UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS CURSO DE FILOSOFIA
Douglas Biondo
O MUNDO DA ARTE EM ARTHUR DANTO
Passo Fundo 2016
Douglas Biondo
O MUNDO DA ARTE EM ARTHUR DANTO
Monografia apresentada ao curso de Filosofia (LP), do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade de Passo Fundo, como requisito parcial para obtenção do grau de Licenciatura em Filosofia, sob a orientação do Prof. Dr. Gerson Luís Trombetta.
Passo Fundo 2016
Douglas Biondo
O mundo da arte em Arthur Danto
Monografia apresentada ao curso de Filosofia (LP), do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade de Passo Fundo, como requisito parcial para obtenção do grau de Licenciatura em Filosofia, sob a orientação do Prof. Dr. Gerson Luís Trombetta.
Aprovada em 14 de dezembro de 2016.
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________ Prof. Dr. Gerson Luís Trombetta - UPF
_____________________________________________ Prof. Dr. Luis Francisco Fianco Dias - UPF
_____________________________________________ Prof. Dr. Andrei Luis Lodéa - UPF
Dedico este estudo a minha mãe Lourdes Biondo e à memória de meu pai Darci João Biondo, pelas renúncias pessoais, pelo esforço e incentivo para que esta etapa se concretizasse, aos meus irmãos Luís Fernando Biondo e a Micheli Biondo pelo exemplo e incentivo e a Marcos de Abreu pelos momentos de reflexão compartilhados.
Agradeço aos familiares, amigos, colegas de graduação e de trabalho, aos funcionários desta instituição, aos professores que contribuíram com minha formação, a Prof.ª Valeri Caleffi Paiva por doar seu tempo na correção deste texto, e de modo especial ao Prof. Dr. Gerson Luís Trombetta pela confiança, dedicação e orientação no desenvolvimento desta pesquisa.
[...] tudo o que há no final é teoria, tendo a arte finalmente se vaporizado num deslumbre de puro pensamento sobre si mesma, permanecendo, de certo modo, apenas como objeto de sua própria consciência teórica. (DANTO, 2014, p.148)
RESUMO O objetivo deste estudo é abordar o conceito de “mundo da arte” em Arthur C. Danto. Através de pesquisa bibliográfica as principais obras do autor, buscaremos identificar os argumentos que contribuem para a distinção entre objetos do mundo da arte e objetos do meio comum. A concepção defendida por Danto é de que: é uma filosofia da arte que melhor define o que é arte na atualidade. Indignado e perplexo ao observar que objetos retirados do meio comum estavam sendo exibidos em galerias de arte, Danto percebe que a qualidade reivindicada por essas obras não está mais presente em seu significado. As reflexões sugerem uma ruptura entre a relação obra, objeto e significado, motivando o autor a elaborar um sistema filosófico sobre o “mundo da arte”. Esta teoria entra em choque com os movimentos artísticos contemporâneos indo tão profundamente em suas investigações a ponto de Danto proclamar o “fim da arte”. Luz a esta teoria, Danto sugere que a Interpretação é o elemento ontológico que trará nova vida a arte atual. As especulações de Danto convergem na tentativa de identificar o “é” da obra de arte e poder responder à questão - o que é arte? – através de uma definição conceitual. Uma definição essencialista defendida pelo autor em consonância com a pluralidade dos movimentos artísticos do século XX. O que se busca é uma natureza da arte, escapando ao descredenciamento filosófico operado por Platão. Como fim deste processo histórico teremos a autoconsciência da arte, liberta de concepções errôneas, a qual se transfigura numa filosofia da arte. Se a arte supostamente transformou os seres humanos, a história da arte não pode ser a história da ilusão nem da imitação, mas é a história da arte como realidade, do contrário, não houve nenhuma evolução humana. Obras são e devem permanecer distintas de coisas reais, fazendo uso daquilo que sempre foi seu componente, a representação. Palavras-Chave: Arte. Filosofia. Mundo da arte. Fim da arte.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Fig. 1 - Girl with Hair Ribbon. Roy Lichtenstein (1965). ..................................................... 14 Fig. 2 - Brillo Box. Andy Warhol (1964). ............................................................................ 15 Fig. 3 - A Fonte. Marcel Duchamp (1917). ........................................................................... 16 Fig. 5 - Quadrado negro sobre fundo branco. Kazimir Malevich (1913 – 1915)................... 27 Fig. 6 - Still de Um corpo que cai. Alfred Hitchcock 1958. Modificado por David Reed, que inseriu umas de suas pinturas a #328 de 1990. ...................................................................... 29 Fig. 7 - Dinâmico Suprematismo, ou Supremus 57. Kazimir Malevich (1915–1916). ........... 41 Fig. 8 - Gin Lane. William Hogarth (1751). ......................................................................... 43 Fig. 9 - Autorretrato. Vik Muniz. ......................................................................................... 44 Fig. 10 - Performance Dead Man. Chris Burden (1972)........................................................ 49 Fig. 11 - Artista britânica Alice Newstead, pendurada por ganchos em protesto contra o abate ilegal de tubarões em Hong Kong. (Foto: Mike Clarke / AFP) (2016). ................................. 49
SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 9 1 O MUNDO DA ARTE .................................................................................................... 13 1.1 Aspectos gerais do mundo da arte ............................................................................... 13 1.2 A arte: imitação ou realidade? .................................................................................... 16 1.3 O “é” da obra de arte. ................................................................................................. 20 2 O FIM DA ARTE ............................................................................................................ 28 2.1 O limite entre a arte e a historicidade: quando a arte se torna filosofia?....................... 29 2.2 O pensamento como palco vertiginoso para a transfiguração da arte ........................... 33 3 A ARTE PÓS-HISTORICIDADE: PERSPECTIVAS DE SOBREVIVÊNCIA .......... 38 3.1 A interpretação como transfiguração do lugar comum ................................................ 38 3.2 É possível uma leitura da obra de arte? ....................................................................... 43 3.3 Após o fim da arte: O que “é” arte? ............................................................................ 47 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 52 REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 57 Básicas ............................................................................................................................. 57 Complementares .............................................................................................................. 57
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INTRODUÇÃO
Arthur Danto, falecido em outubro de 2013, é considerado um dos mais influentes estetas contemporâneos. Sua crítica e reflexiva abordagem a assuntos que serviram de base teórica para as instituições da Arte, compõem uma teoria filosófica de interesse à Sociologia da Arte e à Estética Atual da Arte Contemporânea. A questão central de sua obra, “[...] como um objeto adquire o direito de participar [...] do mundo da arte?” (DANTO, 2006a, p. 16), surge a partir da indignação e da perplexidade do autor ao observar que as tiras de histórias em quadrinhos, de Lichtenstein (ver figura 1), estavam sendo expostas numa galeria de arte como a de Leo Castelli1. Esta indignação é compartilhada pela maioria dos visitantes a uma exposição de arte contemporânea, ao não conseguirem identificar as diferenças entre os objetos que pertencem ao meio comum daqueles que são objetos do mundo da arte. No entanto, nossa capacidade de identificar os objetos pertencentes ao mundo da arte sugere que há elementos que a caracterizam como tal. A capacidade de nos proporcionar a “experiência estética” é um desses elementos. Mas será que toda experiência estética é suficiente para tornar um objeto numa obra de arte? E como identificar estes elementos estéticos quando os olhos já não percebem as diferenças entre os objetos? Por que não temos a mesma experiência estética quando nos deparamos com os mesmos objetos em um lugar comum? E, se devolvidos estes objetos aos lugares comuns, tendemos a realizar também esta experiência estética? Como sabemos diferenciar um objeto do outro? O que caracteriza um lugar comum de um lugar para a experiência estética? Estas especulações apontam para uma relação entre obra, objeto e significado e formam a base para a questão central deste estudo - o que é arte? Responder a esta questão, talvez seja uma das mais complexas e difíceis tarefas herdadas pela filosofia da arte. Conforme Fianco (2012, p. 377), estando a arte vinculada a uma das formas de expressão humanas mais sublimes, à cultura e à civilização, talvez, não apenas decretar o “fim da arte” nos traga consequências, mas, responder ao que é arte modificará o mundo como o conhecemos. Assim, uma investigação sobre “o mundo da arte”, deverá
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A Galeria Leo Castelli (1907-1999) é uma das mais importantes do século XX. Criada na década de 50 em Nova York, destacou-se como um espaço para a comercialização e divulgação da arte pop. Apresentou obras de artistas consagrados como; Jasper Johns, Andy Warhol, Donald Judd, Christo, David Salle, Marcel Duchamp, dentre outros que talvez não teriam feito parte do cenário internacional se não tivessem passado por ela, Conforme afirma Antonio Gonçalves Filho em: O Estado de S.Paulo, de 18 Julho 2010 | 00h00. Disponível em: <http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,um-olhar-a-servico-da-arte-e-dos-dolares-imp-,582669>. Acesso em: 11 nov. 2016.
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responder à questão - o que é arte – compreendendo o universo onde estão inseridos estes objetos. Saber o que é arte está relacionado à nossa vontade de descobrir a essência das coisas. Conforme Dickie (apud KIVY, 2008, p. 64), esta questão sempre esteve presente na história da arte e teve seu desenvolvimento na perspectiva e no contexto da visão platônica que, ao se empenhar em descobrir as intenções de nossas palavras, compôs no livro X de A República, uma teorização entre o diálogo de Sócrates e Gláucon de forma a depreciar a arte: “a Pintura [sic] e, em geral, tôda [sic] arte imitativa, realiza o trabalho que lhe é próprio a grande distância da verdade e é companheira e amiga daquela parte de nós mesmos que se aparta da razão, e isso sem nenhuma finalidade sã ou verdadeira.” (PLATÃO, 1964, p. 298) “[...] a arte imitativa só poderá ter frutos bastardos e vis.” (PLATÃO, 1964, p. 290). Mas foram as tendências artísticas surgidas no século XX, conhecidas como pósimpressionistas, caracterizadas pela independência histórica e pela diversidade interpretativa e reflexiva, que dificultaram ainda mais qualquer tipo de distinção sobre o que é arte. Imagine-se diante das caixas de sabão em pó Brillo Box (ver figura 2) de Andy Warhol, expostas em prateleiras como as de um supermercado, e aí está a dificuldade de distinção. O que pertence ao mundo comum e o que pertence ao mundo da arte? Qual a diferença entre as caixas Brillo box de Andy Warhol e as caixas de sabão em pó comuns, que estas não possam ser concebidas no mundo da arte? Estaria a diferença na matéria prima que as compõem? No tamanho em escala que se apresentam os objetos? Ou seria o valor de mercado que as distingue? Será o fato de as caixas de Warhol serem feitas à mão, enquanto suas congêneres são feitas de cartonado? Mas então poderiam as fábricas de sabão em pó Brillo começar a fabricar suas caixas em compensado, atribuindo maior durabilidade, e a partir daí venderiam arte? E se Warhol produzir suas caixas em papelão, deixariam elas de ser arte? Estaria atribuído o conceito de arte a um objeto se seu autor ou o mercado assim o conceber? Que atributo ou qualidade há em certos objetos que suas cópias idênticas não são aceitas como arte? Nesta perspectiva, A Fonte (ver figura 3) de Marcel Duchamp é um marco ontológico. O objeto teria subido “um degrau na escala do Ser” (RAMME, 2014, p. 10), exigindo o direito de pertencer ao mundo da arte e devolvendo à filosofia a questão – o que é arte? A Fonte de Duchamp, advinda do comum, nos obriga a pensar os limites da arte. Limites estes que pensados em Arthur Danto, requerem perceber as mudanças conceituais demonstradas através de alguns critérios filosóficos que apontam para as relações e diferenças dentro do “mundo da arte”. O movimento contemporâneo vem nos proporcionando os mais diferentes estilos de arte. A música, a dança/coreografia, a moda, a pintura, a escultura, o teatro, a literatura, o cinema, a
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fotografia, as histórias em quadrinhos, os jogos virtuais, vídeoarte, a arte digital, a arte performance, happenings, instalações etc. são apenas alguns exemplos. Mas é a forma como estas obras se apresentam que muitas vezes nos confundem e dificultam nossa compreensão sobre o que pode ou não ser arte. Conforme Ramme (2014, p. 5), não obstante essa diversidade de nos fazer pensar o que é arte sob diferentes tempos e lugares, surge outra questão na história da arte ocidental que reforça esta crise, a diferenciação entre modo de fazer e de entender a arte. Questão que, para a autora, apareceu no momento em que um modo artesanal de fazer arte foi substituído pela ideia de que a arte é, acima de tudo, um conceito. Este mesmo esforço é compartilhado por Danto em sua teoria que “repousa na crença de que o limite entre o que é e o que não é arte pode, e deve ser traçado através de uma definição” (RAMME, 2014, p. 8). A atualidade tem demonstrado a mesma intenção, definir aquilo que é arte e também aquilo que não é arte e é qualquer outra coisa como: artesanato, decoração etc. Mas, o discernimento ontológico não se resume apenas em responder à questão – o que é arte? A especulação central da obra de Danto, de que a arte é fruto de uma relação entre obra, objeto e significado, evidencia a necessidade de mantermos o pensamento apto a acolher uma definição conceitual a partir de diversas especulações. Ao decretar o “fim da arte”, o autor levanta uma série de questões ligadas à condição vital em que as artes se encontram e, se por “fim da arte” entendemos como a não continuidade histórica, cabe-nos compreender em qual cenário se encontram as artes atuais, apoderar-nos dos meios para interpretar estes objetos e discernir as novas possibilidades. Este será o cenário que fundamentará os três capítulos que compõem este estudo. No primeiro capítulo, será abordada a concepção de arte e de mundo da arte propostos pelo autor. Também serão apresentados alguns elementos fundamentais do universo da arte, tais como; o ambiente histórico em que se encontram as artes, a relação entre a estética e a ontologia da arte e o vínculo da arte com as teorias institucionais da arte e a história. No segundo capítulo, dialogando com a principal teoria de Danto “o fim da arte”, iremos perceber que, mesmo não sendo uma teoria nova, o fim da arte está relacionado a um posicionamento vital em que se encontram as artes de vanguarda, representando um rompimento da arte contemporânea com a história a qual sugere duas novas concepções: uma ao termo “arte” e outra, a como compreendemos o mundo da arte. E por fim, no terceiro capítulo; a arte pós seu fim: perspectivas de sobrevivência, veremos que a interpretação das obras de arte, tendo ela se tornado uma filosofia da arte, se torna a garantia conceitualmente de que a arte continue surgindo num momento pós-histórico.
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A construção do texto se dará a partir de pesquisa bibliográfica pelo método analíticoreconstrutivo, fichamentos, descrições e sínteses dos temas expostos nas obras: The Artworld (O mundo da arte), A transfiguração do lugar-comum, O descredenciamento filosófico da arte e Após o fim da arte. Estes ensaios, reunidos em livros, recolocam em discussão temas centrais da Estética, da Sociologia e da Filosofia da arte. Sem esgotar as possibilidades de estudo sobre a problemática, pretende-se apenas reconstruir, com uma linguagem clara e objetiva, os argumentos do autor. Os três momentos previstos neste estudo deverão garantir uma base teórica sobre a filosofia da arte de Arthur Danto, tornando possível uma compreensão deste momento tão plural em que se encontra o movimento artístico contemporâneo.
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1 O MUNDO DA ARTE A intenção deste capítulo é apresentar a concepção de arte e de “mundo da arte” na proposta de Danto. A obra que nos fundamenta é o celebre artigo “The Artworld” (O mundo da arte), escrito em 1964 que, além de tocar de forma crítica e reflexiva em assuntos que serviram de base para as Teorias Institucionais da Arte, expõe os problemas que contribuíram para a elaboração de um novo sistema filosófico da arte. O autor tem como objetivo responder à questão: “como um objeto adquire o direito de participar [...], do mundo da arte?” (DANTO, 2006a, p. 16), mesmo quando ele goza de toda sorte, direito e privilégios do mundo dos objetos comuns. No primeiro momento, é feito um breve relato sobre as circunstâncias reflexivas que se encontrou Danto mediante as artes da década de 60 e que o impulsionaram a desenvolver uma filosofia da arte. Em seguida, é feita uma desconstrução do conceito platônico de arte como imitação “mímesis”, ou de arte como um espelho, através de um discurso sobre duas teorias da arte, a TI (Teoria Imitativa) e a TR (Teoria Realidade) que também servem de problematização sobre o vínculo da arte com as teorias institucionais da arte. E, no terceiro momento, serão apontados os elementos estéticos ou ontológicos que, segundo o autor, estão presentes na composição dos objetos de arte e ajudam a distingui-los das coisas comuns.
1.1 Aspectos gerais do mundo da arte
Danto (2005, p. 15) sugere que as condições do mundo da arte na década de 60 não teriam lhe permitido tamanho sucesso com o célebre artigo “The Artworld” (O mundo da arte), caso não tivesse rompido radicalmente com os ideais da pintura pós-guerra e romancista da década de 50. Afastado da “sobriedade” do classicismo, do movimento pop e do minimalista, o autor sente-se comovido pela indignação e perplexidade quando se depara com uma obra de Lichtenstein (ver figura 1) que traz, para uma galeria de arte como a de Leo Castelli, uma obra de Steven Canon: Girl with Hair Ribbon2. O espanto não seria menor de nossa parte ao nos depararmos com tal objeto que apenas assemelha-se a uma tira de história em quadrinhos.
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Girl with Hair Ribbon ou Menina com a fita do cabelo, criada por Lichtenstein em 1965, pertence ao movimento Pop Art. Diferentemente ao que parece, ela não é apenas uma cópia das histórias em quadrinhos de Steven Canon. Seu diferencial está nas alterações feitas na obra com relação as histórias em quadrinho de Canon, em termos de escala, cor e intenção conceitual. A dificuldade implicada na criação da obra a torna tão ou mais real que seus congêneres do mundo comum o que dificulta sua reprodução em larga, caracterizando-a como uma obra única.
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Fig. 1 - Girl with Hair Ribbon. Roy Lichtenstein (1965).
Fonte: Disponível em: <http://www.roylichtenstein. com/girl-with-hair-ribbon.jsp#prettyPhoto[image1]/0/>. Acesso em: 08 nov. 2016.
Em 1964, Danto se depara com as embalagens do sabão em pó Brillo Box3 (ver figura 2) de Andy Warhol, exibidas em grandes pilhas como num depósito de supermercado. Estupefato, porém menos espantado, o autor prontamente as aceita como arte. No entanto, a compreensão sobre como as embalagens comuns nos supermercados não eram arte é visto pelo o autor como um problema filosófico. Danto poderia ter “escamoteado” o problema atribuindo a diferença às instituições onde se encontram os objetos, matéria prima, escala; porém, em consonância com o “clima da hora4” “[...] ser uma obra de arte significava que certos objetos gozavam de toda sorte de direitos e privilégios de que careciam os objetos comuns” (DANTO, 2005, p. 16). Não fugindo ao problema, Danto inicia a discussão pela estratégia da diferenciação, argumentando que os objetos têm causas distintas. Porém, isto apenas reforça a ideia de que um objeto só seria viável mediante sua finalidade, ou quando o mundo da arte estivesse pronto para recebê-los. Assim, a dúvida que Danto traz à reflexão é: como um objeto adquire o direito de participar do mundo da arte se as diferenças perceptuais são indistinguíveis ou imperceptíveis nos objetos? Danto (2006a, p. 14) sugere que, é possível não se ter consciência de se estar num ambiente artístico sem o amparo de algo que o confirme como arte:
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As caixas de sabão em pó Brillo Box de Andy Warhol (1964) adquirem o status de arte justamente pela implicância conceitual ao mundo da arte. Aparentemente idênticas as caixas de sabão em pó comum Brillo Box, as Caixas de Warhol são diferentes em termos de escala, matéria prima e meios de produção sendo feitas à mão. 4 Conforme Danto (2006a, p. 16) o ano de 1964 foi de grande importância política para os EUA. Assim como muitos objetos não tem o direito de participar do mundo da arte, os cidadãos negros não tinham o direito de votar.
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Fig. 2 - Brillo Box. Andy Warhol (1964).
Fonte: Disponível em: <http://www.gallery.ca/en/see/collections/artwork.php? mkey=7249>. Acesso em: 06 nov. 2016. [...] distinguir obras de arte de outras coisas não é tarefa tão simples, mesmo para falantes nativos, e hoje em dia alguém pode não estar cônscio de estar num terreno artístico sem uma teoria artística para lhe dar conta disso. E parte da razão disso reside no fato de que o terreno é constituído como artístico em virtude de teorias artísticas, de que um uso de teorias, além de nos ajudar a discriminar a arte do resto, consiste em tornar a arte possível. (DANTO, 2006a, p. 14)
Por um momento, na citação acima, temos a sensação de termos descoberto como um objeto se torna arte. Sua existência estaria intrinsecamente ligada a uma teoria da arte que a acolhe como tal. Mas, analisando alguns objetos de arte, como A Fonte5 de Duchamp (ver figura 3), com uma banalidade tão óbvia, compreender como uma teoria pode acolher estes objetos em seu meio apenas fomenta o surgimento de grandes problemas. Como é possível reconhecer uma obra de arte quando há milhares de exemplares iguais, fabricados em grande escala? Se ter uma teoria da arte é a via necessária para que os objetos sejam reconhecidos como arte, a arte se torna um conhecimento de uso privado? Um objeto de estudo para poucos conhecedores sobre um mundo fechado em suas teorias vigentes? A arte pertence apenas a artistas, marchands
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Conforme a Tate (Museu Nacional de Arte Moderna do Reino Unido), A Fonte é um urinol de cerâmica branca esmaltada, trazendo a assinatura R. Mutt. (nome de seu fabricante). Retirada do cotidiano francês, dá origem ao movimento readymad criado pelo próprio Marcel Duchamp no auge do Dadaísmo. Mesmo não tendo sido aceita como arte num primeiro momento, o urinol invertido apresentado a Sociedade de Artistas Independentes, inaugura o debate entre Arte e Conceito, que dá origem ao novo movimento, o da arte conceitual.
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e, a um ou outro conhecedor da arte? Distinguir um objeto qualquer de uma obra de arte implica já saber quando há arte? Ou será que tudo não passa de um problema de linguagem Wittgensteiniano, pois tudo aquilo que tenho capacidade de chamar de arte e se ligar a um objeto em si pode ser arte? Fig. 3 - A Fonte. Marcel Duchamp (1917).
Fonte: Disponível em: <http://www.tate.org.uk/art/artworks /duchamp-fountain-t07573>. Acesso em: 06 nov. 2016.
Apenas ter teorias implica na ilegitimidade de aplicar o mesmo conceito a todo e qualquer objeto, quando as diferenças perceptuais não são mais possíveis. Então, somos obrigados a crer e aceitar que a arte não é para todos, mas para um grupo seleto e conhecedor do mundo da arte. Se a técnica e o talento deixaram de ser decisivos, se não existem diferenças visíveis e se as teorias não são acessíveis, o que acaba determinando um objeto como uma obra de arte passa a ser a sua valia em um sistema de mercado. Porém, outros urinóis comuns não têm o mesmo valor que a Fonte de Duchamp. O que temos que encarar é que o problema da interpretação precisa ser resolvido e a compreensão sobre o poder que uma teoria tem de julgar as características reais daquilo que é uma obra de arte não pode ser ignorado.
1.2 A arte: imitação ou realidade? Conforme Platão (1964, p. 290), o conceito de arte como imitação (mímesis), ou “um espelho” voltado à natureza: reproduzindo reflexos ou “meras aparências e não coisas existentes
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na realidade”, foi usado durante muito tempo como uma teoria de validação da arte. Danto, no artigo de The Artworld de 1964, apresenta a TI com uma fala do Príncipe Hamlet, personagem da tragédia escrita por William Shakespeare entre 1599 e 1601, servindo como pano de fundo para narrar os novos problemas surgidos com a arte recente. Para Danto (2006, p. 14), haveria, na imitação, uma utilidade cognitiva, pois, “na medida em que ela é como espelho, nos revela a nós mesmos”. Porém Kandinsky (apud DANTO, 2006a, p. 13) afirma que a teoria da mímesis é rapidamente descartada quando confrontada com a conquista de julgar, uma vez que afirmar algo como “uma imitação” não desconsidera o valor de algo como “arte”. Danto considera a mímesis, mesmo inadequada, importante o suficiente para discutir este assunto no primeiro capítulo de seu livro “A Transfiguração do lugar-comum”. E qual seria a importância desta teoria? Talvez a importância não esteja propriamente na teoria em si, mas nas refutações que o autor faz e que, como consequência, nos permite pensar em outras teorias capazes de dar conta das demandas que surgem na tentativa de classificar um objeto como arte. A possibilidade de acharmos uma teoria contrária à teoria da mímesis, no entanto, não é menos inadequada. Afirmar que um objeto é “arte”, apenas por se aplicar a frase “é arte”, não implica nada além de mostrar que fazemos uso do nosso conhecimento para dizer isso ou aquilo sobre os objetos. Assim, da mesma forma como para Sócrates ou Hamlet, a teoria dos espelhos apenas mostra que “sabemos usar corretamente a palavra ‘arte’ e aplicar a frase ‘obra de arte’” (DANTO, 2006a, p. 14), não deixando de ter um caráter classificatório e excludente, pois apenas torna explícito o que já sabemos: é ou não é arte. A este uso dos termos, Danto nos diz que não passam de “reflexões literais da prática linguística real que dominamos” (DANTO, 2006a, p. 14), o que seria fazer um mau uso das teorias. Para Danto (2006a, p. 15), há duas teorias que servem de pano de fundo na história da arte: a TI (Teoria Imitativa) e a TR (Teoria Realidade)6. A TI representa várias outras teorias que, em termos, é “uma teoria excessivamente poderosa, explicando grande quantidade de fenômenos ligados à causação e à avaliação de obras de arte” (DANTO, 2006a, p. 14). E a TR é entendida, nas palavras de Roger Fry (apud DANTO, 2006a, p. 15) como “não a ilusão, mas a realidade”. A relação entre elas é referida no advento pós-impressionista em que seus discursos possibilitam que entendamos como as teorias da arte se vinculam para considerar novos objetos no mundo da arte.
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Estas expressões (conceitos), todas as vezes que utilizadas no texto, serão abreviadas sendo que: TI para Teoria Imitativa e, TR para Teoria da Realidade.
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É sabido que o pós-impressionismo sugere ser um movimento artístico que traria uma classe completamente nova de obras de arte, dentre elas, o Cubismo, o Fauvismo e o Dadaismo por exemplo. Mas, mesmo que transitório, o impressionismo, em termos de teoria da arte, não se sustenta mais pela TI mesmo que frequentemente acomodássemos “[...] novos fatos a teorias antigas por meio de hipóteses auxiliares” (DANTO, 2006a, p. 15). O que sugere que uma nova teoria seja reelaborada. Suponha-se, então que os testes revelem que estas hipóteses não se comprovem, que a teoria, agora, para além de qualquer possibilidade de reparo, deva ser substituída. E uma nova teoria é elaborada, conservando o que ela pode da competência da antiga teoria, junto com a inclusão de fatos recalcitrantes. (DANTO, 2006a, p. 14)
O surgimento de uma nova teoria é compreendido por Danto (2006a, p. 15) como a possibilidade para uma “transfiguração”. Além de dar conta de tudo o que a antiga teoria dava, a nova teoria precisa dar “ênfase” às novas características artísticas que surgirem, de modo que “abordagens muito diferentes” passam a ser feitas, acolhendo diferentes status de obras no mundo da arte. Ocorrem revisões teóricas de proporções consideráveis a ponto de não apenas ser absorvida uma nova classe de obras, mas “como critério” para aceitação desta nova teoria, ela também deve manter as competências da antiga, o que é afirmado por Danto no citado abaixo. Assim para que fossem aceitas como arte, numa espécie de transfiguração, [...] requereu-se não tanto uma revolução no gosto quanto uma revisão teórica de proporções muito consideráveis, envolvendo não apenas a adoção artística desses objetos, mas também uma ênfase sobre características recentemente significantes de obras de arte aceitas, de modo que abordagens muito diferentes de seu status como obras de arte teriam agora que ser feitas. (DANTO, 2006a, p. 15)
Na TI, as obras se tornavam arte quando se tinha uma imitação do real; já na TR, ao olharmos para as obras de Van Gogh e de Cézanne, por exemplo, vemos que seus traços são “não imitações”, no proposito que são criadas para que possamos ver e lembrar o real com traços concebidos originalmente para não iludir. O que entra em jogo na discussão com a TR é a livre arbitrariedade do uso de elementos artísticos como possibilidade para a concepção de novos objetos de arte não mais como imitações. A discussão em termos da TI discorre sobre o fato de que a arte nunca pode ser compreendida como um espelho anteposto à realidade mesmo que esta prática tenha regulado a arte e os espaços artísticos por muito tempo, pois qualquer “artista que se afasta da mimeticidade é perverso, inepto ou louco. Inépcia, chicana ou loucura são, de fato, predicações passíveis de teste” (DANTO, 2006a, p. 14). Atestada a irregularidade destas hipóteses, uma
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nova classe de obras que se apresentam no pós-impressionismo, por exemplo, atenuam as diferenças da arte como imitação. Nesta acepção, a TR é considerada pelo autor como uma vitória ontológica para o mundo da arte, afirmando que é “em termos de TR que devemos entender as obras de arte que hoje nos rodeiam.” (DANTO, 2006a, p. 16). Esta vitória não apenas considerou uma série de obras que prontamente se apresentavam como pósimpressionistas, mas acrescentou uma quantidade considerável de propriedades a esta teoria criando novos critérios de avaliação artística a novos objetos “de modo que esses objetos são logicamente inimitáveis” (DANTO, 2006a, p. 16). Podemos dizer que antes do impressionismo a arte repousava em um solo com bases firmes sustentadas pela TI. Era fácil, ou pelo menos mais perceptível ver, comparar, julgar e perceber as diferenças entre o que era uma obra de arte ou não, pois à maneira socrática, as obras eram comparadas com a realidade a qual elas imitavam. Com o pós-impressionismo e o surgimento de uma nova teoria da arte, a TR, novas propriedades artísticas entraram em vigor impossibilitando ou dificultando comparações com a imitação que, ao invés de se tornar uma aversão aos artistas, em alguns casos, torna-se a matéria prima de algumas obras. Os exemplos a seguir apontam para as novas possibilidades artísticas que surgem com o pós-impressionismo. Um hábil escultor pode inserir A Virgem e o Chanceler Rollin numa cabeça de alfinete e ela seria reconhecível como tal a um olhar acurado, mas uma cópia de Barnett Newman numa escada similar seria uma massa amorfa, desaparecendo na redução. Uma foto de Lichtenstein é indiscernível de uma foto de um painel de Steve Canyon, mas a foto deixa de captar a escala e, então, é uma reprodução tão imprecisa quanto uma cópia em preto-e-branco de Botticelli, sendo a cor tão essencial nesse caso quanto a escala o é no precedente. Os objetos criados por Lichtenstein não são imitações, mas novas entidades, como pústulas gigantes o seriam. Jaspers Johns, por outro lado, pinta objetos em relação aos quais as questões de escala são irrelevantes (DANTO, 2006a, p. 16)
Danto identifica, no pós-impressionismo e na TR, técnicas de arte que são utilizadas para lembrar o real como “não-imitações especialmente concebidas para não iludir” (DANTO, 2006a, p. 15). Parece simples esta nova concepção, no entanto, ela é poderosíssima a ponto de Danto (2006a, p. 16) considerá-la como uma nova contribuição para o mundo da arte dividida em duas possibilidades bem distintas: os objetos reais e os fac-símiles reais de objetos reais ou “não-fac-símiles”. Objetos tão reais quanto os da vida real. O que parecia ser um novo momento para a história da arte, o despertar de um sono profundo e depreciativo, envolto pelos conceitos platônicos, dá origem ao mais novo e complexo problema da estética que o mundo da arte poderia enfrentar. A nova geração de artistas leva o conceito de imitação ao extremo ou, ao menos a elevam a um grau de complexidade artística tão grande a ponto de não mais ser possível distinguir o que são os
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objetos criados e concebidos no mundo da arte dos objetos que estão no meio comum. Quase que, como num protesto ou comemoração mediante a liberdade e autonomia conquistada, novos objetos surgem no mundo da arte tal qual como se encontram na realidade comum, reivindicando espaço e reconhecimento tão reais como ambos, e não mais como meras imitações. Mas então, a exemplo de Danto (2006a, p. 17) como ainda podemos confundir realidade com realidade? Confundir uma obra de arte com um objeto real não é uma proeza tão grande quando uma obra de arte é o objeto real com o qual alguém se confunde. O problema é como evitar esses erros, ou removê-los uma vez que já foram cometidos. A obra de arte é uma cama e não a ilusão de uma cama. (DANTO, 2006a, p. 17)
As pistas apontadas por Danto esclarecem a situação em que se encontram as obras pósimpressionistas com relação à TR. Mas, o que torna objetos comuns em arte, considerando que ambos são concebidos na realidade como novas entidades ontológicas afirmadas pela TR? Tal esclarecimento pertence ao domínio da “investigação conceitual” que, para Danto (2006a, p. 17), até mesmo os maiores conhecedores do assunto são “maus guias”, pois há um “erro filosófico” que requer uma explicação, a saber: reconhecer o que é arte. 1.3 O “é” da obra de arte No livro Conexões com o mundo – Concepções básicas de filosofia, lançado em 1989, Danto sugere que a arte é representacional. Embasada na teoria de que “nós mesmos como entes representacionais e até mesmo como entes sentenciais” e na obra Transfiguração do lugar comum (2005, p. 11), o autor afirma que “o mundo e nosso sistema de representações são interdependentes, [...]”. A profundidade desta concepção está no fato de que, quando não conseguimos representar o mundo, podemos moldá-lo às nossas representações, teoria que encerra definitivamente qualquer proximidade entre a arte com a conceito de imitação (mimeses), de modo que a arte como imitação não acrescentaria nada novo, forçando-nos a viver sob os mesmos aspectos previstos pela repetição e pela imitação. Mesmo que a arte tivesse o poder cognitivo de revelar a nós mesmos, seria apenas nosso reflexo. “Assim, podemos concluir que, se a arte supostamente transformou os seres humanos, a história da arte não pode ser a história da ilusão e a essência da arte não pode ser a mimese.” (DANTO, 2014, p. 239). Um primeiro objetivo de Danto, ao elaborar um sistema filosófico da arte, é estabelecer uma definição de arte, estabelecer “[...] condição necessária, qual seja, a de que toda obra de arte deve dizer respeito a algo – ter um significado” (2005, p. 18). A arte como veículo de
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representação obrigatoriamente “cor-porifica” um significado. Esta teoria entra em choque com os movimentos artísticos contemporâneos, pois o “significado” parece ter-se perdido tanto nos objetos que denominamos “obras de arte” quanto em nossa capacidade de perceber estes significados nos objetos de arte. A arte atual tem se revelado como abstrações ou cópia de objetos que encontramos no meio comum e o significado como qualidade não está mais presente na obra em si, ou seja, a obra, como representação, parece não encontrar alicerces diante do cenário atual. Mais tarde, Danto irá acrescentar que a chave para entender esta corporificação da arte como representação, ao contrário de procurar um significado, está na Interpretação. “A interpretação de obras de arte é o cerne do exercício da crítica da arte” (DANTO, 2005, p.19). Nesta afirmação, o autor se preocupa em identificar na obra de arte uma relação entre o objeto e o significado. “A obra é o objeto mais o significado, e a interpretação explica como o objeto traz em si o significado que o observador [...] percebe e ao qual reage de acordo com o modo como o objeto o apresenta” (DANTO, 2005, p.19). Este exercício parece simples; agora, imagine-se em meio a uma pilha de caixas de sabão em pó, exatamente iguais às encontradas num estoque de supermercado. Certamente surge a dúvida – qual o significado disso? No entanto, para Danto (2005), a pergunta estaria errada. O segredo não está em entender o significado das caixas de sabão em pó, lembre-se, a obra é o objeto mais o significado; sendo assim, é a interpretação do observador que explica e dá sentido à obra. A pergunta correta então passa a ser: como, ou, o que interpretar? A primeira resposta que nos surge, relata exatamente a postura daqueles que visitam uma galeria de arte; atribuições de significados diferentes, conforme o que cada um bem entende à aquilo que supostamente está vendo. É mais um posicionamento empírico que uma crítica à obra de arte. A segunda resposta nos revela a dura realidade. Para atribuirmos uma verdadeira interpretação a um objeto de arte é preciso conhecer o “mundo” em que a arte está inserida. É preciso conhecer para saber interpretar, o que significa dizer que a arte não é para qualquer um, mas sim, um conhecimento para poucos entendedores. Se for assim, quem seria responsável por ensinar sobre o conhecimento da arte? E quem seria mais responsável ainda por avaliá-la para que aquilo que se produz no “submundo” ou, numa realidade que não seja a do mundo da arte, possa subir os degraus da transfiguração artística? Uma obra de arte possui uma série de características que são completamente diferentes às de um objeto comum. A linha, a cor, a escala, o traço de tinta, a área, o suporte são algumas destas características, porém, quando um objeto se torna indiscernível a outros objetos, a faculdade de julgar o que é arte ou não se torna cada vez mais difícil, e atribuir o título de “obra de arte” a um objeto que não carrega tal qualidade gera no mínimo certo desconforto devido à
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tamanha indecisão sobre o que realmente se está vendo. A Fonte de Duchamp, por exemplo, torna a pergunta o que, ou, como interpretar, sem sentido ou obsoleta. Quais seriam as características presentes neste objeto a observar para classificá-lo como arte? Para Danto, estar diante da Fonte de Duchamp e procurar respostas é algo precipitado. Antes, dever-se-ia ater-se a questão de onde iremos tirar o conhecimento para tais interpretações? Uma pista sugerida pelo autor é “verificar quais são as propriedades do objeto que pertencem à obra e quais não são” (DANTO, 2005, p.19). Esta orientação assinala para a existência de elementos estéticos na composição dos objetos que nos ajudam a fazer tal distinção. Há um é que figura principalmente nas afirmações concernentes às obras de arte que não é o é da identidade ou da predicação; nem é o é da existência, da identificação ou algum é especial inventado para servir a um fim filosófico. [...] E, finalmente, é uma condição necessária para algo ser uma obra de arte que alguma parte ou propriedade dele seja designada pelo sujeito de uma sentença que emprega esse é especial. (DANTO, 2006a, p. 18)
Isto parece ser uma luz à investigação e sugere que é possível separar aquilo que é daquilo que não é arte, apenas observando tais diferenças entre os objetos, mas Danto dificulta esta possibilidade. Em 1995, nas Conferências Mellon sobre as Belas-Artes, o autor decreta o “fim da arte”, e, se por “fim” entendemos como algo limítrofe, a arte contemporânea em si não pode trazer elemento algum que nos permita tal distinção, visto que já não há mais arte, mas apenas objetos comuns em espaços de arte. Tentando esclarecer este é especial, Danto (2006a, p. 18) elabora sua discussão em torno de conceitos ontológicos um tanto parmenídicos. O autor considera o Não ser como uma entidade, ou seja, tanto o Ser é, como o Não ser é. “A sentença “esse a é b” é perfeitamente compatível com “esse a não é b”, [...]”. Se esse a não é b, então obrigatoriamente é alguma outra coisa. Sendo assim, “[...] a verdade da primeira requer a confirmação da segunda”. Afirmar o é como identificação artística para um objeto confirma que ele “é arte” e não pode “não ser arte”, ou “não é arte” e consequentemente não pode ser arte, e é outra coisa. Esta sentença, aplicada às propriedades estéticas, deve ser indicada pela teoria da arte vigente o que automaticamente serve para classificar inúmeras quantidades de objetos que carregam tais predicados que passam a se beneficiar do conceito de “é obra de arte”. Subentende-se que qualquer contrariedade a isto resulta na exclusão do objeto ou exclusão ao conceito de ser arte. Para Danto (2006a), a afirmação do é artístico só é válido quando usado normalmente a um dos casos, é ou não é arte, de modo não ambíguo. Sendo assim, se levadas em consideração as propriedades artísticas para validar um objeto como arte ou não, não podemos aceitar ao mesmo tempo o conceito ontológico parmenídico. Isto porque ao se considerar um número de
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propriedades para classificar um objeto como arte, tantas outras propriedades que não são propriamente artísticas ou aceitas pela teoria vigente serão trazidas automaticamente para dentro do conceito, expandindo a teoria e obrigando-a a validar tantos outros objetos que por consequência trarão tantas outras propriedades e, assim sucessivamente, invalidando o conceito ontológico. [...] uma identificação artística engendra outra identificação artística e como, de modo consistente com uma dada identificação somos levados a dar outras e impedidos de dar ainda outras; realmente, uma dada identificação determina quantos elementos a obra deve conter. Essas identificações diferentes são incompatíveis entre si, ou geralmente o são, e cada uma pode ser dita como fazendo uma obra de arte diferente, mesmo que cada obra de arte contenha idêntico objeto real como parte de si mesma. (DANTO, 2006a, p. 19)
Afirmar a arte por suas “qualificações proposicionais” anula a possibilidade de afirmála por conceitos ontológicos é ou não é. Se assim for, a vitória ontológica é derradeira antes mesmo de poder ser tomada como uma propriedade de validação artística em uma teoria. A verdade é que a arte não pode ser reduzida em blocos semânticos entre ser e não ser. Não basta apenas dizer é ou não é arte, sob o risco de se estar incorrendo em um erro de linguagem reducionista. Apenas dizer “é arte” e crer que qualquer objeto passa a ser arte, inviabiliza ter uma teoria por vias de “qualificação proposicional”. E assim, a questão: “como um objeto adquire o direito de participar, como obra, do mundo da arte?” (DANTO, 2006a, p. 16), ou, o que é arte, permanece até que o “Testadura” compreenda “o é da identificação artística e então constitua o objeto como obra de arte. Se ele não conseguir isso, ele nunca olhará para obras de arte” (DANTO, 2006a, p. 20). Mas existe este é da identificação artística? Que sistema tão poderoso é este que reconhece um objeto como obra de arte e outro igual não? “Ver algo como arte requer algo que o olho não pode repudiar – uma atmosfera de teoria artística, um conhecimento da história da arte: um mundo da arte” (DANTO, 2006a, p. 20). Poderíamos tomar como conclusiva a resposta dada por Danto, que concebe que o entendimento sobre o que é ou não arte repousa sobre o conhecimento que temos sobre o mundo da arte, suas teorias e sua história. No entanto, este conhecimento permanece sendo o problema central da investigação, principalmente quando se decreta o “fim da arte” que, na concepção de Danto, é justamente esta ruptura do conceito de arte com um período de sua história. Alguns objetos, como alguns indivíduos, desfrutam de uma dupla cidadania, mas permanece, apesar da TR, um contraste fundamental entre obras de arte e objetos reais. [...] e a caixa de Brillo do mundo da arte pode ser exatamente a caixa de Brillo do mundo real, separada e unida pelo é da identificação artística. (DANTO, 2006a, p. 22)
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As caixas de Brillo são “[...] fac-símiles de caixas do sabão em pó Brillo, em pilhas altas, em limpas prateleiras como no estoque do supermercado” (DANTO, 2006a, p. 21). Criadas pelo artista pop, Andy Warhol, as semelhanças e as diferenças entre o objeto de arte e o objeto comum nos forçam a pensar que a matéria prima, o preço de fabricação, a diferença entre o valor de um objeto e outro, os valores de escala e o fato de um ser concebido à mão enquanto outro é feito por máquinas, seriam diferenças circunstanciais a serem consideradas. Porém, após todas estas distinções a discussão permanece assombrosamente no fato de que, apesar das semelhanças indiscerníveis, somente um modelo é reconhecido como arte, levando Danto (2006a) a questionar por que não o são (arte) as indiscerníveis caixas Brillo que estão nos depósitos? Em uma simples constatação circunstancial poderíamos afirmar que as caixas Brillo de Andy Warhol estão em uma galeria de arte enquanto as outras estão em um supermercado. No entanto, se fizermos uma inversão, ou seja, transportarmos as caixas Brillo de Andy Warhol a um estoque de supermercado, elas deixarão de ser arte? Certamente que não e isto também se aplica, caso levássemos as caixas comuns a uma galeria de arte e, mesmo que num instante de tempo, pudéssemos confundi-las com as caixas de Warhol, elas não se tornariam arte. A constatação se deve ao fato de que as caixas Brillo de Andy Warhol carregam em si o é da identificação artística como garantia de que serem reconhecidas como arte independentemente do ambiente que ocupam. No trecho abaixo, Danto antecipa reflexivamente o que é este é da identificação artística. Vejamos: O que, afinal de contas, faz a diferença entre uma caixa Brillo e uma obra de arte consistente de uma caixa Brillo é uma certa teoria da arte. É a teoria que a recebe no mundo da arte e a impede de recair na condição do objeto real que ela é. [...] É claro que, sem a teoria, é improvável que alguém veja isso como arte e, a fim de vê-lo como parte do mundo da arte, a pessoa deve dominar uma boa dose de teoria artística, assim como uma quantia considerável da história da recente pintura nova-iorquina. [...] É o papel das teorias artísticas, hoje como sempre, tornar o mundo da arte e a própria arte possíveis. (DANTO, 2006a, p. 22)
Conclusiva a proposta de Danto de que é necessária uma teoria da arte para que alguns objetos se sustentem no mundo da arte, mas esta teoria é amplamente aceita e já o era desde que a arte era entendida como imitação. Parece que Danto se vê amarrado a essas concepções já presentes na história da arte e ele mesmo afirma que esta é a mais difícil questão filosófica conhecida, disposta em inúmeras páginas em sua obra para tentar entender o que é arte e perceber que ela depende de uma teoria. Mas, sob o ponto de vista do autor, há outros critérios a serem considerados para a identificação do é em uma obra de arte, - o é da predicação.
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Uma condição necessária para que algo seja uma obra de arte é que ao menos um de seus predicados pertença à proposta prevista pela teoria vigente. “Predicados contraditórios não são opostos, já que um de cada um deles deve se aplicar a alguns objetos no universo e nenhum de um par de opostos precisa se aplicar a alguns objetos no universo” (DANTO, 2006a, p. 23). Para entender a implicação desta teoria, primeiramente é necessário entendermos alguns conceitos. Predicados contraditórios não são opostos a partir da premissa de que contraditórios atuam sobre o mesmo ponto e predicados opostos atuam sobre pontos divergentes. Sendo assim, conforme Danto (DANTO, 2006a, p. 23), predicados contraditórios ou contrários, são ambos falsos, já os predicados opostos “[...] não são ambos falsos [...]”. Imaginemos um jogo de lego com diferentes tamanhos de peças e diferentes cores. Podemos tomar como predicados das peças de lego a cor, o tamanho da peça e o tamanho da base de encaixe. A regra no jogo de lego nos diz que podemos encaixar peças com cores diferentes e tamanhos diferentes desde que a base de encaixe seja de tamanho igual. Ao tentar encaixar as peças de lego com bases de encaixe diferentes, independente da condição dos outros predicados, temos uma situação contraditória, ou seja, peças de lego com tamanhos de base de encaixe diferentes nunca poderão se encaixar, o que invalida a situação. No entanto, se pegarmos peças com bases de encaixe igual, independente da condição dos outros predicados, elas irão se encaixar perfeitamente e assim, podemos dizer que temos uma situação entre opostos, pois a cor e o tamanho das peças são diferentes, mas um par destes predicados, que é a base de encaixe, valida a situação. E “uma condição necessária para que um objeto seja de tipo K é que pelo menos um par dos opostos relevantes-k seja sensatamente aplicável a ele” (DANTO, 2006a, p. 23). Trazendo para o contexto da arte, este modelo equivale a dizer que uma determinada teoria da arte é a regra a exemplo do jogo de lego. Outra condição necessária para que algo seja uma obra de arte, é que ao menos um de seus predicados, se encaixe na proposta prevista pela teoria. Quanto às características contrárias à regra, mas que da mesma forma compõem a obra, não poderão endossar a teoria, visto que são predicações contraditórias sendo sempre mutuamente excludentes. Esta relação entre predicados opostos e contrários soluciona o problema que uma determinada teoria da arte tem ao considerar qualquer objeto como arte só pelo fato de carregar o predicado igual ou semelhante aos objetos que já pertencem às suas regras. No entanto, abre-se a possibilidade para novas questões. Na citação a seguir, Danto discorre sobre o problema de que existem algumas propriedades artísticas que são determinantes em algumas obras, mas que por não fazerem parte do crivo avaliativo da teoria da arte vigente, ocorrem no anonimato, impedindo que toda uma
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série de objetos venha a se tornar arte. Assim, pode ocorrer que um objeto venha a ser considerada uma obra de arte antes mesmo que seus predicados definitórios sejam reconhecidos no mundo da arte, pois outros predicados foram determinantes, aquele traço que poderia ser definitório não teve influência alguma para o caso. Vejamos: Suponha-se que F e não-F são um par de opostos de predicados desse tipo. Pode acontecer que, através de todo um período de tempo, toda obra de arte é não-F. Mas, uma vez que nada até então é obra de arte e F, pode nunca ocorrer a qualquer uma que não-F seja um predicado artisticamente relevante. A não F-dade das obras de arte prossegue sem qualquer registro. Diferentemente, todas as obras até um dado tempo pode ser G, sendo que isso nunca ocorreu a nenhuma delas até aquele tempo em que algo pode ser tanto uma obra de arte quanto não-G. Na verdade, poder-se-ia pensar que G é um traço definitório de obras de arte, quando, na realidade, algo pode primeiramente ter que ser uma obra de arte antes que G lhe seja sensatamente predicável, caso em que não-G também é predicável de obras de arte e o próprio G poderia, então, não ter sido um traço definitório dessa classe. (DANTO, 2006a, p. 23)
Os predicados definitórios que caracterizam as obras são inconstantes. Novos predicados podem ser incluídos, excluídos e reincluídos, modificados e renovados. Mas quem estabelece quais são os predicados que vão compor as teorias da arte e abrir as portas de seu mundo para os objetos? Danto (2006a, p. 24) é muito enfático em sua resposta: “As linhas determinam os estilos disponíveis, dado o vocabulário crítico ativo”. Obviamente, na medida em que adicionamos predicados artisticamente relevantes, aumentamos o número de estilos disponíveis na proporção de 2n. Naturalmente, não é fácil prever que predicados serão adicionados ou substituídos pelos seus opostos, podendo-se supor que um artista determine que H deverá ser a partir de agora artisticamente relevante para suas pinturas. (DANTO, 2006a, p. 24)
Os elementos artísticos que compõem as artes serão responsáveis por determinar os estilos e as teorias às quais irão pertencer (vocabulário crítico ativo). Quanto maior a variedade de predicados artisticamente relevantes, mais complexos se tornam os membros individuais do mundo da arte. E quanto mais se sabe da população inteira do mundo da arte, mais rica se torna a experiência de alguém com qualquer um dos seus membros. (DANTO, 2006a, p. 24)
As afirmações feitas por Danto insinuam que devemos crer ou considerar que há algum estilo artístico presente em um urinol. Mas, parece metafísico o poder que é dado às teorias da arte, para crermos que é apenas por elas que objetos comuns, passam a ser considerados arte, visto que suas réplicas comuns nem as teorias as consideram. Julgar que somente pessoas do meio comum às artes possuem as habilidades para compreendê-la ou que somente pessoas aptas e atualizadas com relação às informações técnicas do mundo da arte podem reconhecê-las como tal é uma concepção redutiva, a menos que tenhamos privatizado o acesso ao mundo da arte.
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As pessoas olham para os objetos e dizem – é uma obra de arte – e o fazem a diversos objetos independente do lugar que ocupa, mas isto não é suficiente para garantir que todo e qualquer objeto carregue o título de obra de arte. Ao mesmo tempo, muitos olham para o Quadrado negro sobre fundo branco7 (ver figura 4) de Kazimir Malevich e dizem – não é uma obra de arte. A estes Danto (2006a, p. 24) os chama de “[...] não familiarizados com a matriz”. Fig. 4 - Quadrado negro sobre fundo branco. Kazimir Malevich (1913 – 1915).
Fonte: Disponível em: <http://www.tate.org.uk/whats-on/tatemodern/exhibition/malevich/malevich-room-guide/malevich-room-5>. Acesso em: 06 nov. 2016.
As afirmações de Danto são insuficientes para responder suas próprias especulações. Prepotente tal afirmação? Não! Ela é aceita e confirmada pelo autor na obra Transfiguração do lugar comum (2005, p. 16). A resposta para que as Brillo Box adquiram o status de arte, se encontra numa certa “teoria da arte”, porém, não há parâmetros claros para que elas não sejam confundidas com as fabricadas pela marca de sabão em pó comum. “Essas coisas nem mesmo seriam obras de arte sem as teorias e as histórias do mundo da arte” (DANTO, 2006a, p. 24). Assim, a questão: como um objeto adquire o direito de pertencer ao mundo da arte? - permanece sob a sombra do indiscernimento sobre o que é arte. 7
Conforme a Tate, Malevich descreveu seu trabalho como um estado de frenesi extático. A simplicidade da composição é acompanhada pela complexidade artística enigmática: incorporando afirmação e negação, ausência e presença em igual medida, marca uma hora zero na arte moderna. Para Malevich, o Quadrado Preto foi o ponto de partida para uma abordagem totalmente nova que ele chamou de suprematismo, considerada a primeira escola do movimento abstrato russo. A composição das obras se dão a partir de formas geométricas simples e cores planas, em consonância com o contexto histórica da época.
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2 O FIM DA ARTE No capítulo anterior, pautamos a concepção de arte e de “mundo da arte” na proposta de Arthur Coleman Danto. Nele, pudemos perceber que o conceito sobre o que é arte sempre esteve entrelaçado ao entendimento histórico que temos sobre como se fazia arte. Porém, num momento em que não há mais distinção entre objetos do mundo da arte de objetos comuns, manter esta relação se torna insustentável e extrapola a capacidade intelectual de entendimento, orientada pela história da arte. As argumentações de Danto sugerem que o entendimento sobre o que é arte está vinculado com a história da arte representada por suas teorias institucionais. No entanto, esta relação é abalada com as profundas questões que surgem quando o autor decreta o “fim da arte” e rompe seu vínculo com a história. Recorrendo a uma frase de Hegel8 “além dos limites da história”, Danto reintroduz esta tese traduzindo-a para o “momento pós-histórico”. O “fim da arte” não é o fim das obras de arte em si, e sim, uma ruptura da arte com a história e suas teorias, baseada na concepção de que a arte atual está passando por um período único, de profundo pluralismo e total tolerância às mais diversas tendências e estilos, servindo como um marco entre a arte contemporânea e a arte moderna. Esta teoria, mesmo não sendo uma teoria nova, retrata um novo posicionamento vital em que se encontram as artes de vanguarda e serve de teoria central para que percebamos as novas possibilidades ontológicas da arte atual. No livro Após o fim da arte (2006b), Danto refere-se a esta teoria como: “[...] um meio algo dramático de declarar que as narrativas mestras que primeiro definiram as artes tradicionais, e após a arte modernista, não só chegaram a um fim, mas que a arte contemporânea não mais se permite ser apresentada por narrativas mestras de modo algum” (DANTO, 2006b, p. XVI). Simples seria apenas imaginar este fim num sentido histórico, no entanto, obras continuam surgindo e a implicação disso sugere pensarmos: por que caminhos a Arte terá continuidade? No segundo capítulo, há duas especulações a serem feitas sobre esta teoria; uma se a arte tem futuro, e outra, se tem, com que ela parecerá e como iremos apreciá-la num momento pós-histórico. O fim da arte supõe ser um marco sobre a forma como pensamos o próprio termo ‘arte’ e uma nova forma de relação do sujeito com a arte.
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Hegel será citado inúmeras vezes ao longo doo texto, porém, sempre a partir das referências tomadas pelo próprio Arthur Danto, uma vez que retomadas contínuas à obra de Hegel iriam estender a pesquisa para além das cercanias de seu objetivo a qual se limita apenas em abordar sobre o tema “o mundo da arte” em Arthur Danto.
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2.1 O limite entre a arte e a historicidade: quando a arte se torna filosofia?
A arte, que até então era pensada sob o aspecto de impura ou não-pura, que consistia na influência de um estilo sobre outro, na atualidade é percebida como se houvesse um desaparecimento do conceito de “pureza artística”. No livro Após o fim da arte, David Reed (apud DANTO, 2006b, p. XV9) é tomado como exemplo deste momento devido às suas tomadas contínuas a elementos cinematográficos, dispositivos de mídia, instalações e outros mecanismos de dublagem pictórica, compondo um cenário diversificado para as artes através de suas montagens. Fig. 5 - Still de Um corpo que cai. Alfred Hitchcock 1958. Modificado por David Reed, que inseriu umas de suas pinturas a #328 de 1990.
Fonte: Imagem arquivo do próprio autor. Fotografia da capa do livro: DANTO. A. C. Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história. São Paulo: Odysseus. 2006.
A imagem de Still (ver figura 5), que também serviu como capa do livro, Após o fim da arte, de 1995, para Danto (2006b, p. XVI) é um exemplo das intervenções de Reed na relação espaço e tempo, a qual ilustra certa impossibilidade histórica10.
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Ver também o capítulo seis. A pintura e o limite da história: O desaparecimento do puro. p. 111. Conforme Danto (2006b) “Reed transformou o clip numa tomada contínua reproduzida repetidas vezes num aparelho de TV. O aparelho de TV, mostrando o clip modificado por Reed, foi colocado pelo artista junto a uma cama, que era tão indefinida quanto a do filme, mas uma cópia exata dela, e fabricada para a ocasião pelo próprio Reed. Com um item a mais, compunham uma instalação na exposição retrospectiva de Reed no Kölnischer Kunstverein – um espaço para exposição de arte em Colônia. O item a mais era a pintura #328, pendurada sobre a cama numa parede provisória. A pintura explora dois modos de ser – apresenta o que os filósofos medievais distinguiam como realidade formal e realidade objetiva, existindo, pode-se dizer, uma como imagem e outra como realidade. Ela ocupa o espaço do espectador e o espaço fictício de uma personagem num filme.” 10
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O seu quadro de 1989 não poderia ter lugar nos quartos de 1958 pela razão óbvia de que ele não existiria ainda por 38 anos (Reed tinha doze anos quando Um corpo que cai foi realizado). Mas, mais importante do que essa impossibilidade temporal exposta são as impossibilidades históricas: não haveria lugar no mundo da arte para seus quadros em 1957, e certamente nenhum para suas instalações. A arte futura inimaginável é um dos limites que nos mantêm encerrados em nossos próprios períodos. (DANTO, 2006b, p. XVI)
O cenário descrito acima reforça a ideia de que não há mais limites entre a arte e a história o que é entendido por Danto como o “fim da arte”. A teoria do fim da arte não significa o fim das obras em si, mas o fim desta relação pautada pela história e limitada por seus estilos, movimentos e critérios que serviram de base para julgar aquilo que era arte durante muito tempo. Como consequência disso, em um evidente distanciamento com relação aos artistas da “ortodoxa” arte, a estética modernista perderá sua força para a interpretação. Para Danto (2014, p. 122), é possível supor que a arte não tenha mais futuro, pois mesmo que obras sejam produzidas num momento pós-histórico, a elas estaria faltando vitalidade. Assim como Hegel, o autor esclarece que, em um momento pós-histórico, a arte e a história seguirão em direções diferentes, ou seja, “o que quer que venha a seguir não importará, porque o conceito de arte está internamente exaurido” (DANTO, 2014, p. 123), mas, ao mesmo tempo em que Danto supõem que não é mais pela possibilidade histórica que a arte deve continuar a nos surpreender também afirma que “se pensarmos a arte como tendo um fim, precisamos de uma concepção da história da arte que seja linear” (DANTO, 2014, p. 144). Qual será, então, esta concepção? Há dois modelos de pensar a continuidade da arte num momento pós-histórico. O primeiro modelo traz implicações à arte mimética: pintura, escultura e cinema, e o segundo modelo inclui, além do que a mímesis é capaz, muitos outros tipos de arte. As contradições que serão apontadas nestes modelos resultarão num modo inesperado de se pensar a arte, tão abrangente, que a questão de a arte ter chegado ao fim não terá apenas implicações ao termo ‘arte’, mas ao ‘mundo da arte’ de forma dialética. Thomas Kuhn (apud DANTO 2014, p. 124) refere-se à história da arte entrelaçada à história da ciência a partir do modelo progressivo. Conforme Danto, o modelo progressivo na história da arte, deriva de Vasari e diz respeito à “duplicação ótica”, ou ao domínio cada vez mais tecnológico que alguns artistas utilizaram e que possibilitou experiências visuais cada vez mais próximas daquelas fornecidas pelos objetos ou cenas reais. O conceito de progresso da arte consiste, em termos, na possibilidade de poder substituir uma inferência por algo equivalente que a própria realidade perceptual apresentaria. Na pintura, por exemplo, a perspectiva marca o progresso proporcionando, a olho nu, a estimulação ótica real da distância.
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“Antes da descoberta da perspectiva, os artistas podiam promover o conhecimento de que estávamos percebendo objetos recuados a distâncias usando: oclusão, tamanhos diferentes, sombras, gradientes de textura etc., mas com a perspectiva podiam realmente mostrá-los recuados” (DANTO, 2014, p. 125). O modelo progressivo, na arte em geral, tem seu apogeu no cinema, de modo que “teria havido retratações de coisas em movimento sem que elas fossem retratações moventes” (DANTO, 2014, p. 125). Porém, seja qual for a técnica usada, o autor afirma que o futuro da arte deve sempre ser pensado em termos do “progresso representacional”. O artista cada vez mais livres para expressar em suas obras um estilo próprio, dão início a um momento de total pluralismo conceitual e interpretativo, também conhecido como um momento de ruptura com o conceito de “pureza artística”. O meio artístico que mais teria desenvolvido estes equivalentes para representar a realidade seriam os ilustradores de histórias em quadrinhos ao criarem códigos, pistas, sinais, cujos significados foram apreendidos, independentemente, como uma linguagem ou um vocabulário onde, por exemplo, linhas onduladas acima de um peixe representam que ele fede (engenhosidade posteriormente transportada para os desenhos animados). Mas, com o surgimento do Expressionismo Abstrato os objetos têm o seu poder representacional absorvido pelas formas cada vez menos reconhecíveis. Surge então a necessidade de classificar esta nova classe de objetos dentro de um novo conceito de arte e assim, a expressão ou a comunicação de sentimentos não podem prevalecer como definição de arte, pois: [...] mesmo que seja um fato que os artistas expressem sentimentos, bem, isso é apenas um fato e não pode ser essência da arte se a arte tem uma história no seio da qual a questão de sua chegada ao fim faz sentido. [...] se pensarmos a arte como tendo um fim precisamos de uma concepção da história da arte que seja linear, mas de uma teoria da arte que seja suficientemente geral para incluir outras representações (DANTO, 2014, p. 144)
O segundo modelo tem a ver com a teoria de fim da arte, que só é válida caso exista garantia de progresso histórico que, por sua vez, só é mantido pela representação: “se houvesse algo efetivamente equivalente a sentir os sentimentos de outros, isso seria um exemplo desse progresso representacional” (DANTO, 2014, p. 126) para o expressionismo. No entanto, um progresso representacional por sentimento, revela apenas características pertencentes a uma cultura rica em imagens e não a uma certeza de que todos os seres humanos são capazes de fazer exatamente as mesmas leituras. Danto mesmo afirma que: “Iludir os sentidos obviamente não significa iludir o espectador: nossas crenças sobre o mundo formam um sistema, e o fato de que sabemos que estamos vendo uma imagem neutraliza o que nossos sentidos iludidos
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percebem” (DANTO, 2014, p. 127). Crer que os sentimentos são verdadeiramente representados e compreendidos numa obra de arte é crer em episódios individuais e isolados como conceito universal de arte. De fato, pode-se até criar, reproduzir e se reconhecer imagens que representem sentenças de expressão, mas elas nunca terão a força inferencial da realidade. O Expressionismo Abstrato sugere a necessidade de uma nova estrutura para a história da arte, dividida em atos individuais, do contrário, “é apenas a vida do artista, um depois do outro” (DANTO, 2014, p. 142) o que equivale a pensar como uma ruptura com o modelo progressivo, pois não há mais “uma sequência desenvolvimental com o conceito de expressão como havia com o de representação mimética. Não há mais porque não há nenhuma tecnologia mediadora da expressão” (DANTO, 2014, p. 141) e isto não é possível se pensarmos a arte como tendo um fim. Este momento vislumbra a necessidade de que surja um novo modelo ou um novo modo de se pensar a arte. Um modo que não a entenda nem como imitação nem como expressão “tão abrangente que a questão de a arte ter chegado ao fim ou não, terá uma referência tão ampla quanto a do próprio termo ‘arte’”. (DANTO, 2014, p. 123). Danto concorda com Hegel afirmando que só é possível manter esta dialética se houver um progresso cognitivo. Uma nova forma de compreensão sobre o termo “arte”. [...] a fascinante fenomenologia do espírito, de Hegel, uma obra cujo herói é o espírito do mundo, ao qual Hegel dá o nome de Geist, cujos estágios de desenvolvimento rumo ao autoconhecimento e à autorrealização pelo autoconhecimento Hegel traça dialeticamente. A arte é um desses estágios – na verdade um dos estágios aproximadamente finais do retorno do espírito ao espírito através do espírito -, mas é um estágio que deve ser atravessado pela dolorosa ascensão rumo à cognição redentora final. (DANTO, 2014. p. 147)
O progresso cognitivo, confirma que a arte é “um estágio transitório no advento de um certo tipo de conhecimento. [...] conhecimento sobre o que é arte” (DANTO, 2014, p. 144) ou conhecimento de si mesma. É neste momento que a arte termina, pois rompe com a matriz histórica e se entrelaça “com o advento de sua própria filosofia” (DANTO, 2014, p. 145). Nesta ruptura, consequentemente, a forma de se pensar a estética modernista se altera, pois perde sua força para a interpretação. Uma interpretação diferente daquela pensada no modelo progressista, que necessitava de uma tecnologia de equivalência perceptual e diferente da interpretação expressionista que requeria a referência a sentimentos desprovidos de objetos, mas uma interpretação alicerçada num progresso cognitivo. E o que é uma interpretação alicerçada no autoconhecimento? É como Hegel mesmo afirma: a travessia dolorosa sobre a questão: o que é arte? Mas por um viés filosófico.
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2.2 O pensamento como palco vertiginoso para a transfiguração da arte
Durante muito tempo a história, com seus pensadores, impôs à arte certa relação e responsabilidade com as questões estéticas, da mesma forma que tentou defini-la pelo mesmo viés. Kant (apud DANTO, 2014, p. 43), por exemplo, fez tal como Platão inserindo as obras de arte fora do âmbito dos interesses, pois sua existência ou mudança não faria diferença alguma a nível social ou individual. Santayana (apud DANTO, 2014, p. 44) “pensa a arte em termos de beleza, e a beleza em termos de prazer objetificado, isto é, prazer mais contemplado do que sentido”, fazendo uma aproximação entre Kant e Schopenhauer. Bullough e outros autores mantêm uma distância estética ou atenção desinteressada, que consiste em olhar para um objeto sem qualquer razão. Dickie (apud DANTO, 2014, p. 45) infere a condição de que é necessário encontrar algo numa apreciação estética, seja ela positiva ou negativa, pelo prazer do olho ao observar a arte. Por trás destas afirmações, não apenas está presente a irrelevância do que é arte para alguns autores, mas também a preocupação em atribuir à arte uma finalidade, supondo que ela deva ser útil para alguma coisa. Para Danto (2014, p. 46), a estética é uma invenção do século XVIII que, assim como em Platão, é exatamente política, pois ela determinou que os artistas devessem se preocupar com a beleza. A arte moderna, por sua vez, não teria tido outro objetivo senão também o político, quando foi seu desejo destruir a “beleza”, afirmação sugerida por Danto como inspiração de Barnett Newmann em 1948. A Fonte de Duchamp, também se revela com este propósito de destruir a beleza, quando foi escolhida justamente pelo que ela representava em sua “neutralidade estética”. Duchamp teria querido evitar o deleite estético; no entanto, esqueceu-se de que os urinóis têm uma identidade cultural altamente sexualizada, ao mesmo tempo em que o ato de “trocar um modo de aparência por outro continua sendo o consentimento da visão de que a essência de algo é sua aparência” (DANTO, 2014, p. 47). Neste sentido, a estética continuaria sendo o limite entre aquilo que é ou não arte. [...] o mundo na sua dimensão histórica é a revelação dialética da consciência para si mesma. No seu curioso modo de dizer, o fim da história chega quando o espírito adquire a consciência de sua identidade enquanto espírito, não por assim dizer, alienado de si mesmo por meio de si mesmo – pelo reconhecimento de que é, nesse caso específico da mesma substância que seu objeto, uma vez que a consciência da consciência é consciência. (HEGEL, apud DANTO, 2014, p. 49)
A Fonte de Duchamp, para Danto (2014), nem teria surgido num momento que não houvesse a falta de clareza sobre o que é arte. Ela confirma a teoria de Hegel, pois a tentativa
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de apresentar um objeto desprovido da preocupação com a beleza nos devolve a questão: o que é arte? A necessidade de uma reflexão da arte sobre si mesma nada mais é do que a confirmação de que a arte carrega em si uma natureza filosófica. E, neste sentido, a ruptura da arte com o conceito de mímesis pode até ser questionada. Conforme vimos no início deste estudo, para Danto (2006, p. 14), haveria uma utilidade cognitiva na arte mimética, pois “na medida em que ela é como espelho, nos revela a nós mesmos [...]”. Hamlet acreditava que sua arte pudesse ser eficaz na guerra contra Claudius, e Danto (2014, p. 53) confirma Hamlet, pois haveria a intenção de comunicar a Claudius que ele sabia de seu crime, o assassinato de Gonzago. Neste exemplo, a arte como imitação, ou como um espelho é algo que pode ser aceito na medida em que “a peça era, metaforicamente, um espelho para Claudius, mas não para qualquer pessoa da plateia, a não ser de modo irrelevante; e ainda assim era arte, tanto para aqueles para quem não era espelho quanto para ele, para quem o era” (DANTO, 2014, p. 53). A intenção de querer dizer algo pode ser o momento em que um objeto do meio comum se torna arte, uma vez que assume a mesma estrutura da retórica, a arte de bem argumentar. “[...] a estrutura das obras de arte é a mesma estrutura da retórica, e que é o ofício da retórica modificar a mente [...]” (DANTO, 2014, p. 54). Mas a arte, como retórica, consegue argumentar tal como faz a filosofia? O objetivo da filosofia não estaria mais para provar do que para persuadir? E se a arte está para a filosofia, assim como a filosofia está para a arte, como uma implica o fim da outra? Danto mesmo responde a estas questões: “Assim, o que a arte terá no fim atingido como sua realização e fruição é a filosofia da arte” (DANTO, 2014, p. 49). Para Schopenhauer (apud DANTO 2014, p. 60), a arte, durante muito tempo teve um ideal diáfano: “Pelo que a obra de arte descerra, descobre, desvela [...] uma fantasia mimética da arte que a obra de arte deveria apresentar aos olhos ou aos ouvidos somente o que se apresentaria a eles pelo objeto imitado”. Danto defende esta ideia; porém, uma estética com essência diáfana deve ter o dever cognitivo de desvelar, “apresentar aos olhos ou aos ouvidos” “realidades mais profundas”, “um meio de facilitação desse conhecimento”. E é aqui que parece residir o problema. Quando a arte interioriza sua própria história, quando ela se torna autoconsciente de sua história, tal como aconteceu em nosso tempo, de modo que sua consciência de história faça parte de sua natureza, talvez seja inevitável que ela deva se tornar finalmente filosofia. E quando ela faz isso, bem, num sentido importante, a arte chega a um fim. (DANTO, 2014, p 50)
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O problema persiste justamente na questão sobre como pensar a arte quando ela se torna autoconsciente de si mesma, quando ela se torna filosofia e quando ela chega ao fim. A saída para Danto está no fato de que a “essência diáfana da arte talvez se encontre enclausurada no conceito mais amplo de médium, como aquilo em que se sacrifica a própria identidade, através da qual um Outro deveria tornar-se presente” (DANTO, 2014, p. 60). Ainda conforme Danto (2014, p. 60), o medium é justamente este alguém que se sacrifica para que um fantasma se torne presente, tal qual em um centro espírita, da mesma forma, no munda da arte há a necessidade de existir algo no qual um objeto comum passa a ser arte. Esta necessidade surge quando a diferença estética não está mais presente na identidade do objeto, isto se “a diferença estética diz respeito sempre e somente ao que vai de encontro do olho [...]” (DANTO, 2014, p. 62). Ou seja, a arte, quando se torna filosofia, não carrega apenas uma possibilidade de representação da filosofia, mas tem isto como uma meta. Ela tem como objetivo ser uma arte que pensa sobre si mesma, que carrega o caráter reflexivo como um objetivo para a estética. O observador, frente a um objeto transfigurado em arte pela sua filosofia, não tem outra saída a não ser pensar sobre o objeto que está a sua frente. A Fonte de Duchamp é o marco desta transfiguração, deste “fim” da arte, porque levanta a questão filosófica de dentro da própria arte. Esta situação é diferente na dramatização de Hamlet que apenas sugeria isto em sua intenção. Na Fonte de Duchamp há uma essência sem qualquer essência, pois como isto pode ser uma obra de arte, “se outra coisa exatamente como isto, a saber, aquilo – referindo-se agora à classe dos urinóis irredimidos – é uma peça do ofício hidráulico?” (DANTO), 2014, p. 48). Afirmará Danto que a arte contemporânea pode estar tão impregnada por sua filosofia, a ponto de não podermos separar aquilo que é filosofia daquilo que é arte. Não sendo possível salvar a arte dos conflitos que a estética armou para ela mesma e isto, de certo modo, pode ser entendido como o fim da arte como a conhecíamos. No entanto, o que não foi percebido é que a essência diáfana da arte, a “transparência da arte”, aqui defendida, “obviamente remove tudo da consideração estética exceto o conteúdo da obra”, (DANTO, 2014, p. 63), e o conteúdo da obra, conforme já descrevemos neste texto, é justamente aquilo que se encontra na essência da teoria da transparência, ou seja, a realidade do objeto. É a essência da TR que irá nos dizer aqui que o objeto como arte é sua própria realidade. A Fonte de Duchamp encontra sua fundamentação artística pelo que ela é: “um urinol” e não em um conceito de beleza, de estética, ou por aquilo que ela representava ou imitava, como se fazia com a arte até então. Então, podemos considerar qualquer urinol, em um banheiro
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qualquer, uma obra de arte como a de Duchamp? Obviamente que não. Como vimos, para Danto, devem existir predicados que transformam alguns objetos em arte e outros, não. O conceito de beleza, institucionalizado pelas reflexões estéticas, apontam que “deve haver um sentido de beleza, por meio de cuja avenida as qualidades estéticas das coisas seriam conduzidas à consciência” (DANTO, 2014, p. 64). Um tipo de visão (Anschauung), uma apreciação estética que conduz à consciência a certeza de se estar frente a um objeto de arte como a Fonte de Duchamp e frente a outro idêntico a este, mas que reconhecemos ser apenas um urinol do meio comum. Há duas possibilidades na forma como isto acontece. Na primeira, que o entendimento estético de uma obra de arte pode estar muito mais perto de uma ação intelectual do que um modo de estimulação sensorial ou de paixão. Na segunda, que “talvez não seja claro se os tipos de predicados estéticos [...] se apliquem sob o mesmo critério a obras de arte e a meras coisas reais quando estas últimas são consideradas esteticamente” (DANTO, 2014, p. 65). Se Schopenhauer está certo, as qualidades estéticas são exatamente as mesmas entre arte e realidade, e dificilmente poderíamos distinguir coisas baseando-nos no que elas têm em comum. Se ele está errado, então o fato de que algo é uma obra de arte faz uma diferença estética. Mas então a diferença estética pressupõe a distinção que procuramos e não pode fazer parte do que faz aquela diferença. Portanto, a estética não pertence à essência da arte – o que não significa que não aprenderemos algo sobre a estética identificando essa essência. (DANTO, 2014, p. 66)
Esta afirmação de Danto é um divisor de águas. Se a diferença estética não é essencial para distinguir o que é arte, o que torna a Fonte de Duchamp uma peça única entre tantas outras? O gesto de exibi-la? Danto (2014, p. 70) escreve com as palavras de “O defensor anônimo de Fonte” publicado por Duchamp na segunda edição do periódico apócrifo The Blind Man: o pensamento. O que temos é o espetáculo vertiginoso de um conceito – o conceito de arte. Em todo o caso, a criação atribuída ao ‘Sr. Mutt’ é a de um novo pensamento para aquele objeto; assim, a obra deve ser pensada com o objeto, tomada conjuntamente, e o objeto, como consequência, é somente parte da obra. [...] e então a apreciação permanece suspensa, pendente do surgimento de interpretação. (DANTO, 2014, p. 70)
É no pensamento que o é transfigura um objeto em obra de arte, mas não um é apenas como uma afirmação linguística ou institucional, mas um é que surge a partir do reconhecimento da verdadeira intenção ou do verdadeiro significado presente no objeto. Warhol (apud DANTO, 2014, p. 73) afirma que: “quanto mais você olha para exatamente a mesma coisa, mais o significado vai embora e você se sente melhor e mais vazio”. Esta afirmação diante do urinol de Duchamp, por exemplo, poderia ser trazida como uma pergunta:
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por que quanto mais você olha para exatamente a mesma coisa, mais o significado vai embora? E a resposta seria: porque esta é a verdadeira intenção de algumas obras e seu verdadeiro significado, proporcionar que coisas puramente estéticas sobrem, “escolhas que simplesmente preferimos, sem termos sido ensinados a preferir e sem razões para a preferência” (DANTO, 2014, p. 72). Esta é uma proposta inovadora e certamente é o que torna o urinol de Duchamp uma peça única em meio a tantas outras. Como nova proposta, a filosofia da arte de Danto sugere que se faça necessário um novo tipo de experiência estética, muito diferente daquelas apresentadas até então. Propõe que olhemos para um objeto, reflitamos sobre ele e sobre o que ele é, porque este é justamente seu objetivo. É o conjunto destes processos mentais que tem o poder de mudar a realidade, como pensado por Danto (2005, p.12), quando afirma que o mundo e nosso sistema de representações são interdependentes, isto é, algumas vezes mudamos o mundo para que ele se encaixe em nossas representações, e outras vezes mudamos nossas representações para que elas se encaixem no mundo, pois o mundo que mudamos não é o mundo externo, e sim o mundo interno modificado em nossa nova forma de pensá-lo. Mas para Danto (2014, p. 124), é necessário ainda indagarmos sobre “como nos adaptaremos ao fato de a questão ter uma resposta afirmativa, que a arte realmente acabou tendo se transmutado em filosofia”. Ou seja, agora temos que descobrir como iremos reinterpretar a arte, tendo ela se transfigurado numa filosofia da arte.
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3 A ARTE PÓS-HISTORICIDADE: PERSPECTIVAS DE SOBREVIVÊNCIA
No capítulo anterior vimos que a arte só tem continuidade histórica se pensada como uma filosofia da arte. Com isto, poderíamos tomar como conclusa esta pesquisa: no entanto, sendo ela uma nova proposta ontológica ao conceito de arte, como toda filosofia, cabe agora uma autocrítica, ou uma análise desta teoria compondo o objetivo central deste estudo o qual se propõe investigar a proposta de mundo da arte sob a perspectiva de Arthur Coleman Danto. Assim, o objetivo central deste capítulo, como sugere Danto (2005, p. 19), é responder à questão central da filosofia da arte: como a obra se relaciona com o objeto? Ou será que a arte como filosofia assume a mesma estrutura da retórica, a de bem argumentar, ou de modificar a mente? Em Danto (2014, p. 114), a interpretação é a agência através do qual um objeto de um lugar comum é alçado ao nível da arte. Logo, a interpretação é o meio pelo qual o sujeito se relaciona com o objeto, que se relaciona com a obra, relação esta que acontece no pensamento. Mas, para isto acontecer, a interpretação deve estar alicerçada em algum parâmetro que garanta a possibilidade de se fazer uma leitura correta de uma obra de arte pertencente a um momento pós-histórico, com todas as implicações que isto sugere como já vimos. No terceiro capítulo, estruturado em três momentos, primeiramente veremos como acontece a interpretação já que está é a vitória ontológica e a garantia conceitualmente pelo qual os objetos se transfiguram em arte. Após, veremos como não confundir leitura com interpretação mesmo tendo a arte de tornado uma filosofia. E, por último, tentando responder à questão – o que é arte após o seu fim – veremos quais são os meios conceituais encontrados pelas artes atuais e as novas implicações que surgem destas perspectivas de sobrevivência.
3.1 A interpretação como transfiguração do lugar comum
Todo aquele que se coloca diante de uma obra de arte tende a desvendar seu significado. A interpretação, neste sentido, “é o cerne do exercício da crítica de arte” (DANTO, 2005, p. 19). Uma filosofia que procure o significado do que é arte, da mesma forma só o poderá fazer a partir da interpretação, o que a torna um tipo de caminho ontológico para saber o que é arte. Para Danto (2014, p. 74), há objetos do meio comum que se tornam obras de arte, assim como há objetos indiscerníveis com os do meio comum, que são arte em virtude de interpretações distintas e diferentes. Porém, nem toda obra é uma transformação por meio da interpretação de um objet trouvé (objeto encontrado). Isto equivale a dizer que não basta termos um objeto qualquer e querer transformá-lo em uma obra de arte apenas por assim interpretá-lo. Retirar um
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urinol de um lugar qualquer e expô-lo numa galeria de arte não é o suficiente para que tenhamos a Fonte de Duchamp, por exemplo. A interpretação é, com efeito, a alavanca com a qual um objeto é alçado para fora do mundo real e para dentro do mundo da arte, onde é trajado de uma vestimenta muitas vezes inusitada. Um objeto material só é uma obra de arte em relação a uma interpretação, o que obviamente não implica que o que é uma obra de arte seja relativo de alguma outra maneira interessante. A obra de arte que uma coisa se torna pode ter, de fato, uma notável estabilidade. (DANTO, 2014, p. 74)
Sob o ponto de vista da interpretação, para Danto (2014, p. 75), há dois problemas a serem enfrentados: um filosófico e outro crítico. O primeiro diz respeito a como não interpretar coisas que não são candidatas ao mundo da arte. E o segundo, a como não fazer interpretações erradas às coisas que pertencem ao mundo da arte. Para exemplificar a situação em que surgem estas questões, imaginemos, a exemplo do autor, um trio de pás de neve que não são candidatas ao mundo da arte e a Fonte de Duchamp. A Fonte de Duchamp é um bom exemplo de objeto de arte que possui diversos congêneres, no entanto, nem todos os urinóis são obras de arte, e isto independe de nossas interpretações. Já as pás de neve, não são candidatas ao mundo da arte porque não carregam a intenção de serem obras de arte. Imaginemos um museu repleto de urinóis, ou repleto de pás de neve; podemos dar o primeiro passo em direção à interpretação e então nos deparamos com duas situações: diante dos urinóis descobrimos que interpretamos o objeto errado e, diante das pás de neve, tentamos interpretá-las mesmo não sendo elas objetos de arte. Que frustração para o espectador em meio a estas constatações, poderia até mesmo pensar que nada sabe sobre o mundo da arte por mais exímio conhecedor que possa ser. Esta situação nos põe diante de duas questões; é mais errôneo estar diante do urinol errado e interpretá-lo como a Fonte de Duchamp, ou estar diante das pás de neve tentando impingi-las com um significado artístico? Para o filósofo Odo Marquart (apud DANTO, 2014, p. 78), há um equívoco no direcionamento destes problemas. Se uma filosofia da arte pretende saber o que é arte através da interpretação, não há nada de incorreto na indiscernibilidade entre os objetos, tampouco na relação entre obra de arte e objeto material. A questão filosófica sob o ponto de vista da interpretação está em saber interpretar. Assim, o espectador diante de um urinol qualquer não comete erro algum por interpretá-lo como a Fonte de Duchamp, porque correto é saber que há um urinol denominado A Fonte (o original), e tudo o que vier após este conhecimento são apenas interpretações. Da mesma forma, estar diante das pás de neve sem saber seu significado não é um equívoco, pois se estaria tentando dar um significado artístico a algo que não pertence ao mundo da arte.
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O problema da interpretação reside no próprio entendimento sobre o que é interpretação ou como interpretar. Estas questões sinalizam para o fato de que há “pontos de vista de interpretação artística [...]” (DANTO, 2014, p. 74). Lembremos, “[...] A obra é o objeto mais o significado” (DANTO, 2005, p.19). Ou seja, os objetos são arte porque são “impingidos” de intenção, de conteúdo e são colocados como artes, o espectador apenas reage de acordo com o que está estabelecido. Porque as interpretações que ela impugna apenas começam ou podem começar quando a obra de arte está colocada, estabelecida como tal, e o intérprete começa a ponderar o que o artista ‘realmente’ está fazendo ou que a obra ‘realmente’ significa. Ela é contra a ideia de interpretação que faz da obra de arte um explanadum – um sintoma, por exemplo. Minha teoria da interpretação é, ao contrário, constitutiva, porque um objeto é de fato uma obra de arte apenas em relação a uma interpretação. Podemos expressar isto de um modo um pouco mais lógico. A interpretação, no sentido que uso, é transfigurativa. Ela transforma objetos em obras de arte e depende do ‘é’ da identificação artística. As interpretações dela, que são explicativas, usam, ao contrário, o ‘é’ da identificação comum (DANTO, 2014, p. 79)
Conforme citado acima, a interpretação é o pivô para a identificação artística. Ela determina quais partes e propriedades de um objeto pertencem a uma obra ou não. Esta teoria nos auxilia a resolver o problema da interpretação sob o ponto de vista filosófico. Ela encerra o problema da indiscernibilidade entre os objetos, porque não há como confundir realidades singulares. A identificação artística “transfigura” um objeto em obra de arte através da interpretação. Assim, estar numa galeria com pás de neve que não foram estabelecidas como arte, e tentar interpretá-las como tal é incorrer num erro de identificação artística. O problema filosófico da interpretação reside na necessidade de conhecermos o é da identificação artística. O segundo problema refere-se à capacidade de não fazer interpretações erradas às coisas que pertencem ao universo da arte. Esta é a chave mestra que nos coloca em sintonia com esse universo. O problema da crítica está em evitar que se faça uma identificação comum a um objeto que pertença ao mundo da arte. No início deste estudo citamos o conflito de Danto quando, em 1964, o autor deparouse com as embalagens do sabão em pó Brillo Box de Andy Warhol. Danto (2005, p. 16) afirma que prontamente as acolheu como arte. Esta acolhida, certamente, reflete a condição do autor que, em um momento menos estupefato, conseguiu reconhecer nas embalagens o é da identificação artística. Porém, logo em seguida, a questão que surge para Danto é justamente porque as caixas de sabão em pó no supermercado não eram arte. Esta situação do autor certamente é a situação de muitos visitantes a uma galeria de arte, mas isto só acontece porque não sabemos o que interpretar.
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[...] não podemos estar profundamente enganados se supusermos que a interpretação do objeto-como-obra-de-arte é aquela que coincide mais proximamente com a interpretação do próprio artista [...]. Se as interpretações são o que constitui as obras, não há obras sem elas, e as obras são malformadas quando a interpretação é errada. E conhecer a interpretação do artista é, de fato, identificar o que ele fez. A interpretação não é algo exterior à obra: obra e interpretação surgem juntas na consciência estética. (DANTO, 2014, p. 79 e 80)
Uma interpretação não pode ser apenas subjetiva, pois se limita a obra, e a obra deve falar aquilo que o artista quis dizer pela representação: sendo assim, a interpretação deve ser a mais próxima com a interpretação feita pelo próprio artista. A consciência estética que devemos desenvolver deve basear-se pela “posição do artista no mundo, pelo momento e pelo lugar em que viveu, por quais experiências ele poderia ter tido” (DANTO, 2014, p. 80). No texto, The Artwhord de 1964, Danto afirma que é em termos da TR que devemos entender as obras de arte. Assim, uma interpretação correta deve estar conectada a realidade do objeto que só pode ser conhecida por aquilo que está representado. É a TR que conecta a interpretação à obra, mas o que interpretar sobre a obra Supremo 57 de Kazimir Malevich? (ver figura 6). Fig. 6 - Dinâmico Suprematismo, ou Supremus 57. Kazimir Malevich (1915–1916).
Fonte: Disponível em: < http://www.tate.org.uk/art/artworks/malevich-dynamicsuprematism-t02319>. Acesso em: 12 nov. 2016.
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Interpretamos possivelmente, apenas que estamos em frente a um quadro com diversas figuras geométricas pintadas em cor plana e sólida, mas o correto é interpretá-lo como um quadro abstracionista, inspirado no futurismo e no cubismo, onde as formas geométricas pintadas em cores sólidas representam o ideal de pintura pura da Vanguarda Russa, que deu início ao movimento suprematista e que a intenção desta composição era transmitir uma sensação de agitação e movimento, tensão equilibrada, ordem e caos, enquanto o fundo branco, que acolhe as formas geométricas flutuantes, carrega uma sugestão do espaço infinito, sugerindo o momento em que ela foi criada: uma guerra desastrosa, a escassez de alimentos, ao colapso moral, o desespero generalizado, o desperdício da vida humana, situação onde se encontrava Malevich, um reservista convocado, em julho de 1916, como sugere o anúncio desta obra no site oficial da Tate11. A verdade é que, mesmo numa descrição sucinta sobre esta e algumas outras obras, num primeiro contato, a interpretação é quase impossível. A intrigante composição destes objetos e o despojamento intelectual do espectador é, no mínimo, causador de um desconforto e perturbadoras dúvidas: o que interpretar? Como interpretar? Qual o significado? Quem, ou o que pode garantir uma interpretação correta? Danto nos dá algumas pistas: A interpretação rotineira é uma questão de determinar a identidade textual, portanto, e embora seja possível apelar a uma grande quantidade de fatores como apoio a uma teoria, a hipótese central e de controle se refere às representações possíveis do próprio autor a respeito de como o texto deve ser lido. (DANTO, 2014, p. 84)
Para Danto, uma obra carrega uma identidade textual. Cabe ao espectador familiarizarse com o estilo do artista que irá dispor dos meios e hipóteses para uma interpretação correta de sua obra. “Se as interpretações são o que constitui as obras, não há obras sem elas, e as obras são malformadas quando a interpretação é errada. E conhecer a interpretação do artista é, de fato, identificar o que ele fez” (DANTO, 2014, p. 80). Uma interpretação correta é como a leitura de um texto da qual se pretende unicamente saber o que o artista escreveu e, é somente nesta relação, entre objeto e significado, que a obra se compõe. Mas, quando falamos de uma obra de arte não estamos falando de uma sentença gramatical ou textual que nos permite reconhecer seu significado através de predicados específicos como se faz na leitura de um texto escrito. Neste sentido, a questão que surge é: como fazer essa leitura textual da arte, quando não é possível este contato com o autor e quando não podemos recorrer a uma teoria específica?
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Pagina oficial do Museu Nacional de Arte Moderna do Reino Unido sediado em Londres. Disponível em: < http://www.tate.org.uk/art/artworks/malevich-dynamic-suprematism-t02319 >. Acesso em: 12 nov. 2016.
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3.2 É possível uma leitura da obra de arte?
Inúmeras obras de arte podem ser apresentadas com uma estrutura narrativa. Alguns quadros podem ser criados mostrando uma sequência histórica ou organizados lado-a-lado, como numa história em quadrinho, o que facilita sua compreensão. Podem aparecer em sua composição elementos como: traços, linhas, cores e pinceladas, que supõem uma leitura. Em outros casos, até mesmo palavras artisticamente pintadas, grifadas ou coladas como numa montagem, podem trazer informações que facilitem uma “leitura”. Como sugere Danto (2014, p. 110) algumas obras parecem dialogar entre si, ao referir-se às gravuras de Hogarth como Gin Lane (ver figura 7) 12. É possível perceber e quase ouvir a voz, os gritos, as palavras, os sussurros e gemidos dos personagens que vagam em um cenário detalhadamente elaborado para nos insinuar algo. Fig. 7 - Gin Lane. William Hogarth (1751).
Fonte: Disponível em: <http://www.tate.org.uk/art/artworks /hogarth-gin-lane-t01799>. Acesso em: 12 nov. 2016. 12
A gravura Gin Lane foi concebida juntamente com a gravura Beer Street (Rua da cerveja), juntas, fazem parte de uma campanha contra a produção e venda descontrolada de Gin a qual culminou no Gin Act (Lei Gin) de 1751. A gravura retrata os males do vício com o consumo de gin e os méritos de beber cerveja. Os habitantes da Rua da cerveja são retratados felizes e saudáveis em um comércio florescente enquanto aqueles que vivem em Gin Lane, estão destruídos pelo vício retratados por cenas de decadência social, infanticídio e miséria comercial.
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Nas obras contemporâneas dos artistas Vando Figueiredo, Derek Gores e Vik Muniz (ver figura 8), por exemplo, as telas são feitas a partir de recortes de revistas e jornais. Além de apreciar belíssimas releituras de quadros famosos, é possível sentar-se à frente destas obras e quase as ler como um jornal. As famosas bienais são mais talentosas ainda quando carregam para lá e para cá diversas obras com som, luz e imagem, e, se interpretar uma obra de arte equivale a fazer a leitura sobre aquilo que o autor está querendo dizer, encontramos diversos exemplos na atualidade que possuem em sua estrutura elementos gramaticais, textuais e verbais. Logo, a questão que surge é; como não confundir leitura com interpretação? Fig. 8 - Autorretrato. Vik Muniz.
Fonte: Disponível em: < http://blog.sc.senac.br/vik-muniz-transformamateriais-incomuns-em-arte/#lg=1&slide=0>. Acesso em: 11 nov. 2016.
A leitura de uma obra de arte não pode ser confundida com uma leitura narrativa. Se assim fosse, poderíamos considerar qualquer sentença textual como arte, o que não exclui a possibilidade de que algum texto venha a ser uma obra de arte. Para Danto (2014, p. 105), a leitura de uma obra de arte não equivale a fazer uma leitura gramatical ou sintática como a conhecemos. Ele afirma que “a estrutura de uma obra não é a estrutura de uma sentença, e a compreensão de uma obra nem mesmo é paralela à competência gramatical empregada pela produção e compreensão das sentenças numa linguagem” (DANTO, 2014, p. 111). Esta afirmação é válida também para aquelas obras que pareçam fazer referências narrativas. Em termos de TR a leitura de uma obra de arte deve obedecer àquilo que está determinado pela corrente artística. Isto justamente não pode ser confundido com fazer a leitura
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narrativa de uma obra de arte, como à de um texto. Há uma essência diáfana na TR, uma “transparência” que “[...] obviamente remove tudo da consideração estética exceto o conteúdo da obra” (DANTO, 2014, p. 63). Isto equivale a dizer que o espectador irá relacionar-se com a obra, considerando as diferentes correntes artísticas que cada obra utiliza como forma de apresentar-se. Assim, se a obra apresenta-se através de um som, irá ouvi-la, se for uma pintura, irá visualizá-la, se forem palavras escritas, obviamente irá lê-las, se for uma estátua, poderá admirá-la em seus diferentes ângulos, se for uma peça teatral, irá assistir à apresentação, mas, ainda teremos que considerar que existe “[...] uma dimensão retórica em qualquer obra de arte em consequência do intercâmbio entre conteúdo e modo de apresentação” (DANTO, 2014, p. 115), ou seja, há nas obras de arte a intenção de dizer algo. É neste momento que se faz a confusão entre ler e interpretar. Devida à necessidade de determinar significado as coisas e da mesma forma às obras de arte, impedimos que elas mesmas nos falem através de seu conteúdo, visualmente pré-concebido pela corrente artística que a representa. Não é possível confundir leitura com interpretação, porque “[...] o conceito de texto carrega consigo uma grande quantidade de energia, e transcende, de modos ainda não esclarecidos adequadamente, a unidade básica de transmissão linguística [...]” (DANTO, 2014, p. 111). A exemplo de Danto, a palavra “s” tem significado diferente do significado de “s” sozinho. Este exemplo, ao conceito de interpretação de uma obra de arte, significa que o que enxergamos é a palavra “s” e não o “s” sozinho. Não podendo considerar um texto através de uma única sentença, também não podemos considerar uma obra de arte como uma palavra que possa ser lida como uma única sentença. Danto (2014, p. 114) afirma que tratar algo como uma obra de arte é supor que se faça uma interpretação das suas representações, mas não uma leitura textual ou linguística. Há diferenças entre representações pictóricas e linguísticas que depõem pesadamente contra a possibilidade de uma linguagem puramente pictórica do tipo fantasioso por Wittgenstein no Tratactus; mas no nível do texto essas diferenças desaparecem, o que explica por que nem é mesmo uma metáfora forçada dizer que as gravuras de Hogarth devem ser lidas. Um texto, pictórico ou verbal, começa a reivindicar o status de arte quando surgem certas questões a ele conexas que não podem, por um lado, ser respondidas por meio da psicologia óptica ou pictórica ou, por outro lado, simplesmente ser interpretadas ou concluídas de um texto, digamos, narrativo. (DANTO, 2014, p. 113)
Conforme vimos acima, considerando a TR, o espectador só tem acesso e obrigação de entender aquilo que o autor quis dizer exposto na obra pela representação. O perigo de confundir leitura com interpretação “[...] é internamente conexa com a psicologia da reação artística, na qual a interpretação é coimplicada com a apreciação” (DANTO, 2014, p. 115). Este talvez seja
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o conceito de leitura ou interpretação mais apropriado às obras de arte, distinguir uma reação artística implicada à apreciação com aquilo que seu autor quis dizer. Entender este objeto literário complexo, que é a obra de arte, sob o ponto de vista de um agente ou autoridade que é seu autor, implica que sejam distinguidos dois tipos de interpretação: a profunda e a de superfície. A distinção entre profundidade e superfície é perpendicular à distinção filosoficamente mais corriqueira entre interno e externo. [...] a interpretação de superfície pressupõe caracterizar o comportamento externo de um agente com referência à representação interna desse comportamento, presumida como sendo do agente, e o agente se encontra numa posição um pouco privilegiada com respeito ao que são suas representações de superfície. (DANTO, 2014, p. 87)
Partindo do pressuposto citado acima por Danto, de que uma interpretação profunda e de superfície é perpendicular aos termos interno e externo, equivale dizer que os termos possuem sentidos opostos e inversos. Uma interpretação profunda está para o termo externo, do mesmo modo que superfície está para o termo interno. Este entendimento aplicado à intepretação de uma obra de arte compreende que um espectador faz uma interpretação profunda ao objeto observado, mesmo que seu entendimento seja externo à obra ou ao significado pensado pelo autor. Este tipo de interpretação é referente à acessibilidade que o espectador dispõe com relação àquilo que lhe é apresentado. Já o autor, que está numa posição de privilégio no que diz respeito às suas representações internas, faz uma interpretação superficial, pois os meios de que dispõe para conhecê-las são diferentes daqueles que os intérpretes terão acesso, o que não lhe dá mérito ou autoridade alguma sobre a obra. Como vimos, uma obra é o objeto mais o significado, e este poder parece pertencer ao espectador mais que ao autor, pois é ele quem faz a interpretação profunda a partir daquilo que foi exposto na obra. O sujeito em relação à obra está sempre externo a ela, o que torna as interpretações do autor externas a ele mesmo, como um “Outro Espírito” para si próprio. No que tange às suas representações profundas, ele não tem nenhum privilégio, portanto nenhuma autoridade, porque ele deve vir a conhecê-las por maneiras não diferentes daquelas impostas sobre os outros: elas são pelo menos cognitivamente externas a ele, mesmo que sejam parte de seu caráter e de sua personalidade; e no que diz respeito a elas, ele é, por assim dizer, um Outro Espírito para si próprio. (DANTO, 2014, p. 87).
Uma interpretação de superfície, para que seja bem-sucedida não pode desconsiderar as regras da TR. Assim, em termos de TR, a interpretação deve buscar conhecer aquilo que o autor quis dizer em sua obra, mas isto também deve estar representado na obra. Esta operação que Danto (2014, p. 87) descreve, e que é conhecida como Verstehen (entender), é a capacidade de
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entendimento a algo externo ao sujeito, mas que atravessa os limites obscuros que o separam do interno, e isto se dá pela busca de conhecimento sobre aquilo que lhe é apresentado. Uma interpretação, mesmo que de superfície à obra, é profunda, porque pressupõe que há uma barreira intransponível de acessibilidade do conhecimento suposto pelo autor da obra, o que faz com que a interpretação de superfície cumpra sua tarefa em termos de leitura da obra de arte. Por isso, há a necessidade de termos o tipo certo de conhecimento, pois é ele que dará identidade ao objeto, permitindo assim que ele passe a ser uma obra através da relação entre objeto mais significado. A sensação que temos de que os significados das obras são ocultos está apenas atrelada à incapacidade do agente na explicitação de seus objetivos ao representá-los na obra. Isto não justifica, porém, que possamos fazer uma interpretação incorreta, pois somos sempre impelidos a reagir e interpretar pelo que as obras falam por si próprias em suas representações e pelo entendimento sobre o que o autor quis dizer. Numa interpretação interna, a obra pode significar muitas coisas, porque as interpretações de superfície são históricas e referem-se apenas como uma possibilidade. “As interpretações são infindáveis, mas apenas porque o conhecimento é inatingível. O que resta é reagir à obra, tanto quanto é possível no seu triste estado” (DANTO, 2014, p. 101), a saber: o estado de uma arte que chegou ao fim em sua relação com o conceito histórico da arte, e que, assim num momento pós-histórico, apresenta-se de forma livre, autônoma e conexa com realidades diversas de seus autores. Esta situação não é menos complexa, pois traz novamente a questão – o que é arte, ou como identificar e diferenciar o que é arte, neste momento pós-histórico em que a arte se tornou uma filosofia de si mesma. 3.3 Após o fim da arte: O que “é” arte?
Na ruptura da relação da arte com a história, se exaure o próprio conceito de arte e a questão - o que é arte – ressurge não apenas como uma ausência de identidade, mas como necessidade de autoconhecimento. O que vimos até o momento, para “pensarmos na arte como tendo um fim, precisamos de uma concepção da história da arte que seja linear, [...]” (DANTO, 2014, p. 144), assim, o que surge desta dialética é que a linearidade histórica deverá ser somada ao modelo progressivo para que a filosofia da arte se torne possível e garanta a continuidade histórica dos objetos de arte. Em tempos onde não é mais possível se definir o que é arte, ou em tempo em que obras de arte surgem carentes de significado, como afirma Danto (2014, p. 148), há a necessidade do surgimento de uma nova tecnologia como modelo progressivo e como garantia conceitual da arte pós-histórica, ou desta filosofia da arte.
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Com o advento do século XX, que pode ser confirmado como o período em que acontecem os conflitos conceituais mais diversos, intensos e irresolutos, surge a tentativa de apresentar esta nova tecnologia, necessária à sobrevivência da arte pós-histórica e solícita pelo modelo progressivo. No entanto, sendo este momento caracterizado pela sensação de que não importa mais o que seja feito no mundo da arte, tanto vale uma coisa, uma direção quanto outra, reencontramos novamente a questão - o que é arte? – como carência de significado. Como consequência, surgem algumas tentativas de definição do que é arte, como: decoração, expressão, entretenimento e representação. Porém, para Hegel (apud DANTO, 2014, p. 151), isto apenas reafirma a ideia de que a arte não é mais livre para buscar suas mais altas possibilidades. E estando ela em detrimento de funções e necessidades humanas, a possibilidade de atribuir uma direção ou um verdadeiro significado do que é a arte se torna inaplicável pois, como afirma Danto (2014, p. 152), a “liberdade termina na sua própria realização”. Para o autor, as artes das colagens e das montagens, das esculturas móveis, da poesia concreta, do teatro e do cinema, certamente conseguem exemplificar esta tentativa de realinhamento interno. No entanto, novos limites surgem. Os conflitos que antes estavam para a arte e a filosofia, agora se apresentam entre a arte e a vida, e aqui, para Danto, há um novo problema: como separar arte e vida? O body art, arte performance, arte happening, piercing, tatoo e outros, são movimentos que se caracterizam por utilizarem o corpo como suporte ou utensílio para a criação de obras de arte, muitas vezes perturbadoras. No entanto, algumas se apresentam de uma forma tão diferente do sentido perturbador tradicional, que são marcadas por uma curiosa efemeridade. Pensadas como uma nova tecnologia da arte, para garantir sua sobrevivência conceitual, para Danto (2014, p. 157), este tipo de arte é definida como disturbacional. Termo pensado justamente para reter a conotação de distúrbio. Vejamos: [...] uma atividade que [...], procura obter, produzir um espasmo existencial por meio da intervenção das imagens na vida. Mas o termo também é pensado para reter as conotações de distúrbio, porque essas várias artes, frequentemente em consequência de sua execução improvisatória e precária, portam certa ameaça, até mesmo prometem certo perigo, comprometem-se com a realidade de um modo que as artes mais entrincheiradas e suas descendentes perderam o poder de conseguir. (DANTO, 2014, p. 157)
Para Noéli Ramme (2014, p. 10), no texto A arte e a vida, Danto refere-se como arte disturbacional àquelas atividades que contenham certa radicalidade em seu procedimento. Cita a autora, o exemplo da performance Dead Man (ver figura 9) de Chris Burden, em que o artista, dentro de um saco, deita-se em uma rodovia.
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Fig. 9 - Performance Dead Man. Chris Burden (1972).
Fonte: Disponível em: < http://www.phaidon.com/agenda/ art/articles/2016/april/11/how-a-horrific-childhood-accident-led-chrisburden-to-employ-extreme-personal-danger-in-his-artworks/>. Acesso em: 13 nov. 2016.
Um tipo muito diferente ao perturbador tradicional é a performance da artista Alice Newstead. Em 2011, pendurada por ganchos, em sua representação tenta ilustrar como são pescados os tubarões (ver figura 10). Fig. 10 - Artista britânica Alice Newstead, pendurada por ganchos em protesto contra o abate ilegal de tubarões em Hong Kong. (Foto: Mike Clarke / AFP) (2016).
Fonte: Disponível em: <http://g1.globo.com/mundo/noticia/2011/06/artista-esuspensa-por-ganchos-em-protesto-contra-caca-de-tubaroes.html>. Acesso em: 17 ago. 2016.
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Por mais absurdas que ambas as performances possam parecer, na arte disturbacional o risco de morte do artista ou do espectador é um fato tragicamente real e incorporado à obra. Diferentemente da arte perturbadora que apenas dispõe daquilo que sempre esteve aberto à possibilidade de se tornar arte, a representação. Um objeto transfigurado em obra de arte deve carregar em si o status de objeto representacional, do contrário, toda a teoria do fim da arte, assim como a teoria de que a arte se tornou filosofia se tornam inviáveis. Então é disturbacional quando os limites que isolam arte e vida são transpostos de um modo que a mera representação de coisas perturbadoras não pode atingir, exatamente porque elas são representações, e reagimos a elas como tais. É por esta razão que a realidade deve de algum modo ser um componente real da arte distubacional, e usualmente essa realidade é, ela própria, de um tipo perturbador: obscenidade, nudez frontal, sangue, excremento, mutilação, perigo real, dor verdadeira, morte possível. E esses são componentes da arte, e não simplesmente colaterais à sua produção ou apreciação – como quando os andaimes que sustentam os gesseiros desabam ou o pintor cai da escada ou um artista morre por septicemia ou um passante morre pela queda de um pedaço de beiral. (DANTO, 2014, p. 159)
Para Danto (2014, p. 159), talvez Platão tenha pensado a arte mimética como uma forma muito perigosa de representação, justamente em termos disturbacionais. Este tipo de comparação ou “catástrofe”, como afirma o autor, é novamente devido à nossa falta de conhecimento sobre o que é arte. Baseada na crença de que deva ser idêntica à realidade, uma vez que é impossível representá-la sem reproduzi-la, produzem-se os procedimentos disturbacionais como “arte”, mas que disturbam em relação à vida, como o exemplo citado por Danto, do artista Rudolf Schwarzkogler que em 1969 morre por auto-esfaqueamento. Todavia isto é diferente da arte mimética que, num sentido especulativo, como afirma Danto (2014, p 166), apenas reencena o ritual dionísico no nível da arte como representação e não da prática religiosa, separando a imagem da realidade. Mesmo que a arte disturbacional pareça ter, de certo modo, a intenção de nos reconectar com a “mágica”, no sentido de capturar realidades ao invés de apenas representá-las, o mesmo não ocorre, uma vez que a realidade é seu componente real e usual, e não algo a ser almejado como na arte perturbadora. Como apontam as especulações de Nietzsche (apud DANTO, 2014, p. 165), o ritual dionísico sofre uma evolução com a tragédia grega, estando mais para o teatro e o cinema modernos como busca catártica, a exemplo da doutrina aristotélica. Isto é apenas uma hipótese de que algo muito profundo possa acontecer com o público, “misticamente purgado” no clímax de uma encenação, e não uma possibilidade a ser afirmada como uma nova tecnologia, associada ao modelo progressivo, por exemplo, como garantia de sobrevivência conceitual da arte no momento pós-histórico.
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Conforme Ramme (2014, p. 8), obras de arte são símbolos, são representações do mundo, e como representações são ontologicamente distintas daquilo que representam. A busca pela mais alta possibilidade conceitual sobre o que é arte, será contemplada por uma filosofia da arte. A arte e a filosofia na atualidade são um só objeto como autoconhecimento, coincidindo com o que Hegel chama de conhecimento absoluto. Vejamos: O fim da história coincide com o que Hegel chama de advento do conhecimento absoluto – ou na verdade é idêntico a ele. O conhecimento é absoluto quando não há lapso entre o conhecimento e seu objeto, ou o conhecimento é seu próprio objeto, portanto sujeito e objeto ao mesmo tempo. O parágrafo final da Fenomenologia caracteriza apropriadamente a clausura filosófica do sujeito do qual ele trata, dizendo que ele ‘consiste no perfeito conhecer de si mesmo, em conhecer o que ele é’. Uma concepção de conhecimento como essa é, acredito, fatalmente falaciosa. Mas se algo se aproxima de sua exemplificação, é a arte em nosso tempo que o faz – porque o objeto no qual a obra de arte consiste é tão irradiado pela consciência teórica que a divisão entre o objeto e sujeito está quase superada, e não importa muito se a arte é filosofia em ação ou se a filosofia é a arte em pensamento. ‘É indubitavelmente o caso’, escreve Hegel na sua Filosofia das belas-artes, ‘que a arte possa ser utilizada como mero passatempo e entretenimento, ou no embelezamento de nossas cercanias, na impressão de uma superfície de melhoramentos para as condições externas de nossa vida, ou na ênfase posta pela decoração em outros assuntos’. Algumas dessas funções devem ser o que Kojève tem em mente quando fala que a arte está entre as coisas que farão o homem feliz no tempo pós-histórico. É um tipo de jogo. Mas esse tipo de arte, argumenta Hegel, não é realmente livre, ‘pois é subserviente a outros objetos’. A arte é verdadeiramente livre, ele continua, somente quando ‘ela se estabeleceu numa esfera que divide com a religião e a filosofia, tornando-se assim uma modalidade a mais e uma forma através do qual [...] as verdades espirituais da mais alta estirpe são trazidas de volta à consciência’. (DANTO, 2014, p. 150 - 151)
Danto pode afirmar, assim como Hegel (apud DANTO, p. 150), que o estágio histórico da arte chegou ao fim porque agora sabemos o que é arte.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS O que é arte? Como um objeto adquire o direito de participar do mundo da arte? Assim como em Arthur Danto, o objetivo desta pesquisa foi justamente responder a estas questões, analisando e reconstruindo sua teoria sobre o fim da arte e as implicações que esta afirmação trouxe ao mundo da arte. É quando o conceito de arte parece não estar mais presente no significado e na aparência dos objetos, e quando surgem obras que reivindicam a qualidade de arte, mas que se assemelham a cópias de coisas comuns, é que surge a dificuldade de diferenciação entre os objetos trazendo consigo estas questões. A “experiência estética”, como a compreendemos, não foi capaz de resolver estes problemas, pois as tendências surgidas no século XX, conhecidas como pós-impressionistas, apresentaram tantas possibilidades estéticas e uma diversidade artística tão grande, que tornaram as teorias da arte refutáveis como critério avaliativo e conceitual. A ruptura entre a relação arte e critérios da história confirmam a teoria de Danto de que a arte chegou ao fim. Ela acontece com o surgimento da arte contemporânea e com o movimento pós-impressionista onde, obras carentes de significado surgem e não são mais contempladas pelas teorias vigentes. Quando Danto (2006a, p. 15) refere-se a teorias da arte, considera a existência de duas como pano de fundo na história da arte: a TI (Teoria Imitativa) e a TR (Teoria Realidade). A TI é uma teoria platônica forte que representa muitas outras; no entanto, além de ser uma teoria depreciativa, suas predicações excluem uma grande categoria de objetos surgidos no século XX, e que justamente são criados como cópias da realidade, ou imitações dela. Já a TR é concebida como sendo uma nova teoria, acolhendo tudo o que era aceito pela TI e uma nova classe de artistas e suas obras que passam a ser entendidas como produções para ver e lembrar o real, com traços concebidos originalmente para não iludir, ou como não-imitações. Conforme as especulações do autor, a continuidade histórica da arte no momento póshistórico depende de uma tríplice relação entre: obra, objeto e significado. Esta relação deverá ser regrada pela TR e amparada pela filosofia, pois seu entendimento é de cunho ontológico e mudará a forma como compreendemos o termo ‘arte’ como afirma Danto (2006a, p. 16). Há dois modelos que garantem a continuidade histórica da arte. O primeiro é o modelo progressivo e implica a necessidade do surgimento sucessivo de tecnologias com a capacidade de substituir uma inferência por algo equivalente na obra que a própria realidade perceptual apresenta. Como exemplos do modelo progressivo podem ser citados: a perspectiva na pintura, os códigos ou sinais das histórias em quadrinhos e, recentemente, o cinema com relação ao teatro. O segundo modelo, que aqui podemos chamar de progresso histórico representacional,
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está entrelaçado com a teoria do fim da arte, ou seja, sugere a necessidade de um progresso dentro de um contexto histórico que seja linear, mesmo que o fim da arte só possa ser pensado considerando a ruptura entre a relação arte e história. Estes dois modelos somados às implicações trazidas pela arte expressionista, que não encontra uma tecnologia que substitua suas inferências e nem um meio representacional histórico, sem que estes sejam apenas episódios individuais e isolados, força o surgimento de um terceiro modelo tão inesperado que muda a forma de pensar o termo ‘arte’ e as estruturas do ‘mundo da arte’. Tanto Hegel como Danto, aqui concordam que só é possível manter esta dialética com o surgimento de um progresso cognitivo. Um modelo baseado no progresso cognitivo, conforme Danto (2014, p. 144), confirma que a arte é “um estágio transitório no advento de um certo tipo de conhecimento [...] autoconsciência, ou [...], autoconhecimento”. Esta reflexão é a confirmação de que a arte carrega em si uma natureza filosófica a qual rompe com a matriz histórica para se entrelaçar “com o advento de sua própria filosofia” (DANTO 2014, p. 145). Nesta ruptura, a estética modernista se altera, pois perde sua força para novas formas de interpretação: “a alavanca com a qual um objeto é alçado para fora do mundo real e para dentro do mundo da arte” (DANTO, 2014, p. 74). Sendo assim, o entendimento sobre – o que é arte - está muito mais perto de uma ação intelectual do que de uma experiência estética ou estimulação sensorial. Como progresso cognitivo, podemos entender que: é no pensamento que se transfigura um objeto em obra de arte, é no pensamento que está o é artístico e é no pensamento que surge o verdadeiro significado ou intenção dos objetos de arte. É o conjunto destes processos mentais ocorridos no pensamento que tem o poder de mudar a realidade como pensado por Danto (2005, p.12) ao escrever no livro Conexões com o mundo, de 1989, que “algumas vezes mudamos o mundo para que ele se encaixe em nossas representações, e outras vezes mudamos nossas representações para que elas se encaixem no mundo”. O mundo que mudamos não é o mundo externo e sim o mundo interno, na nossa forma de pensá-lo, quando adquirimos conhecimento. Sob o ponto de vista da interpretação, para Danto (2014, p. 75), há dois problemas a serem enfrentados: um, filosófico e outro, crítico. O primeiro diz respeito a como não interpretar coisas que não são candidatas ao mundo da arte e o segundo, a como não fazer interpretações erradas às coisas que pertencem ao mundo da arte. Porém, a exemplo do filósofo Odo Marquart (apud DANTO, 2014, p. 78), há um equívoco no direcionamento destes problemas. Se uma filosofia da arte pretende saber o que é arte através de um processo cognitivo pela interpretação, não há nada de incorreto na indiscernibilidade entre os objetos, tampouco na relação direta entre obra de arte e objeto material, visto que o significado da obra está em saber interpretar.
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No texto The Art Whord, de 1964, Danto afirma que é em termos de TR que devemos entender as obras de arte que nos rodeiam. Neste sentido, uma interpretação correta não pode ser outra além daquela que esteja intimamente conectada com a realidade do objeto e a realidade do objeto não pode ser outra além daquela que nos é apresentada. Danto afirma que num primeiro contato com a obra a interpretação é quase impossível. A composição de alguns objetos e o despojamento intelectual do espectador é, no mínimo, causador de um desconforto e perturbadoras dúvidas: o que interpretar? Como interpretar? Este posicionamento já seria uma identificação artística válida, pois como vimos, esta é a intenção de muitos objetos, proporcionar que coisas puramente estéticas sobrem; “escolhas que simplesmente preferimos, sem termos sido ensinados a preferir e sem razões para a preferência” (DANTO, 2014, p. 72). Mas, em Danto (2006a, p. 20), afirma que ver algo como arte requer algo que o olho não pode repudiar – “uma atmosfera de teoria artística, um conhecimento da história da arte: um mundo da arte”. Há neste momento, o que parece ser uma contradição. A arte está em conformidade com as interpretações, mas estas interpretações dependem de um conhecimento prévio sobre a arte e a obra. A resposta a esta questão talvez esteja na própria TR. O espectador é livre para interpretar tendo como critérios a TR, e com base nela, só tem acesso e obrigação de entender aquilo que o autor quis dizer em sua obra exposto pela representação. Esta operação Danto (2014, p. 87) descreve como Verstehen (entender) que é a capacidade de entendimento a algo mesmo externo ao sujeito. “As interpretações são infindáveis, mas apenas porque o conhecimento é inatingível. [...] O que resta é reagir à obra, tanto quanto é possível no seu triste estado” (DANTO, 2014, p. 101), a saber: o estado de uma arte que chegou ao fim e que num momento pós-histórico apresenta-se de forma livre, autônoma e conexa com as realidades diversas de seus autores. Podemos concluir que as especulações de Danto convergem na tentativa de identificar o “é” da obra de arte, e poder responder à questão - o que é arte - através de uma definição conceitual. Da mesma forma, a pluralidade dos movimentos no século XX também exemplifica esta tentativa. Uma definição essencialista que é claramente confirmada pelo autor, quando, no texto A Transfiguração do Lugar-comum (2005, p. 243), argumenta que usou três concepções para distinguir a arte de objetos comuns: conceito de retórica, conceito de estilo e conceito de expressão. Isto fica evidente nos três capítulos deste estudo, quando percebemos que, primeiramente, Danto tentou distinguir a arte através de estilos previstos nas teorias da arte; segundo, quando comparando a arte à retórica aproximou-a da filosofia e, no terceiro capítulo, ao distinguir a arte disturbacional da arte perturbadora, aproximou-a do conceito de expressão.
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Como afirma Danto (2014, p. 13), o que se busca é uma natureza da arte, escapando ao descredenciamento filosófico operado por Platão, quando a condenou a uma existência inferior, acusando-a de ser apenas cópia das cópias reais do mundo das ideias. “O fim desse processo histórico chega quando o Espírito”, a consciência da arte, “que estava incorporada na cultura e nas instituições humanas durante todo seu progresso, não está mais autoalienado por concepções errôneas” e teorias da arte, “mas reconhece a si mesma em si mesma”, transfigurando a arte pela filosofia ou, transfigurando-se numa filosofia da arte. Uma consequência do próprio mundo da arte que não encontra mais respaldo na história. Conforme Ramme (2014, p. 10), a arte conceitual seria uma culminação desse processo histórico. A busca por uma arte pura como filosofia não necessita nem mesmo de um objeto físico podendo ser apenas constituída por uma ideia. Esta argumentação é defendida por Danto quando, a exemplo de Hegel, afirma que a arte vai ao encontro do conhecimento absoluto, tornando-se arte e conhecimento um só objeto. A arte num mesmo patamar da filosofia tornando-se ela mesma uma investigação conceitual e ao final de tudo o que há “é teoria, tendo a arte finalmente se vaporizado num deslumbre de puro pensamento sobre si mesma, permanecendo, de certo modo, apenas como objeto de sua própria consciência teórica” (DANTO, 2014, p. 148). Podemos concluir como Danto (2014, p. 239) que, se a arte supostamente transformou os seres humanos, a história da arte não pode ser a história da ilusão nem da imitação, mas é a história da arte como realidade, do contrário, não houve nenhuma evolução humana. O que não é possível e nem desejável é que se ultrapasse o último limite, entre a arte conceitual e a vida. Isto significaria dizer que não teríamos mais espaço para a liberdade ou para a autonomia de criação de representações, e que a arte estaria finalmente incorporada à nossa vida, o que poderia ser talvez seu verdadeiro fim, ou o fim da humanidade. Obras são e devem permanecer distintas de coisas reais, fazendo uso daquilo que sempre foi seu componente, a representação. As dificuldades encontradas foram em relação a investigar Danto, sendo que me era um autor desconhecido. Aprofundar as leituras com comentários de outros autores. Dialogar diretamente com a obra de Hegel. A magnitude e o entrelaçamento da teoria de Danto em toda sua obra, o que dificulta que sejam analisados pontos isolados. Quanto a interesses de estudos futuros, fica a motivação de investigar o que levou Hegel a decretar o fim da arte sendo que o tempo que o separa da arte pós-impressionista e da arte contemporânea, estilos que levaram Danto a decretar o seu fim, é de mais ou menos dois séculos. E, investigar como é possível uma educação sobre as artes da atualidade, ou como a arte pode continuar construindo o conhecimento se, além não ter mais um respaldo marcado
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por tempos históricos, como regra a Teoria da Realidade absorve uma infinidade de estilos cada qual a critério de seus criadores, sugerindo uma dificuldade em termos didáticos. Em tempos nos quais políticas educacionais divergem sobre o conhecimento das artes como um bem comum e direcionam suas limitações a outros objetivos que não o da liberdade, qual será a contribuição e o objetivo da arte atual? Uma autoafirmação, uma auto identidade? Como proposto por Hegel, necessitamos também hoje que as mais altas verdades espirituais sobre o que é arte, ou sobre a filosofia da arte, sejam trazidas de volta à consciência. Quanto a curiosidades, sinalizo para um fato recente que lembra a magnitude da obra de David Reed. Ao inserir a pintura #328 na imagem de Still de Um corpo que cai (ver figura 5), além de servir como um exemplo da ruptura da arte com os limites da história, interferindo em algo que estava no passado, o ato de Reed reforça hoje a teoria de Danto sobre esta ruptura. Esta é a leitura que faço a partir de uma reportagem do jornal Folha de S. Paulo do mês de novembro de 2016, onde anuncia que a revista francesa "Télérama" elege 'Um Corpo que Cai' como o melhor filme da história (cf. 13). David Reed não apenas interferiu em algo a seu passado, mas também em algo que iria ser lembrado no futuro.
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Jornal Folha de São Paulo. Sessão Ilustrada (online). Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/11/1833010-revista-francesa-elege-um-corpo-que-cai-como-omelhor-filme-da-historia.shtml?cmpid=facefolha>. Acesso em: 17 nov. 2016.
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REFERÊNCIAS Básicas: DANTO, Arthur Coleman. Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história. São Paulo: Odysseus, 2006b. _____. A transfiguração do lugar-comum: uma filosofia da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2005. _____. Entes representacionais: Tradução de Ronai Rocha. Capítulo 37 do livro Connections to the World – The Basic Concepts of Philosophy, de Arthur C. Danto: Berkeley, University of California Press, 1997. Disponível em: <https://www.academia.edu/2020550/Arthur_Danto_-_Conex%C3%B5es_com_o_mundo__Cap._20_-_Os_Entes_Representacionais>. Acesso em: 08 nov. 2016. _____. O descredenciamento filosófico da arte. São Paulo: Autêntica, 2014. _____. O mundo da arte. O original, “The Artworld”. Publicado em: The Journal of Philosophy, Vol. LXI, n° 19: 15 de outubro de 1964. Trad. do autor e atual editor do periódico, Revista Artefilosofa. Ouro Preto, n.1, p.13-25, jul. 2006a. Disponível em: <http://www.raf.ifac.ufop.br/pdf/artefilosofia_01/artefilosofia_01_01_mundo_arte_arthur_da nto.pdf>. Acesso em: 06 nov. 2016. Complementares: FIANCO, Francisco. Após o fim da arte, de Arthur Danto. História: Debates e Tendências. Universidade de Passo Fundo. v. 12, n. 2, jul./dez. 2012, p. 377-382. Disponível em: <http://seer.upf.br/index.php/rhdt/article/view/3080/2068>. Acesso em: 05 nov. 2016. DICKIE, George. Definindo Arte: Intensão e Extensão. In: KIVY, Peter. Estética: Questões de filosofia da arte. Trad. Euclides Luiz Calloni. São Paulo: Paulus, 2008. p. 63-83. PLATÃO. A República. Rio de Janeiro: EDITORA GLOBO S. A., 1964. RAMME, Noéli. A arte e a vida: interseções. Revista ArteFilosofia, Ouro Preto, n.17, Dez. 2014, p, 4-12. Disponível em: <http://www.raf.ifac.ufop.br/pdf/artefilosofia_17/4_12Noeli.pdf> Acesso em: 16 ago. 2016. RAMME, Noéli. É possível definir “arte”?. Analytica, Rio de Janeiro, vol. 13 nº 1, 2009, p. 197-212. Disponível em: <http://analytica.inf.br/analytica/diagramados/159.pdf>. Acesso em: 17 ago. 2016.