Caderno Pensar agosto 2012

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WILLIAM ELLIS/DIVULGAÇÃO

Entrelinhas

ARQUITETA COMENTA O RELATO EMOCIONADO DE DIOGO MAINARDI SOBRE O FILHO.

...E O JAZZ FICOU MAIS TRISTE

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Pesquisadores lembram a importância de Dave Brubeck e a passagem do pianista por Vitória. Páginas 10 e 11

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VITÓRIA, SÁBADO, 15 DE DEZEMBRO DE 2012

www.agazeta.com.br

DIVULGAÇÃO

Mercado

DESIGNER APONTA O OLHAR DOS COLETIVOS SOBRE A PRODUÇÃO CULTURAL. Página 4

Música

COMPOSITOR DESTACA ORIGINALIDADE E TALENTO DE JONATHAN SILVA. Página 5

Teatro

ESPECIALISTA ANALISA PEÇA DO GRUPO Z QUE VAI CORRER O PAÍS. Página 12

O líder comunista Carlos Marighella na redação do “Jornal do Brasil”, em 31 de julho de 1964, dia em que deixou a prisão

O mito da guerrilha

BIOGRAFIA REVELA LADO HUMANO DO ATIVISTA QUE DESAFIOU A DITADURA MILITAR Páginas 6, 7 e 8


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Pensar

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 15 DE DEZEMBRO DE 2012

quem pensa

Isabella Batalha Muniz Barbosa é mestre e doutora em Arquitetura e Urbanismo pela FAU/USP. bella.barbosa@uol.com.br

Raphael Gaspar é designer, pesquisador e membro do Coletivo Expurgação. segas666@gmail.com

marque na agenda prateleira Música Homenagem a Luiz Gonzaga no rádio

Para celebrar o centenário do Rei do Baião, a Gazeta AM apresenta hoje, às 14h, o especial “100 anos de Gonzagão”. Na programação, entrevistas e sucessos do Mestre Lua.

Literatura Livro de crônicas na Biblioteca Estadual

Tião Xará é cineclubista, ambientalista, fotógrafo, videoasta, poeta e compositor. sefilh@gmail.com

A escritora Anna Célia Dias lança o livro “Crônicas Curtinhas” no próximo dia 20 de dezembro, às 19h, na Biblioteca Pública do Espírito Santo (Av. João Batista Parra, 165, Praia do Suá, Vitória).

Caê Guimarães é jornalista, poeta e escritor. Publicou quatro livros e escreve no site www.caeguimaraes.com.br

Fernando Achiamé é poeta e historiador. achiame@terra.com.br

Camilo Ceolin é administrador, professor e pesquisador de blues, jazz e rock. camiloceolin@yahoo.com.br

Rogério Coimbra é produtor cultural, pesquisador musical e autor do blog www.musicanasalturas.blogspot.com

Saulo Ribeiro é escritor e dramaturgo. sauloribeiro77@gmail.com

96 páginas. Civilização Brasileira. R$ 39,90

Revolucionário, ecologista, deputado e ativista, Gabeira passa a limpo seus 50 anos de vida pública, incluindo o sequestro do embaixador Charles Elbrick, o exílio, o treinamento guerrilheiro em Cuba, o rompimento com o PT e os 16 anos como deputado em Brasília.

maninho.pacheco@uol.com.br

www.poeticamentempv.blogspot.com

O cientista político e ex-ministro da Cultura no governo FHC traça um painel detalhado do início da história brasileira, em que a violência e a fé se misturaram de maneira surpreendente para produzir, com as bênçãos da Igreja, a conquista e a colonização.

Onde Está Tudo Aquilo Agora? Fernando Gabeira

Maninho Pacheco é jornalista, designer gráfico e publicitário.

Andra Valladares é advogada, cantora, compositora e poeta.

Espada, Cobiça e Fé: As Origens do Brasil Francisco Weffort

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200 páginas. Companhia das Letras. R$ 29,50

de dezembro

Circuito do Blues en

ce

rra temporada O projeto idealizado pe la produtora Júlia Sodré apresenta os shows das bandas Ch eap Blues e Sunrise Blu es Band (foto), neste domingo, às 19h30, no Teatro do Sesi (Rua Dr. João Carlos de Souz a, 742, Jardim da Penha , Vitória). Ingressos: R$ 20 (intei ra) e R$ 10 (meia).

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de dezembro

Amor e maternidade em romance juvenil

O jornalista capixaba Maxwell dos Santos lança “As 24 horas de Anna Beatriz” na próxima quarta, das 19 às 22h, no Auditório 1 (Hermógenes Lima Fonseca) da Assembleia Legislativa do Espírito Santo. O livro aborda a maternidade e o amadurecimento através da experiência de um casal de adolescentes.

A Teoria dos Incorporais no Estoicismo Antigo Émile Bréhier

A primeira tradução do estudo do filósofo francês, publicado originalmente em 1908, revela uma linhagem de pensamento que forneceu as bases do conceito de acontecimento, indispensável para a leitura de mestres como Deleuze e Foucault. 112 páginas. Autêntica. R$ 35

O Que Resta - Arte e Crítica de Arte Lorenzo Mammi

A coletânea de ensaios de um dos mais importantes críticos do país destaca o seu olhar sobre as artes visuais e sobre questões pontuais como a autonomia da obra de arte. 416 páginas. Companhia das Letras. R$ 59,50

DE UTOPIAS, ARMAS E JAZZ

José Roberto Santos Neves

Para a esquerda brasileira, ele foi um herói. Para os ditadores, um terrorista. Declarado pelo regime militar como inimigo público número 1, Carlos Marighella costumava dizer que não tinha tempo para ter medo. Amante da poesia, o ativista baiano viveu intensamente a utopia de um Brasil justo e democrático em tempos de repressão. Fundou a Ação Libertadora Nacional (ALN), conquistou o apoio de intelectuais, foi preso por Getúlio Vargas, elegeu-se deputado federal, comandou assaltos a bancos e terminou morto em uma emboscada policial. Essa trajetória épica é revelada pelo

Pensar na web

biógrafo Mário Magalhães em “Marighella – O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo”. Na resenha de Maninho Pacheco, o leitor terá uma radiografia desse revolucionário que, para muitos, foi uma espécie de Che Guevara caboclo. A capa desta edição é dividida com os artigos de Camilo Ceolin e Rogério Coimbra sobre Dave Brubeck, ícone do jazz que nos deixou no último dia 5. Coimbra conta os bastidores da vinda do músico a Vitória em 1978, e o mestre Luiz Paixão nos brinda com uma raridade: a foto de um dos primeiros discos de Brubeck, autografado pelo próprio artista. Boa leitura, bom Pensar.

é editor do Caderno Pensar, espaço para a discussão e reflexão cultural que circula semanalmente, aos sábados.

jrneves@redegazeta.com.br

Trailer de documentário sobre Carlos Marighella, gravações de Jonathan Silva, vídeos de Dave Brubeck e trechos de livros comentados nesta edição, no www.gazetaonline.com.br

Pensar Editor: José Roberto Santos Neves; Editor de Arte: Paulo Nascimento; Textos: Colaboradores; Diagramação: Dirceu Gilberto Sarcinelli; Fotos: Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações: Editoria de Arte; Correspondência: Jornal A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8493


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entrelinhas

Pensar

por ISABELLA BATALHA MUNIZ BARBOSA

O AMOR DE UM PAI DIANTE DA QUEDA

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A QUEDA – AS MEMÓRIAS DE UM PAI EM 424 PASSOS Diogo Mainardi. Record. 152 páginas. Quanto: R$ 19,80

CAMILLA MAIA/AG. O GLOBO

i “A Queda” recentemente por sugestão de uma amiga, que assim como o autor, Diogo Mainardi, tem um filho com paralisia cerebral. A princípio, o livro não me despertara tanta atenção e procedia a sua leitura de forma vagarosa em meio a uma viagem de férias que programara à Itália. O cenário recorrente no livro é a cidade de Veneza, que o autor adotara para viver ainda muito jovem e que ele descreve com muita propriedade, onde a narrativa da vivência cotidiana é enriquecida pela bela paisagem e seus edifícios. Eu estava ali, em Veneza, de passagem: os canais, as pontes e seus palácios produziam ecos de interlocução com o autor. Por ser arquiteta, talvez aí estivesse o nó que aglutina o pensamento à alma, e que não mais me fez parar até que chegasse ao seu último passo. O autor constrói a estrutura do texto desde o nascimento de seu filho primogênito, Tito, num hospital público de Veneza, até seu regresso ao mesmo hospital, quando consegue concluir e contabilizar 424 passos sem cair. Os passos de Tito passam a ser unidade de medida do deslocamento do autor, de suas idas e vindas, do seu percurso e trocas de moradia Veneza/Rio/Veneza. A queda, sempre recorrente, passa a ser a força e o elo de união familiar. O enfoque de sua trajetória pessoal a partir do nascimento de Tito traduz-se na própria dialética do homem, onde vida e morte aparecem como uma constante: “Montaigne argumentou que filosofar é aprender a morrer. Eu aprendi a morrer com a paternidade.”

Revisão de valores

Assim, Diogo Mainardi circunscreve sua própria vida e procede a uma rigorosa revisão de seus valores: “Suas quedas recordam-me permanentemente da precariedade e da transitoriedade de tudo o que eu tentei construir”(passo 410); ou quando afirma que o seu centro passa a ser os cuidados com seu filho e que perde gradualmente “o interesse pelos asnos e pelos tratantes da minha terra natal. Só sobrou o interesse por minha vida doméstica. A paternidade tornou-se minha ideologia”. A paralisia causada por erro médico passa a ser também o motor para que Diogo e sua esposa, Anna, iniciem uma ampla varredura a neurologistas renomados em diversas cidades do mundo, para concluir ao final: “Anna e eu aprendemos a ignorar todos os prognósticos abestalhados dos médicos, para o bem ou para o mal. Anna e eu aprendemos a

comemorar cada passo de Tito por mais cambaleante que fosse” (passo 163). Na busca de soluções para o orçamento doméstico que onerara sobremaneira, o autor embrenha-se no acirrado mercado jornalístico como empreendedor: “Depois do nascimento de Tito, repudiei minha literatura e fui ganhar dinheiro[..] eu ganhava dinheiro na Veja e fazendo um comentário por semana no Manhattan Connection”. À época, já acompanhava e admirava o jornalista, pela irreverência e competência com que tratava os assuntos mais polêmicos; no livro, este vasto conhecimento explicita-se na forma como Mainardi interpreta a cultura ocidental em seus diversos aspectos. Discorre e enfatiza sua história, de forma circular, sempre e analogamente a um acontecimento ou fato histórico, seja da arte, da música, da arquitetura ou da política. A paisagem de Veneza era o ponto de fuga nos embalos de Tito. O autor estabelecia embates e comparações entre Pallazo Dario e o Pallazo Corner, ambos separados pelo Grande Canal, atribuindo a um a arte divina, Deus, e ao outro, o homem e sua soberba academicista. Para o autor, só Veneza era capaz de proporcionar o prazer de perceber e correlacionar arte, literatura e arquitetura. Viver ali era como viver em uma aldeia amish, como afirma Mainardi: “Eu via Veneza como uma aldeia amish para intelectuais. Ela tinha o poder de contrastar, com sua prepotente irracionalidade, o populismo iluminista de meu tempo. Ela tinha o poder de ridicularizar com esplendoroso anacronismo qualquer espécie de soberba progressista.”

Travessuras Diogo Mainardi descreve em livro a sua vida ao lado do filho com paralisia cerebral

TRECHO 1 Tito tem uma paralisia cerebral. 2 Eu imputo a paralisia cerebral de Tito a Pietro Lombardo.

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 15 DE DEZEMBRO DE 2012

Em 1489, Pietro Lombardo arquitetou a Scuola Grande di San Marco. E foi a Scuola Grande di San Marco, arquitetada por Pietro Lombardo, que acarretou a paralisia cerebral de Tito.

No retorno ao Brasil por recomendação médica, retrata as travessuras de Tito na praia de Ipanema, mas sua percepção da cidade, por vezes, restringe-se a uma subjetividade dolorida de um pai de paralisado cerebral, “que com seu andador subia as rampas das garagens da Vieira Souto, com cheiro de gasolina e escapamento, até chegar à beira de um degrau e conseguir parar, e cair”. O desejado retorno à Veneza se concretiza nove anos após sua chegada, quando Tito é ressarcido do erro médico com uma cifra milionária. Nesta passagem, o autor argumenta que já poderia morrer, uma vez que Tito não prescinde mais dele para sobreviver. “A Queda” é um aprendizado, uma autocrítica, uma recusa à onipotência, é saber cair e levantar, posto que a vaidade encerra-se e esgota-se em si mesma.


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Pensar

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 15 DE DEZEMBRO DE 2012

produção cultural por RAPHAEL GASPAR

A COLABORAÇÃO FAZ A FORÇA Membro do Coletivo Expurgação, que completa cinco anos este mês, destaca os conceitos dessas redes de relações sociais que trazem novos modelos para a criação e a difusão artística

LORENA LOUZADA

Integrantes do Expurgação na sede do grupo, no Centro de Vitória: existência de espaço físico propicia o senso de pertencimento, fruição de ideias e experimentação poética

A

necessidade institucional de compreensão dos modelos coletivos, que são considerados criativos ou artísticos, é um indicativo de que a crise global arrasta mudanças que vão muito além das dimensões econômica e política. Se por um lado a estabilidade social é impactada negativamente por intervenções governamentais e privadas, por outro lado o processo de decantação cultural influenciado por vícios de mercado é agitado por movimentos civis que buscam contribuir para uma sociedade mais justa. Esses movimentos não são uma novidade. Um exemplo são as vanguardas modernistas europeias, que já experimentaram modelos semelhantes com uma grande dose de idealismo. Inclusive, influenciaram o surgimento no Brasil do Movimento Modernista e do Movimento Concretista, que por sua vez se apropriaram dos símbolos da indústria para servir à arte. No entanto, o atual contexto dispensa idealismos, movimentos isolados e promoção de sumidades. Exige colaboração! Sendo assim, os coletivos criativos da hipermodernidade são redes de relações sociais que são convertidas em experimentação, traba-

lho e crítica. Na maioria dos casos, essas redes adquirem um modo de produção cooperativo e recíproco, com valores e regras próprios (carta de princípios e regimento) que proporcionam confiança e dinâmica às ações coletivas. Mas esses coletivos também são uma reação em cadeia provocada pela ausência de espaços simbólicos para a sociedade, pela dificuldade de acesso ao mercado e pela falta de instrumentos jurídicos que protejam a diversidade cultural (atributos materiais e espirituais), criando capital cultural (instrumentos de estruturação do conjunto simbólico) para a distribuição e exibição dos resultados. Portanto, em diversas regiões do planeta e, sobretudo, no Brasil estão surgindo pessoas que investem em qualidade e interação para formar empreendimentos coletivos que flutuam entre a economia solidária (autogestão horizontal) e a economia criativa (baseada na propriedade intelectual). A informalidade sustentada pela tecnologia é um dos fatores que favorecem a interação entre os agentes coletivos nos domínios da cultura livre digital propagada pela rede distribuída. Como podemos observar, o modelo coletivo é sugerido pelas redes de relacionamento (Facebook, Twitter), pelas plataformas digitais de enga-

jamento e cooperação (a exemplo do site Catarse.me), pelas empresas do ramo do crowdfunding (financiamento coletivo) e pelas ferramentas de edição e compartilhamento de arquivos (Google Disco). Discutivelmente, podemos modelar um coletivo utilizando os pacotes de serviços oferecidos pelas mesmas empresas que tentam se organizar para tomar a hegemonia da internet (o controle do download).

Convivência

Contudo, a existência de um espaço físico que possa ser frequentado pelos integrantes de um coletivo ou por diversos coletivos (intercâmbios) é de suma importância para o aprimoramento do conhecimento e para o desenvolvimento de habilidades generalistas e, principalmente, especializadas. A convivência fortalece o senso de pertencimento ao coletivo (coletivo humanidade) e pode materializar ideias voláteis que surgem durante as trocas de saber técnico e criativo, uma vez que o ambiente tende à interdisciplinaridade e à experimentação poética. Ainda, essa forma de organização social incentiva a circulação e o compartilhamento de bens e de serviços entre a própria rede, ensina regras de convivência em grupo e, por fim, alimenta a filosofia e o conhecimento

enciclopédico através de pesquisas e discussões plurais. Felizmente, modelos de coletivos criativos surgiram no Espírito Santo de forma natural e informal, como era de se esperar. Aos poucos estão adquirindo contornos interessantes para a estruturação de empreendimentos diferenciados que fortalecem a cidadania através de colaborações coordenadas, capazes de cumprirem metas a priori inatingíveis. Os maiores obstáculos para esses coletivos são a criação de infraestrutura básica para concentrarem a produção cultural, seguido do fomento à pesquisa e do incentivo à formação de empreendedores. Claro, isso faz mais sentido se houver investimento em banda larga para excitar a produção cultural. Embora nos últimos anos a política assistencialista tenha gerado a oportunidade de fomentar a cultura na nova classe média, o marketing cultural ainda é uma realidade a ser trabalhada através de parcerias ilimitadas, troca de serviços e estímulo à criação de novos coletivos, a fim de que seja produzido um fluxo potente de comunicação e informação, tão intenso que poderá reeducar a atividade industrial e, simultaneamente, transformar os hábitos da sociedade do consumo.


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falando de música

Pensar

por TIÃO XARÁ

JONATHAN SILVA, TALENTO REGIONAL E UNIVERSAL

J

onathan Silva, capixaba de Vitória, é desses artistas completos que aliam talento musical à veia criativa de compositor, cantor, intérprete e poeta. Essas virtudes ele mostrou em seu primeiro disco, “Necessário”, lançado em 1996, e no CD “Benedito” (2008), vencedor do prêmio Ney Mesquita 2007, concedido por uma Cooperativa de Música de São Paulo. O primeiro disco contou com a direção musical e a genialidade do maestro Jaceguay Lins, em arranjos como o da música “Farra”, uma das mais belas canções de Jonathan, congo conhecido e muito cantado (ele registra no disco: “Minha mãe não gosta da música Farra”). No criativo arranjo, a flauta dá um toque sofisticado ao tradicional ritmo capixaba, do qual o mestre tornou-se não apenas um estudioso, como também um entusiasta, e muito contribuiu para sua divulgação no Espírito Santo e em outros Estados. No samba “Casquinha de siri”, a flauta faz um instigante diálogo com a cuíca e dá um toque especial à música. Na canção “Farra” está presente um dos traços mais admiráveis da poesia de Jonathan, uma mistura de arguciosidade com pitadas de “subversão”, capaz de transformar o santificado em “profano” com invejável qualidade poética. A letra diz: “Nossa Senhora quando ouviu tambor de congo/desceu a Penha/desceu a Penha e caiu na farra”. Talvez resida aí o motivo de sua mãe não gostar. Onde já se viu: a santa cair na “farra”? Licença poética de tamanha beleza, decerto não será motivo para castigo no céu, como também não será a “subversão” que faz quando fala que “São Jorge montado em seu dragão/voou, pousou no chão azul da Barra”. Afinal o Santo Guerreiro luta com o dragão e o mata. Dono de uma voz cativante, Jonathan não tem medo de ousar e essa ousadia está presente em duas interpretações no disco “Necessário”: “Eu quero botar meu bloco na rua”, onde faz uma releitura do sucesso que projetou o legendário cantor e compositor Sérgio Sampaio para o Brasil, com uma interpretação que é tão pessoal quanto sofisticada; e o tradicional congo “Iaiá” (cujos versos “Iaiá, você vai à Penha/Me leva ôoo, me leva” são muito conhecidos dos capixabas), que vira um blues com a maravilhosa gaita de Cezão pontuando o arranjo da canção. Em seu recente CD, Jonathan segue

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 15 DE DEZEMBRO DE 2012

BENEDITO CD de Jonathan Silva. Gravadora Tratore. 16 faixas. Quanto: R$ 21,90. Disponível no site www.tratore.com.br

DIVULGAÇÃO

O cantor capixaba Jonathan Silva (no centro) ao lado da percussionista Dani Zulu e do violeiro Filpo Ribeiro: diversidade de ritmos

seu caminho de compositor e poeta talentoso. A música “Divino Baião”, dele e de Adriane Rivero, fala de um “sonho maluco, o céu era Pernambuco/Deus dançou maracatu/eu vi Jesus tocando ‘Pisa na Fulô’/com um pandeiro que comprou na Feira de Caruaru/Eita que sonho maneiro/Deus era brasileiro/e gostava de forró/Jesus tocava ‘Asa Branca’ na zabumba/e sua mãe cantava ‘Eu só quero um xodó’...”. E, sem temor de ser excomungado, fala que “o Vaticano é careta/e o capeta é Tom Zé”. Letra e canção são muito belas. No começo é uma balada, que passa ser um baião, e quando termina é um congo. E, para fechar com chave de ouro, o final da música é pura poesia: “Eu vou sonhar baixinho pra não acordar meu bem/amanhã cedinho vamos viajar de trem”.

Originalidade

Ele também é dono de uma originalidade peculiar para trabalhar ritmos afropercussivos. Esse, aliás, é mais um traço do trabalho de Jonathan, o de pesquisar ritmos da cultura popular brasileira, presente na música que abre o disco, “Desatadora dos nós”, e em “Jongo de Manuela’. Os frutos dessa pesquisa se concretizam na leveza da harmonia da viola e da rabeca de Filpo Ribeiro – “o inventor de sonoridades” – com a percussão de Dani Zulu, em canções como “Ciranda para Janaína” e “Encruzilhada”, e no congo “São Pedro e São Miguel”, de Zilzo Pereira, da tradicional Banda de Congo Amores da Lua, do festejado Mestre Reginaldo Sales. Já a canção “Papel Sulfite” fala das novas tecnologias, onde o amor se mistura a expressões como “digite”, “delete” e “im-

prima em negrito”. Quando estava ouvindo o CD pela primeira vez, confesso que senti falta de guitarra. Afinal, cresci ouvindo muito rock, e qual não foi minha surpresa ao chegar a “Janaína”, que encerra o disco. Trata-se de uma releitura de seu primeiro CD, gravada originalmente com ritmo de terreiro e só com o refrão da versão atual, que ganhou uma letra mais extensa. E agora tem um lancinante arranjo de guitarra e uma letra que é pura sagácia, ao descrever a astuciosa personalidade da moça. Na verdade, não foi uma surpresa ouvir a guitarra em seu novo disco; ela só confirmou a diversidade do talento musical de Jonathan, que, sem dúvida, foi merecedor do prêmio que conquistou com “Benedito”. E que o bendito Santo siga abençoando Jonathan e sua música!


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Pensar

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 15 DE DEZEMBRO DE 2012

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biografia

Pensar

por MANINHO PACHECO

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 15 DE DEZEMBRO DE 2012

Fundador do maior grupo armado de oposição ao regime militar recebeu o apoio de Glauber Rocha e de intelectuais e artistas europeus como Sartre, Miró, Luchino Visconti e Jean-Luc Godard

MARIGHELLA: GUERRILHEIRO DA UTOPIA

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LIVRO RESGATA TRAJETÓRIA DO REVOLUCIONÁRIO QUE USOU A POESIA E AS ARMAS PARA ENFRENTAR A DITADURA

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orma Bengell caminha nua no alto da Cordilheira dos Andes. Como a uma hóstia, segura com as mãos a foto de Carlos Marighella. A sequência jamais aconteceu. Em 1967, o cineasta Glauber Rocha tinha a intenção de dirigir “uma fita radical, violenta, divulgando abertamente (e justificando) a criação de diferentes Vietnãs”. O delirante projeto de filmar a vida do guerrilheiro nunca foi adiante. Para decepção da musa do Cinema Novo. Bengell apoiava a organização Ação Libertadora Nacional (ALN), criada por Marighella em 1968, quando ele parte para a luta armada. Glauber chegava a comentar que Bengell e Marighella eram namorados. Mas isso não existiu. Ainda que a atriz colaborasse regularmente com a ALN, escondendo guerrilheiros e funcionando como contato. Para ela e Glauber, Marighella era um semideus. Um mito da civilização atlântica. Um Che Guevara caboclo. E é esse Marighella que o jornalista Mário Magalhães nos detalha em minúcias. Nos disseca em sua totalidade. Foram nove anos de pesquisa intensa. Cinco dos quais em dedicação

DIVULGAÇÃO

Carlos Marighella mostra a jornalistas em que parte do corpo foi baleado no cinema

exclusiva. Mais de duas centenas de entrevistas realizadas. Milhares de documentos escarafunchados no Brasil, Uruguai, Cuba, Estados Unidos. Não foi tarefa fácil. Marighella não deixava pegadas. Driblava fotógrafos. A história oficial, por outro lado, não lhe foi menos condescendente. Pelo con-

trário. Stalinistamente riscou-o dos anais históricos. Nascido quatro anos antes do seu biografado ser fuzilado em São Paulo, Magalhães passou pelos jornais “Tribuna da Imprensa”, “O Globo”, “O Estado de S. Paulo” e a “Folha de S. Paulo”. Nesse último, em 2003, abriu mão de sua confortável e

privilegiada condição de repórter especial para uma notável viagem interior na vida do guerrilheiro baiano. Uma vida fascinante. O mulato baiano era filho de um ferreiro italiano e uma negra alta nascida nove dias após a Lei Áurea (1888). Maria Rita dos Santos era descendente direta dos negros da etnia haussás, vindos do Sudão. Esses negros escravos tinham intimidade atávica com a arte de guerrear. Nascido em 1911, Marighella incorporou de forma integral esse atavismo. Moleque novo e adolescente, domina a capoeira para extravasar essa característica guerreira ancestral. Anos mais tarde, em 1964, já na condição de “inimigo público número 1” do país, diante do cerco policial montado em um cinema na Tijuca, Rio de Janeiro, dá vazão a todo seu instinto guerreiro haussás e, mesmo baleado, desfere golpes de exímio capoeirista contra uma tropa de oito policiais fortemente armados do temido delegado Cecil Borer, baiano como ele e anticomunista como poucos. Mas não eram apenas as pernas ágeis daquele corpo de 1,78 metro que ele utilizava como arma. Também

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produção para a ANL. Era preciso dinheiro para se fazer a Revolução. Após temporada de intenso treinamento de guerrilha em Cuba, Marighella volta, clandestino, e defende, em São Paulo, que a revolta tinha que germinar no campo. Ele rompeu dogmas. Ao eleger o campo como cenário decisivo da revolução, contrariou o status marxista de protagonista da classe operária. Foi além: desprezou a formação de um partido como preconizava Lênin. “A ortodoxia é coisa de religião, e da velha religião”, dizia, sem nunca abrir mão do comunista que habitava seu ser.

lançava mão das letras. Marighella era um poeta, sobretudo. E foram os versos que o fariam conhecer a prisão pela primeira vez. Em 1932, escreve um poema crítico contra o interventor do governo da Bahia, Juracy Magalhães, que ordena, em represália, seu recolhimento. Solto, naquele mesmo ano volta à militância política e transfere-se para o Rio. Quatro anos mais tarde, já organizado nas fileiras do Partido Comunista Brasileiro (PCB), cai nas mãos bárbaras do cão de guarda da ditadura Vargas, Filinto Müller, e conhece o covarde e pavoroso sabor da tortura. Não seria a única vez. Encarcerado por um ano, é solto, mas parte para a clandestinidade até voltar a cair nos porões da polícia política de Getúlio e, novamente, barbarizado por Müller e sua matilha de sádicos. Em 1945, é anistiado pelo processo de redemocratização do país e respira parcos meses de normalidade, chegando a eleger-se deputado federal constituinte. Mas normalidade no Brasil daquela época era um conceito muito vago e por demais relativo. Em menos de dois anos o tempo no país volta a fechar e, com ele, o PCB é proscrito. Marighella só romperia com o Partidão em 1967. Na verdade, foi expulso da cada vez mais reformista (e conformista) agremiação por defender a necessidade de se pegar em armas para combater a ditadura.

Burguesia

Sim, mas tanto no campo quanto na cidade não se faz revolução sem dinheiro. E recursos vindos dos intelectuais e artistas já não eram mais suficientes. Optou-se por assaltos a bancos. A agência do Banco Francês e Italiano, no bairro paulistano da Vila Nova Conceição, foi a primeira vítima da “ação expropriatória para levantamento de fundos”. Dinheiro “arrecadado” da burguesia para combater a ditadura. Algo como atacar o capitalismo com o capital. Antes de anunciar o assalto, entoou o verso da canção “Divino e maravilhoso”, de Caetano e Gil, e que já repercutia na voz doce e jovem de sua conterrânea Gal Costa: “É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”. O homem era um poeta, lembre-se. Caetano e Gil voltariam a se cruzar na biografia de Marighella. Em 1969, antes de partir para o exílio, Caetano gravou um disco com uma única faixa, “Alfômega”, composta por Gil. Com um minuto e 32 segundos de duração, a canção incorpora uma clara mensagem ao guerrilheiro. Gil tinha uma simpatia pessoal por ele. Caetano nutria pelos combatentes armados “uma identificação à distância, de caráter romântico”. Anos mais tarde, em seu último trabalho da trilogia iniciada com “Cê” (2006) e “Zii e Zie” (2009), Caetano lançaria em “Abraçaço” (2012) a belíssima canção “Um comunista”, em que homenageia Carlos. “Vida sem utopia, não entendo que exista”, sintetiza o compositor baiano a razão de ser de seu conterrâneo de armas.

Sem medo

Marighella dizia que em sua trajetória nunca tivera tempo de ter medo. Nunca teve. Foi uma trajetória rica e épica. Que despertava paixões, admiração e respeito. Aqui e no exterior. Em 1969, Sartre publicaria seus textos na revista “Les Temps Modernes”. O pintor catalão Joan Miró doou para a ALN esboços que renderam à organização mais de US$ 3 mil. No ano seguinte, o cineasta italiano Luchino Visconti (então filmando “Morte em Veneza”) doou dinheiro aos marighellistas. Por aqui, o também ativista informal da ALN, Glauber Rocha, fazia a ponte entre Marighella e guerrilheiros com intelectuais e artistas europeus. O cinema, aliás, em boa medida através de Glauber, ofereceu ao guerrilheiro uma rede solidária efetiva. “O Brasil desperta com Marighella”, escreveu Glauber ao também cineasta cubano Alfredo Guevara, em 1969. O baiano tinha recém-conquistado a Palma de Ouro de melhor diretor em Cannes com “O dragão da maldade contra o santo guerreiro” quando, por intermédio do colega italiano Gianni Amico, conheceu em Roma o advogado Itoby Alves Corrêa, da ANL. Com Amico, transformou-se em colaborador da organização. Através de Glauber (que fez uma participação especial em “O vento do leste”), Jean-Luc Godard destinou verbas da

O líder baiano em Fernando de Noronha, ilha onde ficou preso de 1940 a 1942: anistiado três anos depois, chegou a eleger-se deputado federal constituinte

MARIGHELLA - O GUERRILHEIRO QUE INCENDIOU O MUNDO Mário Magalhães. Companhia das Letras. 784 páginas. Quanto: R$ 56,50.


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Pensar

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 15 DE DEZEMBRO DE 2012

+ artigo de capa por MANINHO PACHECO

OS ÚLTIMOS PASSOS DE UM LÍDER Jornalista reconstitui noite em que Marighella foi fuzilado pela polícia, numa ação que enfraqueceu os grupos armados urbanos que se organizavam para desestabilizar o regime

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organização armada Ação Libertadora Nacional (ALN), criada por Carlos Marighella, sangrava naquele 4 de novembro de 1969. Sobretudo em São Paulo, onde o guerrilheiro se encontrava. Ele amava as mulheres em geral e, em especial, sua companheira Clara Charf, a quem devotava amor extremo. A última noite vivo do Che Guevara mulato foi envolto em seus braços. Ela o chamava de “menino”. O delegado carniceiro do Dops, Sérgio Fernando Paranhos Fleury, de “o bicho”. O “bicho” foi liquidado por Fleury e seus meganhas numa tocaia meticulosamente arquitetada no centro de São Paulo. Preso dias antes, seu amigo, o militante da ALN e frei dominicano Tito de Alencar Lima, foi obrigado a combinar um encontro com Marighella. Era a “ratoeira”. Na noite daquele dia 4, os operadores da ratoeira pegam o “rato” e o fuzilaram. Marighella estava desarmado, como sempre esteve. “Mataram meu menino”, desesperou-se Clara Charf, assim que tomou conhecimento da fuzilaria. Os grupos armados urbanos, que a princípio deram a impressão de desestabilizar o regime com suas ações espetaculares, declinaram e praticamente desapareceram após a morte de Marighella. A utopia foi grande e a repressão, eficaz. Um a um, os jovens que apostaram em um sonho foram caindo. Destroçado pela tortura, o frei dominicano Tito saiu do Brasil em 1970, trocado pelo embaixador suíço sequestrado, e se matou quatro anos mais tarde, enforcado. Deixou um bilhete em que dizia: “Quando secar o rio da minha infância, secará toda a dor”. Líder do PCBR, Mário Alves caiu logo após a morte de Marighella. Em 1971, foi a vez de Lamarca, no sertão baiano. A repressão exterminaria, ainda, quase todos os membros do Comitê Central do PCB, entre 1974 e 1975. Restou um foco de guerrilha rural que o PC do B começou a instalar em uma região banhada pelo Rio Araguaia, mas que em 1975 foi brutalmente derrotada. A ditadura saiu de cena em 1985, 21 anos depois de instaurada. Além de cometer atrocidades contra a democracia e os direitos humanos, deixou o saldo de ao menos 396 mortos e “desaparecidos”

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munista Brasileiro abriu mão de seus dogmas e ícones históricos e aprovou a fundação do Partido Popular Socialista (PPS). Era o fim do PCB ao qual o guerrilheiro baiano dedicou sua vida e morte. O país ainda estava sob as nuvens da ditadura quando, em 1979, o corpo do guerrilheiro volta para sua Bahia natal. No cemitério Quinta dos Lázaros, em Salvador, o arquiteto Oscar Niemeyer desenhou-o na lápide com um braço erguido, cinco balas no peito e a inscrição: “Não tive tempo para ter medo”.

Mensagem

FOLHAPRESS

No alto, Alameda Casa Branca (SP) após a morte de Marighella em 1969; ao lado, o comunista em depoimento no DOPS; acima, Oscar Niemeyer e Jorge Amado, que fizeram homenagens ao guerrilheiro

por motivos políticos. O PCB de Marighella foi na esquerda brasileira quem mais sofreu os impactos da nova ordem internacional. Em 1979, o mais importante dirigente comunista da história do Brasil, Luiz Carlos Prestes,

desembarca do longo exílio para abandonar o Partido no ano seguinte. Dez anos mais tarde a esquerda assiste, incrédula, à queda do Muro de Berlim. Dois anos depois, a débâcle da União Soviética. Em 1992, o 9° Congresso do Partido Co-

De Jorge Amado veio a mensagem: “Chegas de longa caminhada a este teu chão natal, território de tua infância e adolescência. Vens de um silêncio de dez anos, de um tempo vazio, quando houve espaço e eco apenas para a mentira e a negação. Quando te vestiram de lama e sangue, quando pretenderam te marcar com o estigma da infâmia, quando pretenderam enterrar na maldição tua memória e teu nome. Para que jamais se soubesse da verdade de tua gesta, da grandeza de tua saga, do humanismo que comandou tua vida e tua morte. Trancaram as portas e as janelas para que ninguém percebesse tua sombra erguida, nem ouvisse tua voz, teu grito de protesto. Para que não frutificasses, não pudesses ser alento e esperança. De nada adiantou tanta vileza, não passou de tentativa vã e malograda, pois aqui estás inteiro e límpido. Atravessaste a interminável noite da mentira e do medo e desembarcas na aurora da Bahia. Aqui estás e todos te reconhecem como foste e serás para sempre: incorruptível brasileiro, um moço baiano de riso jovial e coração ardente. Aqui estás entre teus amigos e entre os que são tua carne e teu sangue. Vieram te receber e conversar contigo, ouvir tua voz e sentir teu coração. Tua luta foi contra a fome e a miséria, sonhavas com a fartura e a alegria, amavas a vida, o ser humano, a liberdade. Aqui estás, plantado em teu chão e frutificarás. Não tiveste tempo para ter medo, venceste o tempo do medo e do desespero”. Os restos mortais de Carlos Marighella foram sepultados no dia 10 de dezembro de 1979. Dia Universal dos Direitos do Homem.


poesias CULINÁRIA ANTIGA FERNANDO ACHIAMÉ Tu que tens a ilusão de tudo dominar, humilha-te. Do trigo fazes pão e da uva, vinho. Conservas o leite por mais tempo, ao transformá-lo em queijo. Em um animal juntas carne e o chamas carneiro. No boi reúnes mais carne, por gostares muito dela. Da mandioca brava tiras a farinha: do mal arrancas algum bem. Mas por que cultivas o horror? Ele sempre integra tua história, o horror. Subjuga-te, tu que convertes em aço o ferro e o carvão. Eles sumirão, se os dissipares. Nada substitui o original, até no mundo dos minérios. E é bom mesmo conservares sementes em abrigos seguros: se morrerem os germens das batatas, todas elas acabarão. Também entre os vegetais, nada substitui o original. Ajoelha-te, tu que pouco a pouco conheces as leis da natureza apenas para obedecer a elas. Nenhuma tu crias ou revogas. E és desobediente por natureza. Para teu bel-prazer, queres tudo amestrar. Tens animais em cativeiro para repasto teu, mas esqueces: eles não te pertencem. No reino onde existem, nada substitui o original. Ó povo rude, curva-te. Domaste poucas aves dos céus. Submeteste alguns seres das águas. Selecionaste bichos e plantas para te servirem assim ou assado. Erras se pensas que és o topo da cadeia alimentar. Acima tem outra besta-fera que de ti se nutre: tu mesmo, em teus desvarios. Nada substitui o original. Nem novos pecados. Levanta o rosto para responder: Quem te sujeita? Quem te amansa, infeliz? () E aí? Continuas mudo? Guardas a boca somente para comer o feijão com arroz de todo dia? Isso até evitaria muita desavença... Até quando produzirás o horror? Verga-te então sob tua própria pequenez. Nada domesticaste, nem sequer a ti. E entre borboletas feitas com pão de forma e manteiga, igual a Lagarta interrogando Alice, continuas a te perguntar: – Quem és tu?

crônicas O PÉ DO LIXO E AS ENGRENAGENS DO TEMPO por CAÊ GUIMARÃES

As engrenagens do tempo se movem em compassos de 60 bits que formam o minuto, a hora, o dia. Assim, bit após bit, os anos passam, a vida passa, o automóvel corre e a lembrança morre. Mas nem sempre. Na verdade a lembrança está no ar, se infiltra nos dentes da engrenagem e só morre se a deixarmos morrer, por inanição intelectiva, desinteresse ou preguiça. Gratas lembranças se avizinhavam naquela noite de novembro. O aniversário da querida Sandra Vasconcelos era promessa de reencontrar bons e velhos amigos e amigas. E também a oportunidade de ouvir, após anos de separação, uma das melhores bandas que já surgiram nas terras de Arariboia. O Pé do Lixo. Na faixa dos 40 anos, estavam quase todos lá, exceção a Cidinho Travaglia, que

mora na África, e Marcelo Trifin. Alguns com cabelos brancos. Outros com poucos cabelos. Todos com a mesma energia dos anos 90 e 00 desse doido e doído século XXI. Mesma energia? Sim e não. É que as engrenagens do tempo amalgamam e condensam alguns elementos intangíveis enquanto matéria, mas mensuráveis, pois que voláteis. A maturidade afinou a fornalha acesa do Pé do Lixo. Havia alegria estampada em cada músico e na plateia que dançou ao som da guitarra noise de Sandro Braga, os baixos sincopados e revezados de Claudio Gracio e Rafael Nader, a bateria pulsante de Claudio Manga, as percussões em traquitanas recicladas de Rafael Jabah e Marco Sting, e a performance, sozinhos e em dupla, de Anderson Bacana e Reginaldo Secundo. Creio que havia na cabeça desses jovens

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quarentões a certeza de que um ciclo se fechou para que outro inicie. Como creem os Maias, arautos do fim do mundo. Como crê a lua, quando muda e fica nua. Duas semanas depois, meu amigo Gustavo Grilo – que se tornou empresário da banda em outra volta do tempo – avisa: “Eles vão tocar de novo, no Pub em Reforma”. Partimos para lá. A segunda apresentação foi ainda melhor. Performance, poesia, percussão, cultura de rua. Sangue e suingue no asfalto quente. Canções eternas. Pontes com o passado recente e o futuro. Para nossa alegria. E reflexão. PS 1: uma amiga de 20 e poucos anos estava na plateia e se surpreendeu com a qualidade do Pé do Lixo. Doido pensar que foi ontem que a banda deu um tempo. Como estamos construindo, se é que estamos, as tais engrenagens da memória? PS2: em meio a tanta polêmica cercando o programa Rede de Cultura Jovem, do Sincades, vamos cobrar para que tudo se esclareça com transparência. E que criem em breve a Rede de Cultura Madura. Artistas como os músicos do Pé do Lixo agradecerão. E o público também.

FIM DO MUNDO?

por ANDRA VALLADARES

Eis que nos aproximamos perigosamente do dia 21 de dezembro de 2012, último dia do Calendário Maia, o que para alguns significa o prenúncio do fim dos tempos. As previsões de catástrofes são as mais variadas, alguns dizem que um tal “Planeta X”, quatro vezes maior que a Terra, estaria em rota de colisão conosco. No entanto, não existe nenhuma evidência de que tal fato esteja ocorrendo. Outros dizem que uma “tempestade solar” causaria o estrago. Contudo, não há nenhuma previsão para tal ocorrência neste mês, sendo certo que em março deste ano tivemos uma tempestade solar que em praticamente nada nos importunou. Outros dizem que haveria o tal “alinhamento dos planetas” que geraria uma mudança catastrófica nas marés, mas isso foi desmentido pelos cientistas. A última teoria do fim do mundo pode até acontecer; trata-se da “in-

versão nos polos magnéticos do planeta”, mas, caso ocorra, levará algumas centenas de milhões de anos... Em suma, os alarmistas querem de qualquer maneira decretar nosso fim, e catástrofes grandiosas, cinematográficas, dão muito ibope. Então, andaram espalhando por aí que acontecerá “algo” neste mês de dezembro que causará a extinção em massa no nosso planeta. Entretanto, ainda não será desta vez... Não creio que nosso fim será assim tão certo e rápido. Estamos sim a caminho do fim do mundo, por atos pequenos que já nem percebemos e com os quais não nos preocupamos. Atos individuais que praticamos diariamente, uma “torturazinha” aqui e outra ali contra a natureza, tão subjugada à nossa exploração e uso. A mãe-natureza, que nos primórdios da humanidade já foi deusa, cultuada e valorizada, hoje é escrava, usada, abusada, comprada, vendida, violentada,

torturada, espancada... Sim, vítima de violência praticada por todos nós, seres humanos “evoluídos”, sem excluir ninguém... Contra ela são cometidas bilhões e bilhões de violências diárias e não seremos nós que pagaremos essa “conta” incalculável, a cada dia tão alta que nem podemos imaginar. Deixaremos essa “continha” como herança às gerações futuras: um mundo imundo, podre, pobre, findo. Gostaria que todos vissem e ouvissem, ainda este ano, época em que já podemos começar a agir, “Um Índio”. Aquele índio da música de Caetano, que descerá das estrelas para nos mostrar tudo que já sabemos, mas nos recusamos a enxergar – o óbvio. Que seja o ano de 2012 o fim de um ciclo de destruição e morte lenta do planeta e o início de uma Nova Era que faça renascer das cinzas o Índio que mora em cada um de nós.


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música

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por CAMILO CEOLIN

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O HOMEM QUE FEZ O JAZZ SORRIR

ACERVO LUIZ PAIXÃO

Dave Brubeck, que morreu neste mês, aos 91 anos, inovou o gênero musical americano ao explorar ritmos e tonalidades diferentes durante suas execuções, aponta pesquisador

Capa de disco raro autografado pelo músico para o colecionador Luiz Paixão; ao lado, matéria de A GAZETA sobre o show do pianista no Estado em 28 de março de 1978

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os anos 1940, em plena Segunda Guerra Mundial, uma nova bomba atômica explodia, agora em Nova York. Liderado por Charlie Parker e Dizzy Gillespie, o bebop revolucionava o jazz com seu estilo de fraseados flamejantes, intensos e velozes, estabelecendo um novo padrão dali em diante: jazz era a música dos músicos e não música para dançar, como o pessoal do swing insistia. Do outro lado da América, na Califórnia, uma juventude branca e universitária, mais afeita à brisa do mar e ao clima mais tropical da Costa Leste, estava mais interessada num estilo de jazz que estava ganhando corpo com o cool jazz de Miles Davis, que estava mais interessado no “clima”, melodia e lirismo da música. E quem era essa turma? Alguns dos mais conhecidos do estilo, então batizado de west coast jazz, eram Gerry Mulligan, Chet Baker, Paul Desmond e o magnífico pianista Dave Brubeck, que infelizmente acabou de nos deixar. Várias justas homenagens foram prestadas a Brubeck nos últimos dias por causa do seu falecimento. Ele foi um grande e revolucionário inovador do jazz por explorar ritmos e tonalidades diferentes que variavam durante a execução de suas músicas. Foi o uso da polirritmia e da politonalidade em temas deliciosos que fez de Brubeck um gigante. O maior exemplo disso está na sua obra-prima “Time Out”, de 1959. Com uma linda capa assinada por Neil Fujita (e não pelo espanhol Miró, como muito se disse nesses últimos dias), “Time Out” possui clássicos como “Take Five” e “Blue Rondo a la Turk”, dois dos maiores exemplos do seu legado. Duvido que alguém que tenha o hábito de ir ouvir jazz na Curva da Jurema às segundas-feiras não tenha ouvido esses temas. Essas músicas fugiram da forma tradicional de execução no ritmo em 4/4 e inovaram com sua polirritmia, que ia da métrica em 5/4 de “Take Five” ou em 9/8 de “Blue Rondo a la Turk”, além de variações rítmicas e tonais dentro do próprio tema. Não foi Brubeck quem inventou a polirritmia no jazz, mas ele a levou além e deu cores líricas que ninguém tinha dado até então. Isso sem se esquecer da tra-

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O dia em que Brubeck esteve em Guarapari

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POR ROGÉRIO COIMBRA

Brubeck obteve o respeito dos músicos negros ao montar bandas multirraciais

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O pianista em piloto de programa de TV em 1965: primeiro músico de jazz a vender mais de um milhão de cópias de um disco

dição: no meio de “Blue Rondo a la Turk” tudo volta para o tradicional 4/4. Brubeck disse, já nos anos 1990, que nunca se cansava de explorar a politonalidade e a polirritmia, pois estava nessa missão desde os anos 1940. “Cinquenta anos depois ainda é um desafio o que pode ser feito apenas com esses dois elementos”, disse. Não dá pra deixar de lembrar que Brubeck tocou em Vitória em 1978, na

Ufes. Há relatos de que a nata do jazz capixaba estava lá representada por gente do gabarito de Afonso Abreu, Marien Calixte e Luiz Paixão. Infelizmente o músico não veio mais aqui nesta terra tropical que lembra, ainda que só pelas praias, o berço do west coast jazz. Brubeck deixou uma obra relevante e fundamental na história do jazz. Foi o primeiro músico de jazz a vender mais de

um milhão de cópias de um disco (“Time Out”) e a estampar a capa da revista “Time” americana. Reza a lenda de que quem deveria estampar a capa daquela edição era Duke Ellington, que por sua vez se hospedava no mesmo hotel onde estava Brubeck quando saiu a publicação. Ele não se conteve e foi até o quarto de Ellington dizer: “Essa capa era pra ser sua”. Ellington, com a sua costumeira ele-

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gância, retrucou com um singelo sorriso: “Você merece”. Ambos sabiam que a escolha da “Time” por Brubeck tinha uma conotação racista, daí a predileção por um artista branco. Porém, Ellington sabia também do respeito que Brubeck tinha pelos negros, daí porque não alimentar nenhuma rixa. Filho de fazendeiro, Brubeck desistiu desse ofício ao ver negros serem açoitados nas fazendas vizinhas, ainda que seu pai não fosse adepto dessa prática. Num episódio marcante de sua juventude, ele chorou quando viu um negro e seu pai pediu para que aquele trabalhador retirasse a sua camisa, mostrando as cicatrizes de chibata que trazia no peito. “Essas coisas não podem acontecer”, disse Brubeck às lágrimas. Ellington sabia que quando Brubeck

serviu ao Exército na Segunda Guerra, ele formou uma banda multirracial (fato raro) de jazz para alegrar os soldados e levar um pouco de liberdade em tempos de guerra contra o nazifascismo. Ao voltar da guerra, Brubeck declarava abertamente a sua decepção com o povo americano que insistia em segregar aqueles soldados negros que arriscaram as suas vidas pela liberdade do mundo. Esses episódios fizeram de Brubeck mais do que um músico, um homem respeitado entre os seus pares. Um músico sensacional, que revolucionou a mais bela forma de arte produzida pelos seus irmãos negros: o jazz. Dave Brubeck merece todas as homenagens do mundo. Ao invés de um minuto de silêncio, TAKE FIVE!

poderoso Dave Brubeck esteve em Guarapari na companhia de seus filhos Darius, Chris e Dan. Corria o ano de 1978 e o motivo de estarem tão longe de casa era a excursão que faziam pelo Brasil agenciada pela empresária Gabi Labi, cujo escritório ainda se encontra em plena atividade no Rio de Janeiro. Vitória foi uma das capitais eleitas para receber um dos nomes mais conhecidos do jazz. A extinta Fundação Cultural, presidida por Marien Calixte, assumiu a produção do evento e uma de suas providências foi hospedar o ilustre grupo no Hotel Porto do Sol de Guarapari. Na Fundação Cultural, a equipe encarregada desses grandes eventos à época éramos eu, Afonso Abreu, Maurício Silva e a dupla Xavier e Coutinho, dois técnicos egressos da Rádio Espírito Santo, então lotados no Teatro Carlos Gomes. Aliás, o Carlos Gomes fornecia a maioria das ferramentas, humanas e materiais, para os shows externos. Decidimos realizar o show no Ginásio de Esportes da Ufes, preterindo o singelo palco italiano da praça Costa Pereira. Por que não? Lá, meses antes, havíamos lotado o ginásio universitário com o show de Art Blakey & Jazz Messengers, e o nome de Brubeck era muito mais conhecido, assim como o tema “Take Five”. Chamamos o espetáculo de “Jazz U.S.A.” e o cartaz fazia uma alusão à bandeira norte-americana. Era uma tarefa hercúlea armar uma estrutura de espetáculo naquele tempo, 35 anos atrás. O palco era de madeira, criado com prego, martelo e tinta. A iluminação consistia dos velhos canhões do Carlos Gomes e algumas gelatinas; o som, ah!, o som, era padrão PLM (Paulo, Luiz e Mário Alves), empresa até hoje atuante, surgida em Vitória na década de 1950. No entanto, tudo se resolvia quando a dupla Xavier e Coutinho predispunha-se a colaborar. E ainda havia a preocupação de manter o majestoso Steinway & Sons afinadinho.

Depois de tudo, horas antes do espetáculo, era a vez da visita dos músicos para afinar o som e a luz. Dave Brubeck, das mãos delicadas ao piano dos velhos LPs, chegou com a costumeira onda de calor da tarde do campus universitário após um almoço chinês. Sua presença não era exatamente a de um Dalai Lama, nem de um simpático senador da República do Jazz; aparentava na verdade ser um chefe do Estado-maior inspecionando as frentes de batalha de regiões ocupadas culturalmente pelo jazz. Pobres de nós. Sua sisudez e mau humor repreendia em todos ritmos as flagrantes deficiências capixabas; parecíamos condenados a ouvir para o resto de nossas vidas todos os discos de Waldir Calmon e Clebanoff. Não fosse o deboche e bom humor da dupla Xavier e Coutinho, para superar tamanha censura, ainda lá estaríamos boquiabertos. Mas o show tinha que acontecer. O ginásio não encheu e o médio público presente não se entusiasmou muito com aqueles garotos com enormes cabeleiras nem com os instrumentos elétricos. Havia um ressentimento em não se identificar os conhecidos temas do antigo Dave Brubeck Quartet. E bateu a saudade do som imaculado de Paul Desmond, falecido naquele ano. Resignados, ficamos a ouvir uma nova música, surpreendente, inovadora, com o comandante orgulhoso em dividir o palco com seus filhos e compartilhar aquele som com a marca de sua genial criatividade. Mas era novidade demais. O antigo quarteto de Brubeck não atuava mais, e no ginásio não era aquele conjunto que conquistou um público surpreendente e capaz de vender milhares de discos, aquele antigo quarteto de “Take Five”, um tema composto por Desmond. Mas olhos e ouvidos estavam atentos a toda movimentação no palco. O tempo corria, a música passava. E uma inevitável pergunta circulou dentro de nós naquele momento: o sucesso do Dave Brubeck Quartet seria o mesmo sem o angelical Paul Desmond?


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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 15 DE DEZEMBRO DE 2012

artes cênicas por SAULO RIBEIRO INSONE Espetáculo do Grupo Z de Teatro. Apresentação na próxima segunda-feira, na sede dos grupos Repertório e Z. Rua Professor Baltazar, 152, Centro, Vitória. Entrada franca. Informações: (27) 9936-1123.

O DESPERTAR DO NOSSO TEATRO

Especialista comenta o profissionalismo e a qualidade artística do espetáculo “Insone”, do Grupo Z, selecionado para circular pelo Brasil em 2013 dentro do Palco Giratório Sesc

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Na peça, que estreou em 2011, quatro intérpretes vivem o desespero da noite se esvaindo sem a vinda do sono, com figurinos brancos e um colchão como cenário

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a estrada desde 1996, o Grupo Z de Teatro sempre buscou se expressar em espetáculos universais, explorando diversas linguagens e o trabalho coletivo dos integrantes, dando ao corpo e à dramaturgia própria um lugar de destaque em suas pesquisas e peças. Vi o grupo pela primeira vez quando faziam uma peça de rua. O ano, 2000 ou 2001. “Etc & Tal” era um espetáculo vibrante e jovem. A forma como o Z usava a rua era quase cinematográfica e encantava a todos. Depois dessa peça, vi o Z fazer de tudo nos mais diversos espaços e utilizando-se das mais variadas linguagens. Um grupo de teatro buscando coerência, mas sem medo algum do novo. Coisa rara. É mais comum vermos um grupo ter uma coisa ou a outra. E, na maior parte das vezes, nem uma coisa e nem a outra. O caminho percorrido pelo Z desde sua fundação receberá um grande e merecido incentivo em 2013. Uma de suas peças foi selecionada para compor a programação

do Palco Giratório do Sesc, permitindo ao grupo circular nacionalmente, rompendo as barreiras do Espírito Santo. O Palco Giratório é uma marcante iniciativa cultural que o Sesc mantém desde 1998, tornando-se uma referência nacional no que tange ao mapeamento e à difusão dos trabalhos de teatro, dança e circo do país. Os grupos selecionados têm seu trabalho amplamente divulgado por diversos Estados. No caso do teatro, a seleção dos espetáculos do Palco Giratório busca abranger um recorte da diversidade da produção nacional, ou seja, do que vem sendo realizado nas várias regiões do Brasil. A integração com os grupos de cada Estado por onde os selecionados circulam é provocada através de debates, intercâmbios e oficinas, que permitem conhecer melhor o que foi apresentado e fomentam a reflexão sobre problemas comuns aos grupos, soluções e novos projetos. Além de permitir a integração com outros criadores, o projeto também promove a interação com o público, in-

centivando seu acesso não apenas aos espetáculos, mas também a atividades de formação e debate. A seleção para integrar o Palco Giratório é bastante rigorosa, passando por várias instâncias até chegar ao resultado. Nenhum espetáculo do Espírito Santo havia conseguido compor a programação antes, embora tenhamos chegado perto algumas vezes.

Comissão nacional

A peça do Grupo Z escolhida foi “Insone”, belo trabalho de dança-teatro que estreou em 2011. Ela vai se juntar a outros 16 espetáculos escolhidos pela comissão nacional do Sesc e por mais dois convidados. Estes 18 espetáculos cumprirão uma maratona de apresentações e atividades em diversas cidades em 2013. “Insone” tem como cenário um enorme colchão onde quatro intérpretes vivem o desespero da noite se esvaindo sem a vinda do sono. O colchão e os figurinos são brancos. O espectador tem à sua

frente uma paisagem clara, insuportavelmente branca. Corpos movimentam-se buscando conforto ou visitando cada tormento, preocupação, barulho e dor, um labirinto de insones. Muitas tormentas estão lá. A mãe que não dorme pelo choro do filho, o homem preocupado com o futuro incerto, as pequenas coisas do dia, frases e palavras que se repetem dentro de nós. Há engarrafamentos, e as luzes e a velocidade das coisas fazem do sono algo um tanto escasso, às vezes banido. A escolha de “Insone” para o Palco Giratório é de grande importância para o movimento teatral do Espírito Santo. É um espetáculo que tem seriedade e qualidade para nos representar, além de valorizar um efetivo que está na estrada há muito tempo, lutando para consolidar uma estética coerente. O nosso teatro é marcado por grande diversidade, mas temos poucos grupos produzindo realmente trabalhos de pesquisa, situação que precisa mudar. Esta conquista do Grupo Z de Teatro é um alento aos que nadam contra a corrente.


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