Melanie

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Santos, Maxwell dos, 1986–

Melanie[recurso eletrônico] / Maxwell dos Santos. – Vitória: Do Autor, 2018. Modo de acesso: World Wide Web <http://www.maxwelldossantos.com.br> 1. Literatura infantojuvenil. I. Título. CDD 028.5 CDU 087.5

Índices para catálogo sistemático: 1. Literatura infantojuvenil 028.5 2. Literatura juvenil 028.5




A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade… Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. Rui Barbosa(1849-1923)



Para Fernanda Nunes Fernandes.



SUMÁRIO Prefácio................................................................................12 Apresentação.......................................................................15 Recado do autor..................................................................19 Capítulo 1 | A gênese de um sonho....................................25 Capítulo 2 | Eu passei no PUPT.........................................34 Capítulo 3 | O primeiro dia de aula....................................43 Capítulo 4 | A vida é ligeira................................................48 Capítulo 5 | O revés de um parto.......................................56 Capítulo 6 | Sorte grande...................................................63 Capítulo 7 | Diante dos donos............................................68 Capítulo 8 | No Lamarck....................................................74 Capítulo 9 | No sítio dos avós............................................82 Capítulo 10 | A volta às aulas..............................................89 Capítulo 11 | Quarenta versus 60.......................................96 Capítulo 12 | O vestibular tá aí.........................................105 Capítulo 13 | A hora da verdade........................................112 Autor e Obra.......................................................................118 Seja parceiro do autor independente..............................120



PREFÁCIO MELANIE É O MAIS NOVO LIVRO de Maxwell dos Santos, classificado pelo autor como “literatura infantojuvenil”. Assim como os anteriores, denota uma preocupação um tanto pedagógica, o que, se o afasta do terreno da ficção, aproxima-o contudo de realizar o intento do autor, que aqui cobre duas frentes: a defesa do sistema de cotas no ensino público e a tentativa de conscientizar acerca dos perigos que envolvem a combinação de álcool com a direção de veículos. A escrita de Maxwell é diferente. Por isso mesmo, ela nos tenta a provar que de fato entendemos e respeitamos o que vem a ser a diferença. Neste que seria uma espécie de breve romance pedagógico, o autor abre notas explicativas, notas de referência e outras ainda para explicar o que, costumeiramente, na escrita ficcional, o narrador ou um dos personagens teria dito a partir dos seus próprios afetos, afetados estes pelos afetos do autor. Maxwell põe assim, mais uma vez, a escrita a serviço 12 | MELANIE


das causas que lhe parecem relevantes. O modo objetivo que tem de se comunicar e de ver o mundo está presente, como não poderia deixar de ser, na história de Melanie, a moça pobre que sonha ser médica. Mas quem é o dono dessa escrita, vem-nos o ímpeto de questionar ao percorrer mais de perto as linhas de Melanie. A priori, é difícil dizer, mas se imagina que sejam vocês, os seus futuros leitores, os iguais dos desiguais. Ou os desiguais dos iguais. É o que nos explica a epígrafe que Maxwell foi colher em Rui Barbosa, e que parece dizer da própria condição do autor de Melanie nesse mundo desigual, em que por vezes parece um milagre que os desiguais sobrevivam – e, mais ainda, que desejem escrever, que escrevam e publiquem. Que busquem editores, leitores e prefaciadores… E que se resolvam por fim a publicar de modo independente, em e-book, abrindo mão, por necessidade e como condição de publicação, de parte da cadeia que tradicionalmente envolve a produção de um livro, em nome do imponderável desejo ou necessidade de comunicar. A que se prestam, portanto, as palavras deste meu prefácio? A defender, com todas as letras, o direito das Melanie às cotas, tanto quanto o do Maxwell à escrita. De todas as funções que a escrita já provou ter, as 13 | MAXWELL DOS SANTOS


quais, zelosos do nosso saber e do lugar sagrado da literatura, procuramos esconder no porão ou expor em finas caixas, Maxwell conseguiu extrair o de que necessitava para dar destino a anseios que, apenas formalizados, parecem mesmo deixar de sê-los para se tornarem escrita – descarnada, porém, ainda viva! Andréia Penha Delmaschio Professora, escritora e pesquisadora Doutora em Semiologia pela UFRJ

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APRESENTAÇÃO VOCÊ CONHECE A MELANIE? Talvez já tenha ouvido falar dela – ou tenha conhecido alguém semelhante. É uma jovem garota de classe média para baixa, que está prestes a realizar o vestibular para o concorrido curso de Medicina. Melanie sabe que a vida não é fácil. Mas o que ela sabe sobre a vida? Melanie sabe que mora em uma casa simples, sabe que pode ajudar o vendedor de balas no ônibus, sabe que precisa fazer um cursinho, sabe que o Rodrigo, seu amigo, mesmo escolhendo fazer vestibular para Engenharia Ambiental, precisa estudar as disciplinas de humanas. Sabe também que o ano é 2007, que os celulares já tomam o espaço de comunicação – ligações e torpedos –, que a internet já faz parte do dia a dia dos jovens com o MSN e com o Orkut. O que Melanie realmente não sabe é o que a espera nessa aventura na qual está embarcando. Ela tem uma família, ela tem amigos, ela tem um namorado e ela tem um objetivo. Mas, entre o início da história e seu final, a trilha 15 | MAXWELL DOS SANTOS


é tortuosa, mostrando que a vida oferece desafios diários e que as condições para enfrentá-los se mostram desiguais na sociedade. De um lado, indivíduos que facilitam seus caminhos por meio do dinheiro que possuem; de outro, aqueles que precisam de esforço dobrado (e às vezes um pouquinho de sorte) para conseguirem avançar em suas metas. E isso Melanie sabe. Ela sabe que a riqueza não está a seu favor. O que ela também não sabe ainda é que esses conflitos podem até mesmo se transformar em acirrados protestos entre alunos – cotistas e não cotistas. Outra coisa que Melanie não sabe (mas vai descobrir) é que o mercado da educação não se faz apenas de sonhadores em defesa de um mundo mais justo e igualitário. Ele também é formado por empresários, cujos focos estão voltados para o lucro, fazendo das vidas de seus alunos um grande jogo de xadrez, que envolve clientes privilegiados, os quais receberão melhores condições de disputar as vagas mais concorridas em troca de publicidade e, consequentemente, resultando na procura de mais clientes em busca de uma vaga na universidade. Se Melanie vai descobrir que o mundo não é feito apenas de boas intenções, ela também vai perceber que pode encontrar laços fortes em familiares e amigos – e, às vezes, com pessoas que ela mal conhece – que a ajudarão a 16 | MELANIE


tornar sua caminhada menos penosa. Isso não quer dizer que será fácil (e começo a desconfiar que Melanie sabe disso antes mesmo de começar a narrativa). Ainda assim, Melanie sabe (e isso ela sabe bem) que uma galinha caipira ensopada com batata e quiabo, quando preparada pela avó que mora no interior, é um excelente remédio para amenizar o peso de suas batalhas. Numa Vitória, capital do Espírito Santo, que mistura realidade e ficção – que se cria e se recria entre a vida e a literatura –, Melanie nos leva a conhecer um pouco mais de sua vida em momentos que revelam as dores e as dificuldades com os quais a juventude frequentemente tem que lidar no momento entre sair do Ensino Médio e buscar uma profissão. Será que Melanie sabe que vida é ligeira? A mãe de Melanie diz: “Ninguém quer saber que você é apenas uma menina”. Será que o mundo sabe que Melanie não é só uma menina, mas que é uma humana, uma pessoa, alguém que tem sonhos, desejos, dores, amores, alegrias e tristezas? Será que a sociedade sabe que Melanie não é só um resultado colado na parede da universidade? E o que o leitor deve saber antes de iniciar a leitura? Deve saber que Melanie vai descobrir muitas coisas que ainda não conhece: vai aprender biologia, vai aprender 17 | MAXWELL DOS SANTOS


química, vai aprender que a sociedade é desigual, vai aprender que viver é muito perigoso. E você, leitor, pode se perguntar: mas isso desanima Melanie? A resposta você só saberá folheando as próximas páginas. Nelson Martinelli Filho Doutor em Letras pela UFES e professor do IFES

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RECADO DO AUTOR ESTA OBRA SURGIU A PARTIR das experiências que tive nos anos que estudei como bolsista num conhecido cursinho do interior paulista, nos anos de 2005 e 2007, na turma do semiextensivo, que vai de agosto a dezembro. A primeira vez, de manhã e a segunda, à noite. Queria tentar Jornalismo na UFES em 2005 e História na UFES e Jornalismo na UERJ em 2007. Em ambas as oportunidades, eu pude ter contato com aspirantes ao curso de Medicina. Alguns já estavam tentando o curso pela segunda, terceira, quarta ou quinta vez. Então, surgiu Melanie, moça doce e de nobres sentimentos, que tem uma meta: ser médica. Contudo, ela tem uma série de desafios: ela é de origem humilde, moradora do Bairro da Penha, bairro periférico de Vitória e estudou toda a vida em escola pública. Praticamente, uma azarona no cruel páreo pelas vagas de Medicina. Terá que enfrentar alunos que por toda a vida puderam estudar em boas escolas, fizeram intercâmbio no exterior, enfim, toda uma bagagem intelectual e acadêmica necessária para enfrentar os vestibulares mais duros e concorridos. 19 | MAXWELL DOS SANTOS


Ela sofre um duro golpe do destino, ao ser atropelada com seu irmão Juninho, portador de necessidades especiais e de Bárbara, sua prima. Eles morrem no acidente e a jovem pensa jogar tudo para o alto. Após sair do hospital, Melanie passa a esmerar-se mais e mais nos estudos, até que chama a atenção de um dos professores do PUPT, que fala dela para os sócios do Lamarck, o cursinho líder de aprovações em Medicina no Estado. Melanie ganha uma bolsa para a turma integral de Medicina e passa a estudar lá. Digo, sem medo de errar, que clima entre os candidatos de Medicina é de competição acirrada e pressão permanente dos professores, pais e da sociedade. A neurose é reforçada pelos coordenadores, que repetem o mantra: “o concorrente pode estar ao lado”, incitando o individualismo e o terrorismo psicológico. Como consequência, a maioria dos alunos sofre alterações de humor, engordam ou emagrecem e abdicam de atividades sociais, como ir ao cinema ou jogar vôlei na praia. Respiram vestibular 24 horas, uma paranoia que só acaba quando seus nomes estão na lista de aprovados. Quanto ao objetivo dos cursinhos de Vitória, das três, uma: se é para ver quem vai tirar o 1º lugar geral em Medicina, ou quem aprova mais em Medicina ou quem aprova mais na UFES. Os alunos são considerados como meros 20 | MELANIE


números e nada mais. Lembro do rebuliço da aprovação da reserva de 40% das vagas na UFES para alunos de escola pública. Os alunos do PUPT e outros cursinhos voltados para a população mais carente comemoraram a decisão. Nas palavras da então aluna do 3º ano da EEEM Irmã Maria Horta, Grazielly Fernandes dos Santos, 17 anos, candidata ao curso de Medicina, em entrevista ao jornal A Tribuna, do dia 11 de agosto de 2007: Sem sombra de dúvidas, as cotas democratizam o acesso à universidade e estabilizam a nossa situação, de estudantes da escola pública, para bater de frente com os alunos das particulares no vestibular. Mas não é nada agradável ouvir de representantes dos médicos que vamos diminuir a qualidade profissional. Isso não é verdade e vamos provar. O então secretário-geral do Conselho Regional de Medicina do Espírito Santo (CRM-ES),Celso Murad, em entrevista ao mesmo jornal, se diz contrário a qualquer tipo de assistencialismo e, em sua opinião, esse caráter das cotas que, para ele, não vão resolver o problema da falta de investimento na educação e podem contribuir para piorar a qualidade profissional. A opinião do então presidente da autarquia fiscalizadora da classe médica, em declaração à A Tribuna, do dia 10 de agosto de 2007, também é contrária às cotas: 21 | MAXWELL DOS SANTOS


O sistema de cotas é complicado, porque não ser mais o critério da competência que fará o aluno passar no vestibular. Pode haver pessoa com nota maior que não vai passar. Em princípio, eu não sou a favor. Os direitos são iguais. Há alunos bons na escola pública que conseguem passar no vestibular para Medicina. O sistema de cotas é discriminatório. Mas, quem sabe isso não venha contribuir para o ensino público nos próximos anos? A oposição dos representantes do CRM-ES às cotas é uma posição reacionária de uma categoria profissional formada por pessoas de classe média-alta, que tiveram condições de estudar em boas escolas, conseguiram entrar na universidade e cursar Medicina. Para eles, é fácil dizer que a base precisa ser melhorada e que basta competência. Difícil é convencer a juventude pobre, majoritariamente negra e marginalizada das periferias a esperar tanto tempo por melhorias na educação, o que pode levar décadas. Parece que os representantes da classe média querem que a Medicina seja uma profissão elitista, servindo somente como instrumento de poder político e econômico, não cumprindo o juramento de Hipócrates (que deve estar se remoendo no túmulo – se é que ele ainda está intacto), que é salvar vidas. Quanto à alegação que as cotas ferem o mérito acadêmico, vale a pena observar o argumento do artigo Estudo 22 | MELANIE


Errado: Qual é a capital de Kubanacan?, de Antonio Ozaí da Silva: Seria cômico, se não fosse trágico, observar como professores, alunos, pais e amplos setores da sociedade se rendem diante da ideologia do mérito. Ainda há quem acredite na idiotice de que passar ou não no exame vestibular se resume a uma questão de esforço e dom individual. De fato, o vestibular só se sustenta devido ao poder econômico das escolas e cursinhos adestradores de indivíduos egoístas e competitivos e dos interesses corporativos dos que compõem a indústria do vestibular. Os alunos da rede privada fizeram passeata até a UFES protestar não contra as cotas, mas pelo alto percentual instituído. A questão das cotas chegou à Assembleia Legislativa, onde ocorreu no dia 16 de agosto de 2007 uma audiência pública, onde alunos e professores de escolas públicas e privadas expuseram seus pontos de vista. Fui lá como mero espectador, só ouvindo as posições dos dois lados. A classe média é contra cotas e sugere que se melhore a qualidade do ensino público na base. Mas não é capaz de pôr seus filhos na escola pública. Veja o que disse o senador Cristovam Buarque (PPS-DF), em entrevista à Agência Senado: Porque na hora em que a classe média brasileira colocar seus filhos na escola pública, aí essas escolas vão começar a melhorar. 23 | MAXWELL DOS SANTOS


Porque a classe média tem força de pressão. Todo serviço público para as classes média e alta é melhor. Veja: as rodoviárias são ruins e os aeroportos são bons. Os pais desses alunos de classe média falam com os professores em pé de igualdade. Já o pai pobre fala com professor e professora humildemente. Esse envolvimento da classe média e alta com a escola pública é o caminho para que a escola pública melhore. As cotas para as escolas públicas têm duas vantagens. Primeiro, muitos dos jovens dessas escolas que hoje nem sonham em entrar na universidade passarão a pensar e a se preparar para isso. Quando souberem que tem uma cota para eles na universidade, vão estudar mais no Ensino Médio, vão ser mais estimulados. E isso vai melhorar a qualidade da escola pública. A melhoria do ensino público começa a partir de sua valorização. E a reserva de vagas para alunos é um estímulo para que os jovens acreditarem que a universidade é um sonho possível. Desejo a todos uma boa leitura. Maxwell dos Santos Dezembro de 2018

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CAPÍTULO 1 | A GÊNESE DE UM SONHO O GRANDE SONHO DA VIDA de Melanie era ser médica, mas não tinha condições de pagar a faculdade de Medicina, tampouco pagar um cursinho para que pudesse ajudá-la alcançar esta meta. Até novembro de 2006, ela estagiava de manhã na clínica Femina e fazia o 3° ano do Ensino Médio à tarde, na EEEM Fernando Duarte Rabelo. Após o término do contrato, trabalhou com contrato temporário na loja de calçados Cometa. Ela queria juntar dinheiro para pagar um cursinho. Para isso, abriu uma poupança na Caixa. Meses depois, após tirar o extrato no caixa eletrônico, viu que o valor acumulado só daria para pagar as apostilas, o uniforme e o material. Pensou em voltar a trabalhar para pagar o cursinho, mas desistiu, porque o curso de Medicina é o mais concorrido da UFES (Universidade Federal do Espírito Santo), com relação candidato/vaga superior a 20 e para passar, teria que se dedicar integralmente e se trabalhasse, não teria tempo para estudar. Melanie morava uma casa de alvenaria, perfil classe média para baixa, de três quartos, sala, cozinha, banheiro, área de serviço e varanda, localizada na Avenida Hermí25 | MAXWELL DOS SANTOS


nio Blackman, no Bairro da Penha, em frente à EMEF Zilda Andrade. O imóvel era de sua família. Quando tudo parecia perdido, soube por um programa de televisão a respeito do último dia das inscrições para o processo seletivo do Projeto Universidade para Todos 1, mantido pela Fundação Ceciliano Abel de Almeida, que deveriam ser feitas na agência da Caixa da UFES. Após tomar um demorado banho de meia hora, levar mais uns dez minutos para se arrumar, mais quinze para procurar seus documentos e pô-los na bolsa, Melanie estava pronta para ir ao banco fazer a inscrição. Antes de ir, aproximou-se de Juninho, seu irmão mais novo, branco, cabelo liso, 12 anos, com Síndrome de Down e falou com ele: – Juninho, meu amor, eu vou ao banco resolver um problema e volto mais tarde, tá? Um beijo. – Um beijo, Mel – disse Juninho, dando um beijo no rosto de Melanie. Melanie seguiu para o ponto de ônibus, na Avenida 1

Projeto social surgido em 5 de agosto de 1996, a partir da iniciativa de três estudantes da UFES (José Vasconcelos Maria e os irmãos Rodrigo e Rodrigo Trazzi), que visava preparar alunos e de escola pública ao vestibular da Universidade. Era mantido pela FCAA(Fundação Ceciliano Abel de Almeida) até o encerramento das atividades da entidade em 2014. Atualmente, é mantido pela Associação Universidade para Todos. 26 | MELANIE


Maruípe. Fazia um calor senegalesco naquele dia 07 de fevereiro de 2007. O ônibus 184(Jardim da Penha-Rodoviária) chegou e ela entrou nele. O trânsito estava muito lento, em virtude de um acidente automobilístico, envolvendo um caminhão da Ambev e uma picape Dodge RAM, ocorrido nas proximidades do campo do Caxias Esporte Clube. Já passava de 13h30min e o ônibus ainda estava no local do acidente, deixando a jovem angustiada. Rapidamente, chegou a ambulância do Corpo de Bombeiros para socorrer as vítimas do horrendo, porém cotidiano acidente de trânsito. Por sorte, os ocupantes dos veículos só tiveram ferimentos leves e em vinte minutos, os agentes da Guarda Municipal normalizaram o fluxo de trânsito. – Graças a Deus! Eu vou conseguir chegar a tempo ao banco – disse Melanie. No coletivo, embarcou Márcio, um jovem que vendia doces dentro do ônibus. Ele falou: – Boa tarde, senhores passageiros. Sou soropositivo e por isso, não consigo emprego em lugar nenhum. Eu podia tá matando, tá roubando, mas tô aqui trabalhando honestamente. Tô vendendo sete paçocas por um real. Também tenho cinco jujubas, por 1 real. Quem puder me ajudar, eu agradeço. 27 | MAXWELL DOS SANTOS


Vários passageiros se comoveram com a história do vendedor, inclusive Melanie, comprando-lhe os doces. – Eu sei que é pouco, mas é o que eu posso ajudar – respondeu Melanie, olhando para o vendedor com um sorriso, acariciando-lhe as mãos e dando o dinheiro. – Obrigado. Você é um anjo – respondeu Márcio, admirado e recolhendo o dinheiro. O ônibus chegou ao ponto da UFES. Melanie atravessou a Avenida Fernando Ferrari para entrar no campus e ir fazer a inscrição da prova do PUPT, na agência da Caixa. Ela se espantou com a quantidade de pessoas dentro da agência e fora dela, que vieram pagar a taxa de inscrição, preencher a ficha de inscrição e entregá-la no posto de atendimento próximo à agência. Na fila, a jovem encontrou um ex-colega de escola que não via há muito e também estava na fila para a inscrição. Era Rodrigo, 17 anos, negro, cabelo trançado, terminando o 3° ano do Ensino Médio no CEFET-ES 2 e pretendia tentar Engenharia Ambiental. Como Melanie, ele não tinha condições de pagar um cursinho e por isso, queria uma vaga no PUPT. Entediada com aquela fila, Melanie começou a puxar conversa com Rodrigo: 2

Atual Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo. 28 | MELANIE


– Rodrigo, quanto tempo! – Nossa, Melanie. Eu também não te vejo há uma cara! O que tem feito da vida? – Por enquanto, tô sem fazer nada. Vim aqui pra fazer a inscrição do Projeto. Quero tentar Medicina, mas tô sem grana pra pagar um cursinho e por isso, vejo no PUPT uma oportunidade de realizar meu sonho. – Eu quero fazer Engenharia Ambiental. Meus pais não têm condições de arcar com um cursinho e eu, muito menos. Amigos meus me disseram que o Projeto era muito bom e decidi disputar uma vaga. – E sua mãe, já tá melhor? – Ela morreu. Quando a gente achava que ela tava curada, o câncer voltou devastador. Deu metástase, se espalhou pros outros órgãos e ela não resistiu. – Meus sentimentos, que Deus a tenha num bom lugar. Há seis meses, papai também morreu de câncer no intestino e ainda sofro com isso. Toda noite, eu choro de saudade dele. Ele foi o melhor pai do mundo. Rodrigo começou a chorar e disse: – A minha angústia é a mesma. Penso em mamãe em tudo o que eu faço. Vaso ruim não quebra mesmo. Por que o destino tem que ser cruel com as pessoas que a gente mais ama? – É o que me pergunto também. Não fica assim, queri29 | MAXWELL DOS SANTOS


do. Um dia, você vai superar essa dor – respondeu Melanie, abraçando e afagando Rodrigo. Chegou a vez de Melanie entregar a ficha de inscrição no posto de atendimento do PUPT. Para ela, foi um alívio sair da fila, que estava enorme. Depois, chegou a vez de Rodrigo entregar sua ficha. Antes de sair dali, perguntou à Melanie: – Mel, me passa seu MSN e Orkut. – Passo sim, Rodrigo. Só preciso de um papel – respondeu Melanie. – Aqui tá o papel – falou Rodrigo, entregando o papel. – Rodrigo, foi um prazer te ver, mas tenho que ir. Tchau – disse Melanie, abraçando e beijando o amigo. – Tchau, Melanie – respondeu Rodrigo, retribuindo o gesto da amiga. Rodrigo, fora da agência, pensou em Melanie. Surgiram em seu pensamento imagens da moça em flashback do tempo da escola, com destaque ao baile de formatura da 8ª série, onde ele foi par dela. Ele disse: – Desde a época de escola, tenho uma queda por Melanie, mas sou tímido demais pra mandar a real pra ela. Uma menina linda por dentro e por fora, com olhar que encanta a qualquer pessoa, tem a voz mais doce que eu já escutei, tão educada e meiga! Está sempre de bom humor, disposta a ajudar às pessoas! Ela abria mão das férias pra 30 | MELANIE


ajudar os alunos que ficavam de NOA. Por que, cargas d'água, os carinhas pagam pau pra essas piriguetes, por fora, uma bela viola, mas por dentro, pão bolorento, têm forma, mas não têm conteúdo. Mas fazer o quê? Cada um tem o seu gosto e eu gosto muito da Mel. Rodrigo tinha uma queda por Melanie, moça de 1,60 m, branca, olhos verdes e longos cabelos castanhos, uma verdadeira bonequinha que encantava os meninos no esplendor da puberdade e homens barbados do Bairro da Penha com sua doçura e graça. Pretendentes não faltavam. Era Rodrigo e as torcidas dos Quatro Grandes do Rio (Flamengo, Vasco, Botafogo e Fluminense)3. Melanie, após ter chegado da agência da Caixa, tomou banho e foi para o quarto, onde conversava com seu namorado Bebeto, moreno claro, 21 anos, cabelos pretos e estatura mediana. Ela estava de robe e ele, de camisa e calça da Cyclone, sentado na cama dela. Bebeto fez um convite: – Melanie, que tal a gente ir à sorveteria Kiabai tomar um sorvete? – Hoje não, Bebeto. Tô com uma senhora dor de cabe3

Coloquei esta hipérbole para demonstrar o quanto Melanie era desejada pelos homens daquele bairro e para criticar o provincianismo do capixaba, que geralmente não valoriza os times da terra. 31 | MAXWELL DOS SANTOS


ça. Fica pra outro dia. – Pára de show, Melanie! Toma um Paracetamol. É tiro e queda. – Ô meu amor, hoje tô mal mesmo. Na geladeira, tem um pote de sorvete. Pega ele e as colheres na cozinha pra gente comer aqui. – Tudo bem, meu amor. Bebeto foi à cozinha, pegou o pote de sorvete na geladeira e as colheres no armário. Passou um carro na rua, com um som altíssimo, tocando Mulher de Fases, da banda Raimundos. “Essa música fala o que é a Melanie: complicada e perfeitinha, vive fazendo charme pra irritar a gente” – pensou. Bebeto voltou ao quarto, com o pote de sorvete e as colheres. Sentou na cama de Melanie e abriu o pote. Entre uma colherada e outra, eles se beijaram. O clima esquentou e Bebeto passou a mão nas coxas de Melanie, que cortou na hora e disse: – O que é isso, Bebeto? Já falei pra você que só vou transar depois do casamento. Quem ama, espera, Bebeto. – Droga, Melanie! Há seis meses que a gente namora e ainda tá nesse zero a zero. Pra mim já deu. Nosso namoro termina por aqui – gritou Bebeto. – Bebeto, por favor, não vá – implorou Melanie. 32 | MELANIE


– Adeus – reiterou Bebeto, furioso, batendo a porta. Melanie chorava sem parar.

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CAPÍTULO 2 | EU PASSEI NO PUPT AO LONGO DOS ANOS, o Projeto Universidade para Todos ficou conhecido e a disputa para a vaga aumentou a cada ano, a ponto de existir um pré-PUPT 4, ou seja, um preparatório para o Projeto. Não havia limites para a indústria dos cursinhos lucrar cada vez mais com os vestibulandos, ainda que seja em cima de um projeto social, que só existe por causa das deficiências de seus alunos, majoritariamente oriundos do ensino público estadual. A prova era composta por questões de Língua Portuguesa, Matemática, História, Geografia e Ecologia. Havia pontos de corte distintos para alunos da comunidade (que já terminaram o Ensino Médio) e SEDU 5(que ainda estão no 3º ano do Ensino Médio). Sabendo disso, Melanie esqueceu definitivamente de 4

O preparatório pertencia a um professor do PUPT, que também mantinha um pré-vestibular e os congressos específicos de cada matéria (Congresso de História, Congresso de Literatura, Congresso de Redação). 5 O número de vagas para o PUPT a cada ano dependia do apoio dado pelos patrocinadores privados. As prefeituras da Grande Vitória, do interior e a SEDU (Secretaria de Estado da Educação do Espírito Santo) também patrocinavam o projeto. 34 | MELANIE


Bebeto e começou a estudar todas as tardes no seu quarto. Só tinha um pouco de dificuldades em Matemática, e por isso, chamou seu primo Pedro, aluno de Engenharia Mecânica da UFES para ajudá-la nessas matérias em casa.

***

No dia 04 de março de 2007, um domingo, Melanie chegou ao Centro de Línguas da UFES para fazer a prova de seleção do PUPT. Ela trouxe o comprovante de inscrição, o RG, o estojo da Fricite com caneta, lapiseira e borracha e uma garrafa de água mineral sem gás da Coroa. – Poxa, hoje tá fazendo um solzão, daqueles que anima a gente sair de casa e ir pra praia. Pelo sonho da universidade, eu farei qualquer renúncia e esta será a primeira delas – disse Melanie. A sala onde a prova do PUPT era aplicada estava cheia de candidatos, bastante ansiosos por uma vaga. O fiscal distribuiu as provas aos candidatos, que só podiam abrilas após sua autorização. Três minutos depois, o fiscal autorizou o início da prova. Melanie abriu a prova e se assustou. “Essas questões de Língua Portuguesa tão cheias de pegadinhas. Tá explicado porque elas têm maior peso. Vou deixá-las pro final” – pensou. 35 | MAXWELL DOS SANTOS


Melanie começou a responder as questões de História, Geografia e Ecologia. Respondidas tais questões, ela foi para as questões de Matemática e Língua Portuguesa. Ela preencheu o gabarito, entregou-o ao fiscal e saiu da sala, levando a prova. – Agora, é só aguardar o resultado e que Deus me abençoe e abençoe àqueles que fizeram essa prova – disse Melanie.

***

18 de março de 2007, um domingo: o dia da verdade. Foi divulgado o resultado da prova de seleção do Projeto, publicado na portaria da FCAA e nos jornais de maior circulação no Espirito Santo. Melanie, ao ver seu nome entre os aprovados no jornal, chorou de alegria no seu quarto, enquanto ouvia no computador Dos enamorados, de Laura Pausini. Saiu do quarto, abraçou a mãe, Darlene, 40 anos, morena clara, cabelo preto, baixinha como a filha, que estava na sala e disse: – Mãe, eu passei na prova do PUPT! Vou poder realizar meu sonho. – Parabéns, minha filha. Quando você vai se matricular? – A partir de amanhã. Só fico preocupada como vou conseguir a tempo o histórico escolar. Terça à tarde, vou passar na escola pra tentar, pelo menos, pegar a declara36 | MELANIE


ção de conclusão do Ensino Médio. Acontece que quem fica na secretaria é a Gerusa, que é muito antipática. Meu Deus, que mulher mal-amada! – Essa aí parece que nunca viu macho, com esse gênio, ela vai mesmo é ficar pra titia. – Mãe, vou precisar de R$ 60,00 para pagar as apostilas do Projeto. – Agora não tenho, mas vou passar no caixa eletrônico e você pega comigo mais tarde. – Te amo, mamãe. Você é tudo pra mim.

***

Na terça-feira à tarde, Melanie foi à sua antiga escola requerer a declaração de conclusão de 3º ano do Ensino Médio. Mas para sua surpresa, a Gerusa se aposentou. “Essa aí já era pra ter se aposentado faz tempo. Era uma mulher muito amargurada” - pensou Melanie. Em poucos minutos, a nova secretária escolar digitou a declaração no computador, imprimiu, carimbou, assinou a declaração e a entregou à Melanie. Ela saiu da escola e no ponto em frente ao Boulevard da Praia, pegou um ônibus para a UFES, onde funcionava a sede da FCAA, mantenedora do PUPT. Na porta da Fundação, havia uma fila de cem pessoas para a matrícula. Uma funcionária fazia a triagem dos 37 | MAXWELL DOS SANTOS


documentos para verificar se estavam em ordem. Se o classificado estivesse com os documentos conforme o edital, seria encaminhado para a matrícula na sala do PUPT. Enquanto aguardavam sua vez, uns jogavam baralho, outros conversavam banalidades. – Ainda não acredito na derrota do meu Mengão pro Volta Redonda. Um timaço perdendo prum timeco – reclamou Udson. – Acontece, meu chapa, que os jogadores do seu Mengão só têm amor ao dinheiro e não honram o manto rubro-negro. Preferem cair nas baladas cariocas e por isso, não têm disposição pra treinar, se é que eles pisam os pés lá na Gávea. Por causa disso, o Voltaço mandou aquela goleada – respondeu Michael, vestido com a camisa do Fluminense. – Falou e disse, parceiro. Há muito, o futebol brasileiro, principalmente o carioca, anda numa situação lamentável. Os bons jogadores são vendidos pros times da Europa. Ficam aí só os pernas de pau, que não jogam nada e fazem extravagâncias fora do campo – observou Nelson. Após uma hora e meia, chegou a vez de Melanie, com os documentos, ir à sala do PUPT fazer sua matrícula. A secretária perguntou e digitou os dados no computador: – Nome? – Melanie Coser Pignaton. 38 | MELANIE


– Nascimento? – 01 de julho de 1988. – Nome da mãe? – Darlene Silva Coser Pignaton. – Nome do pai? – Genésio Leonardo Pignaton. – Endereço? – Avenida Hermínio Blackman, 690. – Bairro? – Bairro da Penha. – Cidade? – Vitória. – Identidade? – 933.255 – CPF? – 051.344.266-45. – Telefone fixo? – 3324-5353 – Telefone celular? – 9821-5866 – Certificado de conclusão do Ensino Médio? – Não consegui, mas tenho declaração da escola. – Turno que vai estudar? – Vespertino. – Os R$ 60,00 da primeira apostila? 39 | MAXWELL DOS SANTOS


– Aqui estão. – Obrigada e boa sorte. Melanie saiu da FCAA e foi para casa. Ao se aproximar do portão, a jovem deparou-se com uma situação desagradável, onde dona Zelmínia, senhora de 68 anos, baixa e cabelo grisalho, judiava de Juninho, porque ele derrubou seu cesto de pães. Desaforada, ela gritou: – Só podia ser uma droga de retardado mental pra fazer essa desgraça. Sai daqui, aberração da natureza! Filhote de cruz-credo com ave-maria! Aborto malfeito! Isso magoou demais Melanie, que foi em direção à senhora e disse: – O que é isso, dona Zelmínia? Larga o meu irmão já! Fabinho, um amigo de Juninho, que estava na rua, falou com Melanie: – Mel, essa velha feia bateu no Juninho, porque ele, sem querer, derrubou um cesto de pães. – É mesmo, meu lindo? – perguntou Melanie, fazendo um carinho na cabeça do menino. – É – respondeu Fabinho. – Ela me bateu, Mel – disse Juninho. Os outros meninos confirmam a versão dele. Melanie falou umas verdades para Dona Zelmínia: – Dona Zelmínia, me responde uma pergunta: a senhora acha certo ofender um portador de necessidades espe40 | MELANIE


ciais por ele ter derrubado um cesto? Se a senhora tivesse um filho com problema igual ao do meu irmão, a senhora o amaria ou o consideraria um estorvo em sua vida, abandonando-o nesses córregos de rios, como fazem muitas mães por aí? Dona Zelmínia, apontando um dedo em riste para Melanie, saiu irritada dali, dizendo desaforos: – Menina abelhuda! Que o diabo que a carregue! Quem estava ali, achou um máximo a lição de moral que Melanie deu naquela senhora e os meninos mais engraçadinhos gritaram: – Melanie pra presidente! Ela respondeu às manifestações: – Obrigada, gente. Era a hora de dar um basta nessa situação. Dona Zelmínia tinha que ouvir umas verdades. Não é a primeira vez que ela age assim com o Juninho, usando termos grosseiros. Até mais, meninos. Vem, Juninho, vamos pra casa. Melanie chegou à cozinha com Juninho. Darlene estava na mesa jantando, antes de pegar o plantão no Hospital Santo Antônio, onde trabalhava como técnica de enfermagem. Eram dezoito horas e trinta minutos. O céu estava limpo, sem nuvens e a Lua mostrava seu resplendor. Ela e Juninho sentaram à mesa com Darlene. Para o jantar, tinha arroz, feijão, macarrão, batatinha, salada e cos41 | MAXWELL DOS SANTOS


telinha de porco. Melanie serviu-se de comida e depois disso, falou com a mãe: – Mamãe, acredita que Dona Zelmínia voltou a agir com grosseria com Juninho? – O quê? Daqui a pouco, eu vou descer o pau nessa velha louca! Quem ela pensa que é? Ela vai aprender com uma quente e duas fervendo a não judiar com os filhos dos outros! - gritou Darlene, socando a mesa. – Não faz isso, mamãe. Eu tive uma conversinha com dona Zelmínia, mas ela reagiu com desaforos. Se a anciã age assim com Juninho na minha presença, imagina o que ela faria se não tivesse por perto? – Eu tenho que ir pro hospital assumir o plantão da noite. Hoje promete ser tenso. Cuida bem do Juninho, hein? Tchau. – Tchau, mãe. Ao terminar o jantar, Melanie lavou as vasilhas e foi para a sala ler o livro Um amor para recordar, de Nicholas Sparks. As aulas no PUPT começariam daqui a alguns dias.

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CAPÍTULO 3 | O PRIMEIRO DIA DE AULA MELANIE ESTAVA TODA CONTENTE, PORQUE era o seu primeiro dia de aula no PUPT. As aulas aconteciam numa das salas do CCJE6, na UFES, das 13h30min às 18h30min. A primeira aula naquela segunda-feira foi de História Geral. O professor era Jackson, 22 anos, branco, olhos castanhos e cabelos pretos. Ele está vestido com uma camisa de Che Guevara, com a frase na frente “HAY QUE ENDURECERSE, SIN PERDER LA TERNURA JAMÁS”. Ele estava explicando o perfil da sociedade espartana: – Os esparciatas, ligados ao exército, formavam a elite. Os periecos formavam o que a gente chama atualmente de classe média, com homens livres e sem direitos políticos. Eles viviam da agricultura, do comércio e do artesanato, atividades proibidas à aristocracia espartana. Os hilotas eram a ralé, viviam como escravos do Estado. Márcio, negro, 17 anos, cabeça raspada, baixinho e musculoso, fez uma pergunta: 6

Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas da Universidade Federal do Espírito Santo. Lá estão sediados os cursos de Administração, Arquivologia, Biblioteconomia, Ciências Econômicas, Ciências Contábeis, Direito, Gemologia e Serviço Social. 43 | MAXWELL DOS SANTOS


– Professor, como era o sistema político de Esparta? – Esparta tinha dois reis, vindos de duas famílias, os Ágidos e os Euripôntides, sendo a primeira, aqueia, e a segunda, dória. Mas os poderes se concentravam na Gerúsia, com 28 membros com mais de 60 anos e presidida pelos dois reis. No século VII a.C, foi criada a Assembleia dos Cidadãos, com livre participação de todos os espartanos com mais de trinta anos, onde eram discutidas e aprovadas as propostas de governo enviadas pela Gerúsia. Os gerontes, embora eleitos, eram vitalícios, e o Eforato, guardião da tradição, detinha um poder sem limites. Os éforos vigiavam de perto não só os costumes, mas também a atuação dos reis, agindo como policiais, juízes e supervisores da administração. A segunda aula foi ministrada por Luís Roberto, moreno, porte atlético, 40 anos, cabelo grisalho e professor de História do Brasil, que explicou acerca dos grupos políticos do Período Regencial: – A renúncia de Dom Pedro I provocou a disputa do poder entre os dois grupos políticos do Brasil Império: liberais exaltados e liberais moderados. O grupo dos exaltados era formado pela classe média, enquanto o grupo dos moderados era constituído pelos latifundiários. Estas duas correntes políticas formavam o Partido Brasileiro, e se aliaram para constranger o Imperador, porque se sen44 | MELANIE


tiam insatisfeitos com o estilo autoritário de Dom Pedro I. Os membros do Partido Português, apoiavam o autoritarismo do herdeiro do trono luso. Houve um confronto entre os Partidos Brasileiro e Português, conhecido como a Noite das Garrafadas, ocorrida no Rio de Janeiro, em 1831. A terceira aula foi de Matemática, com Amarildo, 25 anos, moreno claro, baixo e cabelo liso. A aula era de Trigonometria e para que os alunos decorassem os valores de 30, 45 e 60 graus de seno e cosseno, ele cantou7 uma paródia de uma música da Xuxa, Tindolelê. Ele começou pelos senos. – Todo mundo 1,2,3, 1,2,3/todo mundo na raiz, na raiz/todo mundo sobre dois/todo mundo sobre dois/todo mundo sobre dois. E depois, Amarildo foi para os cossenos: – Todo mundo 3,2,1, 3,2,1/todo mundo na raiz/na raiz/todo mundo sobre dois/todo mundo sobre dois/todo mundo sobre dois. Acerola, de Biologia, deu a última aula, sobre o funcionamento do sistema excretor dos animais, cantou uma paródia8 de uma cantiga de roda, Ciranda Cirandinha, acompanhada de pandeiro: 7

Canção extraída do Blog Nenhum dia é inútil <http://vai.la/eOEi>. Acesso em 27 de outubro de 2015. 8 Canção extraída do site Vestibular 1 <http://vai.la/eOEk> Acesso em 27 de outubro de 2015. 45 | MAXWELL DOS SANTOS


– Camarão tem glândula verde/para amônia liberar/a minhoca tem nefrídias que usa para excretar/nos insetos tubos de Malpighi/ácido úrico vão eliminar/nas planarias células flama/ nas aranhas glândulas coaxais/o homem produz amônia/no meio intracelular/o fígado muda para ureia/que o rim vai excretar. No fim de tarde, Rodrigo estava no quarto, deitado na cama. O telefone tocou na sala. Seu pai, Marcelo, negro, alto, 43 anos, atendeu. Ele chamou o filho: – Rodrigo, ligação pra você. Venha atender. – Tô indo já. Ele foi atender a ligação: – Alô, quem fala? – É a Shirley, secretária do TU. No último sábado, você fez o bolsão pro extensivo, acertou mais de setenta e cinco por cento das questões e você conseguiu uma bolsa de 100%. Estou ligando pra perguntar se você tem interesse na matrícula. – Claro que tenho. Quando posso passar aí pra fazer a matrícula? – A partir de hoje. Só precisa levar o RG, CPF, comprovante de residência e os R$ 70,00 da 1ª apostila. – Tá bom. Obrigado. – De nada. 46 | MELANIE


Marcelo se aproximou de Rodrigo e perguntou: – Era o quê, meu filho? – Pai, ganhei uma bolsa integral no TU – respondeu Rodrigo. – Parabéns, Rodrigo. Que Deus te abençoe – disse Marcelo. – Obrigado, pai – respondeu Rodrigo. Rodrigo colocou o telefone no gancho e para comemorar a conquista da bolsa, ele pegou o violão que estava em cima do sofá, tocou Apenas mais uma de amor, de Lulu Santos. Melanie, em seu quarto, ouvia música em seu mp3 player da Vicini, com 1 gigabyte de capacidade. Seu V3 tocou. Vendo que era Bárbara, atendeu a ligação: – Oi, Bárbara. Tudo bom? – Tudo ótimo. E você? – Vou bem, Bárbara. – Vamos comer pizza na Mamma Mia? – Claro que quero. Eu amo pizza. Posso levar o Juninho? – Pode. Tô com muita saudade dele. Amanhã, às sete, passo aí pra buscar vocês. Um beijo. – Outro, meu bem.

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CAPÍTULO 4 | A VIDA É LIGEIRA MELANIE E JUNINHO FORAM DE CARRO com Bárbara à Pizzaria Mamma Mia, em Jardim da Penha. As primas puseram a conversa em dia: – Bárbara, faz um tempão que eu não como uma pizza aos quatro queijos ou uma portuguesa. – Jura, Mel? – É verdade. A última vez que fui comer uma pizza foi no meu aniversário, ano passado, numa pizzaria em Itararé, com meus amigos. – Nem me lembro mais de quando comi uma pizza. – Nossa, você tá melhor do que eu! – É verdade, Mel. O garçom trouxe a pizza maracanã de calabresa e a Coca-Cola de dois litros. Melanie cortou uma fatia da pizza e a deu para Juninho. – Se quiser mais pizza, é só pedir pra mim, tá meu bem? – disse Melanie. – Sim, Mel – respondeu Juninho, com a pizza na boca. – Babi, eu tô fazendo cursinho no PUPT. Eu vou tentar o vestibular pra Medicina. – Que legal, Mel. Tá gostando do cursinho? – Tô achando maravilhoso. Os professores são tão ba48 | MELANIE


canas. Alguns deles dão aulas no TU e no Lamarck, os cursinhos mais badalados e caros de Vitória. – A propósito, você viu algum gatinho nesse cursinho? – Ai, Bárbara. Que pergunta! – respondeu Melanie, corada de vergonha – Depois que eu e o Bebeto terminamos o namoro, decidi me concentrar nos estudos. – Desculpa se te constrangi, querida. – Não precisa se desculpar, meu amor – respondeu Melanie, afagando o braço de Bárbara. Ao terminarem a pizza, os primos foram ao caixa, pagaram a conta e foram para o carro. Eles voltavam para casa. No caminho, Bárbara parou no Posto 3 Irmãos, no cruzamento da Reta da Penha com a Rua Dona Maria Rosa para abastecer. De repente, um Golf GTI e um Audi A3, que vinham a 140 km/h, invadiram o posto, atropelando Bárbara, Juninho, Melanie, que havia saído do posto de conveniência onde comprou guloseimas para o irmão e Carlinhos, o frentista. Com a violência do atropelamento, Juninho foi arremessado a uma distância de 5 metros do posto e teve morte instantânea, assim como o frentista Carlinhos, que teve afundamento de crânio e perda de massa encefálica. Leandro, gerente do posto, acionou o Samu, o Corpo de Bombeiros e a Polícia Militar. Várias ambulâncias che49 | MAXWELL DOS SANTOS


garam ao local. Os policiais do Batalhão de Trânsito da Polícia Militar abordaram, no local do acidente, Lucas Hans von Krüger e Robson Juarez Barrios Lopez, respectivamente motoristas do Golf GTI e do Audi A3. Lucas, 22 anos, loiro, olhos azuis, 1,90 m de altura, musculoso, estudante de Direito da FVD. Ele era filho de Claudio von Krüger, sócio do maior escritório de advocacia do Estado, Krüger, Barreira e Loureiro Advogados Associados. Robson, 23 anos, moreno claro, bombado, ostentava cordões de prata, era colega de turma na mesma faculdade. Eles participavam de um racha na Reta da Penha e estavam visivelmente alterados e seus carros cheios de cocaína, lança-perfume e uísque. O capitão Damasceno conversou com os rapazes, acompanhado dos aspirantes Juliano e Kleber. – Gostaria que os senhores soprem o bafômetro – disse o capitão Damasceno, aproximando o equipamento na boca de Lucas. – Eu não vou soprar bafômetro nenhum. Ninguém é obrigado a gerar provas contra si mesmo. Tá escrito na Constituição. Não me enche a droga do saco – gritou Lucas. – Polícia para quem precisa/Polícia para quem precisa de po50 | MELANIE


lícia – cantou Robson, a canção Polícia, dos Titãs. – Você com revólver na mão é um bicho feroz/Sem ele, fica rebolando/Até muda de voz – debochou Lucas, cantando o samba Bicho Feroz, de Bezerra da Silva, apontando o dedo para a pistola 380 que estava no coldre do capitão Damasceno. – Eu bebo sim/E vou vivendo/Tem gente que não bebe e tá morrendo – cantou Robson, cambaleando, a música Eu bebo sim, de Elizeth Cardoso. – Com a marvada pinga/É que eu me atrapaio/Eu entro na venda e já dou meu taio/Pego no copo e dali num saio/Ali memo eu bebo/Ali memo eu caio/Só pra carregar é que eu dô trabaio/Oi lá – cantou Lucas, A Moda da Pinga, de Inezita Barroso, tropicando pelo posto. – O espetáculo tá lindo! Que vozes! Queremos que os senhores colaborem e soprem o bafômetro – respondeu o capitão Damasceno, já perdendo a paciência. – Qual foi a parte do não vou soprar essa desgraça de bafômetro que você não entendeu, soldadinho de meia pataca? – gritou Lucas, dando um empurrão no capitão Damasceno. – O senhor está preso por desacato à autoridade e agressão – respondeu o capitão Damasceno. – Meu irmão, toma cuidado! Você sabe com quem tá falando? Meu pai é amigo do comandante da Polícia Mili51 | MAXWELL DOS SANTOS


tar. Se eu parar na delegacia, você tá ferrado, velho – ameaçou Lucas. – O tio da minha noiva é desembargador do Tribunal de Justiça. Você não sabe com quem tá falando, seu arrombado – ameaçou Robson dando um chute nas costas do capitão Damasceno. O capitão Damasceno e os aspirantes Juliano e Kleber tiveram que usar gás de pimenta para neutralizar os mauricinhos, colocá-los na viatura da PM e levá-los ao DPJ de Vitória. Na delegacia, os rapazes fizeram ameaças aos policiais. – Quando eu sair daqui, vou acertar as contas com vocês, seus policiais de meia tigela. Só porque têm uma arma e um distintivo, pensam que são alguma coisa – disse Robson, fazendo o gesto de uma arma em direção aos policiais. – Na republiqueta de bananas chamada Brasil, só vai pra cadeia pobre, preto e prostituta. Eu sou rico, influente, filho do maior advogado do Estado. Não vai dar nada, não. No fim das contas, a gente só vai pagar algumas cestas básicas – zombou Lucas. – Eu, preso? Vai sonhando…Só porque peguei meu carango, botei pra quebrar a 140 por hora, mas por uma fatalidade qualquer, atropelei um frentista, um retardado mental do olho puxado, uma loira do cabelo curtinho, que 52 | MELANIE


é a maior gata e uma baixinha linda – ironizou Robson. – Eu juro por tudo que mais sagrado em minha vida que eu vou descobrir onde esses policiais moram e vou acabar com a família deles. Eu tô falando sério, desgraça! – gritou Lucas. – Tô indo preso porque atropelei um retardado – disse Robson, friamente. – Você não sente remorso de ter matado três vidas num racha – perguntou Juvenal Noberto, repórter do programa Hora da Bronca, da TV Mestre Álvaro, para Lucas. – Rapaz, desliga essa câmera. Eu não te autorizei a fazer imagens minhas. Eu me reservo no direito de só falar em juízo. Velho, se isso for pro ar, eu boto você e a emissora na justiça – gritou Lucas. – Eu sou jornalista e tô exercendo o meu direito à liberdade de imprensa – respondeu Juvenal. – Seu programa é sensacionalista e grotesco. Se alimenta das desgraças alheias. Jornalistas são abutres, não tem o menor respeito com a imagem e a privacidade das pessoas – gritou Lucas, empurrando o microfone de Juvenal. – E você, playbozinho mimado, que usa o carro pras suas estripulias e agora tem três mortes nas costas – respondeu Juvenal. – Jornalista de quinta categoria! Eu juro por tudo que é 53 | MAXWELL DOS SANTOS


mais sagrado que vou fazer de tudo pra te mandarem embora da TV Mestre Álvaro. Papai é amigo do dono da emissora. No que depender de mim, eu vou te perseguir, você não vai arrumar emprego em lugar nenhum, vou transformar a sua vida num inferno – gritou Lucas, dando um chute na câmera que estava na mão de Tobias, o repórter cinematográfico. – Ai, que medinho de você. Tô me borrando todinho – debochou Juvenal. – Tu tá avisado. Se sair alguma coisa em relação ao meu nome e minha imagem, você será mais um na fila dos desempregados. Emprego pra jornalista tá difícil hoje em dia, sabia? – ameaçou Lucas. – Vai na fé, irmão – respondeu Juvenal, ironicamente. Os rapazes foram indiciados por embriaguez ao volante, triplo homicídio com dolo eventual e tentativa de homicídio com dolo eventual. Eles fizeram exame de sangue no Departamento Médico Legal para detectar traços de álcool, que deu positivo. Após pagaram uma fiança de 5 mil reais, cada um, eles foram liberados no dia seguinte. Bárbara e Melanie foram levadas para o Hospital São Lucas. A prima de nossa heroína não resistiu aos ferimentos e morreu ao receber os primeiros socorros. O corpo de Juninho foi removido para o Departamento MédicoLegal. 54 | MELANIE


Darlene foi comunicada do atropelamento e começou a gritar e chorar: – Meu Deus, me diz que isso não é verdade! Ao ver o cadáver de Juninho dentro da gaveta do DML, Darlene desmaiou. Após recompor-se, aquela jovem senhora iniciou as tratativas da liberação do corpo do filho que lhe era caro.

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CAPÍTULO 5 | O REVÉS DE UM PARTO Oh, pedaço de mim Oh, metade arrancada de mim Leva o vulto teu Que a saudade é o revés de um parto A saudade é arrumar o quarto Do filho que já morreu Saudade de mim, Chico Buarque O CORPO DE JUNINHO FOI VELADO em sua casa. O clima era de tristeza e revolta. Darlene não saía de perto do caixão. – Meu filho, meu filhinho querido. Volta pra mim, por favor. Mamãe te ama e te quer bem – disse Darlene, acariciando o rosto do filho morto. Dona Zelmínia apareceu de supetão e se aproximando de Darlene, disse: – Darlene, meus sentimentos. – O que a senhora faz aqui? Retire-se da minha casa e respeite a minha dor – disse Darlene, subindo o tom da voz. – Eu vim prestar minha solidariedade – respondeu dona Zelmínia, hipocritamente. – Solidariedade? Alguma vez na sua vida, a senhora soube o que é isso? Desde que conheço a senhora, sempre 56 | MELANIE


vi uma mulher egoísta e mesquinha. A senhora discriminava e maltratava meu filho por ele ser especial e vem aqui dizer que é solidária com a minha dor? Faça-me o favor, dona Zelmínia! A senhora é mentirosa e hipócrita. Cai fora da minha casa agora – gritou Darlene. – Eu tô arrependida – respondeu dona Zelmínia. – Fora da minha casa, velhaca, patife e canalha! Me deixa em paz! – gritou Darlene, empurrando dona Zelmínia. Em Joana D’Arc, o corpo de Carlinhos foi velado na Igreja Pentecostal Brasas no Altar. Sua mãe, dona Sebastiana, desmaiou e teve que ser amparada. – Eu quero meu filho! O que vai ser de mim sem você, Carlinhos? – disse dona Sebastiana, chorando. Cleidiane, agora viúva, chorava inconsolável. Eles foram casados e tiveram duas filhas, Viviane, 18 anos e Cecília, 17 anos. – Carlinhos era um homem tão bom, trabalhador, temente a Deus, não tinha inimigos. Por que ele morreu dessa maneira? – gritou, chorando. Às 14 horas, o corpo de Juninho saiu de sua casa e foi colocado dentro do carro funerário, onde seguiu para o cemitério de Maruípe. O ônibus da funerária levou parentes e amigos da família de Juninho. No mesmo horário em que o corpo chegava ao cemitério, Carlinhos era sepulta57 | MAXWELL DOS SANTOS


do, sob aplausos e clamores de justiça. Às 15:30, o corpo de Juninho foi enterrado. Ele estava vestido com a fantasia do Homem-Aranha e um boneco do personagem ia com ele dentro do caixão. Bárbara foi sepultada às 16 horas, no cemitério Além do Rio Azul, em Laranjeiras, na Serra. Sua mãe, Salomé e seu noivo, Igor, desmaiaram e foram amparados. O caixão desceu sob aplausos.

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Melanie estava internada na enfermaria do Hospital São Lucas. Ela teve fraturas no braço esquerdo e a perna direita teve fratura exposta com a violência do atropelamento. Sua mãe foi à enfermaria conversar com ela. – O que aconteceu? Por que eu tô aqui? – perguntou Melanie, ainda um pouco tonta. – Você, a Bárbara e o Juninho foram atropelados num posto de gasolina – respondeu Darlene. – Cadê a Bárbara e o Juninho? – perguntou Melanie. – Eles estão com o Senhor – respondeu Darlene, chorando. – Meu Deus, por que fez isso comigo? Me tirou as pessoas mais caras da minha vida. Por quê, meu Pai? Por quê? – gritou Melanie, pondo as mãos no rosto – Eu queria ter morrido junto com eles. 58 | MELANIE


– Não fala isso nem de brincadeira, minha filha. Você é o meu único tesouro. Eu te amo muito – disse Darlene. – Eu também te amo – respondeu Melanie, abraçando a mãe.

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Uma semana depois, os parentes e amigos de Bárbara, Juninho, Melanie e Carlinhos, fizeram uma caminhada pedindo paz no trânsito e cobrando mais empenho nas investigações, pois sentiam que estavam muito lentas e os assassinos estavam soltos. A caminhada saiu da Rodovia Serafim Derenzi, em Joana D'Arc, passou pela Avenida Maruípe e foi para a Rua Dona Maria Rosa e lá fizeram orações. Após isso, Cleidiane fez um discurso: – Meu peito tá sangrando. Minha vida já não é mais a mesma, desde que o Carlinhos morreu. Eu e minhas filhas passamos necessidades. Ninguém do posto apareceu pra dar uma assistência. Ainda não pagaram pra gente os direitos trabalhistas do Carlinhos. Ninguém da família dos atropeladores ou eles mesmos apareceu pra perguntar se a gente tá precisando de alguma coisa. As investigações não andam e os assassinos, eu digo, assassinos, pois quem pega o carro e dirige a mais de 140 km/h, assume o risco de matar. São pessoas ricas e influentes. Se fosse o Carlinhos que tivesse atropelado e matado esses dois ra59 | MAXWELL DOS SANTOS


pazes, ele, coitado, já tava numa cela fria e suja. Darlene também falou: – Minha filha ainda tá internada no hospital. Ela já sabe que não verá mais o irmãozinho e a prima que ela tanto amava. Tive que enterrar meu filho com dinheiro do meu bolso. Ninguém me deu assistência. Três vidas foram arrancadas daqui por causa do desejo egoísta de dois moleques com rabo cheio de uísque e cocaína, pegaram seus carros e dirigiram perigosamente. Nada vai trazer meu filho e minha sobrinha de volta. A dor é grande demais. Quero que eles saiam do tribunal do júri, condenados por triplo homicídio, algemados, entrando no camburão pro presídio. Os manifestantes começaram gritar: Justiça! Justiça!

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No início da noite, Rodrigo estava na enfermaria do Hospital São Lucas, onde Melanie estava internada. Ele se aproximou da moça e disse: – Oi, Melanie. – Oi, Rodrigo. Que bom te ver. Tava com saudade de você – respondeu Melanie, abraçando e dando um beijo no rosto do amigo. – Como você se sente agora? – Ai, Rodrigo, eu tô super arrasada com a morte do Ju60 | MELANIE


ninho e da Babi. A morfina disfarça a dor física que sinto no braço e na perna, mas não pode mascarar a dor que sinto na alma, por ter perdido por culpa de dois inconsequentes, as pessoas que me eram caras. Quero jogar tudo pro alto e desistir de tudo, inclusive do sonho de ser médica. De que vale alcançar o objetivo, se as pessoas queridas não tão mais entre a gente pra partilhar essa alegria? – Melanie, não faça isso. Não desista do seu objetivo. Vai parar no meio do caminho? Quando perdi a mamãe, senti vontade de desistir da vida. Todavia, eu tenho um objetivo na vida, que é me formar em Engenharia Ambiental. Tomara Deus que eu consiga passar na UFES. Onde quer que mamãe esteja, ela vai ficar orgulhosa de mim, por ter alcançado meu objetivo, assim como Juninho e Bárbara ficarão orgulhosos caso você passe em Medicina. – Obrigada pelas palavras, querido. Quando sair daqui, vou lutar pelo meu sonho de ser médica. A propósito, como anda a sua vida de estudos? – Tem sido muito puxada. Tenho aula de manhã no TU, aula no CEFET-ES à tarde e quando chego em casa, como alguma coisa e continuo estudando até duas da manhã. – Caramba, como você estuda! – Engenharia Ambiental é superconcorrido na UFES e tem que meter as caras pra passar. Lúcia, a enfermeira, entrou na enfermaria e disse para 61 | MAXWELL DOS SANTOS


Rodrigo: – O horário de visitas acabou. – Poxa, deixa falar com minha amiga só mais cinco minutos. – Negativo. Se quiser falar com sua amiga, volte amanhã. – Tá bom. Já tô indo embora. Rodrigo despediu-se de Melanie deu um abraço e um beijo na amiga, que naquela visita, recebeu uma injeção de ânimo para seguir em sua jornada rumo à UFES. Nos próximos dias, ela receberia alta do hospital e voltaria para casa.

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CAPÍTULO 6 | SORTE GRANDE MELANIE RECEBEU ALTA DO HOSPITAL, andando de muletas e com o braço enfaixado. Seu olhar era triste e vazio. Estava visivelmente arrasada. Ainda não se conformava com a morte de Juninho e de Bárbara, sua prima. Como terapia para tentar superar essa dor, ela se esmerava cada vez mais nos estudos, a fazer perguntas nas aulas e fora delas. Por conseguinte, ela obteve as primeiras colocações nos simulados do PUPT e nos simulados discursivos de Química e Biologia. A moça não sentido algum naquilo tudo. Tudo que fazia, lembrava o irmão e prima queridos. Era uma dor difícil de cicatrizar e que somente Deus, com Seu bálsamo, poderia sarar. Enquanto isso, um cursinho enxergava nela as primeiras colocações em Medicina, quiçá o primeiro lugar geral do curso no vestibular da UFES em 2008. A história de Melanie chegou aos ouvidos dos sócios do colégio e cursinho Lamarck, líder absoluto em aprovações em Medicina na UFES desde 1990. Os cursinhos têm uma política agressiva de captação de alunos. Organizam concursos de bolsas, também conhecidos como bolsões (provas que medem conhecimen63 | MAXWELL DOS SANTOS


to tradicional, onde o número de acertos define o percentual de desconto, que pode chegar a 100%), dão bolsas integrais a alunos do CEFET-ES, principalmente para quem vai tentar Engenharia, bolsas para alunos que tiveram boa pontuação na 1ª etapa da UFES e descaradamente, roubam alunos de outros cursinhos privados e até mesmo do PUPT com proposta de bolsa integral. Era como o Flamengo, que usou um olheiro para buscar seu craque promissor nos rincões do Brasil. Esse olheiro se chamava Paulo André, que além de dar aula no PUPT, era professor do Lamarck nas unidades de Colatina, Linhares e Cachoeiro de Itapemirim e dava aulas discursivas na unidade de Jardim da Penha. No fim da manhã, ocorreu uma reunião na sala de Marcelo, 45 anos, branco, alto e careca. Ele era diretor pedagógico e um dos dezesseis sócios do Lamarck. Além de Marcelo, estava presente Paulo André e professor Flamarion, 60 anos, branco, baixo, gordo e barbudo, cotista majoritário do pré-vestibular e dono do Michelângelo, colégio destinado à classe alta de Vitória. – Professor Flamarion, há uma aluna no PUPT que tem se destacado nos simulados objetivos e discursivos, por vezes, quase fechando a prova. Ela quer tentar Medicina na UFES. Em tantos anos de Projeto, nunca vi uma aluna tão inteligente e promissora – disse Paulo André. 64 | MELANIE


– Quem é essa menina, Paulo? – perguntou Marcelo, curioso. – É a Melanie. Tem 18 anos. Faz 19 em julho – respondeu Paulo André. – Encontre essa menina e a traga pra cá. Nós queremos conhecê-la. Daremos uma bolsa integral para a turma integral de Medicina – disse Flamarion. Paulo André, após atender alguns alunos que estavam com dúvidas, se aproximou de Melanie e disse: – Melanie, como você e os demais alunos do Projeto sabem, eu dou aula nas unidades do Lamarck no interior e as discursivas de sábado, em Jardim da Penha. Os diretores querem conhecer você, no objetivo de te dar uma bolsa integral pra turma de Medicina. Eles souberam de seu esforço e desempenho nos simulados. Melanie ficou perplexa. Ela pediu uma bolsa no Lamarck, mas o pedido foi indeferido. Para concorrer a uma bolsa, o candidato teria que apresentar o boletim de resultados da 1ª etapa na UFES. Com base nele, o Lamarck definia o percentual de desconto. Se o aluno tirasse 48 pontos de 60 pontos possíveis, teria grandes chances de obter bolsa integral. Mas a turma integral de Medicina era seleta, só entrava nela aqueles alunos com pontuação acima de 45 pontos na 1ª etapa e era a única que não concedia bolsas e descontos. Toda regra tem sua exceção e a abri65 | MAXWELL DOS SANTOS


ram para Melanie, que perguntou: – Deixa ver se entendi: O Lamarck tá querendo me dar uma bolsa para a turma de Medicina, que coisa incrível! Eu tinha pedido uma bolsa lá dias depois da prova do PUPT, mas me negaram. Parece que tô sonhando acordada. Não posso acreditar. – Pois é, Melanie. Você tirou a sorte grande de ganhar uma bolsa integral no curso campeão de aprovação em Medicina. Não é todo dia que a sorte sorri pra gente. Meu sonho era ser médico, mas como eu era pobre e não tinha como me manter nesse curso, fiz Farmácia e depois, fiz complementação pedagógica pra dar aulas de Biologia no Ensino Médio. – É mesmo? –Sim, Melanie. O PUPT, apesar das boas intenções em democratizar o acesso de alunos de escola pública à UFES, não tem estrutura para preparar os alunos que querem tentar Medicina. É triste dizer isso, mas é verdade. – Se eu fosse rancorosa e tivesse amor-próprio, eu recusaria na hora. Meu sonho é fazer Medicina e você tem razão quando diz que o Projeto deixa a desejar no tocante à estrutura pra quem vai tentar essa carreira. Quando posso ir lá pra conversar com esses sócios? – Eu vou ligar agora pra secretária do Marcelo, diretor 66 | MELANIE


pedagógico do Lamarck, pra ver a disponibilidade dele de te atender amanhã. Paulo André ligou de seu celular para a secretária de Marcelo, solicitando um horário para Melanie encontrar com ele. Eles conversaram durante minutos. Depois, Paulo André repassou o recado para Melanie: – Melanie, marcaram pra você às 15 horas, pra você encontrar com Marcelo. – Obrigada.

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CAPÍTULO 7 | DIANTE DOS DONOS

NO DIA SEGUINTE, MELANIE ESTAVA na recepção do Lamarck, onde lia a Época para passar o tempo. Logo veio Sandra, a secretária do Marcelo para chamá-la: – Melanie, o Professor Marcelo está na sala. Pode me acompanhar? – Sim – disse Melanie. Sandra levou a moça à sala de Marcelo, onde também estava Flamarion. – Então você é a famosa Melanie? – Sim, sou eu – respondeu Melanie, vermelha de vergonha. – Meu nome é Marcelo, sou o diretor pedagógico e um dos 16 sócios do Lamarck. Este é o professor Flamarion, o cotista majoritário – disse Marcelo. – Prazer em conhecê-lo, professor Flamarion – disse Melanie. – O prazer é todo meu – respondeu Flamarion. – Melanie, nós sabemos que seu grande sonho é ser médica. Por que escolheu essa profissão? – perguntou Marcelo.

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– Em primeiro lugar, Marcelo, muito obrigada pela oportunidade. Eu quero ser médica pelo objetivo de ajudar o próximo e salvar vidas. Pra mim, o dinheiro que se pode ganhar e o prestígio que se pode ter são aspectos secundários. Muita gente quer fazer Medicina movida pelo dinheiro e pelo prestígio, mas acaba se decepcionando. Pra fazer Medicina, a gente tem que ter amor pelas pessoas, por amor naquilo que faz – respondeu Melanie. – Você tem consciência que Medicina é um curso muito concorrido, especialmente aqui na UFES, não? O Lamarck é um cursinho especializado em biomédicas, especialmente Medicina. Como o professor Paulo André frisou, o PUPT não tem estrutura para preparar seus alunos para essa carreira. Foi ele que falou de você pra nós, de sua história e seu empenho nos simulados objetivos e discursivos. O que motivou esta reunião foi a decisão de te conceder uma bolsa integral para turma integral de biomédicas – disse Flamarion. Melanie desabou no choro. Ainda não acreditara na chance que teria naquele momento. – E tem mais. O Lamarck também vai arcar com o uniforme, as apostilas e duas inscrições de vestibulares para Medicina. A única preocupação que você vai ter de hoje em diante é só estudar. E muito. Boa sorte e bem-vinda ao Lamarck – disse Marcelo. 69 | MAXWELL DOS SANTOS


Melanie saiu da sala da diretoria e fez a matrícula para a turma integral de biomédicas. Os diretores do Lamarck se encantaram com a inteligência e graciosidade de Melanie. No entanto, o que eles estavam fazendo não era assistencialismo, era investimento a curto e médio prazo. Naquele momento, Melanie assinava um contrato de prestação de serviços educacionais e assim, vestindo a camisa azul e branca, em lugar da camisa rosa do PUPT. Estava trocando a sala ventilada do CCJE/UFES por uma sala climatizada, data show, cadeiras acolchoadas e a equipe de professores do Estado. Melanie foi até a sua agora ex-turma no CCJE despedir-se dos colegas. Eles ficaram muito consternados, mas felizes pela oportunidade que ela teve naquele momento. Todos lhe abraçaram, desejando-lhe boa sorte naquela nova fase de sua vida. Ela foi para casa. No ônibus, Melanie enviou um torpedo às amigas Nani, Bebel, Marina e Dominique, convidando-as para irem à sua casa pôr os babados em dia. Ela passou no supermercado Cosmos, na Rua das Palmeiras, no Itararé, para comprar frango à passarinha para fritar e os refrigerantes Coroa de limão, uva e guaraná, que estavam em promoção. Na cozinha, Melanie pôs os pedaços de frango para fri70 | MELANIE


tar na fritadeira, enquanto aguardava suas amigas chegarem. Em poucos minutos, elas chegaram a sua casa e bateram a porta. Melanie abriu a porta para atendê-las e disse: – Que bom rever vocês. Vamos entrar? Melanie tirou uma porção de frango da fritadeira e pôs num recipiente com papel toalha para que as meninas comessem, enquanto colocava outra porção para fritar. Ela pediu à Bebel que abrisse a geladeira e pegasse o refrigerante Coroa de limão e o pusesse na mesa. Dominique falou com Melanie: – Mel, você tá melhor? – Domi, eu tento levar a vida da melhor forma possível, tentando me manter sempre ocupada. Esse ano, tô focada no vestibular. Mas não consigo arrancar do meu coração a saudade que tenho do Juninho e da Babi. Eu os amava muito – respondeu Melanie, começando a chorar no colo de Dominique. – Não fica assim não, amiga. Um dia, vocês vão se encontrar – respondeu Dominique, abraçando a amiga. – Nossa, Mel. Você tirou a sorte de ganhar uma bolsa integral num cursinho onde só tem rico – disse Marina. – Pois é, Marina. Acho que tô sonhando acordada. Eu aceitei a proposta de bolsa do Lamarck. Eles vão me dar o uniforme, as apostilas e três inscrições de vestibulares pra 71 | MAXWELL DOS SANTOS


Medicina. Eu começo amanhã mesmo – respondeu Melanie. – Tô estudando em casa pra tentar uma vaga de Tecnólogo em Saneamento Ambiental no CEFET-ES. O que me mata é a redação – disse Bebel. – Que legal, Melanie. Quisera eu ter essa oportunidade. Eu tive que largar a escola no 1° ano por causa do nascimento do meu filho e voltei a estudar agora, no supletivo do Hildebrando Lucas – comentou Marina. – Vocês sabiam que a Melina tá grávida? O que mais me preocupa é o fato dela ter mais uma de suas crises de histeria e sofrer um aborto – disse Melanie. – Que horror, vira essa boca para lá, Melanie – falou Bebel. – Deixa de ser recalcada. Isso não combina contigo – repreendeu Marina. – Eu acho que você, por não ter se deitado com Bebeto, tá morrendo de inveja por não esperar um filho dele e taí de recalque, né? Confessa, Mel, você tava louquinha pra fazer amor com Bebeto, ter um filho e se casarem, mas na hora H, você vacilou e ele foi procurar Melina e…bingo! Ela ficou grávida – comentou Nani. – Eu quero ter uma noite de amor e dela gerar um novo ser. Não agora. Cada coisa no seu tempo. Só depois do casamento. Bebeto sabia das minhas convicções religiosas, 72 | MELANIE


mas não as levou a sério. O que quis dizer é que Melina tem que ter cuidado com essas crises de fúria nesses primeiros três meses de gravidez, que são os mais críticos. Apesar de tudo, eu tenho pena dela – observou Melanie. Após o animado bate-papo, as meninas foram embora. Melanie lavou os pratos e foi dormir, porque tinha que acordar cedo para a aula no Lamarck.

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CAPÍTULO 8 | NO LAMARCK MELANIE CHEGOU AO LAMARCK, JÁ como aluna. Enquanto sua carteirinha não ficasse pronta, o segurança passou o crachá para que ela entrasse. A sala de aula tinha data show ligado a um computador com acesso à Internet, arcondicionado e sistema de sonorização, onde os professores faziam suas explanações com microfone sem fio. Em poucos minutos, entrou Maria Célia, professora de Literatura Brasileira, negra, alta, magra, 25 anos, cabelo cacheado e, falando do livro Quincas Borba, de Machado de Assis, que seria cobrado no vestibular da UFES: – Quincas Borba é um romance em terceira pessoa, mas que se manifesta em primeira pessoa, onisciente e onipresente. Conta a história de Rubião, um ex-professor, que se torna rico, ao receber a herança de Quincas Borba, o filósofo. A obra tem como características a descrição exata e crítica de personagens e a sua vida social, denúncia dos valores da burguesia, crítica à hipocrisia e à moral aparente. Em seguida, Tio Faisão, branco, alto, 41 anos, cabelos loiros e olhos azuis, falou sobre os ácidos: – Os ácidos são todas as substâncias que, em água, liberam única e exclusivamente íons H+. Eles têm sabor 74 | MELANIE


azedo. Se íons hidrônio são encontrados em uma solução, a solução é ácida em natureza. Íons hidrônio (ou hidroxônio) são os únicos íons com carga positiva (cátions) formados quando um ácido é dissolvido em água. Todas as propriedades de um ácido se devem à presença destes íons. A fórmula química de um íon hidrônio é H3O1+. Ácidos são conhecidos como “doadores de prótons”. No recreio, Melanie foi à cantina e pediu um lanche: – Quanto custa esse quibe? – R$ 3,20 – respondeu a atendente da lanchonete – E a Fanta uva em lata? – perguntou Melanie. – R$ 2,80 – respondeu a atendente. – Taí o dinheiro. Pode me dar os dois – respondeu Melanie, dando o dinheiro à atendente. Com o lanche nas mãos, Melanie indignou-se com o preço dos lanches da cantina do Lamarck. – Nossa Senhora! Que lanches caros! A partir de amanha, eu vou trazer meu lanche de casa – disse Melanie, indignada. Camilla, uma patricinha loira, alta e olhos castanhos, que estava na cantina, não via Melanie com bons olhos. Falou do vestuário e da aparência dela: – Nossa, que tênis mais emo. E essa calça, parece que foi comprada no bazar da Igreja ou nessas liquidações dessas lojas de departamentos. Sem falar do cabelo dela, 75 | MAXWELL DOS SANTOS


que não vê uma hidratação faz um tempão. Que horror! Roger, um playboy musculoso, moreno, estatura mediana, que não parava de olhar para Melanie. Ele disse: – Que princesinha, brother. Ah, se ela me desse condição… Ela é um piteuzinho, uma bonequinha de luxo. Os alunos do integral voltaram à sala para a aula dupla de Geografia 2, com Ronaldo, 35 anos, branco, baixo, gordo, cabelo castanho. Ele falava sobre aquecimento global, tema altamente vestibulável. Melanie, entediada com a aula, dormiu. Para finalizar as aulas da manhã, Acerola, 31 anos, negro, estatura mediana e usando uma peruca com cor acerola, professor de Biologia, deu uma bela explicação sobre os artrópodes: – Os artrópodes têm aparelho digestório completo e peças bucais com mandíbulas laterais adaptadas pra mastigação ou sucção. O corpo dos artrópodes é revestido por um exoesqueleto à base de quitina, sendo que na maioria dos crustáceos, além da quitina, este exoesqueleto é constituído de carbonato de cálcio. Melanie, a convite de Marcelo, foi almoçar no Vix Gourmet, uma churrascaria chique na Enseada do Suá. – Como foi o seu primeiro dia no Lamarck? – perguntou Marcelo. – Ótimo, incluindo os professores. Só não gosto muito 76 | MELANIE


da baixa temperatura do ar-condicionado – respondeu Melanie. – Não repara. É assim mesmo. Tá gostando da comida? -perguntou Marcelo. – Tá uma delicia, principalmente coraçãozinho de galinha –respondeu Melanie. Melanie voltou para a turma de Medicina, onde teria aulas de resolução de exercícios com os professores. Ela ficou estudando até 21:00. Ao chegar em casa, Melanie tomou uma ducha quente para relaxar. Ela cantou músicas do Roupa Nova: – Te dou meu coração/Queria dar o mundo/Luar do meu sertão/Seguindo no trem azul (…)Sei, não é questão de aceitar/Sim, não sou mais um a negar/A gente não pode pedir/Se a vida cansou de ensinar/Sei que o amor nos dá asa/Mas volta pra casa(…)Linda, só você me fascina/Te desejo muito além do prazer/Vista meu futuro em teu corpo/E me ama, como eu amo você. (…)Eu te amo e vou gritar pra todo mundo ouvir/É você o meu desejo de viver/Sou menino e teu amor é que me faz crescer/Me entrego corpo e alma pra você. Melanie, vestida com o baby-doll, abriu a geladeira e pegou arroz, feijão, macarrão e uns pedaços de frango. Ela pôs para esquentar no micro-ondas por dois minutos, sentou no sofá da sala para comer, assistiu um pouco de TV e depois foi dormir. 77 | MAXWELL DOS SANTOS


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Melanie acordou com uma cólica menstrual e na base do Atroveran, entrou no segundo horário, na aula de Física 2, com Brutus, 29 anos, branco, alto, cabeça raspada e musculoso, que cantou uma música9 do Pachecão, conhecido professor de pré-vestibulares em Belo Horizonte: – Calor, calor, calor/Calor eu vou te dar/Se você não se tocar/ Que essa matéria cai no vestibular/Calor é a energia que transita/entre corpos com temperaturas diferentes/Calor eu vou te dar se você não se lembrar/Primeiro você precisa saber/que um corpo não possui calor, possui energia interna/Pequena, quando frio e grande quando quente/Se a molécula vibrar é condução/Se deslocar é convecção/Se for onda eletromagnética é radiação/Que nesse troca-troca de calor/Você poderá calcular/Com qual macete (Q = m.c.DT)/Se a temperatura variar/Que nesse troca-troca de calor/Você poderá calcular/Com quem mela(Q = m.L)/Se a matéria de estado mudar. Chegou o intervalo. Os alunos saíram para o lanche. Melanie ficou na sala estudando. Mas foi advertida pela auxiliar de coordenação para que saísse da sala para ir ao intervalo. Ela saiu. Ao fim do intervalo, os alunos voltaram para a sala da turma de Medicina. Canção extraída do site Vestibular 1<https://goo.gl/K9kT3z>.Acesso em 27 de outubro de 2013. 9

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A cólica de Melanie voltou mais forte. Ela saiu da sala e levou um copo e um frasco de Atroveran e foi ao bebedouro tomar o remédio. Demóstenes, 45 anos, branco, estatura mediana e careca, professor de Física 4. Eis a sua aula de Magnetismo, com uma paródia10 de YMCA, do Village People: – Imã/Vou falar pra vocês/de um imã/as linhas de indução/saem do polo norte e chegam no polo sul/Quando uma corrente elétrica/percorre um fio condutor surge/um campo magnético/dado pela regra/Essa é a Regra da mão direita/O dedão pra corrente/Os dedos pro ponto/e o sentido do campo é o do Tapa! Melanie não parava de rir. A cólica da jovem deu trégua e ela estava com mais ânimo para a última aula da manhã, de Física 3, com Flora, 25 anos, branca, loira de cabelo curto e olhos verdes. Para explanar sobre gravitação, Flora cantou uma paródia11 de Garganta, de Ana Carolina, com voz e violão. – Minha cabeça estranha se Física vejo/me vem um desejo doido de gritar/minha cabeça arranha se fórmula vejo /quando penso em tanta coisa que vou calcular/Venho por essa agora lhe Canção extraída do site Scribd <https://goo.gl/IjqnH0 >. Acesso em 27 de outubro de 2013. 11 Canção extraída do site Vestibular 1 <https://goo.gl/cPhsHt>. Acesso em 27 de outubro de 2013. 10

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falar de gravidade, gravidade universal, também vou contar/Sente-se bem em tua carteira, se revire pelo avesso/porque essa matéria você tem que estudar/São três leis de Kepler/vou lhe falar na cara dura/elas dizem com ternura sem te complicar/Em torno do sol os planetas giram em forma elíptica sem se desviar/Se do sol aproxima a velocidade aumenta/ então diminui quando se afastar/O cubo da distância sobre o quadrado do período/ em que os planetas se põem a girar/Entre duas partículas existe um par de forças de atração proporcional/ao quadrado da distância e inversamente proporcional/inversamente proporcional…

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Os donos do Lamarck queriam saber como andava o desempenho de Melanie nos estudos. Não nos simulados semanais, mas numa situação real de vestibular, como o da FCMV para o curso de Medicina, ainda que gastasse R$ 200,00 de inscrição e sabendo que se Melanie passasse, ela não poderia arcar com as mensalidades do curso de Medicina, que eram superiores a R$ 2000.00. Eles incentivaram-na a fazer essa prova e colocaram-na turma especial para esta conceituada faculdade.

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No dia da prova, havia uma grande concentração de candidatos do Lamarck e de outros cursinhos e escolas esperando para fazer a prova da 1ª etapa. O resultado da 1ª etapa foi divulgado na quarta-feira, às 12 horas. Os 180 candidatos classificados para a segunda etapa fizeram as provas na quinta e sexta-feira. E Melanie estava entre os classificados. O resultado final saiu no dia 13 de julho de 2007 e Melanie ficou em 12º lugar, deixando a equipe do Lamarck muito feliz e nossa heroína mais confiante para enfrentar o vestibular da UFES. O Lamarck ocupou 54 das 60 vagas do curso de Medicina. As turmas de 3º ano e pré-vestibular entraram em recesso de duas semanas. Melanie passaria esse período no sítio dos avós, em João Neiva.

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CAPÍTULO 9 | NO SÍTIO DOS AVÓS MELANIE FOI PASSAR UNS DIAS em João Neiva para descansar. O ônibus saiu da Rodoviária, passando pela região da Vila Rubim, Centro de Vitória, Av. Vitória, Reta da Penha, Av. Fernando Ferrari até a BR 101, onde parou em Carapina para pegar mais passageiros. A linha prosseguiu seu trajeto na rodovia federal, onde alguns trechos estavam repletos de buracos. A moça encantou-se com a visão de vacas, bois e bezerros e cavalos pastando nas fazendas às margens da BR 101, entre Fundão e Ibiraçu. O ônibus parou em Ibiraçu para pegar mais gente. Era mais de meio-dia e o sol estava causticante, quando ela desembarcou na rodoviária da cidade e começou a andar pelas ruas, até chegar ao Bar do Chico para tomar um refrigerante e comer um salgado. Lá encontrou Ciro, branco, 45 anos, baixo, cabelo grisalho, olhos castanhos e seu tio por parte de mãe. Ele era dono de uma loja de material de construção e estava vestido com a camisa “COSER MATERIAL DE CONSTRUÇÃO”. Melanie conversou com seu tio: – Oi, tio Ciro. – Mel, que bom te ver aqui. Veio passear aqui na cida82 | MELANIE


de? – Na verdade, vim visitar o vovô e a vovó. Você me leva até lá? – Claro que sim. Deixa eu só acertar a conta aqui no bar pra gente ir lá. Ciro pagou o torresmo e a dose de cachaça que consumiu ao dono do bar, seu Chico, 70 anos, caboclo, baixinho, gordo e um tanto mal-encarado. A jukebox tocava Águas Passadas, de Fafá de Belém, com participação de Zezé de Camargo e Luciano. Ciro levou Melanie para a caminhonete D-20, e foram até o sítio de seu Giuseppe. Era uma propriedade de cinco hectares, com vários pés de manga, cajá, maracujá, mamão, limão, um chiqueiro com dez porcos, um galinheiro com um galo reprodutor, quinze galinhas caipiras poedeiras e quinze frangos de corte. Havia também plantações de milho, ervilha, taioba, salsa e cebolinha. Havia dois jumentos de carga e três cavalos para sela. Para completar, o sítio contava também com quatro vacas leiteiras. Em poucos minutos, chegou a caminhonete de Ciro no sítio de seu Giuseppe. A alegria tomou conta daquele vovô ao ver sua neta. – Melanie, que bom te ver de novo – disse seu Giuseppe, abraçando a neta. – Eu também me sinto feliz de te encontrar, vovô. Vim 83 | MAXWELL DOS SANTOS


aqui pra descansar alguns dias. Quando venho pro interior, me sinto no céu e me esqueço dos problemas da vida e da rotina frenética da cidade grande. Após operar a hérnia, o senhor já se sente melhor? – perguntou Melanie, afagando as mãos do avô. – Sim, Mel. Eu já me sinto melhor, com disposição para o que der e vier. Sua mãe me contou que você passou em Medicina – comentou seu Giuseppe. – Passei sim, vovô. Mas numa faculdade particular, a FCMV. Fiz a pedido do cursinho pra ver como me sairia numa situação real de vestibular. Eu jamais teria condições de pagar o curso. Por isso que tenho estudado pra passar em Medicina na UFES ou conseguir uma bolsa integral pelo ProUni, que é um programa do governo federal de bolsas de estudos a alunos carentes – disse Melanie. – Vamos entrar pra comer, Mel. Daqui já sinto o cheiro da galinha ensopada – observou seu Giuseppe. Melanie, Ciro e seu Giuseppe entraram em casa. Dona Zilda, 70 anos, branca, baixa, um pouco acima do peso e avó de Melanie servia o almoço: galinha caipira ensopada com batata e quiabo, macarrão, arroz, feijão e salada. Para refrescar, um suquinho de cajá. Quando viu a neta, aquela senhora ficou contente e a abraçou. – Vovó, a senhora não tem noção de quanto tempo esperei pra revê-la novamente e comer essa galinha caipira 84 | MELANIE


ensopada com batata e quiabo. A senhora tem mãos divinas – disse Melanie, abraçando dona Zilda. – Obrigada, Melanie. Quando a gente faz as coisas pondo o coração, tudo fica melhor – respondeu dona Zilda. – Ai, vovó, galinha caipira é tudo de bom. É muito mais gostosa, porque é criada solta no terreiro na base do milho, bem ao contrário da galinha de granja, criada confinada e recebe horrores de hormônios pra ganhar peso e ir pro abate em menos tempo. É a lógica capitalista do resultado a todo custo – comentou Melanie. – É vero, minha filha – respondeu dona Zilda. Dona Zilda serviu os pratos à Melanie, seu Giuseppe e a si mesma. O almoço em família seguiu harmonioso. Durante toda a tarde, Melanie cavalgou no Montesquieu, o cavalo do sítio, subiu na mangueira, chupou várias mangas e ficou pensando na vida. De repente, ela começou a se lembrar de Juninho, de Bárbara e dos bons momentos que eles passaram naquele sítio, como encontros familiares e as viradas de ano feitas naquele lugar. Uma nuvem de lágrimas inundou o rosto daquela jovem. Ela pôs para fora todo o seu pranto. Era apegadíssima ao irmão e à prima. No fim da tarde, o celular de Melanie tocou. Ela atendeu: 85 | MAXWELL DOS SANTOS


– Ei, Bebel. Como é que você vai, minha flor? – Vou muito bem. Fui aprovada no CEFET-ES, no tecnólogo de Saneamento Ambiental. – Parabéns, querida! Quando é que começam as aulas? – Daqui a alguns dias. Eu soube que você passou em sétimo lugar em Medicina na FCMV. É uma pena que não vai poder fazer o curso, né? – Não mesmo. Só se eu tivesse um pai rico pra bancar. Mas eu posso tentar a FCMV pelo ProUni como uma alternativa se eu não passar nas universidades que escolhi pra tentar Medicina. – Quais universidades? – A UFES e a UFF. – Não dá pra ficar presa numa só opção. – Mel, você tá aonde? – Tô aqui no sítio de vovô, em João Neiva. É um milagre que meu celular esteja pegando na zona rural e você tenha conseguido falar comigo. Cheguei aqui e vou ficar uns dias. – Às vezes homem é atraso na vida da gente. – Depende do homem, Bebel. Isso é muito relativo. A gente tem que saber escolher bem pra não dar de cara com pessoas que só querem uma aventura e brincar com nossos sentimentos. Por hora, não tô caçando namorado, mas a minha vaga de Medicina. 86 | MELANIE


– É verdade, mas a gente não pode controlar o coração. – Ai, Bebel, como a gente vai controlar o coração? Na época da escola, lembra quando a gente comprava as revistas de celebridades e essas revistas de adolescentes só pra pegar os pôsteres dos artistas do momento? – Nossa, eu pregava as fotos do Henri Castelli na porta do guarda-roupa e as do Sérgio Marone na parede do meu quarto. Enquanto isso, minhas colegas de escola colecionavam pôsteres desses pagodeiros, como Waguinho, Vavá, Belo, Salgadinho, Alexandre Pires, Rodriguinho, Chrigor e principalmente Netinho, que as meninas sonhavam ter um dia de princesa. A gente tá ficando velha, né? – É mesmo. E eu, Bebel, que suspirava por Bruno Gagliasso. Meu Deus, que homem lindo! Aqueles olhos claros me faziam delirar. Pena que um monumento daquele só pode ficar no plano da nossa imaginação, porque o bofe já é comprometido. – Aí, Mel, tá sabendo que Bebeto e Melina tiveram uma briga feia, e por causa disso, ela sofreu um aborto? – Meu Deus, eu temia que isso pudesse acontecer. Como que foi isso, Bebel? – Foi por causa dos ciúmes da Melina, por achar que Bebeto tava lhe corneando. Quando Bebeto chegou em casa, a briga começou, Melina fez um monte de acusa87 | MAXWELL DOS SANTOS


ções. Bebeto se defendeu. O bicho pegou quando Melina pegou um vaso e quis atirar contra Bebeto, que se esquivou. Então Melina pegou um punhal e foi detida por Bebeto. Então ela viu que seu vestido tava manchado de sangue. Ele saiu de casa e deixou Melina sozinha. Depois disso, Melina botou Bebeto pra fora de casa, jogando as coisas dele no meio da rua. – Sinto muito pela Melina. Ela deve tá muito arrasada. Perder um filho nessa situação não é brincadeira! – Pois é, Mel. Sonhar não custa nada, nem tira pedaço. Fico pensando em você, vestida de jaleco atendendo as pessoas. Você já escolheu a sua especialização? – Fico na dúvida entre pediatria e oncologia, que é o estudo do câncer. – Oncologia, por causa do seu pai, Mel? – Sim, se eu fosse médica, faria o possível para salvá-lo. Todavia, o destino das pessoas pertence a Deus e nesses, a Medicina não pode intervir na Sua vontade. – Mel, agora tenho que desligar. Um beijo. – Outro, meu amor. Melanie aproveitou intensamente os dias no sítio até o domingo à tarde, quando saiu de casos lá, rumo à rodoviária de João Neiva. Ela estava voltando à Vitória. As aulas no Lamarck voltariam no dia seguinte.

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CAPÍTULO 10 | A VOLTA ÀS AULAS AS AULAS VOLTARAM NO LAMARCK, após um período de recesso. Na turma integral de Medicina, Maria Celia falou de um livro que constava no programa de obras literárias do vestibular da UFES para 2008: – Muito bom dia, moçada. A aula de hoje é sobre o livro Os mortos estão no living, de Miguel Marvilla12. É uma coletânea de contos lançada em 1987, dividida em duas partes: os mortos, com 24 contos e os outros, com 6 contos. A tônica do livro é a morte, mais do que isso, fala da finitude das coisas. A morte, na concepção marvilliana, pode ser uma redenção ou uma punição. Em certas estórias, o autor flerta com o realismo fantástico, tornando banal o que é considerado absurdo. Melanie tentava se concentrar na aula, mas o sono era mais forte do que ela, que dormiu docemente.

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Miguel Marvilla (1959-2009) foi um poeta, contista e editor capixaba. Um dos fundadores da editora Florecultura, que publicou várias de suas obras. Vale lembrar que quando este autor fez vestibular para História na UFES em 2007, ganhou do saudoso autor um exemplar da obra em questão. 89 | MAXWELL DOS SANTOS


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No intervalo das aulas no TU, Rodrigo ligou para Melanie: – Oi, Melanie. É o Rodrigo falando. – Ei, Rodrigo. Como vai, meu bem? – Nunca estive tão contente como hoje. A UFES vai ter cotas de 40% para alunos de escola pública? – Já não era sem tempo. Lembra quando no ano passado, a gente protestou lá na UFES a favor das cotas de 26% pra negros, 25% pra escola pública e 1% pros indígenas. A proposta foi rejeitada duas vezes no CEPE. Deu até treta brava entre os pró e anticotas. Apesar de estudar num cursinho que é campeão em aprovação em Medicina, eu não me esqueço de onde vim e de onde estudei. Todos os dias, agradeço a Deus pela oportunidade neste cursinho, que vai me ajudar a realizar o sonho de ser médica. – Eu também agradeço a Deus por estudar no TU. Mas não dá pra aturar todo ano os cursinhos disputando pra ver quem aprova mais na UFES, quem aprova mais em Medicina na UFES, quem vai tirar o primeiro lugar geral na UFES ou quem vai tirar o primeiro lugar em Medicina na UFES. O que seria dos donos de cursinhos se o vestibular acabasse ou se a nossa única federal usasse as notas do ENEM? As cotas são um freio nessa ganância dos tubarões do ensino. 90 | MELANIE


– Lógico que os donos de cursinhos tão furiosos, porque vão aprovar menos alunos e aprovando menos alunos, terão menos material publicitário pra divulgação. – E pensar que tem uma cláusula contratual, na qual obriga a gente a ceder voz e imagem ao cursinho, se tirarmos o primeiro lugar geral. – Faço ideia como a galera do PUPT e dos outros cursinhos populares tão felizes com esta vitória. A gente tem que seguir lutando por uma educação de qualidade, mesmo a gente sabendo que isso pode levar anos, quiçá décadas. – Creio que as cotas pra alunos de escola pública são uma forma de valorizar o ensino público. E com a valorização da escola pública, por consequência, a qualidade do ensino melhorará.

*** Flamarion estava impaciente, fumando charuto e andando de um lado para outro da varanda de sua mansão, na Ilha do Frade e falou alto: – Maldita hora que vieram essas cotas. Porque o governo não melhora o ensino público, assim os alunos da rede pública poderiam disputar com os alunos da rede particu91 | MAXWELL DOS SANTOS


lar de igual pra igual? Isso é mais uma medida populista e assistencialista desse governo esquerdista. Educação superior não é um direito, mas um privilégio daqueles que se esforçaram. Ele abriu a garrafa de Ballantine's, encheu o copo, pôs dois cubos de gelo, tomou e murmurou: – A UFES tem que ser um centro de excelência, onde somente os melhores alunos devem estudar nela, pelos seus méritos acadêmicos e não se transformar em um escolão de terceiro grau, onde alunos de escola pública, muitas vezes sem base para acompanhar os ensinamentos, vão acabar sucateando a universidade, nivelando por baixo o ensino. Não é função da universidade promover justiça social. Flamarion tornou a encher o copo de uísque e gritou: – As cotas são uma migalha do governo aos pobres! Sem contar que essa decisão dos infernos vai fazer o Lamarck perder muito dinheiro, pois com as cotas, teremos menos aprovações, principalmente em Medicina, nossa menina dos olhos e o pessoal da classe média e média-baixa vai tirar seus filhos do Lamarck e de outros colégios pra botar na escola pública. É o fim da picada! Melina, a ex-namorada do Bebeto, morena clara, 1,67 m, 20 anos, cabelos pretos, olhos castanhos e coxas grossas, estava no salão para pintar o cabelo de acaju e fazer 92 | MELANIE


hidratação. O salão, chamado Neide's Coiffeur, localizado na Avenida Rio Branco, em Santa Lúcia, estava cheio de peruas e patricinhas cortando o cabelo, fazendo escova, fazendo luzes e hidratando o cabelo. Neide, 40 anos, branca, baixa, magra e cabelos pretos e longos, mostrou o catálogo à Melina para que ela escolhesse a tonalidade de acaju que ela pintaria. A cabeleireira falou com Melina: – E aí, Melina, que tonalidade você vai pintar? – É essa aqui. Quero ficar poderosa pro casamento da minha prima – respondeu Melina, apontando a cor acaju. – A classe média só se ferra. A UFES pôs 40% de cotas pra alunos de escola pública, a três meses do vestibular e com renda familiar de R$ 2.660,00. 40% a três meses das provas? É uma sacanagem com os pais de alunos das escolas particulares, que como eu, se matam pra pagar as mensalidades pra garantir um bom ensino, já que a escola pública tá sucateada. Eu tenho uma filha, a Dandara, que vai tentar Direito e ela tá desesperada por causa dessa presepada da UFES – disse Neide, indignada. – Com todo o respeito, Neide, acho que a UFES tá certíssima em implantar as cotas, porque lá só entra filhinho de papai, principalmente nos cursos de Medicina, Direito e Engenharia. O ensino público tá sucateado e os alunos que lá estudam ficam em desvantagem com os alunos de 93 | MAXWELL DOS SANTOS


escola pública. Digo com autoridade, porque fui aluna do Aflordízio Carvalho da Silva, colégio com uma infraestrutura precária, alta rotatividade de professores e cinco greves no ano de 2002. Me formei em 2005.Esse ano, tô fazendo vestibular pra Direito na UFES e até entrei no cursinho TU, na turma do semiextensivo à noite. – Quem faz a escola é o aluno. Ele que se esforce, estude de dia, de noite e até de madrugada pra passar na UFES. O governo quer, através das cotas, estimular o comodismo e a vagabundagem dos alunos de escola pública, que não querem nada com o estudo e ficam matando aula pra namorar ou fumar maconha. Agora sabendo que tem cotas, não vão mover uma palha pra se esforçar. E o mérito, onde fica? – Alto lá, Neide. Você acha que nas escolas particulares só tenham alunos esforçados? Sei de casos de alunos do Lamarck, do TU, do Gabaritando, do Michelangelo e do CVB que usam drogas pesadas e não querem nada com os estudos, assim como conheço alunos de escolas públicas que são dedicados aos estudos. É muito relativo. Pensa naqueles alunos de escolas públicas que têm que trabalhar pra sustentar a casa, naqueles alunos que têm encargos de família. Que tempo eles vão ter pra estudar? Hã? Você tá redondamente enganada. As cotas vão incentivar a galera da escola pública a estudar mais, vai elevar a autoesti94 | MELANIE


ma deles. Sabe de uma coisa, vamos deixar esse assunto de cotas pra outro dia e se concentre no meu cabelo. Hoje quero ficar poderosa e quem sabe, pegar algum gatinho. Neide pôs o rabo entre as pernas e continuou pintando o cabelo de Melina. Naquele momento, chegou Dandara, a filha da dona do salão, 17 anos, branca, estatura mediana, cabelos pretos e cheia de curvas. – Mãe, eu vou pro shopping passear com umas amigas – disse Dandara. – Tá bom, filha. Mas vê se não chega muito tarde – respondeu Neide. – Sim, mãe – disse Dandara. No dia seguinte, haveria um confronto entre os alunos da rede pública contra os alunos da rede privada na UFES. Seria quentíssimo.

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CAPÍTULO 11 | QUARENTA VERSUS 60 NO ESTACIONAMENTO DA UFES, HAVIA uma grande concentração de alunos de escolas privadas protestando contra a implantação de 40% de cotas para alunos de escola pública. Muitos estavam com narizes de palhaço, e vários alunos carregavam cartazes: “60% DAS VAGAS PARA OS PALHAÇOS”, com o desenho de um palhaço indignado, com um capelo escrito em cima: UFES; “TODOS SÃO IGUAIS PERANTE A LEI”; “Não somos contra as cotas, mas contra a reserva de 40% a três meses do vestibular” Um carro de som tentou entrar no campus, mas foi barrado pelos seguranças da Universidade e o mesmo ficou pelo lado de fora. Jean, 20 anos, branco, estatura mediana, cabelos lisos, era o representante dos alunos de escola privada, aluno do TU e candidato a uma vaga em Medicina. Ele estava no carro de som, lendo o manifesto das escolas privadas: – Nós, estudantes aspirantes do ensino superior público e de qualidade, estamos cientes da dificuldade encontrada pelos alunos da escola pública para alcançar esse objetivo. Sabemos, contudo, que boa parte dessa dificuldade é fruto da inoperância e da ineficácia do Estado em gerir uma escola pública de qualidade. Nesse contexto, surgiu a 96 | MELANIE


política de cotas, que embora não seja a solução, pode amenizar um pouco essa problemática. Entretanto, reservar 40% das vagas para alunos da escola pública, além de permiti-los concorrer os outros 60% iniciais, é um equívoco… Os alunos de escola pública vaiaram durante o manifesto dos alunos da rede privada. Eles saíram do Teatro Universitário, que fica em frente ao estacionamento. Jean tentou retomar a leitura do manifesto: - …ainda mais se analisarmos o fato da decisão ser tomada a apenas três meses do vestibular. Assim sendo, apresentamos como contrapropostas: 1º – Redefinição para 10% na porcentagem das cotas; 2º – Rendimento familiar de até três salários-mínimos para concorrer às cotas; 3º – O candidato deve optar pelas cotas ou pelo sistema geral; 4º – Investimento no ensino fundamental e médio, por parte do governo; 5º – Fazer valer o artigo 208, cláusula V que diz: “acesso aos níveis mais elevados de ensino, (…) segundo a capacidade de cada um”. Contamos com o apoio da sociedade, especialmente dos pais e alunos em prol da nossa manifestação. Mais uma vez, os alunos de escola pública vaiaram o conteúdo do manifesto. Um carro de som chegou com microfone para os alunos da escola pública. Começou o confronto de alunos da rede pública e privada, respectiva97 | MAXWELL DOS SANTOS


mente representados por Melina e Viviane, cada qual em seus carros de som: – Vocês são um bando de filhinhos de papai, que tiveram tudo de mão beijada, estudaram sempre em boas escolas. Pequenos burgueses, de classe média, mimados e cheios de vontades. E porque não, reacionários? Tão desesperados, porque agora só vão ter 60% de chances de entrar na UFES e a gente vai ter 40%, que ainda tá pouco. Na verdade, tinha que ter 100% de cotas pra escola pública! Vocês falam que tem que investir na base pra que todos os alunos possam ter pé de igualdade. Mas esquecem que essas medidas levam muito tempo e vocês acham que a gente pode esperar? Não dá pra esperar mais. Cotas já! – Nem todo mundo que estuda em escola particular é filhinho de papai, querida. Muitos pais passam um arrocho violento pra pagar as mensalidades numa boa escola, chegando a se privar de coisas pra si próprios. Outros, pelos méritos acadêmicos, por serem filhos de professores ou funcionários ou por serem atletas, conseguiram bolsa integral ou de 50%. Eu vou tentar Direito. Meus pais não teriam condições de arcar com as mensalidades. Acho que a UFES não pensou nesses casos, por isso sou contra cotas para escola pública e sim a favor das cotas por renda. – Eu também vou tentar Direito, meu anjo. Acontece que vocês tiveram boas oportunidades educacionais que a 98 | MELANIE


gente não teve. É uma disputa desigual. Muitos tem que trabalhar e estudar e não conseguem ter uma boa preparação pro vestibular. Perguntar não ofende: cadê os donos dos cursinhos que vocês estudam? Por que eles não vieram pra protestar com vocês? Cadê os coordenadores de 3º ano e pré-vestibular? Idiotas úteis, massa de manobra! Desculpa, galerinha da particular. Perdeu, playboyzada! – E daí? Impor cotas a três meses do vestibular é muita sacanagem. A cota é desculpa do governo pra não melhorar a qualidade do ensino público. E outra: independente de ser escola pública ou privada, depende da força de vontade do aluno passar na UFES. – Faça-me o favor! Se força de vontade fosse fator indispensável para aprovação em vestibulares, não existiriam cursinhos pré-vestibulares que se alimentam dos sonhos de jovens que querem entrar nas universidades, tampouco existiriam cotas! Cursinho só existe pra encobrir as deficiências de base dos alunos. Você acha que tô fazendo cursinho pra passar o tempo? Não! É pra atenuar as deficiências de base no ensino público estadual. Afinal, você sabe pra que serve o vestibular? Serve como um funil social não para selecionar os alunos mais aptos, mas sim para favorecer o candidato treinado pela escola privada de elite ou que fez um cursinho caríssimo. Das duas uma: a prova da UFES é pautada no conteúdo das escolas parti99 | MAXWELL DOS SANTOS


culares ou os currículos das escolas particulares são pautados pelo vestibular da UFES, mas seja o que for, o conteúdo é extenso, cansativo e beneficia quem estudou na rede particular. E lá vem outra lapada: por que boa parte dos alunos de escola particular não passa de primeira no vestibular? Porque no terceiro ano não têm maturidade pra escolher uma carreira e fazer o vestibular. E os donos de cursinhos agradecem, porque pra eles vestibular é igual carnaval: tem todo ano. Os estudantes da rede pública fizeram uma pequena assembleia no estacionamento. O movimento da rede particular seguiu para o prédio da reitoria. Às 17 horas, com os ânimos mais calmos, um segurança da UFES anotou nomes das lideranças das duas redes, que escolheram representantes conversar com o vice-reitor. Melina e Jean foram os escolhidos. Enquanto aguardavam o fim da reunião, alunos organizaram um debate, com dois minutos para que cada interessado defendesse seu ponto de vista. Melanie preferiu não participar do protesto. Ficou na biblioteca do Lamarck resolvendo discursivas de Biologia. Na sala do professor Marcelo, o clima era tenso. Ele estava conversando com Tio Faisão: – Com as cotas, as universidades terão que flexibilizar os métodos de ensino e por conseguinte, seus processos avaliativos pra que os cotistas consigam passar nas cadei100 | MELANIE


ras. Grosso modo, vão ter que tornar o caminho suave, pra fazer bonito nas estatísticas, assim como fazem as escolas públicas, que precisam atingir metas de aprovação de cem por cento pra continuar recebendo verbas. Adeus, meritocracia. – De que adianta fazer uma faculdade sem uma base sólida e no final das contas, ser um diplomado incompetente, desempregado, subempregado ou exercendo uma profissão alheia do que foi formado, se é que vai se formar, não reprovar em várias cadeiras e não for jubilado antes? Hã? O que mais vai ter, daqui a alguns anos, é advogado trabalhando como gari, jornalista trabalhando como vendedor de churrasquinho, médico dando aula de Biologia e engenheiro dando aula de Matemática. Não há cotas no mercado de trabalho, que tá cada vez mais seletivo e cruel. Vai ser cada um por si e Deus por todos, ou contra todos, para aqueles que não acreditam nEle. Não há vagas pra todos no mercado. Esse lance de universidade pra todos é eleitoreiro e serve pra afagar uma massa de jovens pobres iludidos com a promessa de que diploma superior lhes garantirá um emprego. – O vestibular, no modelo atual, tem que ser feito para filtrar alunos que serão úteis para o desenvolvimento tecnológico, social e ambiental do nosso país. A UFES vai diminuir o rigor do seu processo seletivo, tão somente para 101 | MAXWELL DOS SANTOS


contribuir com uma suposta inclusão social. Quem diz que o vestibular da UFES é excludente, não sabe o quanto os alunos que estudam lá deram duro pra passar, principalmente os alunos de Medicina, Direito e Engenharia. – As cotas tratam o efeito, não as causas. É preciso que haja um maciço investimento na educação básica, pra que todos tenham o mesmo nível educacional e assim, poder concorrer as vagas na UFES em pé de igualdade dos alunos da rede privada. A meu ver, o MEC deveria somente cuidar da educação básica e privatizar as universidades, que cobrariam mensalidades para aqueles que podem arcar e bolsas de estudos ou financiamentos para os alunos carentes a juros baixos. – Se o jovem não teve um ensino de qualidade, não são as universidades que vão sanar isto. É certo que o aluno oriundo do sistema de cotas terá as portas fechadas no mercado de trabalho. – Apos a implantação das cotas, não se espante se aumentar os casos de erros médicos, prédios caindo e pessoas sem dentes. É o fim da picada! À noite, Melanie chorava no banheiro feminino, bastante magoada. Entrou Flávia, 19 anos, negra, pequenininha, magrinha, cabelo cacheado. Ela era bolsista da turma de humanas e tentaria Direito na Ufes e Relações Internacionais na UFF e encontrou Melanie naquele estado. 102 | MELANIE


– O que aconteceu, Mel? Por que você tá aqui chorando? – perguntou Flávia. – Não é nada, não – respondeu Melanie – que não conseguia disfarçar as lágrimas. – Fala a verdade, amiga. Pode desabafar comigo – disse Flávia. – Promete não comentar a ninguém, nem mesmo pro Marcelo? – perguntou Melanie. – Prometo – respondeu Melanie. – Passei pelo corredor e ouvi as meninas falando que jamais se consultariam com um médico que entrou na faculdade de Medicina por causa das cotas, que nós, cotistas vamos nivelar por baixo o curso de Medicina, aumentando o número de erros médicos e que cotistas são sinônimo de incompetência – disse Melanie, chorando. – Essas patricinhas fúteis falam muita besteira, só tem dois neurônios. Pra elas, é fácil julgar quando se pode estudar em boas escolas, fazer viagens à Disney, ter curso de inglês, intercâmbio no exterior e mesada toda semana pras micaretas. Pra você ter ideia, só fui numa micareta, porque minha irmã trabalha na rádio que dá apoio ao evento. Desconhecem o fato de você ser de família humilde, moradora de um bairro periférico e de ter estudado toda a vida em escola pública. Você quer ser médica porque ama a profissão. Elas só querem fazer Medicina só 103 | MAXWELL DOS SANTOS


pra fazer o ego dos pais ou pra ter status e poder – respondeu Flávia, indignada. O vestibular estava se aproximando e a ansiedade de Melanie crescia em progressão geométrica.

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CAPÍTULO 12 | O VESTIBULAR TÁ AÍ A ROTINA MASSACRANTE DOS ESTUDOS para o vestibular e as pressões por resultados dentro do Lamarck afetaram o comportamento de Melanie, deixando-a insuportável, a ponto de gritar com a mãe, porque ela havia entrado no quarto sem bater a porta. Mudanças de comportamento ocorreram em virtude do ano de vestibular, ainda mais quando a candidata tentaria o curso mais concorrido da UFES e a pressão é maior quando ela é bolsista. Até a mais graciosa das meninas estava sujeita a ter acessos de fúria em razão do vestibular. Melanie empenhava-se ao máximo com os estudos para o ENEM. Ela tinha consciência da importância deste exame, pois ele valia 25 % da nota do vestibular da UFES ou até mesmo uma bolsa integral para Medicina pelo ProUni ou Nossa Bolsa. Todos os dias, Melanie lia jornais e revistas para estar atualizada, uma vez que o conteúdo do ENEM se pautava em atualidades. Todos os finais de semana que antecederam o ENEM, os alunos tiveram aulões preparatórios. A cada simulado do exame federal, Melanie demonstrava bons resultados, às vezes nas primeiras colocações, o que a deixava muito 105 | MAXWELL DOS SANTOS


mais confiante para o vestibular. Conforme combinado, Melanie entregou os boletos de inscrição da UFES e da UFF para pagamento à secretária do Marcelo.

*** No TU, Rodrigo ouvia as explicações dos professores, principalmente de Física e Matemática. Quando chegou a aula de História com Rosemary, 44 anos, branca, baixa e loira, O rapaz dormiu na aula. Rosemary corrigiu questões objetivas. Melina, que estava à sua frente, percebeu e o cutucando, disse: – Rodrigo, você dormiu bem hoje? – Dormi, por quê? – Você tava deitado na aula de Rosemary. – A aula de História é um pé no saco e com ela, fica pior ainda. Tomar uma garrafa de absinto dá mais prazer que essa porcaria dessa loira falsificada e sua matéria. – Eu não gosto dela, mas sou obrigada a assistir sua aula pra passar na UFES. É normal pra você, que é da área de exatas, não ligar pras matérias de humanas. Infelizmente elas são cobradas no vestibular e podem ser a dife106 | MELANIE


rença entre a classificação ou não pra segunda etapa. – Eu não deixo de estudar as matérias de humanas, só não gosto de estudar História e dessa tal Rosemary. Tomara que nenhum engraçadinho tenha me filmado e posto no YouTube. – Tá bom, então. Só quis te dar um toque pra te ajudar. – Valeu, Melina.

*** Melanie, vestida com a camisa azul-marinho com o logo do Lamarck e a inscrição abaixo: VEST 2008, estava almoçando na mesa e tomando refrigerante. Ela escovou os dentes e passou o fio dental. Abriu a gaveta da cômoda, pegou a ficha de inscrição, o RG, o estojo com caneta, borracha e lapiseira, passou um creme de pentear, penteou o cabelo, passou brilho nos lábios e calçou um tênis. Ela chegou ao seu local de prova, no CT 3 da UFES. Logo, foi abordada pelos professores do CVB, que lhe deram a famosa sacolinha com informativos e guloseimas. Os candidatos começaram a chegar. Melanie veio em seguida. Minutos depois, o fiscal distribuiu a prova. Em seguida, o fiscal pôs alguns avisos no quadro sobre o início e término da prova. Às 14 horas, ele falou: 107 | MAXWELL DOS SANTOS


– Podem começar a prova. Melanie começou a prova pelas questões de humanas, que ela julgava ser as mais fáceis, conseguiu resolver com aparente tranquilidade. Baixinho, ela falou: – Essas questões de História com essas exigências de datas, troço nada a ver. Não é à toa que os professores do Lamarck criticam a banca da UFES. Quando entrou nas questões de exatas e biomédicas, a situação complicou. Melanie começa a suar frio. “A prova objetiva da UFES tá o cão chupando manga. As questões de Biologia tão cheias de pegadinhas” - pensou Melanie. Após a prova, Melanie foi ao estacionamento da UFES, onde barracas de vários cursinhos e escolas particulares estavam montadas, com água mineral e picolé à vontade. Ela foi à barraca do TU e encontrou Rodrigo. – Oi, Rodrigo – disse Melanie, abraçando e beijando o amigo. – Melanie, que bom te ver de novo – respondeu Rodrigo. – A prova tava terrível, com muitas questões cabulosas. Minha cabeça ia explodir – disse Melanie. – Pra mim, as questões de História tavam super cabulosas. Deus me livre! – respondeu Rodrigo. Paulo André falou com Melanie: 108 | MELANIE


– Melanie, eu preciso ver a sua prova. Há duas questões de Biologia que pediremos anulação. E ainda temos que corrigir a prova pro jornal O Moxuara de amanhã. – Pode levar, mas me devolve. – Tá bom, Melanie.

*** No dia seguinte, Marcelo convocou uma reunião com os alunos de 3º ano e pré-vestibular no auditório. Melanie estava sentada na frente junto com Flávia. Ele falou: – Bom dia, gente. – Bom dia. – Tenho duas boas notícias. A primeira, é que provavelmente, os pontos de corte poderão cair, em virtude do nível elevado da prova e a outra boa notícia,é que pediremos a anulação de uma questão e mudança de gabarito. Burburinho entre os alunos.

***

Dias depois, saiu o resultado da 1ª etapa da UFES. Rodrigo foi ovacionado pelos colegas e professores pelo primeiro lugar em Engenharia Ambiental. Melina também 109 | MAXWELL DOS SANTOS


foi classificada em vigésimo quinto lugar em Direito. Ela correu para abraçar Rodrigo. No Lamarck, Melanie ficou contente quando viu seu nome na lista de classificados para a segunda etapa em Medicina. Flávia, que estava junto à bonequinha, faria a segunda etapa da UFES para Direito. As duas se abraçaram. De repente, Marcelo chegou com a boa-nova: – Melanie, você ficou em 85º em Medicina na UFF. E Flávia, parabéns pelo quinto lugar em Relações Internacionais na UFF. – Meu fim de semana não podia ser melhor. Aprovada na primeira etapa na UFES e na UFF – disse Melanie. – O meu também, Melanie - respondeu Flávia.

***

Melanie fez as provas da 2ª etapa(Redação, Química e Biologia) da UFF. Na redação, haviam dois temas e o candidato tinha que escolher um para discorrer. Ela escolheu falar sobre o acesso a bens culturais com o advento da internet e das novas tecnologias de reprodução. Na prova de Química, caíram duas de orgânica, que ela não teve dificuldades pra resolver. A primeira questão de Biologia achou complexa de resolver. As outras quatro conseguiu 110 | MELANIE


resolver sem maiores dificuldades.

***

Dias depois, Melanie fez as provas da 2ª etapa da UFES. No domingo, ela fez a redação. Três temas: primeiro, quanto à opinião do candidato quanto às cotas. A segunda era uma reportagem e a terceira, era um texto narrativo. A prova de Química, para a baixinha foi um pouco puxada, mas a de Biologia, ela tirou de letra. Cabia à jovem esperar pelo resultado dos vestibulares.

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CAPÍTULO 13 | A HORA DA VERDADE A ANSIEDADE NÃO DEIXOU MELANIE dormir. Ela passou por uma noite terrível. Tentava lutar contra a falta de sono, mas seus esforços eram inúteis. A UFF liberou há poucos dias o resultado final e a jovem ficou em 256º lugar, ou seja, na lista de suplentes, já que Medicina na UFF tem 160 vagas. O medo de não conseguir passar nem mesmo pela reserva de vagas da UFES angustiava Melanie. No Enem, Melanie tirou 80 (soma da prova objetiva com redação dividido por dois). Porém o corte para bolsa integral em Medicina pelo ProUni na FCMV era superior a 90. No programa federal de bolsas, ela ficou na lista de espera. Mas a moça havia sido selecionada para a bolsa integral para Enfermagem na FUV pelo Nossa Bolsa. Teve a documentação aprovada e estava matriculada. Darlene viu a aflição da filha deitada no sofá, vendo TV e disse: – É, Melanie. A sua angústia me angustia. Pelo visto você não dormiu direito, né? – Como se pode dormir diante da incerteza da aprovação. Pra passar o tempo, fiquei vendo TV. A barriga chega a dar embrulho na gente. 112 | MELANIE


– Eu imagino. Pra você, foi um ano terrível, de pressões de todos os lados. Chegou uma hora que você tava surtando. Ninguém quer saber que você é apenas uma menina. Só querem o resultado e acabou. Uma tremenda máquina de moer gente chamada vestibular. – Não vejo a hora de liberarem a lista de aprovados. Assim diminui o meu suplício. – Só assim o seu coração aquieta. Como diz Galvão Bueno: é teste pra cardíaco. – Não sei se o meu coração vai aguentar diante de tanta aflição. Acho que ele vai sair pela boca. – Calma, Melanie. Também não é assim. Melanie misturou o Toddy ao leite para tomá-lo com a broa de fubá. Era o seu café da manhã.

***

Na UFES, os servidores da CCV afixaram nas paredes a relação dos aprovados no vestibular 2008/1. Em minutos, candidatos de todos os cursinhos chegaram para ver o resultado. Nas paredes, as listas de aprovados para as vagas oferecidas dos 66 cursos oferecidos pela Universidade para aquele ano de 2008. Choros de alegria e tristeza para uns e outros. Dos 10.326 candidatos classificados para a segunda etapa do vestibular da UFES(de um total de 20.466 inscri113 | MAXWELL DOS SANTOS


tos), foram aprovados 3.015, sendo que 794 passaram pelas cotas. No Lamarck, os alunos de 3º ano e pré-vestibular chegavam muito apreensivos, principalmente, os alunos que tentaram Medicina. Boa parte dos colegas(e concorrentes de turma) de Melanie estavam com semblante de insônia. Melanie foi à parede onde estava a lista dos aprovados em Medicina. Seu coração acelerava a cada segundo, prestes a explodir. Quando viu seu nome na lista de aprovados, em 38º lugar, ela chorou de alegria. Uma nova fase começou na vida de Melanie. Após um ano de privações e sofrimentos, ela seria aluna da 82ª turma de Medicina da UFES. Melanie ligou para a mãe: – Alô, mãe. É a Melanie. – Oi, Mel. – Eu passei em Medicina na UFES. Vou poder realizar meu sonho de ser médica. – Parabéns, Mel. Eu tô tão feliz por você. – Obrigada, mãe. Te amo. – Eu também te amo. Os professores do TU rasparam o cabelo de Rodrigo. Ele foi fotografado por Luan, o analista de comunicação e marketing do cursinho. Rodrigo tirou o primeiro lugar em Engenharia Ambiental e o 3º lugar geral em Exatas. 114 | MELANIE


Essa foto iria para o anúncio dos jornais de amanhã, tornando-se o garoto propaganda do cursinho. Melina estava eufórica pela aprovação em Direito. – Cara, não acredito. Se isso é um sonho, alguém me belisca – disse. Rodrigo ouviu, beliscou Melina e falou: – É verdade sim. Você foi aprovada em Direito. – Agora vou de alma lavada pra curtir o carnaval em Porto Seguro – gritou Melina. – Parabéns pelo primeiro lugar em Engenharia Ambiental, Rodrigo. – Obrigado, Melina. Melina tirou da bolsa a câmera e fez uma foto dela abraçada com Rodrigo. Ela postaria no seu Fotolog 13 no fim da tarde. Na porta do Lamarck, os colegas de Melanie pintaram seu rosto e escreveram com batom em sua testa “MEDUFES”. Flávia a abraçou e disse: – Parabéns pela aprovação, Melanie. Não passei aqui na UFES, mas passei na UFF. Serei uma internacionalista. – Obrigada, Flávia – respondeu Melanie. Em seguida, veio Marcelo, que também abraçou Melanie e disse: 13

Fotolog é como se fosse o pai do Instagram, onde as pessoas só podiam postar uma foto por dia. 115 | MAXWELL DOS SANTOS


– Parabéns, Dra. Melanie Coser Pignaton. Você sabia que entre os dez primeiros lugares de todos os alunos cotistas de Medicina? – Não. Cadê o Flamarion? – perguntou Melanie. -Ainda tá viajando pela Suíça onde ele foi ver sua filha e os net, mas ele já tá sabendo e te mandou os parabéns – respondeu Marcelo. Rodrigo veio do TU para abraçar Melanie, falando: – Deus nos abençoou. Serei engenheiro de produção e você vai ser uma médica. – É verdade, Rodrigo. Ele é fiel e infalível – respondeu Melanie, chorando. – Foi um ano terrível, mas no fim, vencemos – disse Rodrigo. – E como foi, meu bem. Foi o Senhor que me sustentou pra que eu fosse adiante no meu propósito de entrar na UFES depois que perdi meu irmãozinho e minha prima que amava tanto. Onde quer que eles estejam, ficaram felizes com a vitória que Deus me deu – disse Melanie. – Há algum tempo que precisava dizer algo – disse Rodrigo. – Pode falar, querido – respondeu Melanie, com um sorriso. – Você me encanta com sua voz e seu jeito meigo. Eu tô apaixonado por você. Só você faz a minha vida ter senti116 | MELANIE


do. Quero construir a minha vida ao seu lado – disse Rodrigo. – Ai, que fofo – disse Melanie, acariciando as mãos de Rodrigo. Rodrigo se aproximou de Melanie e lhe deu um beijo na boca. Melanie abraçou forte Rodrigo e lhe beijou a boca. Os alunos do Lamarck ovacionaram o novo casal. FIM

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AUTOR E OBRA Nasceu em 1986, em Vitória/ES e mora na referida cidade. É jornalista, designer gráfico e servidor público da Prefeitura de Cariacica desde 2017. É Técnico em Multimídia pelo CEET Vasco Coutinho, licenciando em Letras/Português pelo IFES e em História pela Uninter. É autor dos livros 24 horas de Anna Beatriz, Ilha Noiada, Melanie, Amyltão Escancarado, Comensais do Caos, #cybervendetta e Empoderando-se.

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SEJA PARCEIRO DO AUTOR INDEPENDENTE Se você gostou da obra e quer contribuir financeiramente com o autor para que este continue escrevendo, faça um depósito de qualquer valor na seguinte conta: Caixa Econômica Federal Ag.0823 Op.023 C/C 00008123-3 Maxwell dos Santos CPF 108.848.757-25 Doe também pelo PagSeguro: https://pag.ae/bggyV5v

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Este livro foi composto em Alegreya, Alegreya Sans e

Alegreya Sans SC por Maxwell dos Santos em dezembro de 2018. 122 | MELANIE


MELANIE UMA HISTÓRIA DE AMOR, LÁGRIMAS E SUPERAÇÃO

O ano é 2007. Melanie, 18 anos, jovem moradora do Bairro da Penha, tem o sonho de ser médica. Ela faz a prova de seleção para o Projeto Universidade para Todos(PUPT), à época, gerido pela Fundação Ceciliano Abel de Almeida. Sua vida é radicalmente transformada quando é atropelada com seu irmão Juninho, sua prima Bárbara e o frentista Carlinhos num posto de gasolina por dois rapazes que estavam participando de um racha. A prima e o irmão morrem, assim como o frentista. Mesmo com esses problemas, ela dá a volta por cima e ainda ganha uma bolsa de estudos no cursinho mais caro da cidade: o Lamarck. Naquele ano, a UFES institui cotas de 40% para alunos de escolas públicas. No texto, o autor mostra a repercussão da medida entre os alunos de escolas públicas, os alunos da rede privada e o dono do Lamarck, Flamarion, que representa uma peça do ecossistema chamado indústria do vestibular e vê nas cotas uma ameaça à hegemonia do seu cursinho, principalmente nas áreas de Medicina, Direito e Engenharias. Há confronto ideológico entre os alunos das duas redes na UFES e Melanie é vítima de discriminação pelas colegas de cursinho. Será que a jovem vai conseguir transpor todos os obstáculos e alcançar sua meta?


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