, Toronto, Lisboa, Porto, Coimbra, Paris, Bezier, Liverpool, Hannover, Zurique, Budapeste, Marrakesh, Dacar, Beirute, Dubai, Tóquio, Melbourne, Sydney, Adelaide enfim levamos a nossa mensagem e a nossa instituição a mais de trinta destinos internacionais!!! Mas agora havia chegado a hora de mais um grande desafio: montar e operacionalizar a Comissão de Educação Médica Continuada (EMC) da ABORL. Sempre considerei a EMC uma das missões mais

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importantes da nossa Associação, pois ela gera um impacto que não pode ser medido em bases individuais repercutindo diretamente na qualidade do trabalho médico e no seu mais importante e nobre produto : a saúde da população. Meu grupo de trabalho era excelente e representativo, mas do meu exército inicial acabei reduzido a um pelotão composto por apenas três esplêndidos soldados: Dra. Renata di Francesco (SP), Dra. Renata Dutra (SP) e Dr. Felippe Felix (RJ). Precisávamos criar um sistema operacional que pudesse organizar este monumental volume de novas informações produzidas diariamente para, posteriormente, repassá-las em bases regulares para os nossos associados já devidamente depuradas de vieses ou modismos. Era uma tarefa e tanto, pois tínhamos a plena consciência de que as nossas ações poderiam modular para melhor ou para pior a qualidade dos serviços médicos prestados à população. Se esta já era uma enorme responsabilidade em se tratando de colegas mais experientes tornava-se muito maior, maiúscula, na atenção dedicada aqueles jovens otorrinolaringologistas que iniciavam as suas vidas profissionais. Influenciar positivamente estas carreiras era uma missão pra lá de instigante. Como todos éramos professores (os três bem mais jovens do que eu, a bem da verdade...) comungávamos a noção de que o derradeiro e definitivo norte de uma trajetória médica será tanto melhor, na medida em que o jovem profissional souber captar, integrar e gerenciar o constante fluxo de conhecimentos gerados e a parafernália tecnológica que tem à sua disposição compatibilizando-os à medicina tradicional e, obviamente, aos valores éticos básicos das relações humanas. Em outras palavras, o ideal gravitará em torno de uma situação onde se exige o domínio destes novos conhecimentos e tecnologias acrescentando, mas em hipótese alguma substituindo, a tradicional, imutável e absolutamente insuplantável relação médico-paciente. A tarefa só não era maior do que a qualidade do meu grupo de jovens colaboradores. Fundamentalmente competentes e criativos, com uma índole maravilhosa, motivados e desprendidos. Cada qual com seu estilo próprio. Assim sobressaía-se a determinação e a desenvoltura técnicacientífica da Renata di Francesco com uma formação esmeradamente esculpida ao longo dos seus anos de atividades na Universidade de São Paulo; A criatividade e a aptidão técnica do Felipe e a sua prodigiosa imaginação para desenvolver novas ferramentas digitais (sem dúvida alguma, já, um dos maiores expoentes da nova otologia brasileira); A extrema capacidade de trabalho (anônimo) e a infinita devoção à graduação da Renata Dutra (Renatinha), talvez uma das colegas mais competentes, dedicadas e altruístas que conheci em toda a minha vida. Ainda inexperientes, muito intuitivamente, começamos a planejar as nossas ações em três níveis: público alvo, complexidade e timing. Também definimos que já era tempo de usar e abusar dos recursos de informática a serviço da medicina mesmo sabendo que alguns associados mais antigos

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ainda não estavam familiarizados com este “tal de computador”! Lembro bem de uma reunião onde ponderamos os pós e contras de radicalizar na tecnologia digital e chegamos à conclusão de que a ABORL não poderia prescindir da vocação de pioneirismo que caracterizou historicamente a nossa especialidade. Sem sombra de dúvidas, deveríamos buscar um posicionamento estratégico de absoluta vanguarda direcionando todas as nossas antenas no sentido da modernidade. Definimos, então, nossos Projetos: 1.OTOWEB: envolvia um ciclo de palestras sobre temas prevalentes da especialidade transmitidos com uma periodicidade mensal em tempo real via internet com plena interação entre apresentadores e públicoalvo. Concebido pela Renata di Francesco, constituiuse em um sucesso absoluto de público e crítica, já projetando a possibilidade de

num futuro muito

próximo realizarmos o nosso ambicioso congresso brasileiro VIRTUAL de otorrinolaringologia!! Para se ter uma base, entre 2006 e 2007 foram realizados 14 encontros transmitidos ao vivo através da web com uma média de 360 participantes por edição com um crescimento no número de acessos em torno de 400% desde a transmissão pioneira em 2006. 2.PRO-ORL: Paralelamente às suas ações já tradicionais a ABORL-CCF, em uma parceria inédita com a Artmed/Panamericana Editora, apresentou aos seus associados uma nova atividadevetor intitulada PRO-ORL. Tratava-se de um programa de educação médica continuada à distância que radicalizou o conceito de veiculação e distribuição do conhecimento médico em nosso país. Neste programa nada mais nada menos do que o estado da arte da otorrinolaringologia internacional era criteriosamente revisado por autores selecionados pela associação e, posteriormente, oferecido diretamente ao público-alvo sob o formato de uma publicação trimestral. O programa era divido em ciclos e módulos que são entregues diretamente na residência dos assinantes. Cada módulo é constituído de quatro a seis capítulos abordando temas da especialidade amplamente revisados pelos autores e oferecidos sob um formato acessível, condensado, enxuto e pedagogicamente processado. Na definição dos temas abordados eram priorizados os tópicos de maior relevância e aqueles mais presentes no cotidiano do otorrinolaringologista geral. Materiais de apoio de fácil consulta (tabelas, cartelas e esquemas posológicos) e CDs demonstrativos de técnicas cirúrgicas também faziam parte deste pacote. Mais ainda, através do PRO-ORL os assinantes acrescentavam preciosos créditos no Sistema Nacional de Creditação uma vez que ao final de cada ciclo (quatro módulos) recebiam uma prova em suas casas que aferia seu aproveitamento nos conteúdos trabalhados.

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Terminamos o ano de 2007 com um balanço francamente positivo onde contabilizamos uma produção editorial que envolve um ciclo completo, quatro módulos, trinta autores, vinte um artigos científicos em 710 páginas, um caderno de avaliação e um de comentários das questões da avaliação, um CD e uma cartela. Mais de 900 colegas de todo o Brasil já haviam aderido ao programa e uma parcela considerada dos dividendos auferidos foram distribuídas aos autores e, principalmente, a ABORL.

3. PROJETO GRADUAÇÃO: A ideia atrás deste programa era criar ações voltadas à qualificação do ensino da otorrinolaringologia em âmbito acadêmico (faculdades de medicina) a fim de minimizar diferenças regionais e harmonizar programas de treinamento. Como método de ação visava formatar e sugerir às disciplinas de graduação um currículo de otorrinolaringologia mínimo e sintonizado com às necessidades do médico generalista. Este projeto, bastante ambicioso, somente foi concluído anos mais tarde pela obstinação, garra e determinação da Renatinha Dutra. Ainda assim, conseguimos lançar as suas bases no primoroso DVD Otorrinolaringologia: Introdução à Especialidade, editado pela dupla de devotos ao ensino de graduação Simão e Otávio Piltcher.

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4. OTOTUBE: Projeto concebido pelo Felippe Felix com o objetivo de permitir e intensificar a transferência e troca de experiências entre os sócios através da criação de uma plataforma de publicação e compartilhamento de vídeo-aulas, vídeos cirúrgicos, casos interessantes, exames diagnósticos, curiosidades, etc... Apesar de ser inovadora e sintonizada com a tendência mundial de veicular informações livremente através das redes sociais, esta ideia foi sendo lapidada e amadurecida ao longo dos anos para finalmente desabrochar em 2017 com um nome ligeiramente diferente do original: ORLTUBE! 5. CALENDÁRIO E CREDITAÇÃO: A ideia original era organizar e disponibilizar via internet um calendário anual de todas as atividades científicas apoiadas e/ou promovidas pela ABORL-CCF. Este calendário permanente atualizaria informações importantes sobre o conteúdo programático dos eventos, datas, locais, prazos de inscrição, público-alvo, links, etc... Ao consultar o calendário, o associado poderia programar-se com antecedência a fim de aproveitar ao máximo o menu científico oferecido pela ABORL-CCF conferindo, ao mesmo tempo, o número de créditos fornecidos por cada atividade. Uma bela iniciativa, mas até hoje, impossível de ser efetivada. Infelizmente, como no poema de Alberto de Oliveira, um tão belo quanto intangível lírio...

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A água era grossa e infecta, o ar adensado e impuro.

Flutuava à minha frente um grande lírio branco, Um lírio muito branco. Eu tentava colhê-lo, em convulso arranco, Estendia-lhe a mão, - o lírio fugia, Fugia, refugia, A boiar, a boiar na água estanque e sombria. Alcançares a flor ideal que tens em frente. E o lírio à minha frente, Muito branco, a sorrir, quase resplendente, Ia sempre a fugir, o grande lírio branco; E eu buscava alcançá-lo em convulsivo arranco. E da noite no escuro Debatia-me em vão pelo pântano escuro.

E a água era grossa e infecta, e o ar adensado e impuro...

6. CONGRESSO ON-LINE: A joia maior da nossa gestão! Todas as atividades de um congresso presencial como conferência internacional, mesas redondas, simpósios satélites, salas de bate papo, enquetes interativas, bancos de dúvidas e a possibilidade de proximidade com os congressistas. Tudo virtual, pela internet e sem sair de casa! Essas foram as propostas do Primeiro Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia totalmente On-line, transmitidos de São Paulo no dia 19 de setembro de 2009 . Durante cerca de 5 horas mais de 2000 internautas espalhados por todo o Brasil e outras regiões do planeta puderam acompanhar nada mais nada menos do que o estado da arte da especialidade em discussões transmitidas ao vivo pela rede mundial com o apoio de uma plataforma virtual dinâmica e totalmente interativa. A ideia surgiu a partir do sucesso da Otoweb, programa de Educação Médica Continuada à distância que em seu segundo ano, já havia contabilizado o acesso de quase 3 mil sócios da ABORL-CCF às transmissões. Pensando em expandir essas possibilidades, com difusão de informações em tempo real, que não se limitasse a uma simples conferência, a Comissão decidiu criar um congresso “presencial” via web. O sistema funcionava da seguinte maneira: após a inscrição o congressista tinha acesso a um ambiente que reproduzia um centro de convenções onde várias salas podiam ser acessadas: auditórios, temas livres, centro de exposições e pontos de encontro (salas de chat).

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Nos auditórios, foram abertas três salas simultâneas possibilitando ao congressista o livre deslocamento entre elas: Otologia, Rinologia e Laringologia. Durante estas apresentações os participantes eram estimulados a responder enquetes e, através de uma ferramenta específica questionar os painelistas durante as sessões. Para se ter uma ideia da globalização inerente à iniciativa, o Congresso foi aberto em grande estilo com uma participação internacional de um colega português (Prof. Mário Andrea) que abordou os avanços da laringologia em uma belíssima conferência transmitida a partir de um estúdio localizado na Alemanha! Seguiram-se mesas-redondas que contavam com convidados nacionais reunidos nos estúdios da Atitude na cidade de São Paulo (empresa que tecnicamente viabilizou a realização do evento) auxiliados por colegas espalhados em todas as regiões do país que participaram das atividades das suas próprias casas através do sistema skype. Durante todo o período de inscrições os congressistas puderam votar nos tópicos que gostariam de ver abordados nas sessões fazendo com que a grade científica fosse compartilhada e totalmente afinada com as suas expectativas e necessidades. A programação do congresso ficou no ar durante mais de um ano, ou seja, ao contrário de um evento presencial o congressista pode assistir a todo o conteúdo científico oferecido quantas vezes quisesse e no momento que achasse melhor! Mais ainda, uma vez detectado pelo sistema que o congressista havia frequentado a, pelo menos, setenta por cento das atividades disponibilizadas a sua participação era automaticamente reconhecida e o seu certificado liberado via e-mail podendo ser impresso na sua casa. Da mesma forma os temas-livres foram adaptados para serem autoexplicativos havendo duas seleções para o melhor trabalho: prêmio da comissão científica e o prêmio “popular” outorgado pelos internautas a partir de votação aberta na rede. Um parque de exposições foi também montado possibilitando a livre navegação nos estandes dos patrocinadores onde os seus principais produtos eram destacados e links aos sites das empresas disponibilizados. Uma vez que o congressista completasse o seu tour virtual pelos estandes de todos os patrocinadores o sistema liberava uma senha possibilitando o seu ingresso posterior aos três cursos pós-congresso! Foi uma festa ! Uma legítima celebração científica onde mesclaram-se os tradicionais valores de uma congresso médico com a agilidade, a rapidez e a universalidade do mundo digital. Não há dúvidas que esta pioneira iniciativa da ABORL se constituiu em um marco divisor de águas na história dos congressos médicos apontando, com certeza, quais seriam os caminhos que deveriam ser trilhados pelas suas ações de educação continuada. Ao final, na sessão de encerramento (com direito a um pocket-show musical com a banda Prata da Casa) a euforia era flagrante e todos concordavam que ali presenciávamos um momento singular na medicina brasileira: Estávamos fazendo história! Enfim todos os objetivos do Congresso haviam sido plenamente atingidos (senão superados):

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1. Realizar o primeiro congresso médico do mundo veiculado completamente via internet totalmente on-line e 100% interativo; 2. Oferecer educação médica continuada em ORL em formato digital e tempo real; 3. Situar a ABORL na vanguarda científica e tecnológica global; Fomos os pioneiros ! 4. Possibilitar ao associado assistir e interagir em um evento médico completo sem sair da sua casa; 5. Estimular a inserção internacional da ABORL; 6. Criar grade científica interativa

Ao final da minha gestão na Educação Médica Continuada, experimentei uma sensação muito especial: a do dever cumprido. Tenho mais do que a certeza, a plena convicção, de que o nosso grupo honrou a sua indicação e a confiança em nós depositada pela direção da ABORL. Reiterávamos que o foco principal destes esforços sempre foi satisfazer o nosso numeroso e qualificado corpo de associados. Importante salientar que a comissão teve o cuidado de pautar as suas ações focadas em atender o otorrinolaringologista na sua plenitude independentemente do seu grau de experiência profissional. Assim, algumas ações foram mais voltadas para a qualificação do jovem residente enquanto outras buscavam trazer novidades e o estado da arte a colegas mais experientes. Ao me despedir, fiz uma saudação muito especial ao meu grupo de trabalho! Até hoje, sou extremamente reconhecido a todos eles pela incondicional parceria e irrestrita camaradagem. Com a companhia, apoio e a inestimável ajuda da Renata, Renatinha e Felipe quiçá, no futuro, eu até poderia continuar sonhando. Sonhando sonhos cada vez mais belos. Sonhando sonhos cada vez mais ousados!

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E de fato continuei...Estimulado por colegas de todas as regiões do Brasil, e embalado pelo sucesso dos nossos programas de EMC, depois de muito refletir e trocar ideias com meus amigos mais próximos, acabei lançando minha candidatura à Presidência da ABORL. Na verdade, de acordo com as regras eleitorais definidas no pacto que selou a paz na nossa associação, a eleição se fazia para o preenchimento do cargo de Segundo Vice-Presidente (VP). Uma vez eleito, a progressão era anual e numa sequência natural: segundo VP, primeiro VP e, finalmente, Presidente. Formalizei minha decisão em uma carta aberta a todos os associados da ABORL no dia 18 de Julho de 2012: “Caros colegas, Hoje oficializei a minha inscrição na eleição para segundo vice-presidente da nossa querida ABORL. Gostaria de ter o privilégio de contar com o apoio de vocês nesta grande e desafiadora empreitada. Possivelmente teremos uma eleição que será bastante dura pela frente, mas com o suporte dos amigos acho que poderemos emergir com grandes chances de êxito ao seu final. Acho bastante complicada a posição de um novo diretor da ABORL nos dias de hoje, uma vez que nossa entidade é motivo de orgulho por sua grandeza, pujança e organização. Ainda assim, considero a sucessão em qualquer agremiação como uma legítima corrida de revezamento onde tentamos galgar, sucessivamente e cada um à sua maneira, conquistas maiores, mais superlativas. O tradicional dito que reza que “não devemos mexer em time que está ganhando”, em minha opinião, não é completamente verdadeiro. Acho que não só podemos, mas, devemos identificar e reparar potenciais fissuras em nossa muralha de excelência procurando sempre atingir o intangível ideal, ou quem sabe até, flertar com a tão sonhada perfeição. Sigo as palavras de Lampeduza: é preciso constantemente mudar para que, pelo menos, continuemos na mesma...” Concorria

como franco

favorito contra uma chapa de Brasília. Quando os resultados foram finalmente divulgados em 05 de Novembro de 2012, esta tendência se confirmou e fui eleito com mais de 95% dos votos válidos! Sim, iria continuar servindo a minha associação pelos próximos três anos !

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Depois de dois anos como VP, assumi a Presidência na noite de 16 de Janeiro de 2015 em uma bonita solenidade na sede da Associação e cercado pelos meus melhores amigos e pela minha querida família.

No meu discurso de posse, ratificava a enorme honra que representava assumir o cargo máximo da nossa querida ABORL. Conjecturava que alguma coisa de bom em minha vida devia ter feito para merecer tamanha distinção. Das duas, uma: Ou havia percorrido com relativa desenvoltura os caminhos profissionais que haviam me trazido até ali, ou privava da qualidade de saber granjear os melhores e mais fiéis amigos deste mundo... Lembrava que aquele cargo era temporário, mas a essência que o compunha e a aura que o envolvia, seriam eternas para mim! Minha diretoria executiva era composta por um seleção de craques: • PRIMEIRO VICE-PRESIDENTE: DR DOMINGOS HIROSHI TSUJI • SEGUNDA VICE-PRESIDENTE: DRA. WILMA TEREZINHA ANSELMO • DIRETORA SECRETÁRIA: DRA. RENATA DE FRANCESCO • DIRETOR TESOUREIRO: DR. FELIPPE FELIX • ASSESSORES ESPECIAIS: DRA. RENATA DUTRA, DRA. ALESSANDRA LOLLI E DR. GERALDO SANTANNA. • DIRETOR SECRETÁRIO ADJUNTO: DR. RONALDO FREZZARINI • DIRETOR TESOUREIRO ADJUNTO: DR. FABRÍZIO ROMANO.

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Não, não foi apenas mera coincidência. Trouxe para junto de mim um grupo de fiéis escudeiros: minha turma da EMC: Renata, Renatinha e Felippe! Nossa plataforma de “governo” consistia de três eixos principais os quais transcrevo ipsis litteris: 1.INVESTIR EM TECNOLOGIA COMO FERRAMENTA DE DEMOCRATIZAÇÃO: Habitamos um país com dimensões continentais e temos a plena consciência da dificuldade logística que representa reunir em nossa sede colegas de diferentes latitudes que necessitam, não raramente, de dois ou mais dias para deslocarem-se desde suas cidades para participarem das nossas reuniões. Isto gera um custo financeiro proibitivo tanto para eles quanto para a própria associação responsável pelo alto preço de translados, hospedagem e refeições. O resultado nefasto disto é que as comissões são compostas por colegas brilhantes advindos de praticamente todos os estados da federação, mas na prática mesmo, as decisões são tomadas por pequenos grupos favorecidos pela condição geográfica de morar perto da nossa sede. A única maneira que vislumbro para tentar minimizar este prejuízo e consequente desperdício de mentes é através da tecnologia. Já iniciamos a reforma do nosso auditório com o objetivo de transformá-lo em um estúdio completo de gravação e difusão de conteúdos. Nossa internet hoje é dedicada o que possibilitará a transmissão de eventos e reuniões realizadas aqui em São Paulo em tempo real, não para o resto do Brasil, mas para o mundo! Esta, a meu ver, é uma politica de verdadeira inclusão. Ampliaremos a capilarização das nossas decisões através da rede mundial. Este é um caminho sem volta: o futuro que, para nós, já começou! Criar condições para o amplo debate nacional sem fronteiras ou vícios regionais, isto sim (a meu ver) é democratizar! Acho que todos concordamos que a democracia é a arte de oportunizar a todos o mesmo ponto de partida. Quanto ao destino de chegada, senhores, bem, aí dependerá de cada um... 2.DESENHAR E CERTIFICAR OS NOSSOS PROCESSOS INTERNOS: Já estou atuando na associação há tempo suficiente (na verdade minha primeira função foi na comissão de educação médica a convite do meu querido amigo Richard Voegels) para constatar que a nossa política de sucessão presidencial e renovação das comissões foi bem concebido primando pela universalidade e transparência. Este sopro periódico de renovação é absolutamente saudável e imprescindível para a oxigenação dos nossos quadros. Por outro lado, esta mudança periódica traz consigo um problema contornável, porém sério: a perda de tempo inerente ao entendimento, interpretação e perfeito manejo dos complexos processos internos presentes nas entranhas da associação. A cada mudança, o primeiro desafio é vencer a força inercial gerada pelo desconhecimento. Acreditamos que o antídoto para combater este mal tem como base a descrição e o perfeito desenho de todos os nossos procedimentos com vistas à uma potencial certificação. Pretendemos buscar no mercado profissionais que, atuando em conjunto com nosso diretor executivo, demais colaboradores e

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colegas treinados nesta seara, nos ajudem a esquadrinhar, contabilizar e descrever, enfim, organizar minuciosamente nossos múltiplos processos internos com o objetivo precípuo de criar uma mapa operacional consistente e reprodutível. Se ao final de todo este trabalho, ainda formos agraciados com a honra de uma chancela do tipo iso 9000 será ainda melhor. Mas o objetivo maior mesmo é traçar com critério os percursos percorridos pelos nossos projetos azeitando nossa máquina administrativa e as transições. 3. CONTUDÊNCIA NA DEFESA PROFISSIONAL E MANUTENÇÃO DA ÉTICA MÉDIA: uma associação forte é aquela que defende intransigentemente os interesses dos seus membros nas mais variadas esferas: política, social, corporativa e financeira (somente para citar algumas). Gosto de resumir estas atribuições em uma frase abrangente e esclarecedora: a defesa profissional é a guardiã da nossa honra e a mantenedora da nossa dignidade. Como classe, temos sido reiteradamente insultados tanto em âmbito privado (ao sermos achacados por planos de saúde concebidos ardilosamente para lucrar através da exploração do trabalho médico e do desespero de uma massa ludibriada de pacientes) como público (que resolveu transferir o seu fracasso e ônus da sua monumental incompetência para os médicos). A falta de organização e agilidade do sistema aliadas às estruturas ambulatoriais corroídas, mal preparadas e hospitais elevados à condição de monumentos ao desperdício ampliam o sofrimento de uma massa de pacientes que, sem ter a quem recorrer, resignados apodrecem nas filas sórdidas daquele modelo de saúde que foi saudado por um lunático ufanista como beirando à perfeição! A tarefa de buscar a valorização do nosso qualificado trabalho é contínua e não pode ser terceirizada. Para o sucesso é fundamental e imprescindível termos uma associação forte e coesa. Tudo que o sistema mais deseja é nos pulverizar, pois isolados somos fracos e à mercê dos mandos e desmandos desta gentalha. Não pouparemos esforços na busca de uma remuneração digna. Talvez até com a criação de uma comissão permanente de honorários médicos. Não restam dúvidas de que esta é uma bandeira que merece ser empunhada e somos portadores das esperanças e expectativas de milhares de associados que colocam esta monumental responsabilidade nas mãos da sociedade que os representa. Aqui senhores, ou triunfaremos como sociedade organizada ou naufragaremos como indivíduos! Agora, poderia existir uma função mais nobre dentro de uma entidade médica do que esta? Sim, a implacável manutenção da ética. Entendo a ética como a recíproca da defesa profissional vislumbrada sob a perspectiva dos pacientes. Se, como dissemos anteriormente, a defesa profissional é a guardiã da nossa honra e a mantenedora da nossa dignidade, a ética médica é a balizadora da nossa integridade! Existem médicos com desvios de conduta? Mas é claro que sim! Existem médicos amorais que se beneficiam de seres humanos fragilizados pela moléstia a fim de auferir lucros escorchantes? Sem dúvida, e a mídia é pródiga em tentar desmascará-los no dia à dia. Estes indivíduos nem deveriam ser chamados de médicos muito menos de colegas. Eles não pertencem

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à nossa classe. Mas são uma minoria como em qualquer categoria profissional. Cuidado, não podemos extrapolar. Nossas entranhas estão sendo expostas pela mídia sensacionalista que eleva às últimas consequências a metonímia ou figura de linguagem que assume a parte pelo todo. Quais os interesses por trás desta campanha de difamação? Muito cuidado nesta hora. Desvios éticos deverão ser constantemente monitorados, investigados e, quando comprovados, exemplarmente punidos num processo pedagógico de autodepuração dos nossos quadros!

Trabalhamos muito forte para cumprir nosso plano de metas. Ao longo do ano de 2015, um a um dos nossos objetivos estratégicos foram sendo atingidos: Em relação ao primeiro, transformamos nosso auditório em um estúdio completo de gravação e difusão de conteúdos. Nossa internet passou a ser dedicada possibilitando a transmissão de eventos e reuniões realizadas na sede em São Paulo em tempo real, não para o resto do Brasil, mas para o mundo! No final do nosso mandato, quase 60% dos nossas atividades de educação continuada e reuniões administrativas já eram realizadas via internet gerando uma amplitude geográfica inversamente proporcional à perda de tempo em longas viagens e ao custos de transportes e hospedagens! Mantivemos o OTOWEB, realizamos o 3 ° Congresso Online com pleno êxito e a incansável Renatinha Dutra lançou um novo aplicativo de EMC: Atualização Professional na Palma da Mão. A ideia de obter a implementação da ISO 9001 nasceu de uma conversa logo após da minha eleição com o meu amigo Geraldo Druck Sant’Anna quando resolvemos propor que se instaurasse na ABORL um processo de excelência de gestão. Criamos um grupo de trabalho chefiado pelo Geraldo para estudar com profundidade este assunto e após algumas consultas a profissionais da área, chegamos à conclusão que a

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norma ISO 9001 era a que melhor se aplicava aos nossos propósitos. Apresentamos nosso plano ao Conselho Administrativo e Fiscal que o acolheu com entusiasmo. Imediatamente o projeto foi abraçado por toda a equipe de colaboradores que se engajou de forma integral para conquistar a certificação em tempo recorde: foram apenas oito meses entre a implantação e a certificação. Durante este trajeto, foram mapeados os processos administrativos de todos os setores da ABORL e, logo após traçaram-se os seus respectivos indicadores. As vantagens inerentes a estas ações são inúmeras ressaltando-se o aumento da eficiência pela repetição dos processos. Da mesma forma a criação de um manual do Sistema de Gestão da Qualidade (SGQ) gerava um claro entendimento administrativo pelas diretorias que se sucedem facilitando enormemente a fluidez das transições. Além do mais, a existência dos indicadores possibilitam a medição dos desempenhos e eventuais correções de rota. Sempre enfatizamos que tanto a implantação quanto a certificação representavam somente o início do processo de gestão e qualidade, pois para sua manutenção seria mister a incorporação e continuidade do sistema. Depois de uma profunda e minuciosa auditoria (a comissão ISO 9001 praticamente se instalou na sede da ABORL por uma semana), finalmente galgamos a aprovação que, sem dúvida alguma, foi uma das nossas maiores e mais importantes conquistas. Encerramos o ano de 2015 com nossos mapas gerenciais completamente desenhados e ainda tivemos a fortuna de sermos contemplados com a “cereja do bolo” que foi a certificação ISO 9001. Isto, sem dúvida alguma, representou um ganho exponencial para a associação que foi a primeira especialidade médica do Brasil a estar certificada na versão 2015.

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Em relação à nossa terceira prioridade, a atuante comissão de defesa profissional foi de uma competência monumental ao amparar os interesses da nossa especialidade nas mais variadas esferas: política, social, corporativa e financeira. Entre os seus méritos, devemos ressaltar a vitória (juntamente à AMB) na quebra de braço com o governo federal em relação ao famigerado decreto 6647 (mais especialistas) e a revisão bem sucedida da CHPM com a elevação substancial do porte da quase totalidade dos nossos procedimentos e ganhos reais ao otorrinolaringologista (elevando o porte de 82 procedimento – dos 109 propostos). Em 12 de Junho de 2015 realizamos na nossa sede, com o apoio da Associação Médica Brasileira (AMB), o I FÓRUM EM GESTÃO DE ASSOCIAÇÕES DE ESPECIALIDADES MÉDICAS com o objetivo de fomentar a discussão a respeito dos principais aspectos executivos, jurídicos, administrativos, de comunicação e de eventos comuns às Sociedades de Especialidades reconhecidas pela AMB, bem como compartilhar experiências. Para essa edição pioneira, foram escolhidos 4 pilares que fazem parte do dia a dia da maioria das associações: Administração; Jurídico; Comunicação e Eventos. Cada um desses temas contou com uma mesa de discussão, reunindo profissionais com ampla experiência no assunto para expor e debater o que se tem feito e como melhorar a gestão nas associações de especialidades.

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Como eu era um Presidente egresso da Educação Médica Continuada (seguramente, dentre todas as minhas atribuições profissionais, trabalhar no ensino sempre foi a atividade que mais me deu prazer e, intimamente, para a qual acho ter sido mais vocacionado!) fiz questão de completar dois projetos que foram inicialmente propostos quando ainda estava à testa daquela comissão, mas que até aquele momento ainda não haviam decolado: Projeto Graduação e o OTOTUBE. Projeto Graduação: Cientes de que a formação de um bom otorrinolaringologista se inicia ainda durante a escola médica (e quanto maior e mais qualificado for o contato do estudante de medicina com a especialidade, mais e melhores futuros otorrinolaringologistas estaremos recrutando), a esta proposta da Comissão de Educação Médica Continuada visava aprimorar o conhecimento da especialidade especificamente neste segmento da vida acadêmica. O inovador Projeto Graduação inseriu a ABORL novamente na vanguarda das sociedades médicas brasileira. Trata-se de uma ideia concebida por jovens, fomentada por jovens, dirigida e executada por jovens e que tem na juventude seu público-alvo. Um curso completo de otorrinolaringologia com 15 aulas primorosamente elaboradas e que, no conjunto, contempla (quase) tudo aquilo que, a juízo da ABORL, um aluno de graduação deveria saber sobre a especialidade. O conteúdo programático foi criteriosamente selecionado e as aulas ministradas por jovens brilhantes colegas recrutados pela comissão. O curso serve de base ou complemento às disciplinas de otorrinolaringologia nas escolas médicas brasileiras que muitas vezes, por idiossincrasias próprias, contam com um corpo docente mínimo e uma carga horária muito reduzida na especialidade. Na minha opinião, esta é uma combinação indesejável e em total dissincronia com a prevalência das doenças otorrinolaringológicas na população. Quando finalmente lançado, fiz questão de dar os parabéns à toda comissão por concluir esta espetacular iniciativa com uma menção especial à incansável Renata Dutra que coordenou o projeto desde o seu princípio bem ao seu estilo: com discrição e competência.

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ORLTUBE: Concebido inicialmente como OTOTUBE, a ABORL acabou desenvolvendo uma ideia muito semelhante denominado de ORLTUBE. Trata-se de uma plataforma digital na qual os associados podem acessar os vídeos que integram os projetos da Educação Médica Continuada e, também, cursos completos. O mais interessante, entretanto, é que o ambiente virtual permite o envio de vídeos e a interação entre os usuários, abrindo as portas para diferentes atividades e novos rumos de ensino. Ou seja, um projeto que sabemos muito bem como começou, mas que, uma vez deflagrado, passa a adquirir vida própria e o seu futuro sai completamente do nosso controle vindo a depender da criatividade e do grau de envolvimento dos seus próprios usuários!

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Como sou meio teimoso, não pude encerrar minha gestão sem revisitar a questão da elaboração e execução de um calendário de eventos para a nossa Associação. Após termos sido certificados com a ISO 9001 o planejamento estratégico passou a ser uma das nossas maiores preocupações. O planejamento ou “P” do PODC ( Planejar, Organizar, Dirigir e Controlar) é, talvez, uma das principais funções administrativas de uma organização. Uma entidade médica abriga entre seus mais nobres objetivos o aprimoramento profissional e a qualificação dos seus associados. Existem uma série de vetores para executar esta tarefa, mas ainda hoje os eventos presenciais (congressos, simpósios, jornadas, etc...) são ainda aqueles que mais atraem a atenção dos colegas e da indústria que ali enxerga uma oportunidade de ouro e para expor os seus novos produtos. Todos estas atividades envolvem um elaborado planejamento tanto por parte dos congressistas (que terão de organizar suas agendas de consultório e preparar suas viagens) como da indústria ( dotação orçamentária, montagem de stands, etc...). Nossa ambição é que pudéssemos elaborar um completo mapa das nossas principais atividades ao longo do ano disponibilizando-o à consulta pública com muita antecedência. O que se observa hoje no Brasil é uma profusão de eventos (muitos deles apoiados ou patrocinados pela nossa própria associação!), sobrepostos em forma, conteúdo e mesmo datas confundindo o associado e sufocando nossas tradicionais parcerias de negócios. Na tentativa de encaminhar uma solução para este grave problema definimos que estava mais do que na hora de tentar racionalizar nosso calendário de eventos. Nossa proposta comtemplava a criação de um evento de médio porte no primeiro semestre que congregasse as jornadas menores das supra-especialidades que se encontravam pulverizadas ao longo do ano sem uma periodicidade regular e tampouco datas fixas. Sob esta óptica, O Combined Meeting foi idealizado para viabilizar os históricos e tradicionais encontros científicos das supra-especialidades que sempre lutaram com imensas dificuldades de calendário e, principalmente, patrocínios para, com muito esforço, organizar as suas reuniões. Assim elas foram reunidas em três blocos revezando-se a cada encontro garantindo uma periodicidade trienal para cada uma delas sob o competente manto administrativo da ABORL-CCF e a tutela técnico-científica a cargo dos seus próprios comitês científicos. As atividades deveriam sempre ocorrer em sala única a fim de atender a um anseio dos nossos associados que enxergam neste formato uma oportunidade ímpar de abordar temas instigantes com graus de profundidade e complexidade crescente. A cidade-sede seria fixada em São Paulo a fim de racionalizar os custos, uma vez que toda a cidade de médio porte tem uma ligação aérea direta com a capital paulista e o

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Centro de Convenções poderia ser negociado para várias edições em condições muito favoráveis. Finalmente, foi consensual na nossa diretoria-executiva a ideia que seria muito importante, senão fundamental, organizarmos nosso calendário lançando paralelamente ao Congresso Anual (o chamado Congressão) um evento âncora no primeiro semestre, sempre na mesma época, sempre no mesmo local disciplinando nossa agenda. Terminamos o ano com chave de ouro. Nosso quadro de associados adimplentes bateu um recorde histórico chegando a mais de 4500 e organizamos o 45° Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico Facial. O evento realizado no moderno e confortável Centro de Convenções de Fortaleza (CE) foi coroado de pleno êxito reunindo quase 3000 colegas. Preparamos um programa científico de alta qualidade abrangendo todas as áreas da especialidade assim como as sua inúmeras interfaces. Os grandes nomes da otorrinolaringologia nacional estavam por lá participando ao lado de um time estelar de destacados convidados internacionais de conferências, minicursos, painéis, mesas-redondas, simpósios e temas-livres!

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Na ocasião, fizemos o lançamento do primoroso livro “Memórias da ABORL-CCF 1078-2015” que relata toda a trajetória da otorrinolaringologia acadêmica brasileira, stricto sensu, desde o seu nascimento em 1911 até os dias de hoje. Este trabalho envolveu uma minuciosa pesquisa e foi fruto de uma parceria da ABORL-CCF, EDITORA DOC E FARMOQUÍMICA e foi coordenado pelo Dr. Roberto Meirelles e sua equipe de colaboradores. Com mais de 150 páginas, ricamente ilustrado e fartamente documentado, o texto resgata as principais história e, possivelmente, algumas estórias da nossa especialidade desde os nossos primórdios até a modernidade pinçando nossos maiores valores e principais conquistas. De minha parte, senti-me absolutamente honrado pelo convite para prefaciar esta obra. Tive o privilégio de poder ler com atenção e curiosidade seu último rascunho. Rapidamente me dei conta de que segurava nas mãos um texto que simplesmente representava a manutenção da nossa história, a celebração da nossa especialidade e a coroação do nosso êxito.

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Como Presidente do Congresso guardava a prerrogativa de poder indicar um dos convidados internacionais do evento. Não precisei pensar muito. Teria ser um nome de peso... O ideal talvez até fosse alguém que reunisse as seguintes características: • Mais de 500 trabalhos científicos publicados • Editor do mais popular tratado de otorrinolaringologia mundial • Mais jovem Chairman da história da universidade de Minnesota • Centenas de estudantes, residentes, fellows ao redor de todos os cantos do globo; • Pesquisador clínico inovador e um cirurgião cuja capacidade técnica só pode ser igualada pela sua monumental humildade e simplicidade; • Por acima de tudo, ter cheiro do povo, gostar de gente e cuidar adequadamente dos ouvidos e das mentes dos seus pacientes e ter uma afeição especial para com o Brasil É claro que a esta escolha só poderia recair no meu querido Mestre, Mentor e Amigo Professor Michael Mario Paparella! Assim, na abertura do Congresso, fiz questão de homenagear nosso convidado com a concessão da MEDALHA DO MÉRITO “ABORL-CCF”. Esta honraria está prevista no artigo 82 do nosso estatuto, constituindo-se na maior distinção concedida pela nossa associação. Reza o estatuto que poderá somente ser outorgada a pessoas, associadas ou não, que, a critério da Diretoria Executiva e/ou do Conselho Administrativo e Fiscal, hajam prestado relevantes serviços à causa e aos objetivos da ABORL-CCF ou outras atividades afins. Depois de uma rápida homenagem condensada em um vídeo caseiro produzido por mim e que relembrava segmentos da vida do Prof. Paparella, solicitei para o meu amigo e irmão Luiz Carlos Alves de Souza (também um dos “Paparella’s boys” brasileiros) para fazer a emocionante entrega. Chamei o nosso Professor após um curta porém emocionada introdução que fiz questão de projetar no telão:

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Ter a oportunidade de homenagear meu maior Professor (quase trinta anos após tê-lo conhecido numa manhã de terça-feira gelada em Mineápolis), no meu país, em um grande evento da minha associação, organizado por meus pares e presidido por mim...Não, nada poderia ser maior que este inesquecível

momento

de

reverência,

reconhecimento e gratidão! Encerrado o Congresso e já nos estertores da nossa gestão, ainda tivemos tempo de confirmar algumas últimas ações. Entre elas, talvez a mais importante foi definir um protocolo de intenções entre a ABORL-CCF e a American Academy of Otolaryngology, Head and Neck Surgery (AAO-HNS). Em uma reunião em Dallas durante o Meeting da AAOHNS fomos oficialmente comunicados pela presidente da entidade Americana, Dra. Susana Chandrasekhar, de que o Brasil seria o país convidado internacional do próximo Meeting a realizar-se em San Diego em setembro de 2016. Agradeci educadamente a deferência, mas lembrei que, independentemente de ser ou não o país convidado, o Brasil sempre participara dos encontros da Academia com um número expressivo de participantes. Assim, fiz questão de salientar, que esta indiscutível distinção teria sua importância maximizada somente se representasse a ponta de um iceberg de um projeto de cooperação e intercâmbio muito mais abrangente e que envolvesse atividades científicas, assistenciais e administrativas. Por este firme posicionamento, fui saudado com entusiasmo ao final da minha fala por todos os presentes no encontro já iniciando tratativas para a elaboração de um plano de trabalho e uma agenda comum entre estas duas grandes associações. Pronto, pensei, era só o que me faltava... acho que arranjei mais serviço para mim!

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UM CHEVETTE E UM SONHO...

(ou carta para um filho que nunca tive)

E de fato, arranjei. Éramos todos unânimes em constatar a nossa Associação consistia em um verdadeiro patrimônio da medicina no país. Senão vejamos: • publicava há várias décadas uma conceituada e disputada revista científica em dois idiomas; • editava o mais ambicioso e abrangente compêndio do mundo; • era contundente na defesa profissional e implacável na manutenção da ética na medicina; • mantinha uma série de atividades pioneiras de educação médica continuada e era exemplo de vanguarda nos seus programas de aperfeiçoamento veiculados via internet • Nossos eventos situam-se entre os mais movimentados e prestigiados do planeta movendo a indústria do turismo e a rede hoteleira por onde quer que passe e organizamos de forma primorosa o Congresso Mundial de ORL em 2009; Enfim, a otorrinolaringologia brasileira vive um estado de “graça” e é permanente destaque no cenário global! A prova mais inequívoca deste legítimo sucesso é o número de médicos recémformados que optam pela especialidade, inscrevendo-se às centenas nos processos seletivos para ingressar nos programas de residência médica chancelados pela Associação. Essa crescente demanda gera uma acirrada disputa que acaba se refletindo na alta qualificação técnica, científica, moral e ética dos nossos residentes. Como consequência, dezenas de jovens colegas bem formados e habitando altos patamares científicos são agregados ao mercado de trabalho a cada ano, qualificando ainda mais os quadros da especialidade, orgulhando seus mestres e com o seu próprio trabalho constituindo uma alça de retroalimentação positiva e celebrando um ciclo de perpétua excelência. Há muito tempo vínhamos discutindo na Diretoria Executiva e no Conselho Administrativo e Fiscal da ABORL da necessidade de elaborarmos um plano a longo prazo de internacionalização das nossas atividades. Havia sobejas condições em nos tornarmos, de fato, um dos centros geopolíticos, técnicos e acadêmicos do mundo. De uma maneira organizada, como classe e não fruto de legítimos “espasmos” individuais. Reuníamos todas as condições científicas para tanto, pois, já havia uma série de colegas fazendo sucesso mundo afora, mas enfrentávamos pelo menos duas consideráveis barreiras: a língua e a coordenação política para chegar lá! Mas era fundamental estreitarmos laços com pelo menos as sociedades latino-americanas e ibéricas.

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Em 2015 a American Academy of Otolaryngology, Head and Neck Surgery lançou a ideia da criar um International Advisory Board. O objetivo principal era de auxiliar na montagem e execução de um planejamento estratégico que fomentasse a troca de experiências entre a AAO-HNS e as sociedades dos demais países. Paralelamente, visava elaborar um conjunto de ações que possam turbinar o contingente internacional nos seus Meetings assim como o número de sócios internacionais. O que nos interessava, entretanto, é que caberia a este comitê a elaboração de um plano de ações que buscava incrementar atividades de difusão de conhecimento e promover o intercâmbio científico e assistencial entre as nações. A AAO-HNSF saiu em busca de otorrinolaringologistas no cenário mundial que possuíssem a experiência necessária para poder colaborar com esta proposta acolhendo indicações de várias sociedades do mundo. Recebi uma ligação do então Presidente da ABORL, meu amigo Domingos Tsuji, apelando para que eu participasse da eleição como representante do Brasil. Depois de resistir contra a ideia, acabei sucumbindo aos seus argumentos (claro que ele cutucou, sutilmente, o meu ego!) e finalmente concordei. Tudo bem, pensei. Nem a minha mãe vai saber que tomei parte deste pleito, pois as chances de vitória são praticamente nulas... Ledo engano, acabei sendo eleito pela cúpula da AAO-HNS para o cargo de Vice-Chairman do International Advisory Board. Tomei posse em setembro de 2016 para um mandato de dois anos durante o congresso da Academia em San Diego. Lá conheci toda a diretoria médica e administrativa da AAO-HNS assim como o Chairman do comitê,

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(ou carta para um filho que nunca tive)

hoje meu grande amigo e parceiro Johannes Fagan da África do Sul (um extraordinário filantropo à serviço da medicina no continente africano!). Na prática, quais os potenciais dividendos que a ABORL-CCF poderia extrair destas ações? Sem dúvida a principal vantagem será a maior aproximação e afinidade entre a ABORL e a AAOHNS. Dentro deste contexto, o meu principal objetivo é tentar facilitar e expandir a troca de experiências entre estas duas grandes instituições e os seus numerosos associados. Certamente o estreitamento das relações será bilateralmente profícuo com um retorno

garantido

em

know-how

técnico-

administrativo, educacional e assistencial. Por exemplo, um dos programas desenvolvidos pelo IAB estimula o intercâmbio de médicos-residentes entre serviços nacionais e americanos propiciando a jovens colegas vivenciarem novas realidades em centros médicos de vanguarda. Um dos projetos que mais me entusiasmam no momento, é a mudança de perfil do International Symposium (realizado durante os Meetings da Academia) para que ele venha a se tornar um verdadeiro palco de divulgação dos avanços e das novidades da otorrinolaringologia mundial e um espetacular fórum de debates multinacionais! O projeto de internacionalização não ficou por aí, pois continuou a dar frutos. No início do ano recebi um e-mail do Dr. Vinidh Paleri, Presidente do próximo Congresso Inglês de Otorrinolaringologia (16th British Academic Conference in Otolaryngology BACO-International -) que será realizado em Julho de 2018 na cidade de Manchester. O objetivo da correspondência era ponderar a possibilidade da

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ABORL aceitar a indicação de sociedade internacional convidada para o meeting. Ao mesmo tempo, ele sondava se poderíamos participar da grade científica do encontro organizando um simpósio apresentado por brasileiros que representasse o estado atual da especialidade no nosso país. Novamente levamos este

convite

à

diretoria

da

ABORL

que

entusiasticamente abraçou a ideia e nos ocupou de organizar os trabalhos... Quando encerrei minha gestão na ABORL foi inspirador

descobrir

que,

sim,

era

possível

enriquecer na política. Um ano na presidência da ABORL-CCF me trouxe uma riqueza imensa e muito particular. Amealhei uma fortuna que jamais será dilapidada, roubada por mensaleiros, escamoteada por gangues de lava a jatos, nem afetada por crises mundiais ou planos econômicos. Ela não está abrigada em um banco ou guardada no fundo do cofre, pois não é materialmente concreta. Minha riqueza é abstrata e ainda assim muito palpável e quase não cabe dentro de mim: o orgulho de ter servido à causa da minha especialidade e contar com a o respeito e a admiração dos meus pares. Quem poderia pedir por mais... Sem dúvidas, estava mais rico. Muito mais rico.... A

vida

associativa

é

extremamente

recompensadora, mas por outro lado pode ser cansativa e demandante. Cansativa pelo número de viagens que implicam em logísticas complicadas, horas de aeroporto, translados, noites em hotéis e compromissos sociais. Demandante pela energia despendida preparando reuniões, palestras e discursos. É claro que todo este tempo tem de ser, necessariamente, extraído de alguma outra atividade. Assim acaba repercutindo no consultório,

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na família e também na Universidade. Ao longo do ano de 2015 tive de contar com a compreensão e a colaboração dos meus colegas Professores da disciplina de otorrinolaringologia da UFRGS para organizar a minha agenda de aulas teóricas e práticas. Da mesma forma, contei com meus “dois braços direitos” os médicos contratados Letícia Schmidt Rosito e Maurício Noschang da Silva para me substituírem sempre que necessário na supervisão aos médicos residentes nas agendas ambulatoriais e cirúrgicas. Quando finalmente encerrei esta forte rotina de viagens, achei que deveria compensar de alguma forma os meus colegas de disciplina. Assim, além de retornar na plenitude para a nossa disciplina de graduação na UFRGS e para os meus ambulatórios no serviço de otorrinolaringologia do HCPA, pedi para assumir a regência da cadeira de Patologias Otorrinolaringológicas ministrada ao curso de Fonoaudiologia. É claro que contei com um incentivo especial, pois a minha esposa, Sílvia, é Professora e Chefe do Serviço de Fonoaudiologia do HCPA/UFRGS. Acostumado com a mecânica do curso de medicina, achei que esta nova experiência poderia ser bilateralmente vantajosa. Implementei uma reforma radical na disciplina, dobrando a carga horária, agregando novos professores recrutados de outros serviços e, principalmente, criando um programa teórico inteiramente novo. O diferencial entretanto era a abordagem de um mesmo tópico sob diferentes perspectivas: do médico e da fonoaudióloga. Lastreado nos meus trintas anos de atuação na especialidade, minha finalidade com esta mudança

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foi enfatizar aos jovens estudantes a importância da atuação multidisciplinar. Mais do que isto, estimular o trabalho em equipe e definir os papéis desempenhados por cada uma das partes na avaliação e no tratamento de diferentes situações clínicas. Como objetivos específicos procurava melhorar o entendimento das potenciais limitações impostas pelas moléstias mais agressivas e, principalmente, saber reinterpretar e relativizar, em determinadas circunstâncias, o conceito de sucesso terapêutico. Na pós-graduação mantive as minhas linhas de pesquisa relacionadas às otites médias agora direcionando nossos estudos para áreas menos exploradas. Como exemplo, passamos a empregar, com a colaboração do Dr. Francisco Maia, o Vídeo Head Impulse Test e C-VEMP para analisar o potencial impacto destas condições na função do labirinto posterior e equilíbrio. Também decidimos junto com a Professora Adriane Teixeira, do curso de Fonoaudiologia, estudar o desempenho cognitivo de uma população pediátrica com otite média crônica submetidos à uma elaborada bateria de testes de processamento auditivo central. Assim, aliados aos nossos estudos anteriores que abordavam as otites média crônicas sob diferentes perspectivas mas limitados ao ambiente da orelha média, passamos a examinar as suas consequências em um contexto mais abrangente e que incluía as funções cocleares, vestibulares e cognitivas. Durante esta jornada fui apresentado pelas minhas colaboradoras e pós-graduandos a uma série de testes clínicos tão sofisticados quanto estranhos para mim. Admito que esta situação me gerou um certo desconforto, pois pela primeira vez (nesta linha de pesquisa) não possuía o absoluto controle sobre todas as ferramentas empregadas para desenvolver nossos estudos! Por outro lado, fiquei extremamente animado, pois incorporamos de fato aos nosso projetos o conceito da multidisciplinariedade. As impressões digitais destas colaborações eram notórias e muito evidentes em todos os atores do processo: nos trabalhos, nos alunos e nos orientadores! Ainda que este redirecionamento tenha ligeiramente perturbado nossa rotina, ele não foi suficiente para nos retirar da zona de conforto. Mas isto não tardou a acontecer, pois decidi que já estava mais do que na hora de me engajar academicamente em um dos mais formidáveis desafios da otorrinolaringologia: o tratamento da surdez sensorioneural e os implantes cocleares. O HCPA mantém há vários anos um programa de Saúde Auditiva credenciado pelo governo federal dedicado ao atendimento de deficientes auditivos (lembrando que as perdas auditivas são sempre definidas em termos absolutos a partir de um limiar pré-estabelecido - 25 dB NPS - e quando os limiares situamse acima deste patamar eles serão expressos em termos numéricos simples ou sub-classificados de acordo com faixas de audibilidade - perdas leves, moderadas, severas e profundas -). Assim a maioria destes pacientes com perdas a partir de 40 dB podem ser habilitados/reabilitados com amplificação convencional (aparelhos de amplificação sonora individual – AASI- ). Porém uma parcela considerável deles apresentam perdas cuja severidade excedem a capacidade desta modalidade de amplificação.

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Nestas situações, eles são redirecionados para um programa especial cumprindo um extenso roteiro de novos exames e uma minuciosa abordagem onde uma série de parâmetros médicos, psicológicos e sociais são analisados. Ao final de todo este processo cada paciente terá o seu caso detalhadamente discutido em uma reunião multidisciplinar semanal e a indicação do implante será ou não ratificada. O HCPA é um dos mais prolíficos centros de implantes do Brasil ao lado da Universidade de São Paulo e da UNICAMP já tendo realizado acima de 600 cirurgias deste tipo. A minha equipe vem fazendo parte deste programa há alguns anos, mas, nossa atuação sempre foi exclusivamente assistencial, pois nunca nos debruçamos sobre este monumental banco de dados. Mas a hora havia chegado. Ocorre que quando iniciei meus estudos sobre otite média no Brasil estava solidamente lastreado em dois anos de pesquisas prioritariamente sobre este assunto no laboratório de histopatologia da Universidade de Minnesota e no Otitis Media Group. Sentia falta de uma bagagem pesada como esta no capítulo do tratamento cirúrgico da surdez sensorioneural até porque, além destas conquistas serem relativamente recentes, elas sofrem constantes mudanças pelos imensos investimentos das indústrias e centros de pesquisa no desenvolvimento de novas tecnologias. Então pensei que para me lançar neste novo campo de pesquisa seriam importantes, pelo menos, dois pré-requisitos: (1) realizar um inventário dos resultados das ações desenvolvidas até então pelo grupo de implantes cocleares do HCPA; (2) ampliar a minha própria qualificação individual sobre o assunto. Em relação ao primeiro, aceitei como minha orientanda de mestrado a otorrinolaringologista Daniela Dall’Igna (já com larga experiência no assunto) com a missão precípua de criar um banco de dados coletando informações de todos os nossos pacientes implantados. Esta análise transversal, irá contemplar os três momentos envolvidos no processo: avaliação pré-operatória, procedimentos cirúrgicos/tipos de implantes e resultados pós-operatórios. Este amplo mapeamento, com certeza, deverá identificar uma série de problemas e arestas no nosso programa. Assim o objetivo secundário do trabalho será o de refletir sobre estas falhas e sugerir a aplicação de medidas saneadoras para corrigir estes potenciais desvios de rota. Esperamos completar este trabalho até o próximo ano e, a partir daí, deflagrar estudos adicionais sobre esta matéria cada vez mais pontuais e específicos. Quanto a mim, tive de, uma vez mais, arrumar as malas e buscar no exterior os conhecimentos necessários para melhor conduzir esta empreitada científica. Não que eu fosse um neófito no assunto, pois o primeiro curso de implantes cocleares que realizei foi há quase vinte anos atrás na Universidade de Miami e, desde então, sempre me mantive atualizado no assunto. Mas ainda assim, eu julguei que seria muito benéfico vivenciar nada mais nada menos do que o estado da

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arte no tema. Para tanto, beneficiado pelas relações que fui semeando ao longo dos anos, elegi dois serviços de excelência para cumprir estágios: Faculdade de Medicina de Hannover na Alemanha e Universidade de Melbourne na Austrália. Interessante como as coisas mudam. Comparando com as minhas primeiras experiências no exterior, desta vez coube a mim a escolha dos lugares que gostaria de visitar. Conhecia os líderes de ambos os serviços e, após rápidas trocas de e-mails para lá e para cá, tinha a certeza de que as esperadas cartas de aceite constituiriam meras formalidades. E foi exatamente isto o que aconteceu. Na verdade, bem melhor, pois acabei sendo recebido com o status de Professor-Visitante tanto na Alemanha quanto na Austrália! Em Hannover fui acolhido em agosto de 2016, pelo meu amigo Thomaz Lenartz, Professor Titular do Departamento de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço.

Quanto à Austrália, usei todo o meu período de férias deste ano para visitar em março o Eye and Ear Hospital de Melbourne quando fui recebido pelos Professores Stephen O’Leary e Robert Briggs. A importância destes dois centros no capítulo do tratamento da surdez nunca poderá ser enfatizado o bastante, senão vejamos: se Hannover, hoje, se constitui na “Meca” das próteses implantáveis (com quase 9000 implantes realizados e um monumental centro de pesquisa) a Universidade de Melbourne, por outro lado, foi o seu berço por conta do fantástico trabalho pioneiro do Professor Graeme Clark.

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(ou carta para um filho que nunca tive)

Apesar destas visitas não terem sido prolongadas (21 dias na Alemanha e 40 na Oceania) os benefícios foram excepcionais uma vez que sabia com antecedência e precisão as lacunas de conhecimento que estava buscando preencher. Como retribuição às fantásticas acolhidas dos meus anfitriões, fui convocado a dividir com o staff de ambos os serviços o conteúdo das nossas pesquisas principais desenvolvidas no Hospital de Clínicas de Porto Alegre com uma ótima repercussão. Adicionalmente, na Austrália, participei como convidado internacional do Congresso da Australian Society of Otolaryngology Head and Neck Surgery realizado na bela cidade de Adelaide onde discorri sobre temas relacionados às retrações timpânicas e colesteatomas com enorme sucesso. Antes de voltar ao Brasil, ainda fui chamado a visitar as impressionantes instalações da Cochlear Corporation em Sydney e participar de uma oficina de estudos teórico-práticos (Cochlear Advanced Surgical Workshop) sobre recentes avanços nas próteses implantáveis juntamente com colegas oriundos de várias nações asiáticas e do Pacífico Sul. Mais uma vez constatei que a experiência médica no exterior é extremamente importante no enriquecimento assistencial e acadêmico de uma carreira médica com reflexos tremendos não somente na esfera profissional mas, também, em âmbito pessoal. A grande vantagem em explorar estas oportunidades em um estágio mais avançado das nossas carreiras é que o amadurecimento é diretamente proporcional ao aprimoramento do nosso senso crítico. Do resultado desta simples equação, que soma a maturidade ao bom julgamento, nasce o chamado discernimento. E o discernimento nos ajuda a analisar estes novos cenários de uma forma objetiva a fim de discriminar quais destas novas experiências merecem ser incorporadas e quais as que devem ser imediatamente descartadas...

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Nas oportunidades em que tive contato com as atividades assistenciais dentro dos serviços que recentemente visitei, pude perceber com muita clareza que, se nos faltam recursos financeiros e/ou exames complementares de última geração, sobramos em experiência prática e conhecimentos médicos básicos. Em momento algum senti que a minha formação médica deixasse a desejar na comparação direta com meus colegas alemães e australianos. É claro e óbvio que eles transitavam com muito mais desenvoltura dentro da sistemática do atendimento médico dos seus países, mas entendo que esta agilidade e rapidez no trato com o paciente era oferecidas em quantidades inversamente proporcionais à empatia que se estabelecia entre médicos e pacientes. Com certeza dedicamos aos nossos pacientes mais tempo e atenção e definitivamente cultivamos uma relação profissional e afetiva de muito maior qualidade. Hoje consigo sumarizar didaticamente em cinco tópicos os dividendos mais valiosos que colhemos após uma bem sucedida experiência profissional no exterior: 1. Aquisição de novas técnicas e conhecimentos (aprendizado) 2. Exercício da profissão e troca de informações (experiência profissional) 3. Exposição a novas culturas e costumes (experiência pessoal) 4. Estabelecimento de relações pessoais (contatos) 5. Formalização de relações profissionais (vínculos) É minha opinião que estes benefícios não devem ser encarados em bases estritamente individuais, mas partilhados com colegas que, ou não tiveram a mesma oportunidade, ou pretendem reproduzir a nossa experiência. Da mesma forma, todos eles devem ser colocados à disposição da nossa comunidade, pois ela tem uma larga parcela de responsabilidade e mérito nas nossas conquistas. Assim, o balanço final destas incursões internacionais foi extremamente positivo por vários motivos: estreitei relações profissionais e pessoais, qualifiquei-me técnica e cientificamente e estabeleci novos laços de cooperação. O mais importante, talvez, foi notar que havia atingido uma estatura profissional que me garantia transitar em qualquer ambiente acadêmico do mundo pleno de confiança, altivez e desenvoltura. Esta constatação me trouxe dois sentimentos redentores: orgulho e alívio. Orgulho pelos rumos assumidos pela minha trajetória. Alívio pelo aparente acerto das minhas principais escolhas. Nada mal, para quem havia iniciado timidamente há quase trinta anos atrás nutrindo um sonho a bordo de um Chevette 86!

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2018 Vice-Chair. International Advisory Board. American Academy of Otolaryngology, Head and Neck Surgery

2017

2016

Presidente do 45o Congresso Brasileiro de Otorrinoalringologia

Professor-Visitante , Departamento de Otorrinolaringologia – Universidade de Melbourne – Austrália Lançamento do livro Global Otolaryngology, Head and Neck Surgery Professor-Visitante, Departamento de Otorrinolaringologia – Faculdade de Medicina de Hannover – Alemanha Lançamento do livro Rotinas em Otorrinolaringologia

2015

2014

Presidente da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgica Cérvico–Facial Vice-Presidente da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgica Cérvico-Facial

2012 2011 Coordenador da Comissão de Educação Médica Continuada da ABORL-CCF

2010 2009 2008 2007

Presidência da Sociedade Brasileira de Otologia

Chefia do Departamento Nascimento Oftalmologia e Otorrinolaringologia – FAMED - UFRGS

Mestrado em Otorrinolaringologia USP / Ribeirão 1987-1988: Fellowship Minnesota Ear, Head and Neck Clinic; Mineápolis, EUA

2006

2a edição do livro Otorrinolaringologia: Princípios e Prática

2005

Defesa da primeira orientação de mestrado no Programa de Pós–Graduação da Saúde da Criança e do Adolescente

2004

Fellowship em Otologia – Universidade de Zurique – Suíça

2003

Defesa da primeira orientação de mestrado no Programa de Pós –Graduação da Cirurgia

2002

Criação do Centro de Otite Média do Brasil (Com.Br)

2001 2000

Lançamento do livro Otologia Clínica e Cirúrgica

1996

Doutorado em Cirurgia – USP / Ribeirão

1994

1a edição do livro Otorrinolaringologia: Princípios e Prática

1992

Ingresso Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia – FAMED UFRGS

1991 1990 1989 1988 1987 1986

Final Residência Otorrinolaringologia – HCPA

1983

Graduação Medicina UFCSPA

1977

Final do Segundo Grau Colégio Anchieta

1974 1960

Final do Primeiro Frau Colégio São João Nascimento

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Mas afinal, qual o ponto de confluência que une estas experiências? Para onde convergem todas estas ações? Existe um raciocínio lógico por detrás delas ou estamos simplesmente narrando uma série de fatos distribuídos pelo acaso e situados aleatoriamente na linha do tempo? Guardo a firme convicção que, sim, existe uma força que permeia o tempo e o espaço e que serve como o fio condutor destas histórias que acabei de relatar. Esta força nasceu em algum momento do passado e representa o somatório de pelo menos seis condições: (1) a projeção de uma visão de futuro; (2) uma grande vontade de chegar lá; (3) traços genéticos favoráveis que herdei dos meus pais; (4) boas influências (intrínsecas e extrínsecas à minha formação familiar) que fui pinçando e incorporando ao longo desta jornada; (5) a importante ajuda que recebi de algumas pessoas com que cruzei pelo caminho; (6) uma sorte danada! O fato é que, dentro da minha perspectiva, quero crer que consegui lograr algum sucesso. E sucesso, meus caros amigos, é um substantivo bastante relativo uma vez que pode ser definido pela nossa própria óptica ou pela dos outros... e estas duas visões nem sempre são confluentes! Sempre usei exclusivamente o meu ponto de vista para caracterizá-lo, importando menos (bem menos) o prisma ou a avaliação de terceiros. Desta maneira, empregando os meus parâmetros, as minhas definições e, principalmente, os meus valores acho que cumpri uma trajetória exitosa na medida em que atingi a maioria das metas que me (auto) estabeleci no passado. Não querendo parecer piegas (tudo bem, só um pouquinho...) acredito que, com pequenas exceções, eu mesmo fui o responsável por escrever o roteiro do filme da minha vida até aqui. Assim, enquanto elaborava este memorial, tive a oportunidade ímpar de revisitar minuciosamente este “script” desde as suas primeiras linhas. Cheguei a me emocionar ao relembrar várias destas incríveis passagens. Da mesma forma, ao revirar os arquivos para montar a minha linha do tempo reencontrei algumas das mais belas e pungentes recordações da minha vida. Valeu à pena concluo. Valeu, sim, cada minuto. Hoje, finalizando esta verdadeira catarse pessoal que foi construir este grande inventário das histórias e o mosaico dos fatos mais marcantes da minha vida, consigo enxergar com clareza e resumir pontualmente quais são, efetivamente, os valores que se sobressaem, os que fazem a diferença e, no final das contas, aqueles que realmente importam:

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(ou carta para um filho que nunca tive)

A beleza de uma querida família. Sólida, carinhosa, saudável e unida...

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O respeito, a admiração e a amizade dos colegas, alunos e professores...

A incomparável gratidão e afetividade dos pacientes expressadas de diferentes formas e das mais curiosas maneiras...

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O reconhecimento, a consideração e o orgulho dos mestres...

Sei muito bem que pela minha própria inquietude (e pelos anos que espero ainda vir a ter pela frente), que novos e formidáveis desafios nos espreitam e deverão ser enfrentados. Esta é uma jornada que nunca terá um ponto final, pois vários dos seus potenciais dividendos poderão ser multiplicados pelas próximas gerações. E aqui, assim como um pai perpetua os seus genes na sua prole, um professor recorre aos seus alunos para refinar, qualificar e expandir a sua herança. A diferença é que a transmissão de um legado acadêmico não flui passivamente entre uma e outra geração. Antes disto, ele tem de ser robusto o suficiente para sobreviver ao ácido e pontiagudo criticismo de jovens mentes inquisitivas e, somente se resistir a este processo, emergirá como um verdadeiro valor a ser preservado e ampliado na tarefa sisifesca que é a busca pela pela excelência!

Mas o próprio Sísifo ensina que a fidelidade superior lhe anima e ajuda a erguer os seus rochedos. Cada grão dessas pedras, cada estilhaço mineral dessa montanha cheia de noite, forma por si só um mundo. A própria luta para atingir os píncaros basta para encher um coração de homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.

O Mito De Sísifo – Alberto Camus

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Acumulei todos os cargos e funções na minha vida universitária. Ingressei no Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e no Departamento de Oftalmo e Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da UFRGS na condição de estudante de medicina em 1983. Progressivamente fui galgando posições: R1, R2, R3, Médico Contratado, Professor Substituto, Professor Auxiliar de Ensino, Professor Assistente, Professor Ajunto I, II, III, IV e finalmente Professor Associado I,II,III,IV. Ao total, são vinte e cinco anos de história empregando os meus melhores esforços em prol desta instituição. Mas ela não me deve absolutamente nada, pois o meu empenho foi sempre proporcionalmente recompensado pela fenomenal estrutura e pelo fantástico respaldo que sempre encontrei na FAMED/UFRGS para desenvolver e divulgar o meu trabalho. Pertencer ao qualificado corpo docente desta Universidade sempre foi a minha maior credencial e o meu mais reluzente cartão de visita! Ninguém deve absolutamente nada a ninguém. Estamos quites, na verdade. Mas a honra de ascender ao cargo de Professor Titular desta magnífica instituição de ensino mais uma vez desequilibraria esta balança, pois acrescentaria uma quantidade grande de débitos à minha conta. Se este for o caso, só posso prometer que, para tentar buscar novamente o equilíbrio, chegarei ao ápice da docência universitária não com a finalidade exclusiva de lá fincar a minha bandeira. Não. Meu objetivo maior é poder, lá do alto, perscrutar o horizonte com mais nitidez e, assim, com clareza, definir os novos projetos e os futuros rumos que orientarão os próximos passos da minha trajetória acadêmica. Afinal, foi assim que sempre tentei fazer e, simplesmente, este é o meu jeito de ser...

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(ou carta para um filho que nunca tive)

And now, the end is near

And so I face the final curtain My friend, I’ll say it clear I’ll state my case, of which I’m certain I’ve lived a life that’s full I traveled each and every highway And more, much more than this, I did it my way Regrets, I’ve had a few But then again, too few to mention I did what I had to do and saw it through without exemption I planned each charted course, each careful step along the byway And more, much more than this, I did it my way Yes, there were times, I’m sure you knew When I bit off more than I could chew But through it all, when there was doubt I ate it up and spit it out I faced it all and I stood tall and did it my way I’ve loved, I’ve laughed and cried I’ve had my fill, my share of losing And now, as tears subside, I find it all so amusing To think I did all that And may I say, not in a shy way Oh, no, oh, no, not me, I did it my way For what is a man, what has he got? If not himself, then he has naught To say the things he truly feels and not the words of one who kneels

The record shows I took the blows and did it my way

Paul Anka

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