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Fig. 01: Lambe-lambe na frente do Palácio do Planalto registra a inauguração da capital. Fonte: O GLOBO © - 20/04/1960.


As redes e a colonização

Brasília ou Maracangalha? Mário Pedrosa1 Era o país do pastoreio mais rústico e da indústria automobilística, da pesca artesanal com técnicas ainda indígenas e das emissoras de televisão, de aldeias perdidas no meio do mato e de núcleos urbanos reluzentes e cosmopolitas, de jacarés e metralhadoras. Ou o Brasil de Maracangalha e Brasília - e de maracangalhas em brasílias. Antonio Risério 2 O Palácio tem configuração horizontal arrematada por uma capela que remete às antigas casas de fazenda do Brasil colonial. O formato diferenciado das colunas externas lembram as redes estendidas em varandas, como as que contornavam os casarões coloniais. O desenho das colunas deu origem ao símbolo e emblema presente no brasão do Distrito Federal. Portal do Planato, publicado em 04/07/20113 1

PEDROSA, M. 1957 in.: WISNIK, G. (org.) 2105, p.131

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RISÉRIO, A. in OLIVEIRA, A. 2010

Notícia Publicada no Portal do Planalto: http://www2.planalto.gov.br/presidencia/ palacios-e-residencias-oficiais/palacio-da-alvorada, acessado em 07 de fevereiro de 2017. 3

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Fig. 02: Cosmococa 5: Hendrix War. Hélio Oiticica, 1973. Fonte.: Revista Carbono. Disponível em: <http://revistacarbono.com/artigos/03redes-de-dormir-raphael-fonseca/> Acesso em Março de 2017;

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A sabedoria de Lucio Costa consistiu em aceitar a incongruência inerente ao programa, e, evitando toda solução de meio termo, ou eclética, decidir resolutamente pelo lado inexorável, dadas as condições objetivas imediatas: o reconhecimento pleno de que a solução possível ainda era na base da expediência colonial, quer dizer, uma tomada de posse à moda cabralina, chanfrando na terra o signo da cruz, ou numa evocação mais moderna e otimista, fazendo pousar docemente sobre sua superfície a forma de um avião. Mário Pedrosa4 Nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da Cruz. Lucio Costa 5 Brasília nasceu de um gesto primário Dois eixos se cruzando. Ou seja: o próprio sinal da cruz. Como quem pede benção ou perdão. Nicolas Behr 6 O presidente Juscelino Kubitsschek celebrou a fundação de Brasília com uma “primeira missa” em 3 de maio de 1957. Ao fazer isso, reencenava ritualmente um dos marcos da fundação do Brasil, a Primeira Missa de Pedro Álvares Cabral, em 3 de maio de 1500. O objetivo de Kubitschek nao reencenar um momento primordial da história brasileira não era diferente do do procedimento de Lucio Costa, ao usar as cidades antigas e símobolos sagrados para inspirar seu plano piloto. Ambos pretendiam legitimar seus esforços por meio da analogia histórica. James Holston 7 4

PEDROSA, M. 1957 in.: WISNIK, G. (org.) op. cit., p.135

5

COSTA, L. 1957, in: COSTA, L. 1995, p. 284

6

BEHR, N. 2004, Braxília Revisitada in.: BEHR, N. 2007, p.56

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HOLSTON, J. 2010, p. 201

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Fig. 03: Construtores da estrada Acre-Brasília dormem em barracões sobre redes. Fonte: Jader Neves. Brasília-Acre. A estrada do Pacífico. Manchete. Rio de Janeiro: 02/07/1960 in: VIDESOTT, 2009, p.223;

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Tudo o que pode parecer imaginário é de fato verdadeiro. Fui, por exemplo, consultar arquivos de jornais para ver fotografias de políticos. Quando o Presidente Kubitschek chega a Brasília por exemplo, os índios lhe levam um cocar de cacique etc. Quando filmei o comício onde o velho senador começa a dançar com as pessoas, mandei vir uma verdadeira escola de samba e botei Vieira no meio. Fizera a mesma coisa com Deus e o Diabo, porque lá também os camponeses pensavam que aquele que interpretava Sebastião era um verdadeiro beato. Glauber Rocha 8 Internamente dois desses painéis serão ampliações fotográficas; no de face, uma jangada de vela enfunada, assinalando-se que este utensílio de trabalho - da mesma região de onde procedem as redes- tende a desaparecer, cabendo então tansformá-lo em esporte regional para que o artesanato dele se mantenha e a tradição não pereça; no oposto, o sugestivo instântaneo colhido em Brasília no dia da inauguração, onde figuram irmãs de caridade e colegiais brincando de roda, de mão dadas na Praça dos Três Poderes. Os quatro painéis restantes serão alternadamente verde escuro (sombrio) e azul claro (cobalto), as redes de algodão, da fábrica Filomeno, serão brancas verdes, azuis, amarelas, cor de abóbora, roxas e vermelhas (tais como são vendidas no Ceará); o chão de areia. Externamente aqueles mesmos painéis serão pintados de preto (brilhante) e branco (fosco) e cada um levará num canto, sobreposta, uma fotografia de Brasília (a Praça dos Três Poderes, a Plataforma Rodoviária, o Eixo Residencial e uma Superquadra) como a sugerir que essa mesma gente que passa o tempo livre na rede, quando o tempo aperta contsrói em três anos, no deserto, uma Capital. Lucio Costa9

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ROCHA, G. 2004, p.123;

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COSTA,L. 1964 in.: COSTA, L. op. cit., p.408;

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Fig. 04: RIPOSATEVI. Pavilhão brasileiro proposto por Lucio Costa para a XIII

Trienal de Milão com fotografis de Marcel Gautherot. Fonte: COSTA, L. op. cit., p.409;

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I. O ano de 1964 marca por muitos sentidos um ponto de inflexão para a história do Brasil. Foi nesse específico ano que efetivou-se o golpe militar, mantenedor de um sistema ditatorial no país por mais de duas décadas. Isso se deu apenas quatro anos após a inauguração daquela que foi feita como o símbolo nacional do progresso de uma nação democrática, a novíssima capital do país. A emergência da cidade planejada no planalto central brasileiro, se fez distintivo para um país “terceiro mundista” em franco desenvolvimento. “O despertar político e a consciência do subdeenvolvimento datam da construção de Brasília” 10; e a inauguração da cidade acabou sendo cume de uma política pública nacionalista que visou a implantação de um espírito unificador; “o Brasil pôde se livrar de seu complexo diante do colonialismo” 11. É também datada de 1964 a XIII Trienal de Milão, exposição que se propôs à revisão dos dogmas modernistas quando centrou a sua temática no tempo livre. As quatro funções propagandeadas pela Carta de Atenas, lembremos: circular, trabalhar, habitar e recrear (ou do cultivo do corpo e do epírito), já não eram suficientes para se pensar a complexidade das dinâmicas sócio-culturais nas grandes cidades12 . A industrialização atrelada a urbanização gerou consequências para os costumes sociais que agora se viam monótonos, repetitivos e sistematizados. A rotina de uma sociedade industrial “é o trabalho constante, ajustado no ritmo da máquina e inserido num contexto cultural massivo”.13 A Trienal visou a discussão de outras perspectivas sobre o tempo livre nas cidades de modo a reposicionar o debtae acerca dos processos de projeto e planejamentos modernos vigentes. 10

ROCHA, G. op. cit., p.200;

11

Idem.;

Podemos acrescentar as discussões críticas aos mesmos dogmas urbanísticos dentro do próprio CIAM com as propostas das grilles executadas pelo TEAM X no IX CIAM realizado em Dubrovnik.. 12

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ROSSETI, E. P. 2006;

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Fig. 05: Helio Oiticica descansa sobre rede. Fonte: FILHO, H.O. 2009, Carlos Vergara©;

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O Brasil e a arquitetura brasileira se tornaram, ao longo de todo século XX, uma das nações com histórico importante de participação dentro das exposições, feiras e mostras internacionais14 . Dessa vez, entretanto, a primeira participação brasileira na Trienal de Milão ficou a cargo de Lucio Costa, arquiteto e urbanista, vencedor do concurso15 para o plano-piloto de Brasília e principal patrono da geração de arquitetos modernistas brasileiros. Lucio optou pelo desenvolvimento de uma proposta “econômica - por força das circunstâncias -” 16 , despojada e simples mas que reverberasse a situação de afirmação política, econômica e cultural do país com a inauguração de Brasília. A capital era em suma o objeto a ser ali exposto e Lucio Costa nos aponta para

“Destacam-se os pavilhões do Brasil na feira de Nova York em 1939 de Lucio Costa e Oscar Niemeyer: projeto que reitera o domínio dos procedimentos modernos e anuncia as especificidades da modernidade brasileira: curvas, elementos vazados, integração com paisagismo, rampas, além da pluralidade de vedações anunciando sua independência estrutural e das grandes aberturas. Também se destaca o pavilhão brasileiro na exposição de 1970, em Osaka, de Paulo Mendes da Rocha: projeto que valoriza a linguagem do concreto armado aparente da chamada Escola Paulista, com as grandes estruturas sob quatro pontos de apoio, reitera a opacidade dos espaços, articula a interioridade dos convívios e a transformação do terreno, além de fortalecer o próprio valor da estrutura como definidora do espaço.” (ROSSETI, E. P. op. cit., loc. cit.); 14

Rememoremos o episódio polêmico em torno do Concurso para o Plano-Piloto. Dentre todas as propostas apresentadas, o memorial descritivo desenvolvido por Lucio Costa era muito pouco detalhado e considerado insuficiente para ser apresentado como proposta. O próprio Lucio inicia o memorial com um singelo pedido de desculpas: “Desejo inicialmente desculpar-me perante a direção da Companhia Urbanizadora e a Comissão Julgadora do concurso pela apresentação do partido aqui sugerido para a nova capital, e também justificar-me./Não pretendia competir e na verdade, não concorro, - apenas me desvincilho de uma solução possível, que não foi procurada mas surgiu, por assim dizer, já pronta./Compareço não como técnico devidamente aparelhado, pois nem sequer disponho de escritório, mas como simples maquisard do urbanismo, que não pretende prosseguir no desenvolvimento da ideia apresentada senão eventualmente, na qualidade de de mero consultor. E se procedo assim candidamente é porque me amparo num raciocínio igualmente simplório: se a sugestão é válida, estes dados, conquanto sumários na sua aparência, já serão suficientes, pois revelarão que, apesar da espontaneidade original, ela foi intensamente pensada e resolvida, se não o é, a exclusão se fará mais facilmente, e não terei perdido meu tempo nem tomado o tempo de ninguém.” (COSTA, L. op. cit., p.283). Apesar das considerações e recusas por parte do júri, a proposta foi declarada vencedora. 15

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COSTA, L. op. cit., loc. cit.;

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Fig. 06: RIPOSATEVI. Fonte: COSTA, L. op. cit., p.410;

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alguma simplicidade17 no pavilhão quando nos conta: Bastará apresentarmos ali um ambiente de estar “mobiliado” apenas com redes - cerca de 14 - e alguns violões dos mais singelos, ambiente este destinado a acolher o inevitável cansaço dos visitantes da exposição, e que, por sua índole, despertará fatalmente a curiosidade de todos. 18

Apesar do discurso ser construído em uma aparente simplicidade e modéstia, o que se propõe para o pavilhão se estabelece numa feroz ambivalência imagética, na opção por contrapor, sobrepor, justapor imagens. Como, por exemplo, acontece no caso das fotografias das jangadas, na justificativa de que este artefato tende a desaparecer, cabendo então tansformá-lo em esporte regional para que o artesanato dele se mantenha e a tradição não pereça; no oposto, o sugestivo instântaneo colhido em Brasília no dia da inauguração, onde figuram irmãs de caridade e colegiais brincando de roda, de mão dadas na Praça dos Três Poderes.19 O convite ao ócio e repouso (RIPOSATEVI) provocado pelas redes coexiste com a imbricação de uma tensão tênue entre o que há de mais moderno em projeto de futuro, com o popular, o arcaíco, ou ainda, com aquilo que em uma sociedade industrializada fica aparentemente à mercê do espectro de desaparecimento. Lucio Costa atua com segurança numa perspectiva de grandes tensões ao articular o artefato mais ancestral da cultura brasileira – a rede – com o artifício mais contemporâneo da cultura de massa: a imagem.20 Salientemos aqui a recorrência de uma possível estratégia de escrita em Lucio Costa. Podemos notar, tanto no Memorial Descritivo para o Plano Piloto quanto naquele para a XIII Trienal de Milão, a escolha e repetição de termos e orações como simplicidade, simples, simplório, singelo, econômica, “se procedo assim candidamente”, “apenas uma solução possível”, “não foi procurada, mas surgiu”, “não como técnico, pois nem sequer disponho de escritório”, “como um simples maquisard do urbanismo”,“como um mero consultor”, etc. Tal atitude nos leva ao questionamento: será que essa escrita, assim modesta, não é também pretensiosa para a forja do esteriótipo da naturalizada humildade dos gênios? 17

18

COSTA, L. op. cit., loc. cit.;

19

Idem.

20

ROSSETI, E. P. op. cit., loc. cit.;

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Brasília foi a típica “cidade modernista”, em sua realização mais plena, o “exemplo mais completo já construído das doutrinas arquitetônicas e urbanísticas apresentadas pelos manifestos dos CIAM” 21. Mas como apreesentá-la ao mundo em um evento com esse caráter, que discute o tempo livre e questiona criticamente as principais diretrizes que regem o urbanismo moderno? Era preciso hibridizar o discurso, ou melhor, era preciso assumir o caráter impuro da utopia moderna e explicitar as dualidades e contradições que fizeram parte da cultura e da construção da nova capital. Sempre recalcadas ou diminúidas essas dualidaes, por vezes escapam das falas de seus idealizadores que apontavam para o progresso e desenvolvimento inexorável da nação. Justapor imagens de um Brasil moderno enquanto projeto de futuro concretizado na construção da capital, com os costumes e artefatos populares “antiquados”, mas que sofriam riscos de extinção frente à industrialização, não denota uma postura despojada por parte de Lucio Costa. É nesse intempestivo jogo de interposição que o discurso se constrói, numa tensão constante entre a perseverância do “antepassado” no projeto de futuro modernizador. Há aqui, de alguma forma, uma construção de juízo de valor sobre o “passado”, e essa operação se dá como uma malha seletiva que determina o que sobrevive e o que não. As temporalidades imbricadas na construção imagética e discursiva22 do pavilhão nos ajudam a entender, ainda, que 21

HOLSTON, J. op. cit., p. 37;

Salientemos aqui uma outra possível estratégia de escrita em Lucio Costa. É recorrente em seus depoimentos o uso de analogias históricas. A abertura do Memorial descritivo para o Plano Piloto se inicia com uma epígrafe que evoca uma temporalidade passada: “... José Bonifácio, em 1823, propõe a transferência da capital para o Goiás e sugere o nome de BRASÍLIA” (COSTA, op. cit., p.283) e se encerra com a seguinte oração: “BRASÍLIA, capital aérea e rodoviária; cidade parque. Sonho arqui-secular do Patriarca.” (COSTA, op. cit., p.295). Outra figura importante a recorrer da mesma estratégia é Juscelino Kubistchek, quando “em suas memórias, ele descreve a missão de Tomé de Souza como uma versão de seu próprio projeto de desenvolvimento”(HOLSTON, op. cit., p.201) ou quando reencena a Primeira Missa na inaugaração da capital (HOLSTON, op. cit., loc. cit). Em ambos os casos vemos a utilização anacrônica de um fato passado para validar uma ação presente numa perspectiva teleológica e progressista da história. 22

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a escolha das redes não se deu de forma fortuita23 ou romântica, “como a sugerir que essa mesma gente que passa o tempo livre na rede, quando o tempo aperta contsrói em três anos, no deserto, uma Capital.”24 “A rede é um equipamento doméstico que foi industrializado, ou seja, um artefato que foi deslocado de uma escala de produção artesanal para a escala de produção industrial sem perder sua essência, sua materialidade, ou sua importância simbólica e cultural. Não houve corrupção de seus valores e significados. Trata-se de uma experiência extremamente moderna sob a perspectiva de Gropius: articulação plena entre manufatura artesanal e os novos meios de produção. Pois é justamente este artefato que Lucio Costa transforma no índice espacial fundamental de seu projeto.”(ROSSETI, E. P. op. cit., loc. cit.); 23

24

COSTA, L. op. cit., loc. cit.;

NA BIBLIOTECA com a loucura no bolso, orlando entrou na biblioteca estadual. folheou as folhas estaparfúdias sobre as ideias a arquitetura e a descompostura dos homens. aí achou graça. aí ficou sério. aí riu. aí chorou demais aí começou a tremer sentiu o bolso furado sentiu o corpo molhado derretendo-se beto chegou a tempo de recolher num copo a poça d’água que corria pelo ralo. orlando disse mais tarde: não faço isso never more. CHACAL, 1972. Preço de Passagem in: 2007, p.337

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II. No ano de 1957, o antropólogo natalense Luís da Câmara Cascudo elegeu as redes como objeto de teoria e publicou o estudo entitulado: Redes de Dormir: um estudo etnográfico. Nele podemos ver a explicitação da observação desse artefato doméstico encontrados em vasta literatura, presente no quotidiano das residências brasileiras e oriundo de uma cultura ameríndia. Familiarizado com o objeto, Cascudo nos aponta que o primeiro registro acerca das redes se deu ainda no séc. XV por Pero Vaz de Caminha. A nominação tem data exata: 27 de abril de 1500 e nos diz: … em que haveria nove ou dez casas, as quais eram tão compridas, cada uma, como esta nau-capitânia. Eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de razoada altura; todas duma só peça, sem nenhum repartimento, tinham dentro muitos esteios; e, de esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam. Debaixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma num cabo, e outra no outro.25

Desde o descobrimento do país e nas recorrentes viagens expedicionárias ao Novo Mundo, as redes ocuparam o lugar de estranhamento e curiosidade por parte dos colonizadores europeus. Um grande número de viajantes26 dedicou observação, narração e representação dos costumes indígenas em torno do objeto. Muitas dessas imagens, fruto do contato do colonizador com o indígena, associavam a rede ao ócio e à inoperosidade como objeto de descanso, e também como objeto propiciador ao sexo, dada a nudez dos corpos indígenas. Nesse jogo de contrastes vemos de um lado a consciência operativa e ativa do colonizador, devidamente trajado e preparado para o extração e cultivo da terra “recém-descoberta” e de outro o indígena nu e procrastinador a se balançar sobre as redes. 25

CAMINHA, P. V. apud. CASCUDO, L. C. 2003, p.27

André Thevet, Jean de Lery, Hans Staden, Jean Nieuhof e Karl von den Steinen, apenas para citar alguns 26

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“Ai! Que preguiça!...” 27 “A terra e homem estavam em estado bruto.” 28 A construção do discurso de oásis se deu pela perspectivação colonizadora, na qual o solo e o ameríndio deveriam ser tratados como instrumentos a serem cultivados, civilizados e culturados, o que justificava toda a empreitada 27

ANDRADE, M. 2013;

28

FREYRE, G. 2003, p. 85

Fig. 07: Theodor de Galle – “Américo redescobre a América; ele a chamou uma vez e desde então ela permanece acordada” – 1630. Fonte: Revista Carbono. FONSECA, R. 2013; Disponível em: http://revistacarbono.com/artigos/03redes-de-dormir-raphaelfonseca/. Acesso em: Março de 2017

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de conquistas. A igreja católica29, com o maquinário contra-reformista, demonstrou ser uma determinante força-motora para a expansão e colonização. O novo mundo e os indígenas foram constrúidos a representarem alegorias para os pecados capitais: “a rede e seu elogio à preguiça; a ausência de vestuário e o apelo à visualização da nudez dos corpos e por fim o canibalismo encontrado em algumas tribos e recebido como primitivismo e selvageria.” 30. Preguiça. Luxúria. Gula. Para a ocupação e colonização eram precisos a catequese, a conversão, o culto. Para a disciplina do trabalho e do cultivo eram necessários processos civilizatórios, processos de culturação. Alfredo Bosi nos sugere o atentamento às essas palavras em específico: As relações entre os fenômenos deixam marcas no corpo da linguagem. As palavras cultura, culto e colonização derivam do mesmo verbo latino colo, cujo partícipio passado é cultus e o particípio futuro é culturus. Colo significou, na língua de Roma, eu moro, eu ocupo a terra e, por extensão, eu trabalho, eu cultivo o campo. Um herdeiro antigo de colo é incola, o habitante, o outro é inquilinus, aquele que reside em terra alheia. [...] Colo é a matriz de colonia enquanto espaço que se está ocupando, terra ou povo que se pode trabalhar e sujeitar. Não por acaso, sempre que se quer classificar os tipos de colonização, distinguem-se dois processos: o que se atém ao simples povoamento, e o que conduz à exploração do solo. Colo está em ambos: eu moro, eu cultivo. Na expressão verbal do ato de colonizar opera ainda o código dos velhos romanos. E a rigor, o que diferencia o habiar e o cultivar do colonizar. Em princípio, o deslocamento que os agentes sociais fazem do seu mundo de vida para outro onde irão exercer a capacidade de lavrar o solo alheio. O incola que emigra torna-se colonus. [...] Mas o novo processo não se esgota na reiteração ds esquemas originais: há um plus estrutural de domínio, há um acréscimo de forças que se investem no desígnio do conquistador empretando-lhe às vezes um tônus épico de risco e aventura. A colonização dá um ar de recomeço e de arranque a culturas seculares. O traço grosso da dominação é inerente às diversas formas de colonizar e, quase “As motivações expressas dos colonizadores portugueses nas Américas, na Ásia e na África inspiraram-se no projeto de dilatar a Fé ao lado de dilatar o Império. E os puritanos que aportaram às praias da Nova Inglaterra também declararam to perform the ways of God.” (BOSI, 1992, p. 15) 29

30

20

FONSECA, R. 2013;

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sempre, as sobredtermina. Tomar conta de, sentido básico de colo, importa não só em cuidar, ma também em mandar. 31

A violência é inerente ao processo, e como nos aponta Aimé Césaire, a colonização se esmera em “descivilizar o colonizador, em embrutecêlo, em degradá-lo, em despertá-lo para os instintos ocultos, para a cobiça, para o ódio racial e para o reltivismo moral” 32. “A colonização é um projeto totalizante cujas forças motrizes poderão sempre buscar-se no nível do colo: ocupar um novo chão, explorar seus bens, submeter os seus naturais”.33 Não nos esqueçamos dos mortos e do teor de barbárie desses processos violentos34: no genocídio de ameríndios e negros e nas estratégias atrozes de aculturamento e apagamento dos costumes ancestrais dessas populações. Entretanto, a figura do colonizador é construída historicamente sobre uma perspectiva mais romantizada, ele “se verá a si mesmo como um simples conquistador; então buscará passar aos seus descendentes a imagem do descobridor e do povoador.” 35 Se retormarmos a Figura 7, poderemos perceber com mais acuidade a cena em alguns detalhes, no europeu colonizador vemos a caravela, a Cruz36 e o instrumento utilizado para navegação, ao fundo um ritual antropofágico em torno de uma fogueira e sobreuma rede uma indígena nua se mostra como alegoria da própria América. A

31

BOSI, op. cit., p. 11-12

32

CÉSAIRE, A. 1978, p.17

33

BOSI, op. cit., p.15

“A barbarização ecológica e populacional acompanhou as marchas colonizadoras entre nós, tanto na zona canavieira, quanto no sertão bandeirante ; daí as queimadas, a morte ou a preação dos nativos. Diz Gilberto Freyre, insuspeito no caso, porque apologista da colonização portuguesa no Brasil e no mundo: ‘O açúcar eliminou o índio”. Hoje poderíamos dizer: o gado expulsa o posseiro; a soja, o sitiante, a cana, o morador. O projeto expansionista dos anos 70 e 80 foi e continua sendo uma reatualização em nada menos cruenta do que foram as incursões militares e econômicas dos tempos coloniais.” (Ibidem., p.22) 34

35

Ibidem., p.11-12

A cruz era o símbolo da ordem jesuítica, as primeiras ocupações das missões jesuítas eram demarcadas também pelo sinal da cruz. 36

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composição reforça o jogo imagético de contrastes e ambivalências entre civilização e selvageria.37 O progresso civilzatório proposto pelo projeto de futuro europeu38 se posta a frente de um primitivismo em vias de extinção e desaparecimento. Sobre a gravura de Theodor de Galle foi-se inscrito: “Américo redescobre a América; ele a chamou uma vez e desde então ela permanece acordada”. Não nos esqueçamos que Câmara Cascudo nos aclara de que a função prioritário da rede era para o sono. A América, assim como o hino da nação brasileira diz, estava “deitada eternamente em berço esplêndido”; preguiçando sobre a rede de dormir, se fazia necessário que um homem de exceção como Vespuccio a despertasse. 39 O “despertar” de uma civilização esteve sempre atrelado a uma visão linear, teleológica e progresita do tempo e da história. Uma dada condição de “inferioridade” cultural também se mostra como justificativa suficiente para a empreitade civilizatória dos hmens e das terras. A marcha do progesso imposta a força pelas colonizações40 e seu tempo apertado foi o que sobrepujou o tempo livre daqueles que como Macunaíma, o nosso herói sem caráter: Passava os dias marupiara na rede matando formigas taiocas, chupitando golinhos estalados de pajuari e quando agarrava cantando acompanhado pelos sons gotejantes do cotcho, os matos reboavam com doçura adormecendo as cobras os carrapatos os mosquitos as formigas e os deuses ruins. 41

37

FONSECA, R. op. cit.;

“A colonização não pode ser tratada como uma simples corrente migratória: ela é a resolução de carências e conflitos a matriz e uma tentativa de retomar, sob novas condições o domínio sobre a natureza e o semelhante que tem acompanhado universalmente o chamado processo civilizatório.”(BOSI, op. cit., p.13) 38

39

FONSECA, R. op. cit.;

“Brasília será a matriz, nutriz e protetriz da vida nacional integral e total. E o gigante não continuará deitado eternamente nas areias en entorpecentes das praias do litoral. Vai acordar-se, vai levantar-se e transpor as Serras do Mar e da Mantiqueira para subir até o planalto das vertentes do Brasil.” (BRASÍLIA, 1957a, p13) 40

41

22

ANDRADE, M. op. cit. p.25-26

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Fig. 08: Capa da Revista Brasília de número 6, a edição acompahou a visita do General Craveiro Lopes, Presidente da República Portuguesa. Em comemoração à visita foi erguido na nova capital um monumento dedicado à Raça e aos heróis portugueses. Fonte: Revista Brasília. n. 6. Junho de 1957. (BRASÍLIA, 1957b)

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III. A Revista Brasília foi uma importante publicação mensal criada pelo então governo federal, atavés da Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil, a NOVACAP, “para divulgar os atos admnistrativos da Diretoria e os contratos por eles celebrados.”42 A revista tinha a obrigatoriedade de documentar o processo de projeto e construção da cidade e também “defender a construção, a arquitetura e o urbanismo da nova Capital do Brasil.” 43 Para a produção da revista foram contratados diversos fotógrafos44 e jornalistas para a cobertura de todo os bastidores da grande empreitada. As 83 edições da revista são hoje importante acervo documental para a história da construção, consolidação e inauguração de Brasília. Publicada no mês de maio de 1957, o quinto volume da revista foi o primeiro como número especial, marcava então uma mudança de direção da revista e foi destinada à cobertura da primeira missa de Brasília. Celebração celebrado no dia 3 de maio de 1957, 457 anos e sete dias após a primeira missa realizada em solo brasileiro, pelo então Cardeal e Arcebispo de São Paulo, D. Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota e com um discurso final do presidente Jucelino Kubistchek. A celebração aconteceu aonde hoje está localizada a Praça do Cruzeiro 45, o local foi cuidadosamente escolhido pois nele foi cravado uma cruz monumental naquele que era o ponto mais alto do planalto central, a 1.172m do nível do mar. “Ali, sob um imenso tôlclo de lona, em chão assoalhaclo, lembrando em tudo o ambiente primitivo e singelo ela Primeira Missa do Brasil, estava

42

CAPELLO, 2010, p.43

43

Idem.

Dentre os fotográfos contratados, destacamos a presença de Marcel Gautherot e Mario Moreira Fontenelle. 44

Próximo ao Memorial JK. Na praça, aonde hoje está fincada uma cruz, está também localizado o Memorial da Primeira Missa. A cruz que foi cravada no dia 3 de maio de 1957 está hoje exposta no interior da catedral projetada por Oscar Niemeyer. 45

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Fig. 09: Primeira Missa no Brasil. Fonte: Vitor Meireles, 1860. Óleo sobre tela. 268x351cm. Rio de Janeiro: Museu nacional de Belas Artes.

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armado o altar monumental, em cujo centro ficou a imagem de N. S.” Aparecida.” 46 Antes da solenidade, D. Carmelo “celebrou o batismo de uma criança nascida em Brasília, servindo de padrinhos o Presidente Juscelino Kubistchek e a Senhora Israel Primeiro.” 47 A cerimônia iniciada às 11:20 contou com a presença de três mil brasileiros e com quase mil veículos, entre aviões, automóveis e charretes. “As estradas que dão acesso a Brasília foram completamente tomadas por densa romaria, por uma multidão de homens, mulheres e crianças do interior, ansiosos por ver de perto, com os próprios olhos, o nascimento de uma nova era da civilização nacional - uma legítima redescoberta do Brasil.” 48 O Papa Pio XII concedeu benção apostólica para a celebração através da seguinte mensagem enviada ao presidente da República: Exmo. Sr. Dr. Juscelino Kubitscheh de Oliveira, Presidente dos Estados Unidos do Brasil - Rio - DF - No dia do aniversário da descoberta e da primeira missa nas terras de Santa Cruz muito Nos agrada que tão fausta data seja recordada com a celebração da primeira missa em Brasília. Pedindo a Deus que continue a derramar sôbre a generosa nação brasileira os seus celestes favores para que progrida e prospere à luz do Evangelho e dos ensinamentos da Igreja, conceclemos, de coração, a V. Exa., às autoridades presentes à sugestiva cerimônia e a todó querido povo brasileiro, a nossa especial bênção apostólica.49

Se faz notória a recorrência à exaltação da primeira missa em Brasília ter sido realizada no mesmo período em que foi celebrada a primeira no Brasil, uma semana após a chegada dos navegantes portugueses. Se faz significante nessa construção discursiva uma espécie de reencenação alegórica do evento que definiu o Brasil, acontecimento histórico que alçou o solo brasileiro à uma rede global de comércio e exploração. Se até o século XIX, as terras brasileiras 46

BRASÍLA, 1957, p. 5;

47

Ibidem. p. 6;

48

Ibidem. p. 3;

49

PIUS, PP. XII in: BRASÍLA, op. cit., p. 12;

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Fig. 10: Primeira Missa de Brasília. Fonte: Revista Brasília. n. 6. (BRASÍLIA, 1957a)

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eram extensão de Portugal, a emergência de Brasília significava o expurgo de todos o passado de nação colonizada, que agora caminhava para a conretização de um país democrático e industrializado, ineria-se então em uma outra cartografia global sócio-econômica. “O despertar político e a consciência do subdesenvolvimento datam da construção de Brasília. Isso é bastante contraditório, porque Brasília era uma espécie de Eldorado, a possibilidade de que os brasileiros tinham de criar eles mesmos alguma coisa.” 50. É paradoxal ainda percebermos que mesmo que em uma clara denegação do passado colonial brasileiro que precisava ser superado, os discursos para a construção de Brasília não se fartaram de referências históricas51 e atualizações anacrônicas do tempo passado como justificativas para às ações presentes. Recorrem-se às experiências e traumas históricos52 como legitimadores dos projetos de futuro. Nos primeiros parágrafos do memorial descritivo para o plano piloto, Lucio Costa não se exime de nos esclarecer: “Trata-se de um ato deliberado de 50

ROCHA, G. op. cit., loc. cit.;

Sobre as recorrências históricas presentes nos discursos mudancistas ver: O Passado de um mito: histórico das ideias sobre a mudança da capital, parte do Capítulo 2 do livro Brasília: o mito na trajetória da nação, do psicólogo Márcio de Oliveira. Nesse tomo o autor elencou 18 fatos históricos que contribuíram para a construção do discurso sobre a mudança da capital. São eles: a Inconfiência Mineira; a fundação do Correio Braziliense em 1808; as teses de José Bonifácio em 1821; as teses de Francico Adolfo de Vannhagem em 1854, o sonho de Dom Bosco; o primeiro ato republicano: Art. 3 e a Comissão Cruls; projetos parlamentares nas primeiras décadas do século XX; Informação Goyana; o centenário da Independência; a publicação de A estrutura política do Brasil de Everardo Backeuser em 1926; O projeto do tenente-coronel Luís Mariano de Barros Fournier em 1926; a publicação de Brasília, cidade histórica da América por Theodoro Figueira de Almeida em 1930; a Constituição de 1934; a criação da Fundação Brasil Central por Getúlio Vargas em 1937; a Constituição de 1946; a desapropriação das terras do futuro Distrito Federal em 1946; a ação de Jeronymo Coimbra Bueno e por fim a criação das Comisões de Estudos para a localização da Nova Capital do Brasil e a Comissão de Localização da Nova Capital Federal. (OLIVEIRA, M. de. 2005, p. 84-102). Acrescentaríamos aqui ainda a viagem de Le Corbusier ao Brasil em 1926 quando o arquiteto suíço revela, em cartas trocadas com amigo, poeta e conterrâneo, Blaise Cendrars, o sonho de projetar Planaltina, a fuutura capital do Brasil. (Disponível em : http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br/ apresentacao.php?idVerbete=1595&langVerbete=pt) 51

“Agressão ou experiência psicológica muito violenta.”(“Trauma.” Def. 2e. Dicionário Aurélio. 2017. https://dicionariodoaurelio.com/trauma) 52

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posse, de um gesto de sentido ainda desbravador, nos molde da tradição colonial.”53 O urbanista nos revela que não se trata aqui de nenhum ismo, nenhum estilo ou movimento artístico que tenta resgatar nostalgicamente54 uma linguagem passada mas sim de uma ação, um modo de fazer, um gesto desbravador. Reencenar a primeira missa no planalto central brasileiro, como um simbólico “despertar” de uma nova nação, nos traz ainda outro importante personagem político, a Igreja Católica. As grandes navegações foram impulsionadas pelo catolicismo, necessidade de conversão dos povos selvagens pela fé cristã. A fé e o culto católico 53

COSTA, L. op. cit.; p.283

Lembremos que nos primeiros anos de carreira, Lucio Costa foi o principal expoente de uma arquitetura que tentava recuperar na tradição colonial uma arquitetura genuinamente brasileira. 54

Fig. 11: Nascido do nada: intersecção de dois eixos de Brasília em maio 1957 Fonte: Original Foto: Mario Fontenelle © versão digital editada: Lina Kim e Michael Wesely©

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Fig. 12: Juscelino posa em frente à Cruz cravada no chão do planalto central. “ ‘Na Bíblia se lê como Deus plantou no meio do Paraíso, a miraculosa árvore da vida. Brasília é a árvore da vida nacional providencialmente plantada no Planalto Central da nossa Pátria’ Essas foram as palavras do Cardeal Vasconcelos Mota por ocasião da primeira missa celebrada em Brasília. Como no Descobrimento, a Cruz marcou novamente uma era para o Brasil. Fonte: KUBISTCHEK, Juscelino. Por que construí Brasília. Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1975 in: VIDESOTT, op. cit. p. 34

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fundamentaram os processos civilizatórios e exploratórios nas novas terras. Esse mesma necesidade litúrgica reaparece na tomada de posse das terras de Brasília estreitando as relações entre as conquistas de terra55, tomadas de posse com a Fé56, a religião e o culto. A Cruz erguida na primeira missa do Brasil foi o primeiro símbolo de conquista do território, a Cruz também demarcava os eixos cartesianos, sempre alinhados à constelação do Cruzeiro do Sul57, que determinavam as ocupações jesuíticas em solo brasileiro. Em ambos os casos vemos ressonâncias históricas equivalentes na história da ocupação e construção de Brasília. Para encerrar a cerimônia da primeira missa de Brasil 58, o Presidente Juscelino Kubistchek proferiu as seguintes palavras: “Hoje é o dia de Santa Cruz. Dia em que Brasília, ontem apenas uma esperança e hoje entre todas a mais nova das filhas do Brasil, começa a erguer-se, integrada no espírito cristão, causa, princípio fundamento da nossa unidade nacional; dia em que Brasília se torna autenticamente brasileira. Porque desde as suas origens o Brasil existe com a presença de Cristo. Este é o dia do batismo do Brasil novo. É o dia da esperança, o dia da ressurreição da esperança. É o dia da cidade que nasce. Plantamos, com o Sacrifício da Santa Missa, “um elemento que mostra a associação entre a igreja e a coroa portuguesa refere-se à doação feita pelo Papa Calixto II, pela qual todas as terras a oeste do Cabo do Bojador pertenceriam à Ordem de Cristo. Isso mostra que, antes mesmo de ter sido descoberto o Brasil já era propriedade de uma ordem religiosa portuguesa que mantinha com a Coroa uma relação que não era fortuita. Assim é que, em 1512, quando D. João III assume o trono, ele se torna membro da Ordem de Cristo e volta o interesse da Coroa para terras de além mar ssobre as quais a Ordem tinha o domínio, empenhando o seu zelo católico na empresa, assim das terras como das almas do Brasil.” (BORGES, 2008, p.175-176 in: ETRINGER, R. 2015, p.38) 55

“a presennça dos jesuítas, a quem caberia a missão de converter os habitantes nativos entre os que acompanhariam Tomé de Souza, primeiro governador geral do Brasil, foi solicitada por D. João III, que havia consultado ignácio de Loyola a respeito dessa nova empreitada. Em 1548, Loyola incumbe o Frei Manuel da Nóbrega de chefiar o grupo de jesuítas que fundaria a primeira missão de conversão em terras brasileiras.”(Idem.) 56

57

ETRINGER, R., op. cit. p. 55

Uma outra equivalência histórica que corrobora para a reencenação é a presença de indígenas durante a primeira missa de Brasília. Está documento também consta no vol. 5 da Revista Brasília. 58

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uma semente espiritual neste sítio que é o coração da Pátria. Seja-me permitido formular uma ardente súplica, neste momento: que Nossa Senhora da Aparecida, a Padroeira do Brasil e Madrinha de Brasília, vele por esta cidade que surge, resguarde os que a vierem habitar, volva os olhos benignos para os homens públicos que daqui deverão dirigir esta Nação, a fim de que eles honrem os nossos maiores e sirvam condignamente as gerações futuras. Que Brasília se modele na conformidade dos altos desígnios do Eterno; que a Providência faça desta nossa terrestre um reflexo da cidade de Deus; que ela cresça sob o signo da Caridade, da Justiça e da Fé”.59

A fala de Kubistchek denota um forte entrelaçamento entre a ação de ocupação e cultivo do solo, (“Plantamos, com o Sacrifício da Santa Missa, uma semente espiritual neste sítio que é o coração da Pátria.”) com o culto do antepassado em explicitação religiosa (“Porque desde as suas origens o Brasil existe com a presença de Cristo. Este é o dia do batismo do Brasil novo.). “A possibilidade de enraizar no passado a experiência atual de um grupo se perfaz pelas mediações simbólicas.” 60 O que podemos notar ainda é uma construção KUBISTCHEK, J. 1957, Disponível em: http://catedral.org.br/arquidiocese-de-brasilia-relembram-a-primeira-missa-da-cidade.html. 59

60

BOSI, op. cit. p.15

ALMA DE ÍNDIO das pessoas que a gente gosta o que dá vontade é quando se encontrar dar uma barrigada um abraço um grande beijo. mas a mórbida catequese se instala na alma desse índio sem cerimônia CHACAL, 1979 in: 2007,p.212

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rigorosa na utilização dessas mediações simbólicas da construção de todos esses discursos. Se o próprio sinal cruz é ponto de partida, o gesto primário, para a demarcação dos eixos no plano-piloto, a mesma cruz é cravada na terra, como a semente “da árvore da vida providencialmente plantada no Planalto Central da Pátria.” 61 Há uma clara relação entre plantar a cruz, como cultivo e culto, eo ato colonizador de demarcar o sinal da cruz no solo como gesto primário de ocupação. O passado reaparece como legitimador de uma ação presente. Sobre essa relação entre culto e colonização é explicitada por Alfredo Bosi:

Para o passado. Com o adjetivo deverbal, cultus atríbuía-se ao campo que já fora arrôteado e plantado por gerações sucessivas de lavradores. Cultus traz em si não só a ação sempre reproposta de colo, o cultivar através dos séculos, mas principalmente a qualidade resultante desse trabalho e já incorporado à terra que se lavrou. [...] Cultus é sinal de que a sociedade que produziu o seu alimento já tem memória. [...] Quanto a cultus, substantivo, queria dizer não só o trato da terra, como também o culto dos mortos, forma primeira de religião como lembrança, chamamento ou esconjuro dos que já partiram. [...] Convém amarrar os dois significados desse nomeverbo que mostra o ser humano preso à terra e nela abrindo covas que o alimentaram vivos e abrigam morto: cultus(1): o que foi trabalhado sobre a terra, cultivado; cultus(2): o que se trabalha sob a terra; culto; enterro dos mortos; ritual feito em honra dos antepassados; [...] A esfera do culto, com a sua constante reatualização das origens e dos ancestrais, afirma-se como um outro universal das sociedades humanas juntamente com a luta pelos meios materiais de vida e as consequentes relações de poder implícitas, literal e metaforicamente na forma ativa de colo.[...] Mas os agentes desse processo não são apenas suportes físicos de operações econômicas; são também crentes que trouxeram nas arcas da memória e da linguagem aqueles mortos que não devem morrer. Mortos bifrontes, é bem verdade: servem de aguilhão ou de escudo nas lutas ferozes do cotidiano, mas podem intervir no teatro dos crimes com vozes doridas de censura e remorso. Santiago de Compostela excita os matamoros nas KUBISTCHEK Juscelino. Por que construí Brasília. Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1975 in: VIDESOTT, op. cit. loc. cit. 61

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lutas da reconquista ibérica; a Cruz vencedora do Crescente será chantada na terra do pau-brasil e subjugará os tupis, mas, em nome da mesma cruz, haverá quem peça liberdade para os negros e índios e miseicórdia para os negros. 62

A relação entre culto e colonização está assim atrelada ao passado, no culto ao acumúlo dos tempos, nas experiências e práticas antepassadas. Apontando para o futuro, Bosi nos indica então que culturus deriva do particípio futuro de colos, e nesse sentido, está vinculada à raiz do termo latino, ao que se vai trabalhar, ao que se quer cultivar.63 Assim sendo, “a terminação -urus, em culturus, enforma a ideia de provir ou de movimento em sua direção.” 64 A cultura se estabelece em uma relação futura, em dimensão projetiva e imaginativa. Civilzar uma sociedade é instituir um projeto de futuro como horizonte a ser alcançado. É cravar na linha teleológica e messiânica do tempo um único futuro determinado e determinante. Se dá através da normatização de uma dita “alta” cultura e na consequente necessidade de culturação. Entre cultura e colonização, Alfredo Bosi nos elucida que: Cultura é o conjunto de práticas, das técnicas, dos símbolos e dos valores que se devem transmitir às novas gerações para garantir a reprodução de um estado de coexistência social. [...] Cultura supõe uma consciência grupal operosa e operante que desentrenha da vida presente os planos para o futuro. [...] O presente se torna mola, instrumento, potencialidade de futuro. Acentua-se a função de produtividade que requer um domínio sistemático do homem sobre a matéria e sobre outros homens. Aculturar um povo se traduziria em sujeitá-lo ou, no melhor dos casos, adaptá-lo tecnologicamente a um certo padrão tido como superior. 65

Brasília simbolizava, projetava e prospectava um outro futuro de esperanças para o Brasil, moderno, industrializado e em vias de 62

Ibidem. p.14-16

63

Ibidem. p.16

64

Idem.

65

Idem.

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desenvolvimento galopante. “A moderna universidade, as ciências políticas, tudo isto apareceu com Brasília. Até mesmo a rebelião da igreja moderna foi inspirada por esses fatos. Brasília provocou imensa inflação, mas todas as grandes perspectivas brasileiras apareceram com ela.” 66. A emergência de Brasília significou também a explicitação da construção de um projeto civilizatório para o país. Sob a imagem futura e idealizada de uma nação desenvolvida frente à máquina de crescimento econômico das cidades modernas a nova capital federal se tornou o maior símbolo deste processo. A instauração de um processo civilzatório é também a sua própria denúncia e nela se abrem brechas para a crítica, num campo aberto à disputa e à luta. Os fatos culturais mantém talvez, uma ambivalência crítica67 nos seus processos civilizatórios, por também estarem impregnados de críticas, desvios, recalques e embates apagados ou contidos pelas histórias oficias ao longo do tempo. Como nos aponta o historiador Michel de Certeau: 66

ROCHA, G. op. cit. loc. cit

67

OITICICA, 1968

PAPO DE ÍNDIO veio uns ômi de saia preta cheiu de caixinha e pó branco qui êles disserum que chamava açucri Aí êles falarum e nós fechamu a cara depois êles arrepitirum e nós fechamu o corpo Aí êles insistirum e nós comemu êles CHACAL, 1971. Muito Pazer Ricardo in: 2007, p.361

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Assim o espetacular sucesso da colonização espanhola no seio das etnias indígenas foi alterado pelo uso que dela se fazia: mesmo subjugados, ou até consentindo, muitas vezes esses indígenas usavam as leis, as práticas ou a representações que lhe eram impostas pela força ou pela sedução, para outros fins que não os dos conquistadores. Faziam com elas outras coisas: subvertiamnas a partir de dentro - não rejeitando-as ou tranformando-as (isto acontecia também), mas por cem maneiras de empregálas a serviço das regras, costumes ou convicções estranhas à colonização da qual não podia fugir. Eles metaforizavam a ordem dominante: faziam-na funcionar em outro registro. Permaneciam outros, no interior do sistema que assemelhavam e que os assemelhava exteriormente. Modificavam-no sem deixá-lo. 68

Essas inversões simbólicas apontadas, são as astúcias milenares, “uma arte imemorial, que não apenas atravessou as ordens sociopolíticas sucessivas, mas remonta bem mais acima que nossas histórias e liga com estranhas solidariedades o que fica além das fronteiras da humanidades.”69 Essas reconfigurações pelas culturas oprimidas e colonizadas, permanecem no nosso cotidiano e reinstalam, no presente, os embates históricos na irrupção de outros tempos e sobre outras formas de racionalidades. Não esqueçamos que “haveria sempre uma proliferação de manipulações aleatórias e incontroláveis, dentro de uma imensa rede de coerções e seguranças socioeconômicas: míriades de movimentos quase invisíveis, operando na textura sempre mais fna de um lugar homogêneo, cotínuo e próprio a todos”. Isso porquê, talvez: Nunca fomos catechisados. Vivemos através de um direito sonambulo. Fizemos Christo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará. Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.70

68

Ibidem. p.89;

“[...] Os procedimentos desta arte se encontram nas regiões remotas do ser vivo, como se vencessem não apenas as divisões estratégicas das instituições históricas, mas tambbém o corte instaurado pela própria instituição da consciência. Garantem cotinuidades formais e permanência de uma memória sem linguagem, do fundo dos mares até as ruas de nossas megalópoles.” (Ibidem. p. 98) 69

70

DE ANDRANDE, O. 1928 apud. JACQUES, in: SZANIECKI, COCCO, PUCU

(org.), 2016, p.148

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Fig. 13: Waly Salomão recebe pintura de Urucum por Helio Oiticica para o Parangolé de Cabeça em 1976. Fonte: DE CASTRO, E. V. Acervo Instituto Sócio Ambiental ©

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IV. Reunindo artistas de diferentes vertentes das vanguardas nacionais, a mostra Nova Objetividade Brasileira aconteceu no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em abril de 1967. Nos debates - dos quais participaram Mário Pedrosa Mário Barata, Aracy Amaral, Mário Schenberg, Otávio Ianni, Vilanova Artigas, Flávio Império, entre outros -, Hélio Oiticica defendeu ser o termo “nova objetividade” o que mais fielmente traduz as experiências das vanguardas brasileiras, em geral, e a sua, em particular.71 Para essa mostra Hélio expôs a obra Tropicália, um ambiente labiríntico composto de dois penetráveis: PN2(1966) - Pureza é um Mito, e PN3(1966-1967) - Imagético, associados a plantas, areia, araras, poemas-objetos, capas de Parangolé e um aparelho de televisão. 72 o ambiente criado era obviamente tropical, como num fundo de chácara e, o mais importante, havia a sensação de que se estaria de novo pisando na terra. Esta sensação sentira eu anteriormente ao caminhar pelos morros, pela favela, e mesmo o percurso de entrar, sair, dobrar pelas ‘quebradas’ de tropicália, lembra muito as caminhadas pelo morro.73

Um ambiente que “ruidosamente apresenta imagens”, segundo o seu criador, que invade os sentidos (visão, tato, audição, olfato), convidando ao jogo e à brincadeira. O uso de signos e imagens convencionalmente associados ao Brasil não tem como objetivo figurar uma dada realidade nacional - tarefa que mobilizou parte de nossa tradição artística -, mas, nos termos do artista, objetivar uma imagem NOVA Objetividade Brasileira (1967 : Rio de Janeiro, RJ). In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2017. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/evento81894/nova-objetividade-brasileira-1967rio-de-janeiro-rj>. Acesso em: 05 de Mar. 2017. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7 71

TROPICÁLIA . In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2017. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/ termo3741/tropicalia>. Acesso em: 05 de Mar. 2017. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7 72

73

OITICICA, 1967 in: FILHO, C. O., VIEIRA, I.(org.), 2009, p.50

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Fig. 14: O poeta Chacal se fantasia de índio para o Bloco de Carnaval Charme da Simpatia Fonte: Antonio Penido para Carlos Vergara ©

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brasileira pela “devoração” dos símbolos da cultura brasileira74 Como nos aponta Paola Berenstein Jacques, no texto manuscrito de 14 de abril de 1967, “Tropicália (Planos para construção)”, Hélio Oiticica contrapõe seu novo trabalho, Tropicália, ao que era idealista, em certo sentido neoclássico, no outro, que se aparentaria, o Cães de Caça [seu trabalho anterior], ao evento de construção de Brasília na época.75 Se Brasília sintetizava a exigência de um purismo formal como modo de fazer urbano à realidade brasileira, Oiticica escolhe contestar o mito de pureza na arte, na incorporação “das experiências mais populares, como a arquitetura e a forma de vida comunitária das favelas; e aquilo que será também a maior ambiguidade tropicalista: simultaneamente, a incorporação da cultura de massa e uma postura ao mesmo tempo crítica e apologética.” 76 Hélio Oiticica nos aponta: Tropicália é a primeiríssima tentativa consciente, objetiva, de impor uma imagem obviamente “brasileira” ao contexto atual da vanguarda e das manifestações em geral da arte nacional. Tudo começou com a formação do Parangolé, em 1964, com toda a minha experiência com o samba, com a descoberta dos morros, da arquitetura orgânica das favelas cariocas (e consequentemente ouras, como as palafitas do Amazonas) e principalmente das construções espontâneas, anônimas, nos grandes centros urbanos, dos terrenos baldios, etc...77

Tropicália seria assim a tentativa de uma manifestação brasileira que contivesse, incorporasse e emitisse os acordes dissonantes78 de uma cultura plural, ambivalente, anacrônica, intempestiva em uma multiplicidade de imagens79. Como ele mesmo observa, “é a imagem que absorve o participador 74

TROPICÁLIA, op. cit. loc. cit.

75

JACQUES, in: SZANIECKI, COCCO, PUCU (org.), 2016, p.149

76

Ibidem. p. 151

OITICICA, H.. apud. JACQUES, in: SZANIECKI, COCCO, PUCU (org.), 2016, p.151 77

78

VELOSO, 1968a.

“No penetrável maior, o participador entra em contato om uma multiplicidade de experiências referentes à imagem: a tátil, fornecida por elementos dados para a manipulação, a lúdica, a puramente visual (patterns), à do percurso ( o do pisar também 79

40

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Fig. 15: Indígena presente no Distrito Federal em 1957. “A presença humana no cerrado brasileiro remonta a aproximandamente 11 mil anos. A abundância de recursos na região - hídricos, minerais, vegetais e animais - ensejou o surgimento da agriculturae de inúmeras culturas indígenas do grupo macro-jê, há cerca de 4 mil anos. Denominados tapuias - com a acepção de “bárbaros”na língua tupi -, esses povos relutaram em cooperar com os portugueses que avançavam em seu território. Alguns grupos opuseram resistência à chegada dos exploradores na busca de minérios e posteriormente de colonizadores que se estabeleceram na região em grandes fazendas de gado.”(WESELY, KIM, 2010) Fonte: foto: Arquivo Paulo Manhães Brasília © versão digital editada: Lina Kim e Michael Wesely ©

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na sucessão informativa, global.” 80. As imagens aqui, teriam a acepção de abalar e contestar, contrapor o desenvolvimento purista e unificador de um modelo de cultura nacional às multiplicidades e singularidades das culturas populares. A arquitetura e o urbanismo moderno no Brasil operaram na limpeza e escolha seletiva na cultura popular como justificante de um projeto civilizatório, unificando-a dentro em uma identidade nacional. Brasília era, ela própria, propraganda81 desse modelo planificador que alçava o país nas redes globais do desenvolvimento tecnológico vigente e em perspectivas futuras. Oiticia, a contrapelo, visava com a obra Tropicália a criação de: um ambiente anti-tecnológico, talvez até não-moderno nesse sentido: quero fazer o homem voltar à terra - há aqui uma nostalgia do homem primitivo. [...] Considero isto como um exercício experimental da imagem, a tomada de consciência, pela experiência de cada um que penetre aí, de que o mundo é uma coisa global, uma manipulação das imagens e não uma submissào a modelos preestabelecudo (Pedrosa). Estas obras são obras de transformação pelas quais pretendo chegar ao outro lado do conceito de anti-arte - a pura disponibilidade criadora, ao mito de viver, onde o que é secreto agora, passa a ser revelado na própria existência, no dia a dia.”82

Essa tomada de consciência através da manipulação das imagens muito se aproxima das operações na linguagem através das astúcias milenares, das retóricas das práticas, apontadas por De Certeau. “São estaria incluído no táctil) até chegar ao fim do labirinto, no escuro, onde um aparelho de televisão (receptor), encontra-se ligado permanentemente.” (OITICICA, 1967 in: FILHO, C. O., VIEIRA, I.(org.), op. cit., p. 51) 80

Idem.

“Em Brasília, a arquitetura funcional revela o pleno desenvolvimento da arquitetura para funcionários, o instrumento e o microcosmos da Weltanschuung burocrática. Podese constatar que, onde o capitalismo burocrático e planificador construiu seu cenário, o condicionamento é tão aperfeiçoado, a margem de escolha dos indvíduos é tõ reduzida, que uma prática tão essencial para ele, como é a publicidade, tende a desaparecer na maioria de suas formas e suportes. É possível que o urbanismo seja capaz de fundir todas as antigas pblicidades numa única publicidade do urbanismo.” (JACQUES, P (org.) 2003, p.136) 81

82

42

OITICICA, 1967 in: FILHO, C. O., VIEIRA, I.(org.), op. cit., loc cit.

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manipulações da língua relativas a ocasiões e destinadas a seduzir, captar ou inverter a posição linguística do destinário.” 83 O mesmo De Certeau nos aponta que é preciso superar o campo da análise das relações que essas astúcias mantém com os sistemas e ordens, como na própria linguagem, e determiná-las enquato “relações de força” definindo as redes onde se inscrevem e delimitam as circunstâncias que podem aproveitar. 84 É preciso perceber quais as forças e resitências que atuam, disputam e constróem eses espaços de mediações simbólicas, ou imagéticas como explicita Hélio, pois “tratase de combates ou de jogos entre o forte e o fraco, e das “ações” que o fraco pode empreender.” 85 Tomar consciência envolve a inversão da posição de leitura, a compreensão de uma disponibilidade criadora enquanto desvio a qualquer máquina institucional e dos seus mecanismos de repressão. Essa inversão, ou subversão a partir de dentro, como prefere De Certeau, pode nos remeter ao mito da antropofagia indígena frente ao processo violento e colonizador da catequese, projeto que foi retomado pelas gerações modernistas dos anos 20 do séc. XX 86 e evocado nos anos 60 pelo próprio Hélio Oticica: A antropofagia seria a defesa que possuímos contra tal domínio exterior, e a principal arma criativa, essa vontade construtiva, o que não impediu de todo uma espécia de colonialismo cultural, que de modo objetivo queremos hoje abolir, absorvendo-o diretamente numa superantropofagia. 87

A invocação da antropofagia e a explícita nostalgia a um homem primitivo presentes nas falas de Hélio Oiticica devem ser analisados com 83

DE CERTEAU, op. cit. p.97

84

Ibidem, p.91

85

Idem.

“Até agora brasileiro escritor vindo da euuropa limitava-se a fazer papel Han Staden artilheiro Bertioga preso Tupinambás século 16 apavorado antopophagia aconselhava não comerem gente. Morubichaba respondia - Não amole é gostoso.” (ANDRADE, O. 1925 apud. AZEVEDO, 2016, p. 36.) 86

87

OITICICA, apud JACQUES, in: SZANIECKI, COCCO, PUCU (org.), op. cit. p.152

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bastante cuidado. Não há de se resvalar aqui qualquer romantização ou tratamento pacificador dada à condição selvagem e ameríndia, como está presente no pensamento de intelectuais brasileiros como Gilberto Freyre88, com o seu luso-tropicalismo e democracia racial , ou Sergio Buarque de Holanda89, com o seu homem cordial e uma sutil sublimação do bandeirismo, ou por fim, no próprio Lucio Costa90. O canibalismo aqui antes de ser um desejo (exótico) de absorção e vingança, era uma prática movida pelo desejo de alterar a si, pela ingestão do corpo do outro91. O homem primitivo também não pode cair na armadilha de um folclórico pensamento da alteridade do selvagem. Como Eduardo “Os vários modos da chamada assimilação luso-africana e luso indígena (em Gilberto Freyre) adquirem, vistos por essa ótica, um relevo tal que acabam deixando em discreto ou subentendido em segundo plano os aspectos estruturais e constantes de assenhoramento e violência que marcaram a história da colonização tanto no Nordeste dos engenhos e quilombos quanto no Sul das bandeiras e missões.” (BOSI, op. cit. p.27) 88

“Talvez não faça mal arriscar uma prudente retificação semântica dos termos como assimilação (Gilberto Freyre) e de expressões como processo de feliz aclimação e solidariedade cultural (S. B. de Holanda) quando se aplicam aos contatos entre colonizadores e colonizados. O uso desse vocabulário poderá levar o leitor menos avisado a supor que os povos em interação se toraram símiles e solidários no seu cotidiano, ilustrado pelo seu regime alimentar, pelos hábitos sexuais, pelas técnicas de produçào e transporte, etc.) (Idem) 89

Como podemos notar em: “Sem dúvida, neste particular também se observa o “amolecimento” notado por Gilberto Freyre, perdendo-se, nos compromissos de adaptação ao meio, um pouco daquela carrure tipicamente portuguesa; mas, em compensação devido aos costumes mais simples e à largueza maior da via colonial, e por influência também, talvez, da própria grandiosiade do cenário americano, - certos maneirismos preciosos e um tanto arrebitados que lá se encontram, jamais se viram aqui. Para tanto contribuíram, e muito, dificuldades materiais de toda a ordem, entre as quais da mão-de-obra,a princípio bisonha, dos nativos e negros: o índio habituado a uma economia diferente, ue lhe permitia vagares na confecção limpa e cuidada das arma, utensílios e enfeites, estranhou, com certeza a grosseira maneira de fazer dos brancos apressados e impacientes, e o negro conquanto se tenha revelado com o tempo, nos diferentes ofícios habilíssimo artista, mostrando uma certa virtuosidade um tanto “acadêmica”, muito do gosto europeu - nos trabalhos mais antigos, quando ainda interpreta desajeitadamente a novidade as folhas de acanto, lembra o louro bárbaro e bonitão do norte em seus primeiros contatos com a civilização latina, ou, ainda mais tarde pretendendo traduzir, com sotaque ainda áspero e gótico, os motivos greco-romanos renascidos.” (COSTA, op. cit. pa. 453) 90

91

DE CASTRO, E. V. 2002, p.207, apud.: CASTRO, 2016, p. 164

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Viveiros de Castro nos aponta: o “pensamento selvagem” não é o pensamento dos “selvagens” ou dos “primitivos”(em oposição ao “pensamento ocidental”), mas o pensamento em estado selvagem, isto é, pensamento humano em seu livre exercício, um exercício ainda não domesticado em vista da obtenção de um rendimento.92

As obras de Hélio Oiticica parecem requerer a instauração de um corpo selvagem, não catequisado, que experimenta e se mostra disponível a devorar os mecanismos de donimação na profanação de seus símbolos em novos estados de invenção, na instauração de outras lógicas aberrantes. Quando instala uma televisão ligada dentro da obra Tropicália, Oitica opera pela explicitação de uma condição criadora potente frente aos processos mais perspicazes de dominação e domestificação dos corpos, pela ação do próprio corpo como máquina 92

DE CASTRO, 2009, apud. AZEVEDO, op. cit. p. 34

Fig. 16: O martírio. Detalhe da cartografia intitulada Mision de mojos de la companía de IHS de el Peru - 1756. Reprodução de FURLONG, Pe. Guilhermo Cardiff. Cartografia del río de la plata. Buenos Aires: Talleres A. Casa Jacobo Peuser Ltda, 1936. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. in: ETRINGER, 2016, p. 122

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de guerra. Se o caminho da arte perfez-se na estetização dos objetos enquanto sagrados, Hélio buscou o revés, posicionou seus Penetráveis, Bólides e Parangolés no mundo do uso dos homens e reclamou aos corpos o seu usufruto. Ele mesmo nos diz: Não quero isolar aqui as experiências sensoriais, vivenciais, etc. este seria o lado esteticista da coisa; quero é dar um sentido global que sugira um novo comportamento, comportamento este de ordem ético-social, que traga ao indíviduo um novo sentido das coisas.93

Essa mesma atitude ético-político-estética pode ser encontrada ao longo de muitas obras de Hélio. Em 1967, o artista desenvolveu um novo objeto intitulado “Cama-bólide”. Feito de velhos pedaços de madeira, um colchão velho e um lençol, foi construído não apenas para ser visto, mas também para ser integrado ao corpo do até então espectador.94 Em 1969, no “Éden”, realizado na Whitechapel Gallery, em Londres, o espectador experimentava o repouso através da estesia de se fruir um leque de diferentes materiais como areia, palha e água, em 1973, na “Cosmococa 5 Hendrix War”(Fig. 2), em co-autoria com Neville D’Almeida, lá estão as nossas redes de dormir.95 Se já não as esquecemos, as redes também estiveram presentes na proposta do pavilhão braileiro da XIII Trienal de Milão, por Lucio Costa, o RIPOSATEVI. Apesar de suas singularidaes e especificidades, em ambos os casos, a presença desse artefato parece nos evocar remotos passados e futuros recalcados. Mesmo no projeto modernizador e planificador do urbanismo brasileiro, a presença das redes, na proposta de Lucio Costa, nos parece uma poeira incrustada na reluzente Brasília, uma fagulha, uma brasa que lampeja em fogo uma imagem que nos assombra e faz irromper as cinzas dos tempos heterôgeneos de conflito, disputa e bárbarie que definiram a própria história do Brasil. Esse movimento é um desvio e um desvio dentro do próprio OITICICA, 1967 in: FILHO, C. O., VIEIRA, I.(org.), op. cit., loc cit

93 94

FONSECA, op. cit. loc. cit

95

Idem.

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modernismo brasileiro que não se eximiu de limpar, excluir e recalcar as culturas populares, arcaicas e selvagens, redefinindo a cultura brasileira na importação e adequação a uma cultura arquitetônica européia. Uma pequena impureza dentro do purismo, um farrapo, um desvio que foge à sua centragem, um movimento aberrante que desestabiliza a ordem, a repressão e o próprio projeto civilizatório e os denunciam através da imagem. Saber olhar para uma imagem seria tornar-se capaz de discernir, onde é que ela arde, onde é que a sua eventual beleza dá lugar a um, sinal secreto, a uma crise não atenuada, a um sintoma, numa palavra, aonde é

Fig. 17: Indígenas marcam presença na Primeira Missa de Brasília. Fonte: Manchete Edição Histórica. Rio de Janeiro: 21/4/1960 in: VIDESOTT, 2009, p. 88.

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que a cinza não arrefeceu.96 Pois o que arde na imagem é a memória, o que significa que ela continua a arder, mesm quando já não é, senão cinza: é uma maneira de dizer a sua essencial vocação para a sobrevivência, apesar e tudo.97 Ardem como brasas, a nos avisar dos incêndios e nos provocar tremores; nos assombram como as cinzas de um residência intacta consumida pelas chamas. Abrem buracos e furos, passageiros e potentes, nas malhas da disciplina da história, que sempre estará pronta pra as conter e reprimir, assim como aos traumas e a consciência. É preciso ter olhos firmes, para este sol, para esta escuridão.98 As redes, enquanto imagem, nos dão a ver um possível atravessamento heterocrônico dos costumes e usos, pois, fazem perseverar os “sinais secretos”, os acordes dissonates, dos corpos domesticados,das vozes caladas, de Outrora que sobrevivem nos gestos e hábitos no cotidiano de Agora... Os ameríndios Caraíba e Tupi viviam nas redes e foram os primeiros guerreiros do continente. A bordo dos navios de guerra os marinheiros dormem nas macas e não é possível endereçar-lhes reproche de preguiça, covardia e timidez. Nas redes roncavam os jagunços de Antônio Conselheiro. Nas redes sonhavam os cangaceiros famosos, desde o fidalgo Jesuíno Brilhante ao repugnante Lampião. Nelas pensaram e amaram senhores de engenho, fazendeiros onipotentes, deputados gerais e senadores do Império e da República. E dentro dela cresce a gente sertaneja, enfrentando a hostilidade da terra e dos homens, teimosa no esforço de viver como se cumprisse missão perpétua de danaides caboclas.99

Nós precisamos estar atentos a essas teimosias no esforço de viver que não se eximem de aparecer e desaparecer das tramas históricas. É preciso apagar as luzes do positivismo histórico para podermos ver as chamas que ardem nas cinzas ou como Didi-Huberman nos diz, nos acercar e ver a lucciola das intermitências passageiras, olhar 96

DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 305

97

Ibidem, p. 317

98

VELOSO, 1968b

99

CASCUDO, L. C. 2003, p.17

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sobre a imagem que passa, minúscula e movente diante de nós.100 Ver o horizonte, o além é não ver a imagens que vêm nos tocar.101 Dar exclusiva atenção ao horizonte é tornar-se incapaz de olhar a menor imagem. De Certeau de modo equivalente nos atenta que : A evocação desses remotos passados ou futuros permite ao menos resisitir aos efeitos da análise fundamental, mas muitas vezes exclusiva e obssessional que procura descrever as instituições e mecanismos da repressão. [...] Mas essas elucidações do aparelho por si mesmo tem como inconveniente não ver as práticas que lhe são heterogêneas que reprime ou acredita reprimir. No entanto elas tem alta probabilidade de sobreviver a esse aparelho também e, em todo o caso fazém também parte da vida social, tanto mais resistentes quanto mais ágeis e ajustadas a mudanças perpétuas.102

100

DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 115

101

Idem.

102

DE CERTEAU, op. cit. p. 99

quampérius nunca pode dormir. ele vigilava ( a maldade é constante ). ele era cavalo que queria resistir. vamu lá quampa! um dia você ganha o grande prêmio. sua morte, velho, vai ser por esgotamento. quampérius é uma grande paixão. é a mulher que eu perdi. é o amigo que eu não encontro. é na morte que ele existe ( do lado de lá ). é um mistério. CHACAL, 1976. Quampérius in: 2007, p.254

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AMÉRICA AMEM américa amem me ensinou a ser assim antropofágico pagão um fauno de calça lee américa amem palavras palas palavreados américa amem woody woody voo doo feijão & arroz américa amem nosso desespero nossa paixão imensa

CHACAL, 1976. América in: 2007, p.301

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Passamos aqui pela percepção do passado como um espaço de lutas e embates que atravessam os tempos históricos e irrompem no presente contestando e abalando ideias unificadoras de futuro. Por menor que elas aparentem ser, são capazes de promover terremotos moleculares. As disputas e mediações simbólicas atravessam os tempos e vem ao presente nos fazer rememorar da bábarie. Se voltarmos ao episódio da reencenação rigorosa da primeira missa de Brasília perceberemos que mediações simbólicas de diversas ordens foram envolvidas para concertização da ocupação daquele solo. Entre essas analogias percebemos a presença simbólica de grupos de indígenas, convidados pelo próprio Presidente da República Juscelino Kubistchek: “Logo após ter celebrado a Primeira Missa, o Cardeal D. Carlos procedeu à benção da placa comemorativa, doada à nova capital pela Fundação Coimbra Bueno. A seguir, o Presiclenfe da República recebeu um grupo de 20 índios Carajás, do Posto Getúlio Vargas na ilha do Bananal, trazidos por via aérea a Brasilía, pelo Serviço de Proteção aos índios. Com os seus trajes e adornos característicos, constituíram a nota pitoresca das cerimônias. Os carajás fizeram oferendas ao Sr. Juscelino Kubitschek, entregando-lhe flechas e objetos típicos de suas tabas.” 103

A cobertura jornalística da altura fez questão de dar destaque à aos índios (Fig. 17) a presença dos indígenas absolvia e viabilizava, no plano das representações, a ocupação dos territórios.104 Porém na tarda à imagem selvagem ser novamete requerida e nas matérias relativas à construção das grandes rodovias, os próprios indígenas apareceram entre os inimigos da obra, a par das cobras escondidas e da febre amarela, da falta de medicamentos e médicos, de fornecimentos de comida e equipamentos, etc.105 Ora como ingênuo legitimador de um projeto de civilização, ora como ameaça ao mesmo, a presença dos 103

BRASÍLA, op. cit., p. 11

104

VIDESSOTT, op. cit. p.89

105

Idem.

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indíos ainda nos assusta, nos apavora, por terem sobrevevivido a todo o processo repressor e aculturador e aida assim terem a potência de subverter os registros necessários para a civilidade. Para além das mediações simbólicas, que também extrapolam às questões ameríndias, o que vemos repetidamente ao longo da história são lutas e embates pela sobrevivência desses próprios modos de vida menores. Modos de vida que escapam às normatividades produtivas e operam em outros registros e territórios de existência. E que ainda assim, como táticas de sobrevivência ao milenares processos de repressão e domínio dos corpos são capazes de desestabilizar, abalar , subverter e denunciar os mesmos processos. Movimentos aberrantes que estão sempre lutando, molercularmente, minoritariamente.106 Movimentos que deixam rastros das lutas e dos embates e que incessantemente, no aparecer e desaparecer de suas movimentações, nos comunicam (e também nos assombram) de suas sobrevivências até os nossos dias107.

106

PAL PELBART in: SZANIECKI, COCCO, PUCU (org) op. cit., p. 243

Rememoremos o recente conflito de comunidades indígenas presentes no Distrito Federal que se movimentaram e contestaram o desenho especulativo sobre parcelas de terra no Setor Noroeste. “O conflito entre a população indígena da área e o governo do Distrito Federal começou em 2008, quando lotes do Setor Noroeste começaram a ser comercializados. À época, os índios da etnia Fulniô-Tapuya alegavam que a área seria um santuário ou um cemitério indígena antes da construção de Brasília e que, por isso, teria um valor sagrado para eles. [...] Em outubro de 2012, após um ano de acordo, as famílias chegaram a invadir o prédio da Terracap para cobrar as obras de urbanização na área definida à época para a instalação definitiva dos índios. Segundo a Funai, os índios das etnias Kariri-Xocó e Tuxá não entendem a área em que vivem hoje como território tradicional. O caráter de santuário é defendido pelos índios Fulniô-Tapuya, que não assinaram o acordo de 2011 nem o atual, e querem continuar morando no mesmo espaço de hoje.” (RODRIGUES, M. 2014. Disponível em: < http://g1.globo.com/distritofederal/noticia/2014/10/terracap-doa-nova-area-indios-do-noroeste-no-df-3-anos-aposacordo.html> Acesso em: Março de 2017.) 107

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Fig. 18: Macunáima dorme sobre rede. Fonte: DE ANDRADE, J. P. Macunaíma, 1969





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