As discussões para a reforma da OMC: uma nova agenda ou mais do mesmo?

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As discussões para a reforma da OMC: uma nova agenda ou mais do mesmo? Adhemar S. Mineiro1 Introdução

Criada em 1994, e iniciando seu funcionamento em 1º. de janeiro de 1995, a Organização Mundial do Comércio (OMC) completa o tripé de organizações internacionais idealizada na conferência de Bretton Woods, em 1944, visando estruturar a economia internacional no pós-2ª. Guerra Mundial. As três instituições incluiriam o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (criado como BIRD, Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento) e a imaginada Organização Internacional do Comércio (OIC). Naquele momento, a OIC acabou não sendo criada, pois foi vetada pelo Congresso dos EUA, que temia a perda de autonomia do país. No seu lugar, na Conferência de Havana, em 1947, foi criado o chamado GATT (General Agreement on Trade and Tariffs, Acordo Geral sobre Comércio e Tarifas), que acabou funcionando como um sistema permanente de negociações, longas negociações conhecidas como “rodadas”, até que na última dessas, conhecida como Rodada Uruguai, se concluiu o chamado Acordo de Marrakesh, que criou a OMC. A preocupação que levou a estruturação desse tripé de organizações tinha relação com a avaliação predominante, especialmente entre os países que “ganhariam” a guerra finalmente, em 1945, de que do ponto de vista econômico, a crise que levou ao agravamento das tensões sociais e políticas e levou à eclosão da guerra na Europa tinha forte relação com o processo que se seguiu especialmente à crise de 1929. A reação dos países à crise, com guerras comerciais (o que incluía desvalorizações de suas moedas nacionais para melhorar sua capacidade competitiva em relação aos outros países, além de políticas protecionistas em relação ao comércio internacional) e cobrança de compensações aos perdedores da 1ª. Guerra Mundial que levaram a hiperinflações e crises econômicas – em especial a Alemanha foi fortemente atingida

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Economista e assessor da REBRIP.


por essa cobrança. Assim, os formuladores de política econômica dos países que se reuniram em Bretton Woods buscavam de alguma forma regular as relações entre as moedas nacionais (tentando evitar as tais desvalorizações competitivas), tarefa que caberia ao FMI – que tinha que aprovar mudanças cambiais mais amplas, investir na criação de infraestruturas necessárias ao desenvolvimento, tarefa do Banco Mundial, e incentivar o comércio entre os países, tentando evitar medidas protecionistas generalizadas – e essa última tarefa caberia a um regulador do comércio internacional. Entretanto, quando a OMC foi criada, em 1994, ela não só assumiu a função de gerenciar institucionalmente o comércio internacional, como adotou o princípio da liberalização progressiva, isto é, o que fosse sendo liberalizado não poderia retroceder, a menos de enormes custos para os países que quisessem voltar atrás em movimentos de liberalização. Isso atendia a demanda das corporações transnacionais, assim como a liberalização de vários outros setores, que não tratavam diretamente de comércio. As inovações tecnológicas e gerenciais introduzidas a partir dos anos 1980 permitiam particionar a produção, transportar e montar, e desta forma, se as tarifas aduaneiras fossem rebaixadas, isso permitiria operar desta forma em qualquer parte do mundo, aproveitando-se do ganho de localização de estar situado em uma ou outra área. As partes intensivas em trabalho poderiam ser alocadas onde a mão-de-obra fosse mais barata, as intensivas em energia onde energia fosse mais barata, as de formulação, design, etc., perto das matrizes que decidem, e assim por diante. Vantagens de localização poderiam ser usadas amplamente sem que as tarifas de cruzar fronteiras incidissem sobre o preço final das mercadorias, ou sobre as cadeias de produção. Se constituíam assim as chamadas “cadeias globais de valor”. De outro lado, os acordos de propriedade intelectual, investimentos e outros dariam garantias às empresas, empacotados no jargão da “segurança jurídica” aos investidores – produtivos e/ou financeiros. Finalmente, a liberalização da área de serviços permitiria às empresas contar com seus prestadores de serviços tradicionais em qualquer parte do mundo, além de usufruir de mais esse mercado, e para o setor financeiro, em muitos lugares, se desmontavam partes do setor público existente (processos de privatização), possibilitando negócios de intermediação dos processos e abertura dos horizontes de investimentos financeiros (“aplicações em carteira”, como bolsa de valores e outros mecanismos, como projetos financeiros, PPPs, e outros). Neste processo, não só as empresas públicas (em especial nas áreas de saneamento, saúde, educação, meioambiente e outras) eram desmontadas total ou parcialmente, mas os direitos que elas deveriam garantir viram mercadorias à disposição dos investidores, e o acesso aos


direitos passavam a ser dificultados ou inviabilizados pela necessidade de rentabilidade das empresas. Ao longo do tempo, esse processo foi sendo estruturado não apenas nos acordos de criação da OMC (que cristalizavam na organização também o comércio de serviços, através do acordo conhecido pela sigla em inglês GATS, acordo geral sobre o comércio de serviços, do acordo conhecido como TRIPS, sobre propriedade intelectual, e do acordo sobre medidas relacionadas a investimentos, conhecido pela sigla TRIMs), mas por uma série de acordos bilaterais, regionais, bi-regionais e outros, sobre liberalização comercial, garantias de investimento, propriedade intelectual, e outros. Depois de duas conferências ministeriais (Cingapura, 1996 e Genebra, 1998), a Ministerial de Doha, Catar, em 2001, marca o início da chamada Agenda Doha de Desenvolvimento, que deveria representar um novo patamar nas conversas da OMC. A chamada “Rodada Doha” de discussões foi lançada visando um forte efeito de marketing para a organização, em um ambiente marcado pelas tensões políticas internacionais a partir da explosão das chamadas “Torres Gêmeas”, em Nova Iorque. A proposta estadunidense, que vingou na reunião sob forte pressão dos EUA, objetivava apontar uma possibilidade de estratégia de desenvolvimento para os países menos desenvolvidos e em desenvolvimento, negociando a abertura de mercados agrícolas e industriais dos países desenvolvidos a estes países. É importante observar que as negociações da OMC desde a sua criação resultaram em acertos a respeito de serviços financeiros (1995 e 1997), e serviços básicos de telecomunicação e produtos de tecnologia da informação (1997). Além disso, a Ministerial de Cingapura, em 1996, montou grupos de trabalho que depois foram incorporados à dinâmica negociadora da OMC em temas como comércio e investimento, comércio e política de concorrência, e compras de governo, todos de interesse dos países mais desenvolvidos. Assim, pela proposta aprovada em Doha, pela primeira vez o centro das discussões da OMC se deslocaria para pontos centrais de interesse para os países menos desenvolvidos e em desenvolvimento. Entretanto, logo na Ministerial seguinte, em Cancún, México, em 2003, os problemas começaram a aparecer. Liderados por Índia e Brasil à época, alguns importantes países em desenvolvimento criaram o que ficou conhecido por G-20 da OMC, um grupo de países em desenvolvimento, que assumia o protagonismo no sentido de viabilizar que a tal Agenda de Desenvolvimento de Doha fosse de fato implementada na OMC, e representasse acesso a mercados em agricultura e produtos industriais de menor conteúdo tecnológico para os países em desenvolvimento.


Assim, com o protagonismo de alguns importantes países em desenvolvimento, que pela primeira vez passavam a ser considerados na discussão como relevantes, e se inseriam nas chamadas “salas menores” de decisão no interior da OMC (onde, em grupos reduzidos de países, as negociações acontecem e as decisões se desenham), o processo foi caminhando dentro de uma dualidade: de fato, politicamente, travado, com tentativas de destravar, e tecnicamente, caminhando para formulações cada vez mais complexas visando definir subsídios e apoios vários dos Estados ao comércio de produtos agrícolas e agrícolas processados, e a defesa destes mercados. De todo modo, apesar de ter chegado perto de conclusão em alguns momentos, como uma reunião informal em Genebra, em 2008, com a participação de vários importantes ministros (a partir de reunião formal do Comitê de Negociações Comerciais) o processo negocial acabou travando. Por trás do travamento, além das dificuldades concretas em relação ao tema agrícola, que mexe com muitas sensibilidades, em especial nos países desenvolvidos, ao menos dois importantes motivos, que representavam mudanças no cenário original de criação da OMC. Em primeiro lugar, a entrada da China na organização, concretizada em 2001, em simultânea ao lançamento da Rodada Doha. A China tinha estado no processo de criação do GATT, em 1947, quando o acordo tentou contornar a não criação da Organização Internacional do Comércio naquele período. Dois anos depois, entretanto, com a chamada “Revolução Chinesa” se concluindo, a China se afastou do processo, ao qual o país pediu reingresso em 1986 (ainda sob a égide do acordo GATT), e acabou voltando já sob o novo formato resultante da criação da OMC, em 2001. A entrada da China se dá com uma série de vantagens como “país em desenvolvimento” e como país em processo de adesão. Entretanto, a China entra já em ritmo de decolagem como potência econômica e comercial. A partir da entrada da China, esse processo só avançou. A China, além disso, passava a atuar ombro a ombro com os países em desenvolvimento, passando inclusive a participar do G-20 da OMC, reforçando de fato a atuação política desses países no interior daquela organização, e contribuindo para alterar a balança dos interesses políticos e comerciais no interior daquele organismo. Afora esses elementos interna corporis da OMC, é importante observar o crescimento acelerado da China e sua participação na economia internacional. A China se transforma rapidamente tanto em um voraz consumidor de matérias primas agropecuárias, minerais e energéticas, dando para quase todos os países exportadores desses produtos um gigantesco e crescente mercado, como funciona também como um dinâmico exportador de produtos manufaturados para o conjunto das economias do planeta, e a entrada de uma economia com essas características altera não apenas o


cenário comercial desenhado nos anos 1990, quando da criação da OMC, como o dos acordos comerciais outros (bilaterais, bi-regionais e os demais) que foi sendo desenhado desde então. A China não apenas se mostra atuante na área do comércio de bens manufaturados e agrícolas, mas é protagonista no conjunto de áreas cobertas pela OMC, como serviços, investimentos, compras públicas e outros. Assim, tanto internamente na OMC, quanto no funcionamento da economia internacional, a China, com o seu dinamismo nesse novo século altera fundamentalmente as bases sobre as quais se assentava a OMC, com basicamente países capitalistas desenvolvidos liderados por EUA, União Europeia, Canadá e Japão, de um lado, e países em desenvolvimento e menos desenvolvidos, de outro, em geral liderados pela Índia e outros menores de Ásia e África, aos quais o Brasil se juntou com um papel protagônico a partir do início desse século e a constituição do G-20. O segundo elemento a ser considerado é a crise internacional a partir de 2007/2008, crise iniciada na área financeira, e por isso conhecida inicialmente por “Crise do Subprime” ou “Crise das Hipotecas”, mas que logo avançou para uma crise econômica mais generalizada. A primeira década do século XXI tinha apresentado mudanças substantivas no padrão de funcionamento do capitalismo que marchou célere por cerca de vinte anos desde meados dos anos 1980, sob hegemonia dos EUA e forte expansão do crédito. A crise da economia internacional iniciou-se a partir de 2007 e eclodiu mais abertamente no segundo semestre de 2008, marcando o cenário internacional com a agudização das turbulências financeiras, especialmente, nas economias do centro nevrálgico do capitalismo como os EUA, a Europa Ocidental e o Japão. Ela representou uma importante virada de página na história do funcionamento da economia mundial. A crise do mercado imobiliário dos EUA não foi só o estopim de uma crise financeira de grandes proporções, mas também o fim do ciclo expansivo baseado no dinamismo dos mercados financeiros, que parecia estar desenhado no próprio movimento iniciado a partir de fins dos anos 1980 e que durou mais de vinte anos, período de forte hegemonia neoliberal em escala mundial. Assim, boa parte da expansão do consumo nos EUA, pela via da expansão do crédito pelas instituições financeiras, também motivou a expansão em boa parte do mundo, e a liberalização comercial se dava nesse contexto de expansão do consumo. Nesse período, a economia dos EUA funcionou como uma espécie de “consumidor de última instância”, para a qual eram destinados produtos de muitos outros países do mundo resultando, por exemplo, no dinamismo acentuado da


economia chinesa, ou, por tabela, na subida do preço das principais commodities agrícolas e minerais. Independentemente da discussão sobre quem se beneficiava do funcionamento anterior do sistema econômico mundial que ampliou rapidamente as assimetrias econômicas entre os países do mundo e também as distâncias entre os setores da população no interior dos próprios países, é inegável que este levou o mundo a uma crise ambiental, energética, alimentar, humanitária, entre outros aspectos, sem precedentes. Não parece ser possível voltar a fazer o mundo funcionar de uma maneira que só era possível pela valorização da riqueza financeira de forma tão superlativa que, ao mesmo tempo em que tornava o crédito barato, descolava a riqueza financeira daquilo que o mundo era efetivamente capaz de produzir. Apesar dessa percepção, foi o que se tentou depois do susto inicial entre 2008 e 2010, via forte apoio dos governos e dos diversos bancos centrais dos países capitalistas avançados, expandindo a base monetária, primeiro para salvar o sistema, e em seguida para dar a ele dinâmica, permitindo novamente a sua expansão. Assim, a crise de 2007/2008 também representou de certa forma o fim de um grande ciclo de funcionamento da economia mundial. Do ponto de vista dos acordos de comércio e da OMC, o principal efeito imediato foi a perda de protagonismo da OMC, e a adoção de políticas protecionistas disfarçadas em muitos dos países membros da organização, contrariando não apenas o discurso desses mesmos países no interior da OMC, como os próprios regulamentos da OMC, que não podia fazer muito contra os seus principais membros. A Agenda de Doha fica ainda mais difícil de ser implementada nesse quadro, uma vez que os temas da liberalização do comércio de bens agrícolas e manufaturados fica travada pela prática protecionista dos países, ao mesmo tempo em que se busca caminhar em outras agendas que não estavam propriamente nas prioridades definidas em Doha, e que também, de certa forma, orientaram as conversas entre 2001 e 2008, tais como comércio eletrônico, reestruturação industrial e Indústria 4.0, e facilitação de comércio. O mundo passava a viver em um ambiente estranho, em que a institucionalidade de regulação do comércio mundial que se construíra desde os anos 1990 continuava lá, mas não funcionava, ou só funcionava parcialmente. Formalmente, houve até uma retomada, com as ministeriais de Bali, Indonésia (2013), onde se fechou um acordo de facilitação de comércio, ou Nairóbi, Quênia (2015),


quando se tentou mais uma vez regulamentar a questão dos subsídios agrícolas dos países desenvolvidos. Mas esse processo era mais formal, tentando sinalizar que a organização ainda estava viva. O travamento das conversas e a verdadeira situação do período fica clara na Ministerial de Buenos Aires, Argentina (2017), quando fica absolutamente explícita a nova posição dos Estados Unidos a respeito do funcionamento do sistema multilateral em todas as áreas, e em particular para os temas de comércio, onde o elemento central até então era o funcionamento da OMC.

O posicionamento dos EUA e a Administração Trump

A partir de 2017 se inicia a administração Trump nos EUA. E a partir desse período, alguns elementos que já estavam desenhados no cenário estadunidense se acirram, e outros aparecem de forma mais explícita. Alguns dos principais pontos, entretanto, se definem a partir da crise de 2007/2008, em especial na área econômica e comercial. Isto significa que já estavam de alguma forma apontados ao longo da administração anterior, do presidente Barack Obama. O elemento central aqui é um posicionamento mais unilateral por parte dos EUA, e um certo protecionismo no campo das relações comerciais. Ainda que no período Obama se possa falar do reforço de um “multilateralismo restrito”, com o funcionamento do G20, de fato o sistema multilateral que havia sido criado anteriormente já vinha sendo esvaziado. No caso da administração do presidente Trump, uma das marcas do Governo Trump nos EUA foi uma política permanente de esgarçamento das estruturas multilaterais construídas ao longo de décadas, na maior parte do tempo sob hegemonia dos EUA, e muitas vezes desenhadas pelos próprios EUA. Talvez os exemplos mais evidentes sejas as instituições financeiras internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, estruturadas na famosa Conferência de Bretton Woods, pequena cidadezinha nos EUA, em 1944, antes mesmo do fim da Segunda Guerra, e não por acaso sediadas em Washington DC, nos próprios EUA, em período em que a hegemonia estadunidense, ao menos no conjunto dos países capitalistas, era evidente, com a Europa em ruínas por conta da guerra. Idem para a própria OMC, criada em 1994 e colocada em funcionamento em 1995, com a finalização da chamada Rodada Uruguai do GATT, iniciada em 1986 mas só concluída


após a queda do chamado Muro de Berlim e o esfacelamento da antiga União Soviética, período em que prevalecia o unilateralismo estadunidense na conjuntura internacional. Ou seja, instituições desenhadas e colocadas para funcionar sob a hegemonia dos EUA. Umas mais, outras menos, Trump as relegou a papéis subalternos no seu período de governo, preferindo negociações diretas dos EUA com os parceiros. Trump também renegociou o NAFTA (sigla em inglês para a Área de Livre Comércio da América do Norte, acordo comercial entre EUA, Canadá e México) dentro de sua nova perspectiva mais unilateral, retirou os EUA das negociações do TPP (Acordo TransPacífico, envolvendo vários países da Ásia, América do Sul e Central, e Oceania) e interrompeu as negociações com a União Europeia para a constituição do TTIP (da sigla em inglês Transatlantic Trade and Investment Partnership, Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento, um ambicioso acordo de liberalização comercial e de investimentos entre EUA e UE). Toda a sinalização é que não queria ceder mais soberania na área de defesa comercial fazendo acordos que poderiam reduzi-la. No caso do NAFTA, a revisão foi feita para ganhar graus de liberdade, e restringir o acordo anterior. No âmbito da OMC, a ideia era aprofundar o processo de esvaziamento que já vinha do Governo Obama, com a não indicação de membros do órgão de solução de controvérsias da organização, visando restringir a sua capacidade decisória até chegar a impossibilidade de funcionamento, assim como não jogar peso no funcionamento da instituição, em seus vários espaços internos técnicos e negociais. Com a principal economia do planeta fora do habitual protagonismo, a OMC acabava limitada na sua capacidade operacional. Assim, os quatro anos de Governo Trump explicitaram e aprofundaram de certa maneira os oito anos de Governo Obama, na sua relação com o sistema multilateral de comércio, mostrando que de fato o sistema estava em crise. Trump, com sua política internacional rude, e a afirmação do nacionalismo e do unilateralismo dos EUA, radicalizava de certa forma a política polida, mas protecionista e auto-centrada, do período Obama. Formalmente, isso foi “empacotado” pelos EUA em um debate sobre a reforma da OMC, levantando dúvidas sobre a continuidade do sistema montado e funcionando a partir de 1995. Vivemos agora um novo momento, com a derrota eleitoral de Trump, e a formação de um novo governo nos EUA, com a posse do novo presidente e o início da administração Biden.


Em qualquer situação, o novo presidente dos EUA toma posse com um país eleitoralmente dividido e radicalizado, com um Congresso (Câmara e Senado) dividido, e uma estreita maioria do Partido Democrata, e com muitos setores do país sem muita vontade de fazer concessões. Além disso, Biden terá que administrar uma pandemia que retoma vigor nos EUA e no Mundo, que exigirá medidas e utilização de recursos (financeiros, mas também administrativos, políticos, de conhecimento e outros) de forma massiva, e que nem se sabe estarem disponíveis. Existe ainda um cenário de disputa por hegemonia no plano internacional, que envolve uma complicada relação entre os EUA e a China, que combina conflitos e dependências em vários setores, e na qual os chineses vêm levando vantagem em muitas áreas, se aproveitando exatamente das fraturas existentes nos próprios EUA, que impedem a consolidação de um projeto nacional. Dessa forma, fica complicado para os EUA utilizarem nessa disputa as vantagens financeira e militar que ainda detém, além dos recursos de poder no nível internacional, muitos dos quais desperdiçados pela estratégia unilateralista de Trump. No caso dos EUA, as promessas de campanha de Biden podem se mostrar de difícil realização. No campo do comércio internacional, por exemplo, combinar estratégias que ao mesmo tempo reforcem o multilateralismo da OMC e ressuscitem a participação dos EUA em iniciativas plurilaterais, como a Parceria Trans-Pacífica e a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento, iniciativas das quais os EUA se afastaram no início do Governo Trump, com a defesa da garantia do emprego em setores industriais tradicionais nos EUA, que necessitam de medidas protecionistas e subsídios, pode se mostrar complicado. A esse respeito, vale lembrar que a virada de votos, obtendo maioria em estados conhecidos nos EUA como “cinturão da ferrugem”, pelo fechamento ou esvaziamento de velhas fábricas, se mostrou fundamental para a vitória de Biden. Pura e simplesmente abandonar esses setores na defesa do multilateralismo pode significar traição para o eleitorado desses estados, o que terá custos. Custos em votos no futuro, custos em votos nas duas casas de um Congresso extremamente dividido, e eventualmente custo em um Partido Democrata em disputa. Ou seja, não se deve esperar, ao menos no curto-prazo, face às suas enormes dificuldades internas, muito protagonismo por parte do país que foi o principal arquiteto da montagem do sistema multilateral de comércio que temos hoje. Essa percepção aponta para que os processos relativos às negociações de comércio devem continuar se arrastando sem muitas conclusões, assim como provavelmente as conversas internas para a própria reestruturação da OMC – ao menos em um primeiro momento


relativo a nova administração nos EUA. Afinal, o tema de como voltar ao multilateralismo nas relações externas é apenas mais um dos temas complicados para o novo governo estadunidense.

Um enquadramento para as discussões da reforma da OMC

Desta maneira, parece que é absolutamente essencial observar as discussões para a reforma da OMC tomando por base ao menos três parâmetros fundamentais que devem ser observados quando dessa discussão, como abordados anteriormente. O primeiro deles diz respeito à crise internacional iniciada em 2007/2008 e que, em sua essência, ainda não foi contornada, tendo como algumas de suas consequências a reintrodução ou ampliação de mecanismos protecionistas pela maioria dos países, em formas mais ou menos disfarçadas, e a resistência a mecanismos e controles multilaterais que resultem em redução dos graus de liberdade nacionais para a administração da crise econômica. O segundo importante elemento, talvez o maior deles, a disputa pela hegemonia econômica internacional entre EUA e China, uma mudança estrutural que altera fundamentalmente os elementos em funcionamento quando do estabelecimento do sistema de regulação multilateral do comércio hoje vigente. E o terceiro elemento, a disputa por um rumo estratégico de desenvolvimento dentro da principal economia ainda hoje no cenário internacional, os EUA, com a consequência de um comportamento dual por parte dos governos daquele país, com um aumento do ativismo unilateral (ou em fóruns multilaterais restritos, como o G-20), ao mesmo tempo de um relativo vazio em sua atuação em fóruns multilaterais, como a OMC. Assim, apesar de uma agenda que anda, e que se discute dentro de uma esvaziada OMC, que inclui comércio eletrônico e novas tecnologias (e aqui agendas como reestruturação da produção mundial e Indústria 4.0), que não são objetos de discussão neste texto, os temas centrais que estruturam a OMC – monitoramento do sistema geral do comércio internacional, espaço multilateral de negociações, e mecanismo de solução de controvérsias – encontram-se paralisados (aliás, a saída em 2020 do Diretor-Geral, o brasileiro Roberto Azevêdo, em meio a seu mandato, sem que nenhuma solução definitiva tenha sido buscada no momento da saída, aguardando a solução do processo eleitoral nos EUA, e que isso não explicitasse uma crise aguda talvez seja a maior prova disso).


Embora muito da discussão esteja apontado para os mecanismos de decisão constituintes da OMC (a regra do consenso, que indica que toda decisão não pode ser rejeitada por um único membro, e o chamado “single undertaking”, que implica que nada está concluído até que tudo esteja concluído, reconhecendo a interdependência dos processos de negociação, onde por exemplo, um país pode fazer concessões em acesso a mercado de bens, em troca de alguma concessão que receba na área de serviços, por exemplo), estes sempre lá estiveram presentes, e até então não tinham obstruído o funcionamento da instituição. O “single undertaking” é o mecanismo que permite concessões cruzadas entre áreas distintas, ajudando a abrir espaços para facilitar os processos de negociação, e sempre foi contornado quando existiu de fato interesse em que isso acontecesse. E a regra do consenso só vale de fato para os grandes parceiros no cenário da OMC, os pequenos sempre foram pressionados tanto dentro do processo de negociações da OMC, como em vários outros espaços de negociação (Sistema ONU, instituições financeiras multilaterais, mecanismos regionais e bilaterais, acordos militares e outros espaços diplomáticos) que acabavam refletindo em seu “enquadramento” no interior da OMC. Assim, esses mecanismos só funcionam de fato como areia nas engrenagens da OMC quando existem discrepâncias e desacordos maiores, estratégicos, que se dão entre os grandes atores no interior da organização. Indo ao conteúdo dos documentos apresentados até aqui2, entre alguns dos principais atores no cenário de discussões no último período (uma evidente ausência é a do Brasil, explicada por um país que na primeira década e meia deste século costurou o chamado G-20 da OMC, que o catapultou a um dos principais atores e negociadores no interior da organização, mas que nos últimos anos, desde 2016, recuou para priorizar sua atuação como membro do Grupo de Cairns, agrupamento dos principais países exportadores agrícolas, e que, desde o início do Governo Bolsonaro, se alinhou nas discussões econômicas internacionais, inclusive OMC, quase que absolutamente com os EUA, perdendo todo o protagonismo que teve no período em que capitaneou o G-20 no interior da OMC, junto com a Índia), se observa que importantes diferenças se mantém.

“Joint Statement of the Trilateral Meeting of the Trade Ministers of Japan, the United States and the European Union”, divulgado em 14/01/2020 por EUA, UE, e Japão, “Strengthening the WTO to Promote Development and Inclusivity”, apresentado em 11/07/2019 por Índia, África do Sul, Bolívia, Cuba, Equador, Malawi, Tunísia, Uganda e Zimbabwe, e “China’s Proposal on WTO Reform”, apresentado em 13/05/2019 pela China. 2


Por um lado, a Índia (e seus parceiros) insiste em uma agenda de uma OMC “equilibrada” entre desenvolvidos e não-desenvolvidos3, garantindo os espaços para o desenvolvimento através dos mecanismos de “tratamento especial e diferenciado”. O ponto é que, apesar da OMC ter aberto alguns espaços, é preciso garantir que os países em desenvolvimento não se vejam limitados nas suas estratégias de desenvolvimentos por restrições resultantes das negociações da OMC e de suas interpretações em defesa dos países desenvolvidos, em especial em temas como investimentos, propriedade intelectual, compras públicas e outros. Desse ponto de vista, a Índia, e vários dos seus parceiros, mantém suas posições históricas enquanto defensores de que o ponto central agora, como em outros momentos, é equilibrar as posições entre Norte e Sul, desenvolvidos e em desenvolvimento. No caso do documento apresentado por EUA, em parceria com UE e Japão, o ponto central é menos a reforma da OMC, e mais a disputa com a China, ponto levantado em especial em relação a subsídios ao setor industrial chinês4, a questão do enquadramento chinês às regras de propriedade intelectual, à vigência plena de mecanismos “de mercado” na China, e ao tratamento especial e diferenciado, mantido

Ver no documento citado da Índia, por exemplo, o ponto 1.3: “However, throughout its history, the World Trade Organization (WTO) has experienced a number of challenges. Recently, some of these relate to a wider 'crisis of multilateralism', but others can be understood as the result of a confluence of factors rooted in the legal commitments that WTO Members undertook at the establishment of the Organization in 1995. Specifically, inequities and imbalances in some of the existing multilateral trade rules have provided an inherent advantage mainly to the developed Members. Thus, whilst WTO rules such as those on border trade measures have helped developing countries by providing certainty to trade, more often than not, developing Members found themselves constrained from pursuing their development and industrialization objectives due to other rules which have been overly intrusive or imbalanced. TRIPS rules, for instance, have facilitated monopoly rents, and diminished the possibility for technology transfer. The TRIMS Agreement has disallowed Members to use local content requirements. The Subsidies Agreement constrains the policy space developing countries need to nurture their industries. However, it allows advanced economies that have the financial means to provide substantial support to their high-tech, knowledge-intensive industries deemed critical to their future prosperity. The Agreement on Agriculture has allowed developed countries to continue their high subsidies on agriculture products, including those exported to developing countries, impacting their small farmers' livelihoods and food security. This has been compounded by the lack of inclusiveness and transparency in the process of WTO negotiations.” 4 Na página 2, ponto 6, do documento, as referências à economia chinesa são quase explícitas: “The Ministers observed that many subsidies are granted through State Enterprises and discussed the importance of ensuring that these subsidizing entities are captured by the term “public body”. The Ministers agreed that the interpretation of “public body” by the WTO Appellate Body in several reports undermines the effectiveness of WTO subsidy rules. To determine that an entity is a public body, it is not necessary to find that the entity “possesses, exercises or is vested with governmental authority.” The Ministers agreed to continue working on a definition of "public body" on this basis.” 3


à China como país de adesão recente à OMC (e que, portanto, tem um tempo para se adaptar). Neste último ponto, é importante observar no período que alguns países que tinham direito ao tratamento especial e diferenciado pelo enquadramento como países em desenvolvimento, como Coreia do Sul, Cingapura e Brasil, abriram mão desse tratamento por pressão dos estadunidenses (no caso do Brasil, aparentemente, para ter uma posição mais ativamente favorável dos EUA à adesão plena do Brasil a OCDE, Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, o que levou o Brasil a unilateralmente abrir mão dessa sua condição, o que não é comum em um espaço negocial como a OMC), como uma forma de pressionar a China. Ou seja, o pano de fundo da “disputa hegemônica” entre China e EUA fica bastante clara nas posições expressas no documento. O documento apresentado pela China aparece de fato o que o país tem expressado no período recente, uma leitura bastante generosa do papel da OMC – talvez a China apareça em certa medida como uma das principais defensoras do OMC e do sistema multilateral de comércio no período recente, o que alguns podem ler também como a consequência direta de ser um dos seus principais beneficiários, afinal a China é talvez o grande ganhador na área de comércio internacional dentro das regras hoje prevalecentes. Apesar disso, a China reconhece que a OMC passa pelo que descreve como uma “crise existencial”, ao não ser capaz de dar conta dos objetivos para os quais foi estabelecida no chamado “Acordo de Marrakesh”, que concluiu a Rodada Uruguai de negociações do GATT, especialmente no que diz respeito a temas como agricultura e desenvolvimento, assim como a não ser capaz de dar respostas rápidas aos novos temas, como comércio eletrônico e facilitação de investimentos. Tendo esses aspectos em vista, a China aponta uma reforma estruturada em três eixos5. O primeiro diz respeito a um elemento de continuidade, de regras que mantenham o sistema de comércio internacional estável e previsível, aberto e sem discriminações. Esse último ponto (sem

“China supports necessary reform of the WTO so as to overcome its existential crisis, enhance its authority and efficacy, and increase its relevance in terms of global economic governance. To this end, China has put forward in November 2018 the following three basic principles on WTO reform. First, the reform shall preserve such core values of the multilateral trading system as non-discrimination and openness, with a view to creating a stable and predictable environment for international trade. Second, the reform shall safeguard the development interests of developing Members. In particular, it is imperative to eliminate development deficit in the existing WTO rules, resolve the difficulties encountered by developing Members in their integration into economic globalization and help attain the Sustainable Development Goals of United Nations 2030 Agenda. Third, the reform shall follow the practice of decision-making by consensus. The specific issues subject to reform, work agenda and final results should be agreed upon after extensive consultations, on the basis of mutual respect, broad participation and dialogues on an equal footing.” 5


discriminações) diz respeito diretamente à China, já que o país vê (não sem motivos) os itens levantados, por exemplo, no documento aqui citado apresentado por EUA, Japão e UE como uma referência direta (e portanto, discriminatória, nessa leitura) à China. O segundo eixo diz respeito a que a OMC seja uma organização que viabilize o desenvolvimento dos menos desenvolvidos e em desenvolvimento, e nesse sentido, flerta obviamente com o documento capitaneado por Índia e África do Sul. O terceiro eixo aponta a continuidade para esse processo do sistema de decisões com base no consenso, o que evidentemente, pela abrangência e pela estabilidade da regra de decisão, mesmo que o mecanismo seja alterado no futuro, garante a legitimidade do processo de reforma nesse momento – mas também garante que nada se fará sem o consentimento de quaisquer dos membros, o que evidentemente inclui a China. Assim, os países relevantes têm se movido no processo de discussão em defesa de seus interesses, novos e históricos, e buscando parcerias para influenciar no processo. Este não deve ser simples nem curto, uma vez que expressa mudanças estruturais no sistema, especialmente geopolíticas e tecnológicas, e um ambiente em transformação em que os vários países vão se mover. Como também expresso anteriormente, mesmo para os EUA e seu novo governo, não vai ser fácil se mexer com tranquilidade nessa nova discussão, com todos os impactos externos e internos que ela pode representar no próximo período. Além disso, a menos que a OMC possa ser vista como um elemento que ajude os países a sair da crise econômica, a redução de graus de liberdade na gestão para a saída da crise que uma OMC plenamente em funcionamento pode representar no fundo é vista muito mais como um risco ou uma dificuldade, que um caminho ou uma possibilidade.

Elementos para a intervenção da sociedade civil no debate

O OMC, como instituição reguladora do comércio internacional, nunca esteve próxima de ser um consenso, tanto entre seus membros, quanto entre as organizações da sociedade civil que tratam com o tema de desenvolvimento em geral, e com o ponto específico de comércio em particular, e por isso é importante criar parâmetros, em especial do ponto de vista das organizações sociais, para observar esse processo em andamento. Por muito tempo, a prevalência dos interesses dos países desenvolvidos, a limitação na participação dos países em desenvolvimento nos debates, a consolidação dos


interesses das transnacionais, em geral, e dos EUA, em particular, na gênese da instituição e a tecnicalidade dos debates foram vistos como elementos constituintes de uma organização hostil a novas estratégias de desenvolvimento no cenário internacional, e por conta disso, a um profundo mal estar dos movimentos sociais com a própria existência da organização, e seu funcionamento. A incorporação de uma pletora de temas que iam muito além do comércio dava a impressão, com boa dose de razão, de que a organização funcionava como um dos principais elementos de consolidação de uma legislação supranacional e regulatória que subordinava direitos de toda ordem aos interesses das corporações transnacionais. Assim, parar a OMC, impedir a Agenda de Doha, descarrilhar a OMC, foram frases de mobilização que apareceram, e deram inclusive margem a muitas lutas que deixaram marcas, como a chamada Batalha de Seattle, nos EUA, durante a Ministerial da OMC em 1999, naquela cidade dos EUA, ou o suicídio do camponês sul-coreano Lee Kyung Hae durante as manifestações de protesto na Ministerial da OMC em Cancún, México, em 2003, entre outros momentos importantes. Parar a chamada “agenda corporativa” da OMC, os pontos de interesse das grandes corporações transnacionais, era um elemento central. Entretanto, as próprias contradições do desenvolvimento capitalista dos últimos vinte anos foram travando a agenda de discussões no âmbito da OMC. O travamento progressivo da Agenda de Desenvolvimento de Doha, a crise econômico-financeira de 2007/2008, a disputa hegemônica entre EUA e China, as novas mudanças tecnológicas que reconfiguraram vantagens de localização no funcionamento das cadeias globais de produção, as mudanças climáticas e impactos de mudanças relativas a essas medidas na matriz mundial de transportes, o ressurgimento e fortalecimento do nacionalismo político e econômico, inclusive nos EUA, enfim, muitos aspectos dificultaram o caminho que estava desenhado da liberalização comercial (e temas agregados ao longo dos anos pela OMC). Esses movimentos colocaram em risco a OMC, em particular, e os mecanismos para a regulação multilateral do comércio em geral. Aqui, a resistência social se somou a esse processo, que é evidentemente muito mais amplo, e multifacetado. Assim, é necessário recolocar de certa forma a discussão para que as organizações da sociedade civil possam de alguma forma interferir nelas, saindo dos impasses colocados entre acabar ou não com a OMC e com o sistema multilateral de comércio. A primeira questão aqui é: é importante a constituição de um sistema multilateral de comércio?


Para tentar responder, temos que tomar outras duas questões. A primeira diz respeito ao comércio ser ou não importante dentro de uma estratégia nacional e social de desenvolvimento. E aqui, é importante colocar que, para a maioria dos países que não pode ser auto suficiente do ponto de vista produtivo, a possibilidade de acesso ao comércio internacional é não apenas um ponto importante para definir uma estratégia de desenvolvimento, mas é importante para a própria sobrevivência, com qualidade de vida, dos povos. Se assumimos essa importância em um mundo assimétrico do ponto de vista da relação de poder entre os países, tem-se que é importante ter um sistema multilateral de regulação de comércio, e na constituição desse sistema, é importante que os movimentos sociais se posicionem e se movam no sentido de garantir que o sistema seja o mais simétrico possível, e o comércio, justo. Mesmo do ponto de vista dos países desenvolvidos, é importante regular o sistema, e para tal basta voltar às definições de Bretton Woods, que acabam dando origem cinquenta anos depois à criação da OMC: os mecanismos protecionistas e a guerra comercial estão na origem dos problemas que levaram à crise dos anos 1930 e à Segunda Guerra Mundial. A segunda questão diz respeito ao fato da OMC ser ou não a melhor resposta do ponto de vista de ser o órgão de regulação desse sistema multilateral de comércio. E a resposta aqui é que depende. A OMC, tal como se estruturou e existe hoje, garantia dos interesses das grandes corporações no cenário internacional, com seu princípio da liberalização progressiva e sem incorporar o tema do desenvolvimento – e em especial de um desenvolvimento mais equilibrado e preocupado com temas como equidade e distribuição – seguramente não é esse órgão. Portanto, desse ponto de vista, não vale a pena se mover para retirar a OMC desse estado de letargia no qual se encontra. Entretanto, se uma reforma profunda puder ser levada adiante na organização, em que os temas da equidade, da redistribuição de renda e riqueza, da preocupação com o meio ambiente, possam ser o novo centro de atuação da organização, reconhecendo a diversidade e a assimetria de seus membros, e flexibilizando os seus mecanismos de funcionamento para incorporar essas dimensões, e permitir ao mesmo tempo que a organização possa se mover em distintos cenários, de hegemonia política e reconfiguração tecnológica, então vale a pena trabalhar para fazer e influenciar essa discussão, e reformar a OMC. Caso contrário, é melhor pensar em como estruturar uma nova organização.


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