The Funnel Brasil - Edition #7

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#07 Outubro/Novembro/Dezembro, 2020

até onde vai a inovação?

Aplicativos de entrega crescem e ganham relevância na pandemia, mas enfrentam crise de imagem em queda de braço com entregadores e restaurantes

Feirão de tudo Como o Mercado Livre se tornou a empresa mais valiosa da AL

Entrevista Um papo sobre futuro do trabalho com o coautor do livro Aprendiz Ágil

Novos rumos Um breve guia para empresas que precisam “pivotar” na crise

De mãos dadas Bancos usam fintechs para se adequar a novas regulamentações


kyvo.global

#NOBULLSHIT

innovation

Desenhamos um futuro mais dinâmico, criativo e humanizado para sua empresa

INOVAÇÃO ORGANIZACIONAL programas de intraempreendedorismo, inovação aberta e educação corporativa

INOVAÇÃO EM SERVIÇOS

o melhor serviço possível a partir da lente da antropologia e design de serviço

INOVAÇÃO EM COMUNICAÇÃO ganhar reputação com a exposição das iniciativas de inovação



Capa

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Até onde vai a inovação? equilíbrio do modelo dos aplicativos de entrega é posto à prova na pandemia

Especial

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Conexão financeira a realidade da inovação aberta, pagamentos instantâneos e open banking para os bancos


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“Trabalhar bem em parceria com as máquinas será ativo profissional relevante” entevista com Alexandre Teixeira, coautor de Aprendiz Ágil Mercado Livre: de “classificados online” a gigante de comércio eletrônico case MeLi, como a empresa se tornou a mais valiosa da América Latina “Conversar com startups requer um certo nível de humildade” entrevista com Dagan Eshel, VP de inovação no Grupo Strauss Reinvenção orientada guia, na visão dos especialistas, é possível dar novo rumo a negócios com futuro incerto Três formas de acelerar as parcerias entre grandes corporações e startups artigo, América Latina está atrás na curva de expansão da inovação aberta


EDITORIAL

COLABORADORES

A necessária discussão sobre o todo De agosto de 2019 a janeiro deste ano, alguns dos principais representantes da iniciativa privada mundial se propuseram a migrar de um modelo de negócios baseado na maximização dos lucros para os acionistas para o que passou a ser chamado de capitalismo de stakeholders. Na prática, a sinalização de entidades como o Business Roundtable, a maior organização do tipo nos Estados Unidos, do Fórum Econômico Mundial, só para citar algumas, é de que é preciso pensar em gerar impacto positivo para a sociedade, meio ambiente e trabalhadores. Os princípios do ESG (ambiente, sociedade e governança, na sigla em inglês) são a ponta mais evidente deste movimento. Porém, do discurso à prática é que são elas. Ainda mais com uma pandemia no meio do caminho. No contexto da covid-19, para além dos profissionais de saúde, não é exagero dizer que os aplicativos de entrega e seus motoqueiros foram protagonistas no Brasil. Ponto para a inovação. Mas também um alerta: o jargão dos empreendedores e departamentos de inovação de atacar uma dor do mercado precisa ser melhor compreendido. A pandemia expôs a insatisfação de duas pontas importantes do negócio dos apps de entrega, os restaurantes e entregadores. É sobre isto, a partir dos modelos de negócio das empresas focadas na chamada última milha, que a sétima edição da The Funnel Brasil se propõe a debater. Em entrevista ao editor Dubes Sônego, o vice-reitor da escola de negócios do MIT, Michael Cusumano, destaca que há um limite de quanto as plataformas podem cobrar e ganhar de restaurantes e entregadores. Além, claro, da necessidade de se discutir os impactos socioeconômicos de suas atividades. No caso dos motoqueiros, fora a questão da remuneração, os números de aumento de acidentes em 2020 são alarmantes. Há, sim, inúmeras oportunidades de negócio ao se olhar para uma determinada dor. Mas a realidade é de muitas dores interconectadas. Sem um olhar sobre toda a complexidade de um ecossistema, a disrupção aclamada e valorizada de um novo modelo de negócio se põe xeque. Boa leitura!

Guilherme Manechini

Editor-chefe da The Funnel Brasil

Guilherme Manechini

Jornalista especializado em Economia e Negócios, já trabalhou nas principais redações da área no Brasil (Valor Econômico, Revista Exame, Portal iG, jornal DCI e Agência Dinheiro Vivo). Entre 2014 e 2018 foi editor da revista GQ Brasil. Atualmente, é Head de Comunicação da Kyvo e um dos curadores do Wired Festival.

Dubes Sônego

Tem 20 anos de experiência como repórter e editor de economia e negócios. Passou por Gazeta Mercantil, Valor Econômico, Brasil Econômico, iG e Época Negócios. Foi vencedor do prêmio da ABVCAP/2016, com reportagem sobre economia compartilhada, na revista Capital Aberto.


Mariana Oliveira

Formada em design pela ESPM, integra a equipe responsável pela arte da The Funnel Brasil, além de realizar projetos de design visual e de serviço.

J. Pequeno Neto

Diretor de arte com mais de 40 anos de experiência, com passagens por títulos como Vogue, Claudia, Quem, Época Negócios e GQ Brasil. Ganhador do Prêmio Jabuti 1998, na categoria Projeto Editorial, e do Award of Excellence Overall Design, 2011, da The Society for News Design. Atualmente, sócio do estúdio de design R/P Studio.

Juliana Alves

Com experiências em projetos de design de serviço e visual na Kyvo, é uma das designers responsáveis pela arte da The Funnel Brasil. Graduada pela ESPM, já atuou em projetos de identidade visual, editorial, web e game design.

Danylo Martins

Jornalista pela Faculdade Cásper Líbero, tem MBA em finanças e mercado de capitais. Eleito um dos Top 50 +Admirados Jornalistas da Imprensa de Economia, Negócios e Finanças em 2019, é repórter colaborador do jornal Valor Econômico, onde atuou como repórter e redator.

Yuka Yamada

Designer em formação na Universidade do Estado do Pará, com experiência em design visual, gráfico, produtos e ilustração. Também atua na arte da The Funnel Brasil.

The Funnel Brasil Editor-chefe, Guilherme Manechini guilhermem@thefunnel.com.br Projeto gráfico e direção de arte, Juliana Alves - juliana@thefunnel.com.br Mariana Oliveira - mariana@thefunnel.com.br Yuka Yamada - yuka@thefunnel.com.br | Editor, Dubes Sônego - dubes@thefunnel.com.br Colaboradores desta edição: Danylo Martins, Josemaria Siota, Julia Prats e José Pequeno Neto. Redação e correspondência: redacao@ thefunnel.com.br | Rua Fradique Coutinho, 212 - Pinheiros, São Paulo - SP Comercial: comercial@thefunnel.com.br Sobre: a The Funnel é uma revista criada pela plataforma de inovação israelense Duco e, no Brasil, é publicada trimestralmente pela Kyvo. A distribuição é gratuita e restrita a um mailing selecionado de executivos ligados à area de inovação em empresas do país. Além das versões israelense e brasileira, a The Funnel é publicada na Costa Rica.


ENTREVISTA

Trabalhar bem em parceria com as máquinas será ativo profissional relevante por Dubes Sônego foto Divulgação

Para Alexandre Teixeira, coautor de Aprendiz Ágil, funções que envolvem criatividade e cuidado também tendem a ser menos afetadas pela disseminação da inteligência artificial É consenso que a inteligência artificial aumentará a produtividade das empresas. Bem mais incerto é o futuro dos humanos em um mundo controlado por algoritmos. Há quem enxergue um horizonte de imortalidade para a espécie e quem, em contraste, acredite em sua extinção. Entre uma coisa e outra, o jornalista Alexandre Teixeira e a consultora Clara Cecchin, buscam identificar, no que chamam de realismo de curto prazo, como “se manter relevante na era das máquinas inteligentes”. A questão é tema central de “Aprendiz Ágil”, livro recém lançado pela dupla, sobre o qual Teixeira fala na entrevista a seguir.

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O livro parte da discussão sobre utopias e distopias na era digital, que contrapõe tecno-otimistas e tecnocatastrofistas. O que há de mais real nesses extremos? Os tecno-otimistas são aquelas figuras que acham que as máquinas inteligentes vão resolver nossa vida em todos os aspectos. Quando a gente olha para o mundo do trabalho, tendem a acreditar que, em um primeiro momento, você tem um desequilíbrio no mercado de trabalho por conta da automação. Mas o saldo tende a ser positivo, como sempre foi ao longo da história da tecnologia. E que os novos empregos gerados seriam melhores que os que existem hoje.


Existe um meio termo entre esses dois mundos? As duas visões são exageradas. A dos otimistas, de que novos e melhores empregos serão criados, provavelmente é verdadeira. Mas demanda que você seja qualificado o bastante para fazer novos trabalhos que são menos repetitivos e mais desafiadores, no sentido de que demandam criatividade, capacidade analítica. Quando você olha para o número de pessoas com qualificação alta o bastante, é difícil imaginar que vamos ter um saldo positivo. No caso dos tecnocatastrofistas, o que alguns pensadores preveem é que em algum momento vamos ter uma espécie de neoproletariado que não está desempregado, mas é desempregado, no sentido de que não tem e não terá qualificação para ocupar os empregos disponíveis. É interessante olhar para esses extremos de longo prazo, mas eles não nos ajudam. O que a gente procura no livro é se concentrar no que a gente chama de realismo de curto prazo.

E os tecnocatastrofistas? Os tecnocatastrofistas vão na direção oposta. Afirmam que é possível que a inteligência artificial decida nos eliminar do planeta. No que diz respeito ao trabalho, teme-se que, dessa vez, o que vai acontecer é o esgotamento simultâneo de empregos em quase todos os campos. Nas revoluções anteriores, você tem, no primeiro momento, o emprego no campo diminuindo e as pessoas migrando para as cidades. Na medida que avança a tecnologia, você passa da era industrial para a da informação e começa o deslocamento de trabalhadores da indústria para os serviços. No momento em que você tem uma ação que afeta bastante o setor de serviços em praticamente todas as áreas, não haveria estoque de empregos disponível para as pessoas se reempregarem.

O que seria isso? É a ideia de que, por um tempo bastante longo, vai haver emprego. No fundo, estamos discutindo uma nova onda de automação, como outras no passado. E tem uma série de fatores que influem no ritmo da substituição do trabalho humano por trabalho cibernético. O custo da tecnologia é uma variável importante. Quanto mais alto o salário de determinada categoria, maior será o atrativo para substituí-la por uma máquina. No Brasil, os salários relativamente baixos são indicativo de que não estaremos na vanguarda desse movimento. O que não quer dizer que não seremos afetados. Como saber se a área em que atuo vai ser afetada? Existem alguns vieses psicológicos importantes, que fazem com que a gente ache que o problema não vai nos atingir. Um é que quase todos nós tendemos a nos achar melhores profissionais do que a média. E ao se achar acima da média, as pessoas têm uma falsa sensação de segurança. Se estão pedindo que você ensine uma máquina a fazer determinada tarefa, saiba que você está preparando a máquina que vai te

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substituir. No momento inicial, a máquina precisa de um empurrão para aprender uma tarefa nova. Muitas vezes, você pega os bons profissionais de uma área da empresa e os coloca para treinar o algoritmo. Fora essa observação empírica, é acompanhar o noticiário. A quanto tempo estamos de ver profissionais mais qualificados serem afetados? Não sei responder e duvido que alguém seja capaz de te precisar. Mas tem uma questão importante que é aonde isso vai acontecer. Certamente vamos ver acontecer primeiro em mercados mais desenvolvidos, onde a mão de obra é mais cara. Estados Unidos, boa parte da Europa. Na China, também. A primeira onda vai substituir basicamente trabalhadores que fazem trabalhos repetitivos. Agora, em que momento isso vai chegar a posições de liderança, é o dado que não tenho. Se não é possível competir com as máquinas, qual o caminho? Uma das vertentes importantes é aprender a trabalhar em parceria com elas. Tem uma história interessante, que conto no livro, sobre Kasparov, o enxadrista que perdeu para o Deep Blue. Depois de perder para uma máquina, Kasparov se aproximou de um movimento chamado xadrez freestyle, em que você pode usar computadores para jogar xadrez. Nesses torneios, quem costuma ganhar não é o melhor enxadrista ou o melhor computador. É a melhor dupla. Ou seja, alguém que consegue extrair o máximo do computador, e ter uma postura complementar a do processamento de dados. Portanto, se a gente consegue trabalhar bem em parceria com uma máquina, tem um ativo profissional super relevante. Quais as outras vertentes de trabalho? Uma é olhar para ocupações que praticamente não tem nada a ver com tecnologia. Fisioterapeuta e personal trainer, de certa maneira, correm menos risco de automação. É possível desenvolver máquinas que façam exercícios semelhantes aos recomendados por um fisioterapeuta. Mas aí você entra num território que é o da humanidade, no sentido de cuidar. Uma terceira vertente seriam ocupações que basicamente demandam criatividade. Uma campanha publicitária brilhante, por exemplo, tem uma sacada

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de criatividade que, no fundo, é humana. No terreno da criatividade, é razoável imaginar que o ser humano sempre será superior, porque basicamente se trata de humanos se comunicando com humanos. O que essas mudanças significam para as empresas? Para as empresas são sobretudo oportunidades. De um lado, redução de custo do trabalho. De outro, de aumento da produtividade. As decisões que as empresas vão ter que tomar são sobre em que momento faz sentido automatizar. Essas tecnologias, em alguns setores, não existem ainda; em outros, existem e são caras; em outros, talvez já tenham preço razoável, mas a mão de obra é tão barata que talvez não seja a hora. Pesquisas mostram que parcela importante das empresas sente que não está preparada o bastante, porque precisa de mais gente capaz de entender e analisar essas tecnologias, saber o que é aplicável e o que não é. Muitas percebem que não têm uma força de trabalho apta a fazer a parte mais sofisticada do trabalho, a lidar com Big Data e tirar insights daquilo, insights que podem ser valiosos para criar novos negócios, processos e modelos de negócio. A oferta de profissionais disponível no mercado é muito inferior a que as empresas precisam. Essa discussão tem como pano de fundo o risco de termos uma massa muito grande de desempregados desqualificados. A renda básica seria uma alternativa? Parece-me inevitável. Nesse novo ambiente, em que cada vez mais tarefas serão feitas por máquinas, você vai ter parcela importante da população que não vai ter qualificação para trabalhar. Não faz sentido, do ponto de vista de política pública, ignorar essa situação. Essa deveria ser uma questão de política pública, de trabalho, de pensar a economia. De alguma maneira, está na ordem do dia. Estamos tendo uma experiência piloto interessante com o auxílio emergencial•


CASE

Mercado Livre: de “classificados online” a gigante de comércio eletrônico

por The Funnel Brasil foto Divulgação

Como a companhia argentina, que tem no Brasil o principal mercado, se tornou a companhia mais valiosa da América Latina OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO, 2020

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Quando estreou no Brasil, em outubro de 1999, o Mercado Livre era mais uma entre as muitas promessas ponto.com da bolha que estouraria nos anos seguintes. Reproduzia no meio digital o que faziam os classificados de jornais. Mas, diferente de muitas outras startups da primeira onda mundial de euforia com negócios na internet, a empresa argentina seguiria em frente até alcançar, em agosto deste ano, o posto de companhia mais valiosa da América Latina, deixando para trás gigantes tradicionais, como Vale, Petrobras e Itaú. A receita do Mercado Livre, sozinha, não justifica ainda a valorização. No ano passado, foi de cerca de US$ 2,3 bilhões, nos 18 países em que atua - o Brasil responde por mais da metade do total. O valor vêm crescendo rápido na pandemia. Ainda assim, está distante das dezenas de bilhões registrados pelas companhias líderes do ranking até então. A alta das ações resulta também de um movimento mundial de busca por ações de tecnologia. O que a liderança indica, por outro lado, é a expectativa do mercado de que o Mercado Livre continue a crescer em ritmo acelerado, a aprovação da estratégia e do modelo de gestão. É também a evidência de que a aposta é maior do que a feita em suas concorrentes na região. Tendo isso em vista, The Funnel ouviu três acadêmicos e especialistas em varejo para entender quais os principais acertos do Mercado Livre em sua trajetória no Brasil. Para Eduardo Terra, presidente da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC), o Mercado Livre fez três grandes movimentos estratégicos importantes em seus poucos mais de 20 anos. O primeiro foi reunir em uma plataforma robusta a oferta de pessoas, pequenas e médias empresas. O segundo foi criar uma solução de pagamentos que facilitasse e garantisse segurança. O terceiro foram os investimentos em logística. “São movimentos que convergiram e criam uma proposta de valor que é diferente das demais”, diz o consultor. Ao contrário do Magazine Luíza, por exemplo, que vêm investindo fortemente no modelo de marketplace, o Mercado Livre já começou explorando

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a cauda longa da oferta, avalia Terra. Permitia que pessoas físicas vendessem umas para as outras, alcançando todo o país. Depois, aos poucos, vieram pequenas e médias empresas dos mais diversos ramos -- gigantes do varejo chines, como o Alibaba, também cresceram de baixo para cima. “Às vezes, você quer comprar uma coisa que é super específica, que não tem em qualquer lugar, que está em outro Estado. Se não houvesse o Mercado Livre, você teria que descobrir onde o vendedor está, fazer contato com ele, trocar whatsapp, pedir para mandar fotos. Toda a interface de como ia se dar a transação ia ser ruim”, exemplifica Terra. A interação com uma imensa gama de perfis de comerciantes e clientes garantiu ao Mercado Livre uma base de dados e um tráfego muito fortes em sua plataforma, afirma Eduardo Yamashita, diretor de operações no Grupo Gouvêa, de consultoria de varejo. Com base nas informações colhidas, a companhia foi desenhando sua oferta. “Eles conseguiram montar um ecossistema de parceiros e ter um tráfego de consumidores muito interessante. Isso é a grande moeda no mundo digital”, afirma. “Primeiro buscaram ganhar visibilidade, para depois gerar vendas”, diz Alexandre Marquesi, professor da pós-graduação da ESPM. A criação do Mercado Pago é considerada outro momento chave. O serviço foi lançado em 2004 para resolver problemas de confiabilidade. Até então, os dois lados da transação ficavam expostos e calotes. Se o comprador pagasse primeiro, corria o risco de não receber o produto. Se o vendedor enviasse, nada garantia que a compra seria quitada. “Com o Mercado Pago, resolveram isso”, diz Terra. “Tornou-se um grande diferencial competitivo”, diz Yamashita. É um movimento que a concorrente OLX só fez este ano, com o OLX Pay. Com o passar do tempo, aumentando a diversidade de serviços oferecidos, o Mercado Pago se tornou uma das grandes carteiras digitais no mercado, diz o executivo da Gouvêa. O movimento recente mais significativo, porém, são os investimentos na área de logística, concordam Terra e Marquesi. Começou com o Mercado Envios, em parceria com os Correios, em 2013, e foi crescendo, até se tornar um serviço central para o negócio, com um portfólio que inclui ainda o Mercado Envios Coletas e o Mercado Envios Full. “Foi no que eles mais avançaram nos últimos 18 meses. Tenho feito compras que chegam em horas”, diz Terra. “Estão arrebentando. Nem a Amazon tem isso no Brasil”, afirma Marquesi.


O Mercado Envios simplifica o envio ao padronizar o processo. Lojistas que aderem ao programa não precisam pagar pelo frete de produtos com até 30 kg e dentro de algumas dimensões específicas. Basta levar aos Correios com o endereço de entrega. No Mercado Coletas, o lojista já não precisa mais nem ir aos Correios ou a uma transportadora. Com o Mercado Full, passou a poder entregar os produtos anunciados direto em um Centro de Distribuição do Mercado Livre -- já são três, dois em São Paulo, um na Bahia --, que se encarrega de gerenciar o estoque e realizar as entregas. “O negócio hoje não é mais produto, é logística”, afirma Marquesi, da ESPM. “Te dão um leque tão grande de coisas que não tem como você recusar tudo. É um ecossistema montado para fazer business”.

futuro convergente

O modelo seguido até aqui pelo Mercado Livre foi o inverso do das grandes varejistas brasileiras, como Magalu e Via Varejo. Em vez de partir de um portfólio próprio de produtos, agregar a ele produtos complementares de terceiros e só depois incluir pequenos e médios comerciantes, a companhia fez o caminho de baixo para cima. Agora, porém, vêm crescendo “trazendo a curva A da oferta”, como define Terra. “Grandes marcas, hoje, estão colocando lojas oficiais no Mercado Livre. É uma etapa que está acontecendo agora”. Durante a pandemia, a empresa também lançou uma seção de supermercado.

marketplace O Mercado Livre em números na América Latina

O passo seguinte, na lógica do que já fizeram outras grandes companhias do setor, como Amazon e Alibaba, seria explorar a “omnicanalidade”, com ações estruturadas no varejo físico, avalia Terra. Outra possibilidade seria o avanço em entretenimento, a exemplo da Amazon. “Esses ecossistemas precisam de muitos dados e contato com o consumidor. A Amazon deu um salto quando avançou na plataforma de streaming. O consumidor fica dentro do app por mais tempo e acaba comprando mais dela”, diz. Na visão de Marquesi, a dimensão do problema logístico no Brasil faz da companhia candidata natural a participante da disputa pelos Correios. Seria a melhor forma de estender rapidamente seus novos serviços de logística para todo o país, afirma. Independente do movimento a ser feito, o volume de dados, o ecossistema de oferta e demanda robusto e o portfólio de serviços agregados desenvolvido até aqui devem continuar a ser grandes forças propulsoras da companhia no mercado de ações, avalia Yamashita – é o que o próprio Fernando Yunes, líder do Mercado Livre no Brasil, avalia como principal diferencial da companhia. “Tudo junto, compõe uma oferta muito interessante”, diz o consultor da Gouvêa. E como lembra Marquesi, o que Vale e Petrobras vendem não é tão facilmente escalável•

US$ 2,3 bilhões receita líquida

52 milhões

usuários ativos

289 milhões anúncios

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vendas por segundo

[fonte: Mercado Livre]

11 milhões

vendedores únicos

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CAPA

VAI A INOVAÇÃO? Os aplicativos de entrega ajudaram a reduzir o impacto negativo da pandemia no país, mas o lado menos inovador da atividade vem gerando reações na sociedade e pressões sobre o negócio por Dubes Sônego



até onde vai a inovação?

É inegável que a quarentena durante a pandemia da Covi-19, este ano, teria sido outra sem os aplicativos de entrega. O serviço permitiu a milhões de pessoas pedirem comida e fazerem outros tipos de compras mantendo o isolamento social. Garantiu ainda renda a milhares de entregadores, restaurantes e outros tipos de comércio. Mas o corre-corre de entregas durante a pandemia também pôs em xeque o perfil inovador dos aplicativos, acusados por restaurantes de cobranças de taxas abusivas e, por trabalhadores, de práticas que levam não só a precarização do trabalho, mas também a alta nos acidentes de trânsito. Desde que os entregadores foram às ruas protestar, em julho, no movimento que ficou conhecido como o Breque dos Apps, a discussão sobre os efeitos colaterais do modelo de negócio das empresas do ramo, e seus impactos sociais, vem ganhando corpo no Brasil. Trata-se do mais novo capítulo em um debate internacional sobre os reais beneficiários das inovações da nova economia. Um debate que gera dúvidas e preocupação mesmo em expoentes da indústria, em especial lá fora. “Desde a primeira corrida da Uber, dez anos atrás, uma questão existencial nos assombra: tratamos bem nossos motoristas?”, escreveu Dara Khosrowshahi, CEO da Uber, dona do Uber Eats, em artigo no New York Times. No Brasil, a autocrítica das empresas ainda não veio. Mas a crise de imagem gerada pela paralisação dos entregadores e as reclamações de donos de restaurantes levou executivos das empresas do setor a se posicionaram. Em artigo no Valor Econômico, Diego Barreto, diretor financeiro e vice-presidente de estratégia do iFood, por exemplo, afirmou que o “rótulo de ‘precarização’” é inadequado para definir as relações trabalhistas surgidas com as novas tecnologias. E sugeriu aos formuladores de políticas públicas a busca de soluções fora da CLT para garantir uma rede de segurança social aos trabalhadores sob demanda.

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[...] tratamos bem nossos motoristas?

Sergio Saraiva Pontes, que assumiu a Rappi em janeiro, deu uma longa entrevista ao Meio&Mensagem, em que elencou ações da empresa voltadas aos entregadores, como aumento das equipes de atendimento, contratação de seguros para casos de acidente e a criação de um fundo de apoio a entregadores com sintomas ou confirmação de Covid-19. A Associação Brasileira Online to Offline (ABO2O), principal entidade representante de empresas de mobilidade urbana e delivery do Brasil, soltou um comunicado fazendo o mesmo, e negando acusações de redução nas taxas de remuneração dos entregadores.


momento crítico

O momento é sensível para a indústria por uma série de motivos. Até o final do ano, deve esquentar a discussão no Congresso sobre um novo marco legal para o trabalho sob demanda. O tema também já é destaque nas campanhas para as eleições municipais, sobretudo em São Paulo. Uma visão negativa da sociedade sobre a postura dos aplicativos poderia gerar pressão pela aprovação de uma regulamentação mais rígida e desfavorável às empresas. Pode dificultar também a atração de entregadores e varejistas em um momento de aumento da concorrência. A capacidade dos aplicativos de atrair usuários vêm justamente do efeito de rede gerado por uma ecossistema robusto de parcerias. Quanto mais gente e opções, mais são atrativos. E há ainda um forte movimento entre grandes investidores de adesão a metodologias para a avaliação da sustentabilidade das empresas por critérios ambientais, sociais e de governança (ESG, na sigla em inglês).

Ganhar dinheiro tem consequências. Algumas são aceitáveis. Algumas passam a ser inaceitáveis, ou porque ameaçam a sustentabilidade do próprio negócio, porque se tornam eticamente condenáveis, ou porque causam estragos que a sociedade não está mais disposta a suportar.

“A sociologia já se debruça sobre as questões ESG há algum tempo. Agora, a economia parece também estar se tornando mais sensível ao tema”, diz o professor Hermílio Santos, da PUC-RS, integrante de um grupo de acadêmicos empenhado no desenvolvimento de uma metodologia para a medir os impactos de investimentos ESG. “Ganhar dinheiro tem consequências. Algumas são aceitáveis. Algumas passam a ser inaceitáveis, ou porque ameaçam a sustentabilidade do próprio negócio, porque se tornam eticamente condenáveis, ou porque causam estragos que a sociedade não está mais disposta a suportar”, afirma. É o tipo de mudança de postura que tem levado grandes investidores, como a Black Rock e o Goldmans Sachs, a tornarem públicos compromissos como inclusão social e diversidade. “Nos últimos anos, vimos um avanço muito grande da iniciativa privada, o que é ótimo. O Estado perdeu protagonismo. Mas a situação chegou a um ponto em que os próprios investidores passaram a se questionar sobre os efeitos do crescimento sem limites, diz Santos.

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acidentes em alta

Um dos efeitos colaterais da expansão dos aplicativos de entregas é o agravamento de um problema que já era sério nas grandes cidades brasileiras, os acidentes de trânsito (veja o gráfico no canto inferior da página). “Infelizmente, acho que a gente consegue ver uma relação entre o setor de entregas e logística e o número de acidentes, principalmente de motos e bicicletas”, diz o médico André Sugawara, fisiatra da Rede Lucy Montoro, especializada na recuperação de amputados. “A gente imaginava que com a pandemia e a redução do trânsito fosse acontecer o contrário. Mas o número de amputações está aumentando”.

Um dos motivos apontados por quem trabalha nas ruas para a alta no número de acidentes, além de casos de imprudência e da fiscalização limitada, é a entrada na atividade de grande número de profissionais inexperientes, empurrados para as entregas pelo desemprego. Outro é a fadiga resultante das longas jornadas de trabalho, necessárias para fechar as contas, associada a incentivos à produtividade adotados pelos aplicativos. “Quando aceitamos uma chamada, temos que sair correndo para chegar ao local da coleta rápido e não perder o pedido”, diz Jefferson da Silva Cortez, entregador de bicicleta, de 28 anos. De acordo com Fabio Roberto Ribeiro Guilherme, de 39 anos, uma das lideranças do Breque dos Apps, a prática é adotada por pelo menos duas empresas, Rappi e iFood. Mas promoções que incentivam os entregadores a acelerar, como bônus para os que fazem determinado número de entregas em horários de pico, são comuns em toda a indústria.

Fabio Roberto Ribeiro Guilherme, de 39 anos, uma das lideranças do Breque dos Apps

riscos nas ruas

Um breve panorâma dos acidentes de trânsito envolvendo motociclistas na capital paulista

fonte: Seguro obrigatório DPVAT 18 T H E F U N N E L | R E V I S TA B R A S I L E I R A D E I N O VA Ç Ã O C O R P O R AT I VA


de sol a sol

A jornada de trabalho dos entregadores de aplicativos durante a pandemia

fonte: Artigo Condições de trabalho de entregadores via plataforma digital durante a Covid-19, publicado na Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano Procuradoria Regional do Trabalho da 15ª Região

projeto de lei

“Estamos falando de uma grande precarização (confira o gráfico acima), por isso é importante avançarmos no Congresso. Um entregador de bicicleta tem que trabalhar 12h por dia para ganhar menos que um salário mínimo. Isso não cabe em uma democracia como a nossa”, afirma a deputada Tábata Amaral, autora do PL 3748/2020, que pretende regulamentar o trabalho sob demanda no Brasil. Há outras propostas para regulamentar a atividade. Mas o projeto da deputada é considerado o mais amplo e robusto, por atingir também outras categorias de trabalhadores. Prevê, entre outras coisas, um valor mínimo de R$ 9 por hora trabalhada, calculado com base no salário mínimo, para uma carga horária de 40 horas semanais, sendo que até um terço do tempo pode ser em espera por pedidos em restaurantes, por exemplo. O PL também prevê o repasse integral de gorjetas aos trabalhadores e maior transparência. Os entregadores reclamam que é comum as empresas reterem parte da “caixinha” e que não são informados dos critérios e motivos de exclusão e bloqueio nos aplicativos.

“A questão da transparência é muito importante nessa discussão. Porque eles estão sujeitos a muita arbitrariedade. Não podem estabelecer as condições nem o preço do trabalho que prestam. Dizem que as plataformas penalizam na avaliação e na remuneração os que não aceitam os serviços”, diz Tábata. “As empresas não podem exigir carga horária, exclusividade ou trabalho em dias específicos. Porque aí, de fato, se enquadrariam na CLT”. Segundo a deputada, o que ouviu até agora das empresas é que concordam que precisam melhorar as condições dos trabalhadores, que a insegurança jurídica é ruim para todos e que já fazem muito do que está no projeto. “Se elas já fazem, é nosso papel reduzir a insegurança jurídica levando isso para a lei, para que haja isonomia e os trabalhadores não fiquem desamparados. O mais importante é que estamos buscando direito básicos ouvindo empresas e trabalhadores, mas sem gerar burocratização”, diz.

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As quedas de braço entre empresas da nova economia, como Uber e Airbnb, e o poder público em diversas partes do mundo são bem conhecidas e nem sempre terminam bem para as empresas. A Lyft, concorrente da Uber, por exemplo, ameaçou recentemente deixar a Califórnia caso fosse obrigada reconhecer motoristas de aplicativo como empregados. No Brasil, há uma divisão entre entregadores favoráveis a adoção da CLT e movimentos que defendem um novo modelo, mais flexível, como é o caso do Breque dos Apps, que têm como principal demanda atualmente um valor mínimo por chamado, de R$ 8 reais. De qualquer forma, algum tipo de regulamentação é de interesse do Estado e da sociedade, que vêm arcando com parte significativa dos custos com acidentes, através do SUS (veja o gráfico abaixo). Apesar das alegações das empresas, de que contratam seguros contra acidentes - a Uber Eats afirma que o seu tem com cobertura de até R$ 100.000,00 em caso de acidentes pessoais durante as entregas e reembolso de até R$ 15.000,00 em despesas médicas -, os entregadores dizem que o acesso às indenizações, na prática, é raro.

os acidentes na ponta do lápis

Quanto custam os acidentes de trânsito no Brasil, em termos econômicos*

*Inclui, além das depesas médicas, gastos préhospitalares, póshospitalares, remoção e perda de produção, que em caso de morte é o valor total estimado

fonte: Estimativa dos Custos dos Acidentes de Trânsito no Brasil com Base na Atualização Simplificada das Pesquisas Anteriores do Ipea - 2015

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Deputada Tábata Amaral, autora do PL 3748/2020, que pretende regulamentar o trabalho sob demanda no Brasil


oferta e procura

As questões que envolvem os aplicativos são, de fato, complexas. A demanda pelo serviço que prestam, a chamada entrega na última milha, é um fenômeno relativamente novo, que reflete mudanças demográficas, culturais e econômicas profundas, afirma Fabiano Calixto, consultor de canais de distribuição e professor da FIA. A redução do tamanho das famílias, moradias menores, a demanda por praticidade no dia-a-dia, a perda do hábito de cozinhar em casa e de fazer compras de mês, a internet e a nova economia são exemplos. No Brasil, as entregas de última milha começaram a tomar corpo com o comércio eletrônico, atendido principalmente pelos Correios e por transportadoras tradicionais, como a Jadlog. Mas ganharam escala mesmo foi com as facilidades oferecidas pelos aplicativos. “A grande mudança estrutural que está acontecendo é que os canais de distribuição, antes pensados até o varejo, precisam agora ser pensados até a casa do consumidor. Os aplicativos surgiram justamente nesse espaço que havia”, diz Calixto. “A pandemia acelerou o processo”.

Em uma sociedade cada vez mais acostumada à conveniência, em quarentena, em um momento de desemprego em massa, o serviço passou a ser visto por muitos como de alta relevância. E as vendas explodiram. O CEO de um dos maiores fundos de capital de risco do país estima que o mercado de entregas tenha crescido três vezes na quarentena. O volume de pedidos mensal do iFood teria chegado a 39 milhões. Segundo o executivo, estamos falando de um giro financeiro com potencial para chegar a um patamar superior a R$ 25 bilhões por ano. É dinheiro que, em boa medida, antes ia sem intermediários para os restaurantes, empurrados para os aplicativos pela necessidade repentina de gerar vendas online. Neste sentido, é impossível descartar o poder da audiência dos aplicativos para gerar movimento, algo que acontece graças a investimentos altos em publicidade e tecnologia. Mas, na visão de especialistas, a repetição do movimento que ocorre com o Uber nos Estados Unidos, em que o mercado questiona cada vez mais o quanto a empresa cobra dos motoristas, é um cenário bastante provável para o segmento de delivery no Brasil. Jefferson da Silva Cortez, entregador de bicicleta, no Breque dos Apps (ao centro, na frente)

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concorrência a caminho

A extinção dos aplicativos não parece ser do interesse de ninguém. Pelo contrário. A demanda cresce e tem atraído novos concorrentes. Além de Rappi, iFood e Uber Eats, há outros aplicativos surgindo e se expandindo. Entre eles, alguns de grandes varejistas, com fôlego para impulsionar o negócio. O Magazine Luiza, por exemplo, anunciou em setembro a compra da startup AiQFome, de Maringá, com o objetivo de transformá-la em superapp. Comprado em 2018 pelo Grupo Pão de Açúcar (GPA), o James Delivery deu um salto durante a pandemia, expandindo a área de atuação e as categorias de produtos entregues. Segundo Celio Salles, membro do conselho de administração da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), já há no país quase uma dezena de aplicativos de entrega grandes, outra dezena com atuação regional e mais de um centena de aplicativos com alcance local - os próprios entregadores começam a se organizar para criar cooperativas de entregadores. Além disso, afirma, há outras duas centenas de startups trabalhando em soluções relacionadas à entrega. É um dos motivos pelos quais a entidade vê, no futuro, a possibilidade de negociações mais equilibradas entre as empresas do setor e os aplicativos. Hoje, não é assim. Salles diz que as plataformas são relevantes e foram fundamentais para a sobrevivência de muitos negócios durante a pandemia. Mas que, com as taxas de entre 20% e 30% cobradas por elas hoje, é muito difícil ter algum lucro. Se mantidas as taxas, a tendência é que os bares e restaurantes busquem alternativas, como a combinação de redes sociais e Whatsapp para o marketing e a retirada de pedidos, e plataformas de entrega agnósticas, sem catálogos de restaurantes, como Loggi e Bee Delivery. “O Whatsapp será extremamente relevante, principalmente com a entrada do PIX”, diz Salles.

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[...]. Se mantidas as taxas, a tendência é que os bares e restaurantes busquem alternativas, como a combinação de redes sociais e Whatsapp para o marketing e a retirada de pedidos, e plataformas de entrega agnósticas, sem catálogos de restaurantes, como Loggi e Bee Delivery. [...] Celio Salles, membro do conselho de administração da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel)


equilíbrio e autoregulação

A fuga de restaurantes é um dos grandes riscos para o negócio. O modelo de plataforma tem como característica a necessidade de equilibrar oferta e demanda para gerar efeitos de rede. Quanto maior e mais vibrante o ecossistema ligado a uma plataforma, maior sua atratividade, avalia Michael Cusumano, uma das maiores autoridades do mundo em plataformas, autor de 14 livros de negócios e vicereitor da escola de negócios do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês). Crítico do modelo de negócios dos aplicativos de transporte, como o Uber, Cusumano diz que os aplicativos de entrega de comida são um pouco mais rentáveis, porque são capazes de cobrar dos clientes em mais de uma ponta do negócio – restaurantes e consumidores –, enquanto os apps de transporte subsidiam constantemente a atração de motoristas e as corridas. “No entanto, não é um serviço de valor agregado”, diz. “Se cobrarem muito, os restaurantes vão achar alternativas. Há um limite para quanto dinheiro essas plataformas podem cobrar e ganhar”. Cusumano também é defensor da autorregulamentação das plataformas, antes que os governos o façam. Em entrevista ao NeoFeed, no ano passado, afirmou que, em um primeiro momento, a sociedade como um todo só via os aspectos positivos da novidade, como os ganhos de eficiência. “Nunca pensamos no quão danosa uma plataforma poderia se tornar com tanto poder”. Agora, porém, “é hora de debatermos os impactos econômicos, políticos e sociais por trás da lógica de que o vencedor fica com tudo”, afirmou.

[...]. É hora de debatermos os impactos econômicos, políticos e sociais por trás da lógica de que o vencedor fica com tudo.

Nosso foco na experiência do cliente não está atrelado apenas em uma área ou em alguns processos, mas fazem parte da nossa cultura, o que faz com que as nossas ações sejam tomadas levando em conta a experiência de cada um dos nossos usuários (quem pede a comida, os restaurantes e entregadores).

Para Caio Vassão, consultor, professor, pesquisador e head de inovação na Kyvo, o que falta ao design dos aplicativos de entrega, em síntese, é considerar não só as demandas explícitas dos seus usuários, mas também seus impactos mais amplos no ecossistema. É, aparentemente, uma questão mais formal do que existencial. E as empresas se declaram abertas a mudanças. “Nós olhamos profundamente para dados com o objetivo de tomar nossas decisões e para buscar oportunidades de melhorias”, afirmou a Uber Eats, em comunicado à The Funnel. “Nosso foco na experiência do cliente não está atrelado apenas em uma área ou em alguns processos, mas faz parte da nossa cultura, o que faz com que as nossas ações sejam tomadas levando em conta a experiência de cada um dos nossos usuários (quem pede a comida, os restaurantes e entregadores)”. Seja como for, o alcance de um ponto de equilíbrio entre os interesses de todos os elos da cadeia, incluindo restaurantes e entregadores, ainda parece distante. Consensual, talvez, só a avaliação de que o melhor caminho para resolver o problema passa por mais diálogo e mais inovação, seja no Congresso, na relação com investidores ou dentro das empresas•


MATÉRIA ESPECIAL

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conexão financeira Como os bancos estão usando a inovação aberta e se preparando para a nova realidade trazida pelos pagamentos instantâneos e o open banking por Danylo Martins fotos Divulgação

As mudanças na regulamentação brasileira que permitirão o open banking e o pagamento instantâneo só começam a vigorar em meados de novembro. Mas a perspectiva de uma revolução digital, e os estragos já vistos em outras indústrias pegas de surpresa por mudanças semelhantes, têm levado grandes empresas do setor financeiro a adotarem estratégias da inovação aberta e a se prepararem com a ajuda de startups para o acirramento da concorrência. O Banco do Brasil (BB), por exemplo, anunciou que planeja injetar sozinho até R$ 200 milhões em um novo programa de inovação, que prevê investimentos em startups de áreas como seguros e open banking, através de fundos de investimento. O BTG Pactual, fechou parceria com a Celcoin, fornecedora de infraestrutura de serviços financeiros para microempreendedores e fintechs, para integrar o portfólio do banco de varejo que será lançado ainda este ano. Já o BV, quinto maior banco privado do país, tornou-se sócio do banco digital Neon e comprou a Just, plataforma on-line de empréstimo pessoal criada pelo Guiabolso. Do outro lado do balcão, a Ripple, especializada em soluções com blockchain, já tem mais de 12 bancos e corretoras como clientes no Brasil. E tanto Itaú Unibanco quanto Bradesco investiram recentemente na mesma startup de open banking, a Quanto. ao lado: fachada do Banco do Brasil em São Paulo

No Brasil, os bancos estão aprendendo a lidar com fintechs, assim como as fintechs também começam a descobrir o jeito de se relacionar com os bancos.

“O open banking forçará as instituições financeiras a serem mais ágeis e inovar na oferta de produtos para conseguir reter os clientes”, avalia Bruno Diniz, sócio da consultoria Spiralem e professor da Universidade de São Paulo (USP). No mercado americano, grandes bancos como Citibank, J.P. Morgan e Goldman Sachs têm feito investimentos em startups, exemplifica. “No Brasil, os bancos estão aprendendo a lidar com fintechs, assim como as fintechs também começam a descobrir o jeito de se relacionar com os bancos”, afirma. O sistema bancário aberto, cuja premissa básica é o compartilhamento de dados e serviços por instituições financeiras, será implementado pelo Banco Central (BC) em quatro fases, até 2021. A partir de outubro, os brasileiros já poderão se cadastrar

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no PIX, o sistema de pagamentos instantâneos capitaneado pelo BC, que entra em vigor no mês seguinte. Com isso, será possível fazer pagamentos e transferências a qualquer momento do dia, sete dias por semana. E não será mais necessário ter cartão de crédito ou de débito para o pagamento de contas no meio eletrônico. Bastará ter uma carteira digital. Diante da perspectiva de maior concorrência, um dos indicadores do crescente interesse do setor financeiro por inovação são os investimentos em startups da

área. No ano passado, houve aumento de 181% no volume de investimentos em fintechs no Brasil, na comparação com 2018. De acordo com levantamento do hub de inovação Distrito, os aportes chegaram a quase US$ 1 bilhão. Este ano, o mercado também começou aquecido, e a perspectiva é de que continue assim, em boa medida por causa da nova regulamentação, diz o relatório Inside Fintech - Distrito Dataminer. Até março, o volume investido em fintechs (US$ 55 milhões) já era quase duas vezes maior que no mesmo período de 2019 (US$ 30 milhões). E as aquisições saltaram de uma para três.

Este ano [2020], o mercado também começou aquecido, e a perspectiva é de que continue assim [...]. Até março, o volume investido em fintechs (US$ 55 milhões) já era quase duas vezes maior que no mesmo período de 2019 (US$ 30 milhões). E as aquisições saltaram de uma para três. [fonte: Inside Fintech - Distrito Dataminer]

Bruno Diniz, sócio da consultoria Spiralem e professor da Universidade de São Paulo (USP)

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reação conjunta

Ao contrário do que ocorre já em outros mercados, como Estados Unidos e Inglaterra, a maior parte das operações no Brasil ainda envolve captações com fundos de venture capital, e poucas são entre grandes instituições financeiras e fintechs. Ainda assim, não há dúvidas de que bancos e outras instituições financeiras de variados portes estão atentos aos novos entrantes. As soluções trazidas pelas empresas nascentes podem complementar a prateleira de produtos e serviços bancários, concordam especialistas e executivos. “Cada banco imprime seu próprio estímulo para lidar com as startups, com iniciativas e esteiras diferentes, desde o primeiro estágio, com hackatons, até hubs de inovação e o último degrau, que é o corporate venture capital”, explica Diniz. Para o especialista, os movimentos recentes mostram entregas mais “tangíveis”, ou seja, com fechamento de contratos entre bancos e startups. Essa aproximação vai além do setor bancário. “Grandes companhias de pagamento, como Visa e Mastercard, mantêm programas de aceleração.” O BV (ex-banco Votorantim), conhecido pelo financiamento de veículos, enxerga na inovação aberta um caminho para expandir a receita em outros segmentos. No ano passado, a instituição lançou sua unidade de inovação e trouxe para liderar a área o experiente executivo Guilherme Horn, que fundou as corretoras Ágora e Órama e hoje é investidor-anjo em mais de 30 startups, entre elas, fintechs como Guiabolso, Magnetis, Weel e QueroQuitar. A unidade de inovação do BV tem três frentes de atuação: corporate venture capital, laboratório de inovação e uma plataforma de open banking própria, que já reúne 178 parceiros. Por meio do fundo de corporate venture capital, com patrimônio de R$ 400 milhões, e parcerias estratégias, o banco soma acordos com 25 startups. A tese de investimento é baseada na sinergia que as soluções terão com o negócio do banco, conta Horn. “Não invisto numa startup só porque tem oportunidade de crescer e o equity se valorizar”, afirma o executivo. Em 2019, junto com o fundo de private equity General Atlantic (GA), o BV aportou R$ 400 milhões no banco digital Neon. Outro movimento foi a compra do Just, criada pelo Guiabolso em 2016. Neste ano, o banco liderou ainda uma rodada de investimento de R$ 25 milhões na fintech Olivia, com participação do fundo BR Startups, que tem como cotistas a Microsoft e o próprio BV.

A tese de investimento é baseada na sinergia que as soluções terão com o negócio do banco, conta Horn. “Não invisto numa startup só porque tem oportunidade de crescer e o equity se valorizar”, afirma o executivo. Guilherme Horn, líder da unidade de inovação do BV (ex-banco Votorantim)

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Uma das parcerias de destaque é com a Weel, fintech de antecipação de recebíveis. Em 2019, o banco injetou US$ 6 milhões na startup. Em fevereiro deste ano, liderou uma nova rodada de R$ 80 milhões, ampliando a disponibilidade de funding para R$ 800 milhões. Outro exemplo é a PraValer, de financiamento estudantil privado. “Imagine para um banco montar uma área de crédito estudantil. O PraValer já tem a expertise nisso”, diz Horn. No ano passado, o banco anunciou a extensão da parceria com a fintech até 2029. Mas as apostas do BV não se restringem a fintechs. Em 2019, o banco também firmou um acordo com o Portal Solar, marketplace de instalação de energia solar para pessoas físicas. Em relatório, o banco declarou a parceria resultou em cerca de R$ 200 milhões em negócios no ano passado. O financiamento para energia solar residencial é um mercado que cresce bastante no Brasil. Acabamos investindo neles também”, afirma Horn, sobre o acordo. A área dirigida por Horn recebe por semana, em média, dez novos contatos de startups. Nem todas, por óbvio, se transformam em parcerias ou injeções de capital. A seleção é criteriosa e leva em conta três dimensões. Primeiro, a avaliação do negócio (valuation) e a proposição de valor em relação aos concorrentes. Outro aspecto analisado é a capacidade de execução dos empreendedores. Por último, é avaliada a sinergia que o negócio terá com o banco. Ainda assim, o volume de investimentos e o interesse por parcerias tem crescido. “Temos modelos de negócio para todos os estágios de startups”, diz. “A gente quer ser percebido como o banco preferido das startups”, explica. E não só como investidor, mas também como fornecedor. O BV oferece também infraestrutura de liquidação e custódia para fintechs como Neon, Nubank, Stone, Adyen e Konduto. No primeiro semestre deste ano, o serviço de Banking as a Service (BaaS) registrou mais de 18,2 milhões de transações, volume 211% maior em relação ao mesmo período de 2019, diz o executivo.

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Quem também está de olho nas startups é o BTG Pactual. Há dois anos, o banco de investimento criou o boostLAB, programa de potencialização de scale-ups e startups em nível avançado. A iniciativa começou como programa de aceleração e evoluiu para um hub de negócios voltado a empresas de tecnologia, com braços de corporate venture e venture debt, modelo de financiamento a startups via dívida. Nas cinco edições concluídas, o programa viabilizou o fechamento de negócios com 70% das startups participantes. Na edição mais recente do programa de aceleração, que tem início em agosto, foram selecionadas oito startups, incluindo a fintech espanhola Belvo, especializada em APIs e open banking, que prevê inaugurar uma operação no Brasil neste semestre. Em edições anteriores, foram costuradas parcerias com empresas como a Celcoin, de infraestrutura de serviços financeiros para microempreendedores e fintechs, que permitirá ao BTG ampliar de forma mais rápida e barata o portfólio do banco de varejo que está prestes a lançar.


Estamos lançando um banco do zero. Se formos desenvolver 100% dos features, além do investimento gigante em pessoas, recursos e tecnologia, demanda tempo.

ao lado: Frederico Pompeu, sócio responsável pelo boostLAB do BTG Pactual

A lógica, nos dois casos, é semelhante: se adequar a novas demandas de mercado forma rápida, eficiente e relativamente barata, sem perder o foco. “Estamos lançando um banco do zero. Se formos desenvolver 100% dos features, além do investimento gigante em pessoas, recursos e tecnologia, demanda tempo”, diz Frederico Pompeu, sócio responsável pelo boostLAB. Assim como o BV, o banco de Pompeu tem interesses em áreas de negócio que vão além de fintechs, como a de soluções para o mercado imobiliário. Este ano, por exemplo, expandiu a parceria com a Liber Capital, de antecipação de recebíveis, mas também ampliou sua participação na CredPago, de 20% para 49%. A CredPago atua no mercado imobiliário oferecendo garantias para que inquilinos possam alugar imóveis sem fiador e sem muita burocracia. No Banco Topázio, do Grupo Correa da Silva, as parcerias ativas com fintechs e startups são mais de 30, e há outras 26 em fase de homologação. Por meio da plataforma de banking as a service (BaaS), as empresas nascentes conseguem oferecer serviços financeiros para os clientes, usando a tecnologia e licença bancária do Topázio. Uma das parcerias é com o Mercado Pago. Por meio das APIs do banco para emissão de dívidas, a fintech do Mercado Livre disponibiliza aos clientes uma opção de crédito 100% digital, voltada para pequenos negócios que precisam de capital de giro.

“Se pegarmos a representatividade com presença em clientes e contratos, já estamos cobrindo 90% do potencial da América Latina, com clientes em países como Brasil, Chile, Colômbia, Argentina e México”, afirma Luiz Antônio Sacco, diretor geral da Ripple [de soluções de blockchain] para a América Latina.

O crescimento da carteira de negócios de startups com grandes empresas é outro indicador do interesse do mercado por novidades. A Ripple, de soluções com blockchain, por exemplo, tem mais de 12 bancos e corretoras como clientes no Brasil. “Se pegarmos a representatividade com presença em clientes e contratos, já estamos cobrindo 90% do potencial da América Latina, com clientes em países como Brasil, Chile, Colômbia, Argentina e México”, afirma Luiz Antônio Sacco, diretor geral da Ripple para a América Latina. Neste ano, a fintech se juntou a 40 empresas de pagamentos e fintechs do mundo todo para lançar a PayID, uma identidade de pagamentos universal para simplificar o processo de envio e recebimento de dinheiro globalmente – em qualquer rede de pagamentos e em qualquer moeda. Algo com potencial para agilizar e baratear, e muito, o fluxo de capitais entre países, facilitando inclusive a contratação de profissionais fora do país, nas mais diversas áreas. A extensão das transformações geradas pela nova regulamentação é incerta. Mas poucos têm dúvidas de que quem não abraçar a inovação aberta e as mudanças pode em breve se tornar tão obsoleto quanto um talão de cheque•

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novatas atraentes Investimento em fintechs chegou a quase US$ 1 bilhão em 2019. [fonte: Distrito] *janeiro a junho de 2020

evolução no número de fintechs no Brasil


distribuição por categoria de solução, em %


ENTREVISTA

Conversar com startups requer um certo nível de humildade por The Funnel Global foto Divulgação

Para Dagan Eshel, VP de inovação no Grupo Strauss, pioneiro na indústria israelense de foodtech, é preciso certo nível de tolerância ao estilo e ao “espírito livre” dos empreendedores de tecnologia A trajetória de Dagan Eshel no mundo da inovação começou em uma cafeteria, em Israel, nos anos 1990, e ganhou dimensão mundial. Em pouco menos de oito anos, o executivo a transformou em uma fábrica de bolos, a vendeu para a Strauss e, de carona no negócio, assumiu a área de inovação do grupo empresarial que se tornaria um dos mais importantes atores no dinâmico cenário das foodtechs israelense. A entrevista a seguir, Eshel trata da trajetória da companhia que hoje toca um dos principais projetos de incubação financiados pela Autoridade de Inovação de Israel. 32 T H E F U N N E L | R E V I S TA B R A S I L E I R A D E I N O VA Ç Ã O C O R P O R AT I VA

Como a Alpha Strauss começou a trabalhar com inovação? A Strauss começou a inovar de forma sistemática por volta do ano 2000. Tradicionalmente, o que fazia era uma inovação gradual ou de produto, que poderia introduzir melhorias no portfólio. Quando começamos a buscar modos de inovar de forma mais significativa, percebemos que precisávamos de uma abordagem nova e mais ambiciosa. Quais foram os desafios para isso? Precisava ser uma abordagem enxuta, não tinhamos orçamento alto. Decidimos então aproveitar nossa localização, na nação de startups, e estabelecer um novo mercado, que é rotulado de foodtech, mas


que, na nossa definição, inclui qualquer inovação em produtividade, qualidade, vantagem de produto e sustentabilidade na cadeia de produção do campo ao prato. Independentemente da área de atuação de uma startup, se a tecnologia tinha potencial, nós a classificávamos como foodtech. Quando começamos a olhar para o mercado israelense através dessa lente, descobrimos inúmeras oportunidades.

Como resolveram o problema? Fundamos a The Kitchen, nossa incubadora, que hoje usa financiamento do escritório de cientistas-chefe de Israel. Uma vez que a fonte é pública, o objetivo da The Kitchen é alimentar startups de foodtech, independentemente de criarem algo que a Strauss possa usar. Recentemente, começamos a buscar soluções em todo o mundo para grandes problemas.

A partir daí, o que fizeram? A próxima pergunta era como fazer com que esses atores queiram trabalhar conosco. Na inovação aberta tradicional, as empresas formulam um briefing sobre o que estão buscando e convidam atores pertinentes para discutí-lo. Como não tínhamos como definir algo específico, convidamos vários atores para conversar e criar o mercado juntos. Pedimos que nos dissessem o que potencialmente poderiam fazer por nós e o que poderíamos fazer por eles. Existem várias formas, sem custos diretos, de uma empresa ajudar uma startup. Um empreendedor pode ser um mago técnico sem talento em marketing. Nesse caso, podemos ajudá-lo com um especialista, por exemplo. Deixamos claro para o ecossistema que, quem tivesse uma ideia para foodtech, a Strauss era a empresa a ser procurada.

O que você não sabia sobre startups e teve que aprender com o projeto em movimento? A primeira coisa é que empreendedores muitas vezes são “espíritos livres”. Quando alguém de uma corporação os encontra, deve ter um nível de tolerância a esse estilo. Isso também requer um certo nível de humildade. É quase impossível responder as seguintes questões ao mesmo tempo: Isso vai funcionar? Se funcionar, alguém vai se importar? Então, decidimos assumir que, de início, tudo o que a startup disser é verdade. Concentramos nossa atenção na segunda questão, partindo do princípio de que os aspectos técnicos serão esclarecidos e testados depois. O segundo aprendizado foi que as startups geralmente dividem esforços entre a tecnologia que possuem e sua aplicação. Nossa postura é: “sua tecnologia é a sua especialidade. A nossa é o mercado. Concentre-se em apresentar a tecnologia e discutiremos juntos a aplicação mais promissora”. Por último, o fomento e a execução de oportunidades com startups geralmente levam mais tempo e exigem mais orçamento que o planejado. Isso significa que a maneira como os gestores de inovação são avaliados deve ser ajustada de acordo com o estágio em que se encontram os programas de inovação. No início, devem ser medidos com base no número de startups entrevistadas e pesquisadas. Em seguida, você deve acrescentar o número de projetos gerados com startups. Só depois você deve começar a medir o impacto nos KPIs de negócios•

Você criou valor para startups e divulgou isso amplamente. O segundo movimento foi trabalhar a organização para torná-la mais receptiva. Persuadimos acionistas para que obtivéssemos maior interesse e cooperação. Fizemos ajustes nos processo de trabalho com startups. Simplificamos e reduzimos o contrato de confidencialidade para uma página e meia. Encurtamos o cronograma de pagamento. Era de 90 dias, agora é quase imediato. Nos tornamos uma espécie de curadoria, dando visibilidade a ideias e as transformando em propostas estruturadas para empresas da Strauss. Não procuravamos investir em startups. Mas, depois de três anos, percebemos que muitas oportunidades estavam em startups em estágio inicial e não tínhamos como lidar com elas.

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GUIA

reinvenção orientada por Dubes Sônego

Entenda como, na visão de especialistas, é possível dar novo rumo a negócios com futuro incerto, fortemente afetados pela pandemia e a transformação digital

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A pandemia da Covid-19 teve efeitos diferentes sobre diferentes atividades econômicas. O varejo online e serviços de streaming de mídia, de modo geral, cresceram. Outras, como serviços de utilidade pública e transporte rodoviário urbano, passaram por uma baixa, mas têm perspectiva de rápido retorno no pós-pandemia. Bem mais complicada é a situação de indústrias como as de turismo e lazer, eventos e hotelaria, por exemplo, que terão que se transformar antes de voltar a crescer, ou ainda não têm ideia clara dos impactos duradouros da Covid sobre os hábitos de consumo dos clientes, aponta o estudo “Impactos e respostas aos efeitos da Covid-19”, da Leap, aliança estratégica entre a KPMG e a Distrito. Para as empresas em situação difícil, porém, a crise não é necessariamente o fim da linha. No mundo das startups é comum que a tese original de negócios se mostre inviável. Em casos assim, muitas aproveitam a experiência adquirida para se reinventar. Seja através da adaptação da tecnologia a novas funções, públicos ou mercados, seja com um novo modelo de comercialização, por exemplo. O movimento é conhecido como “pivotar”, um neologismo que tem origem no verbo “to pivot”, do inglês, que significa girar, rodar em volta do eixo.

Avaliação do contexto Analisar e entender o contexto é parte fundamental do processo. Em primeiro lugar, qual foi o impacto sobre o setor em que sua empresa atua? Só ela vai mal, ou os concorrentes também? “A crise está afetando todo mundo, mas de maneiras diferentes”, diz Thammy Ivantes Marcato, decoder na LEAP. Em algumas indústrias, as mudanças geradas pela pandemia deram impulso às vendas. Nestes casos, estar mal pode significar problemas internos. Da mesma forma, em outros setores, estar mal pode ser consequência de quebra na demanda, e não de falhas de gestão ou falta de investimento em tecnologia.

“A ideia de pivotamento vem das metodologias ágeis de gestão”, diz Rubens Massa, professor do Centro de Empreendedorismo e Novos Negócios da FGV. Ao pivotar, o empreendedor parte de uma ideia estruturada, gera hipóteses e testes e, dos testes, tira aprendizados que vão refletir na ideia original, diz o acadêmico. “A lógica é a de partir da interrelação constante entre o que a empresa tem a oferecer e o que o contexto pede”.

Auto análise Tendo isso em vista, The Funnel ouviu consultores e acadêmicos para montar um guia com orientações para quem quer iniciar o processo de pivotar sua empresa. É o que segue ao lado:

Uma vez identificada a posição da empresa no quadro geral, diz Thammy, é hora de fazer uma auto análise do quanto a empresa está preparada para aproveitar os recursos oferecidos pelas novas tecnologias no processo de reação à crise. Isso porque, diz a executiva, o mercado, de modo geral, tende a usá-las para ganhar competitividade. Dois movimentos observados durante a crise são a automação, para redução de custos, e a migração para serviços na nuvem, que permitem ganhos em escala, afirma Thammy.

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Atenção ao consumidor É essencial estar mais próximo do cliente. Canais de comunicação direta são fundamentais para identificar e atender rápido novas demandas. Há diversas formas de se fazer isso, seja por Whatsapp ou através de ferramentas mais complexas de comunicação, como aplicativos de gestão de redes sociais, por exemplo. “Quem é esse cliente? Que ‘tarefas’ está buscando e como você é a resposta para elas? Se você não for, quem é?’”, diz Thammy.

Preparação para a ação Não adianta a empresa conhecer a demanda e não agir. Em um contexto de transformação acelerada, é preciso que se adapte rápido. “E aí, o grande desafio é a mentalidade do empreendedor e a estrutura da empresa”, diz Massa, da FGV. Para pivotar na velocidade necessária, avalia, é importante que ambos tenham características como criatividade, flexibilidade e anseio de aprender constantemente no cerne da sua cultura. São habilidades que requerem desenvolvimento processual e constante. Mas que podem ser incorporadas. É o que muitos empresários têm buscado fazer agora, através de cursos e entidades, diz.

Adaptação cultural Fundamental é envolver toda a equipe. Para Massa, se o processo de adaptação cultural se limitar aos gestores, corre-se o risco de que haja resistência e insatisfação em momentos em que forem necessárias mudanças de rumo “mais ousadas”. Como a incerteza é inerente a contextos de constantes e rápidas transformações, diz o acadêmico, a instabilidade e os erros fazem parte do dia a dia. Por isso, é preciso que todos aprendam a lidar com isso. “Saber errar é muito importante. É errar gastando o menos possível. O ideal é que você erre muito, mas erre rápido e com consciência, respeitando esses princípios”, diz Massa.

Agir com os recursos à mão Incorporada a mentalidade, a recomendação do acadêmico é agir com os recursos à mão, sem esperar o momento ou a condição ideal. Só assim, diz, é possível, dentro da realidade da empresa, dar o próximo passo, interagir, aprender, e colocar as mudanças em marcha.

Caminhos possíveis Reconexão com o contexto A boa notícia, afirma o acadêmico da FGV, é que se reconectar ao contexto é barato atualmente. Há um volume imenso de informações acessíveis em redes sociais, podcasts e sites especializados com material atualizado. Há também cursos de entidades como o Sebrae e faculdades, como a FGV, com o Gabinete anti-crise, além de redes empresariais onde discutir o tema com outras empresas. Dinheiro extra ajuda. Mas não é fundamental.

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Na hora de colocar a mão na massa, são basicamente três os caminhos, diz Eduardo Peixoto, CBO do Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (CESAR). O primeiro é levar para o online produtos e serviços do mundo físico. É o que vem fazendo muitas escolas. “Outras empresas podem fazer isso através de plataformas de marketplace, por exemplo”, diz Peixoto. A segunda alternativa, para quem já está no digital, é se preparar para o aumento de vendas online. O Magalu, por exemplo, lançou um programa para parcerias que permite a micro e pequenas empresas venderem pela internet. A terceira possibilidade é aproveitar o momento para digitalizar processos e trabalhar de forma mais integrada ao longo da cadeia de produção para reduzir custos, diz o executivo•


ARTIGO

três formas de acelerar as parcerias entre grandes corporações e startups Programas de inovação aberta crescem em todo o mundo, mas a América Latina está atrás na curva de expansão por Josemaria Siota e Julia Prats

No Rio de Janeiro, a gigante do petróleo Petrobras está trabalhando com aceleradores de startups, patrocinando hackathons e orientando pequenas empresas de tecnologia. Enquanto isso, a Bimbo, multinacional do ramo de panificação com sede na Cidade do México, está fornecendo financiamento, orientação e outros recursos para startups promissoras. O corporate venturing - negócios corporativos de ricos ligando empresas estabelecidas a startups inovadoras - está crescendo em todo o mundo, mas havia pouca informação disponível sobre a prática na América Latina - até agora. Um novo estudo, o Corporate Venturing Latam**, mapeou 460 programas de colaboração que 107 gigantes corporativos da região, como Petrobras, Bimbo, Itaú e Falabella, estão executando com startups.

Paralelamente, apesar do crescimento global e da atividade local, as taxas de adoção e sucesso são baixas. O relatório descobriu que apenas 16% das grandes empresas analisadas na região têm mecanismos de corporate venturing, como aceleradoras corporativas, hackathons ou venture builders. É surpreendente, considerando que 75% das empresas da Fortune 100 usam capital de risco corporativo (apenas um dos mecanismos). Além disso, cerca de três quartos das iniciativas de inovação corporativa não entregam os resultados desejados.

Então, qual é o nível atual de atividade � e como podemos melhorá-lo e aumentá-lo? O U T U B R O / N O V E M B R O / D E Z E M B R O , 2 0 2 0 37


Seis hubs

O estudo se concentrou em empresas com pelo menos US$ 4 bilhões em receitas anuais, operando em seis países - Brasil, México, Colômbia, Chile, Argentina e Peru -, onde a maior atividade de venture building foi encontrada. O relatório descobriu que, dentro desse grupo, existem 184 subsidiárias corporativas em 19 cidades latino-americanas executando 460 iniciativas como prêmios em desafios, missões de reconhecimento, programas de aceleração corporativa, espaços de coworking, capital de risco corporativo, venture builders e aquisições de startups. Em paralelo, o capital de risco para startups locais mais do que triplicou nos últimos cinco anos. Aceleradoras de startups estatais e privadas estão se proliferando. Considerando esse impulso crescente, como a região pode se aproximar da taxa de adoção da Fortune 100, enquanto reduz a taxa de falha dessas colaborações? De acordo com os insights fornecidos durante as entrevistas com 133 principais líderes de inovação, complementadas com uma análise de 1.760 subsidiárias corporativas na América Latina, essas foram algumas das lições aprendidas:

Use polinização cruzada, subsidiárias e instituições estrangeiras para obter conhecimento mais rápido.

Importe as melhores práticas de outras subsidiárias e sedes. Algumas estão construindo redes de inovação e conhecimento com pequenas equipes virtuais de quatro a cinco funcionários. Cada membro da equipe pertence a diferentes subsidiárias, regiões e departamentos corporativos, monitorando as metodologias de inovação em um campo de pesquisa definido pela equipe. Todas as equipes se reúnem periodicamente e agregam percepções que são apresentadas à alta administração uma vez por trimestre.

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Junte-se a outras grandes empresas em desafios conjuntos para melhorar sua proposta de valor e capacidade de exploração de possibilidades, enquanto reduz seu custo de inovação.

O crescimento do número de empresas engajadas em empreendimentos de risco gerou um debate sobre como seduzir as melhores startups. Agrupe recursos e colabore com startups de forma mais eficiente fazendo parceria com outras empresas - incluindo concorrentes. As startups podem se beneficiar da experiência técnica agregada e dos canais de distribuição de atividades co-patrocinadas, segundo Georgina Baker, vice-presidente da IFC.

Confie em números, não no hype, ao escolher ferramentas de corporate venturing.

Os resultados mostram que várias empresas latino-americanas ainda confiam na intuição, e não em dados, para estabelecer estratégias na área. Estão fechando predominantemente contratos de baixo custo, como prêmios de desafio (24%) e missões de reconhecimento (20%), que são mais econômicos, mas podem apresentar desafios maiores na hora de integrar à corporação os valor gerados nessas iniciativas. Estudos recentes já mostram o tempo que leva para colaborar com uma startup por meio de uma aceleradora corporativa ou o custo médio de execução de um hackathon, por exemplo. Considerando que alguns mecanismos podem ser até cinco vezes mais rápidos e três vezes mais econômicos do que outros, as empresas devem pesquisar os modelos existentes, em vez de fazer suposições, na hora de escolher os seus•

Josemaria Siota e Julia Prats respectivamente, diretor executivo e chefe de Empreendedorismo da Escola de Negócios IESE.


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