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Destino: Inferno Tradução José Moreira da Silva
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ATHAN RUBIN MORREU POR TER CRIADO CORAgem. Não aquela do tipo prolongada, que vale medalha numa guerra, e sim daquelas que vêm de uma explosão de fúria cega, impensada e repentina, que causa mortes nas ruas. Saiu cedo de casa, como sempre fazia, seis dias por semana, cinquenta semanas por ano. Tomou um café da manhã com o cuidado próprio de um homem baixo e troncudo que pretende continuar em forma na casa dos quarenta. Percorreu os longos corredores acarpetados de uma bela casa às margens de um lago, própria de um homem que ganhava mil dólares por dia, nos trezentos que trabalhava. Apertou o polegar na tecla do controle remoto da porta da garagem e deu uma girada no pulso para ligar o silencioso motor do seu caríssimo sedã importado. Colocou um CD, deu uma ré rápida pela entrada
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de cascalho, uma pisadinha no freio, colocou o câmbio automático na posição drive, cutucou o acelerador e o último breve trajeto da sua vida tinha começado. Seis e quarenta e nove da manhã, segunda-feira. Pegou verde o único sinal na rota para o trabalho, a causa direta da sua morte, pois isso fez com que estacionasse na vaga isolada nos fundos do prédio comercial, ainda faltando trinta e oito segundos para o término do prelúdio depois do Si menor de Bach. Permaneceu sentado ouvindo até o derradeiro toque de órgão ecoar no silêncio, fazendo com que, ao sair do carro, três homens aparecessem próximos o bastante para que ele notasse que estavam a fim de alguma coisa. Por isso os olhou de relance. Desviaram o olhar e alteraram o curso. Três homens em compasso, como dançarinos ou soldados. Voltou-se para seu prédio. Começou a andar. Mas de repente parou. E olhou para trás. Os três homens estavam cercando seu carro. Tentando abrir as portas. — Ei! — ele gritou. Era o som curto e universal de surpresa, raiva, desafio. O tipo de som instintivo que um cidadão sério e ingênuo deixa escapar quando algo não deveria estar acontecendo. O tipo de som instintivo que faz um cidadão sério e ingênuo ir dessa para melhor. Quando caiu a ficha, estava voltando diretamente para o carro. Na desvantagem, três contra um. Mas o fato de estar no seu direito o encheu de moral e confiança. Voltou a passos largos, sentindo-se puto da vida, com a bola toda e senhor da situação. Mas eram sentimentos ilusórios. Um mauricinho de bairro nobre como ele, nunca estaria à altura de uma situação como essa. Sua boa forma era apenas de academia. Não valia nada. Sua barriga durinha se rompeu com a primeira porrada selvagem. Seu rosto foi sacudido para a frente e para baixo, e juntas duras reduziram seus lábios a polpa e despedaçaram seus dentes. Foi agarrado por mãos ásperas e braços volumosos, e mantido em pé como se não pesasse nada. As chaves foram arrancadas da mão e a orelha levou um tapão estrondoso. Da boca jorrou sangue. E suas costas foram esmagadas por botas pesadas depois de atirado no asfalto. Em seguida, a barriga. E aí, a cabeça. Ele saiu do ar como um televisor num temporal. O mundo simplesmente se desvaneceu diante
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dos seus olhos. Tornou-se uma frágil chama e se desmanchou no nada aos suspiros. E assim, porque de repente deu uma de macho, ele foi pro saco. Mas não naquele exato momento. Morreu muito mais tarde, depois que o momento de bravura se dispersou em longas horas de medo desprezível e ofegante, e depois que as longas horas de terror se transformaram em uma explosão de gritos dementes de pânico, que duraram longos minutos. Jack Reacher permaneceu vivo porque foi cauteloso. E agiu com prudência porque foi guiado por um eco do passado. Seu passado era intenso e o eco vinha da parte sombria dele. Servira ao exército treze anos e a única vez que tinha sido ferido não foi a bala. Foi pelo fragmento do maxilar de um sargento dos fuzileiros navais. Reacher estava servindo na base de Beirute, nas instalações militares norte-americanas nos arredores do aeroporto, atacadas por um caminhão-bomba. Reacher se encontrava na portaria, e o sargento, uns cem metros mais próximo da explosão. O fragmento de maxilar foi a única coisa que sobrou do sujeito. Atingiu Reacher a cem metros de distância, penetrando sua barriga, girando como um projétil. O cirurgião do exército que o operou confessou mais tarde que ele tinha ganhado na loteria, que uma bala de verdade na pança seria tão ruim quanto. Era esse o eco que Reacher estava ouvindo. Muito atentamente. Porque treze anos mais tarde lá estava ele, com uma pistola apontada diretamente para seu bucho. A uma distância aproximada de três centímetros. A pistola era uma automática, nove milímetros. Novinha em folha. Lubrificada. Mantida em posição baixa, alinhada diretamente com sua velha cicatriz. O sujeito que a estava segurando parecia, mais ou menos, saber o que fazia. A trava de segurança estava liberada. A boca do trabuco não tremia. Nenhuma tensão. O dedo no gatilho pronto para a ação. Reacher estava ligado. Não tirava o olho do dedo no gatilho. A postos ao lado de uma mulher, segurando seu braço. Nunca a tinha visto. Ela olhava fixamente para uma nove milímetros idêntica,
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também apontada para sua barriga. O cara que a ameaçava parecia mais tenso, com certeza, estressado, preocupado. Sua arma tremia com a tensão. Unhas roídas. Sujeitinho nervoso, agitado. Os quatro ficaram lá, na rua. Três deles, imóveis como estátuas, e o quarto, trocava ligeiramente o pé de apoio sem parar. Estavam em Chicago. No centro da cidade. Numa calçada movimentada. Numa segunda-feira. O último dia de junho. Em plena luz de um dia ensolarado de verão. Toda a situação se materializara em um milésimo de segundo. Tinha acontecido de uma maneira que não poderia ter sido planejada nem em um milhão de anos. Reacher estava zanzando pela rua, sozinho, nem rápido nem devagar. Estava a ponto de passar em frente a uma tinturaria, quando a porta se abriu na sua cara, e uma velha muleta metálica tiniu na calçada bem diante dele. Ergueu os olhos e viu uma mulher na entrada, prestes a derrubar nove cabides de roupa. Tinha pouco menos de trinta anos. Trajava roupas caras. Morena, atraente, segura de si. Uma perna estava capenga, tinha algum tipo de lesão. Reacher notou pela posição desajeitada que uma dor a incomodava. Ela lhe lançou um olhar do tipo: Será que você poderia... e ele devolveu um: Pode deixar, e pegou a muleta metálica, e com a outra mão seus nove cabides, e lhe passou a muleta. Lançou todos os cabides sobre o ombro e sentiu uma pontada no dedo por causa dos ganchos de arame. Ela havia apoiado a muleta na calçada e colocado seu antebraço cuidadosamente na calha curvada de metal. Ele ofereceu a mão. Ela hesitou. Então, acenou com a cabeça, embaraçada, e ele pegou seu braço, pacientemente, sentindo-se prestativo, porém sem graça. Então, ambos se voltaram para seguir em frente. Reacher pensou em talvez caminhar um pouco ao seu lado, até que ela estivesse com os pés firmes. Aí largaria o braço dela e entregaria a roupa. Ma,s ao se voltar, dera de cara com os dois sujeitos com as nove milímetros. Os quatro permaneceram lá, cara a cara, duas duplas. Como quatro pessoas comendo juntas num pequeno reservado de um restaurante. Os dois sujeitos armados eram brancos, bem alimentados, parecidos, e meio
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com pinta de militares. Estatura média, cabelos curtos e castanhos. Mãos grandes, fortes. Rostos enormes, chamativos, traços rosados e inexpressivos. Fisionomia tensa, olhar cortante. O nervosinho era menor, como se o excesso de preocupações queimasse sua energia. Ambos usavam camisas xadrez e paletós de popeline. Ficaram lá, um em cima do outro. Reacher era muito mais alto do que os outros três. Podia ver tudo ao redor, sobre suas cabeças. Paralisado, surpreso, com a roupa da mulher no ombro. Ela se debruçava sobre a muleta, com o olhar fixo, sem dar um pio. Os caras apontavam suas armas, bem de perto. Reacher sentiu que estavam naquela posição há muito tempo, mas sabia que o sentimento enganava. Talvez não tivesse passado mais do que um segundo e meio. O cara na frente de Reacher parecia ser o líder. O maior, o calmo. Ele olhou entre Reacher e a mulher e sacudiu o cano da automática para o meio-fio. — Entra no carro, vagabunda — o sujeito disse. — Você também, seu babaca. Falou com urgência, porém baixinho. Com autoridade. Não tinha um sotaque muito acentuado. Talvez da Califórnia, pensou Reacher. Um sedã no meio-fio estava esperando. Um carro grande, preto, todo estofado em couro de qualidade, caro. O motorista estava se inclinando sobre o banco do passageiro. Esticando-se para puxar o pino da porta traseira. O sujeito cara a cara com Reacher voltou a sinalizar com a arma. Reacher não mexeu um músculo, ficou olhando para a esquerda e a direita. Calculou que tinha mais um segundo e meio para fazer algum tipo de avaliação. Não estava lá muito preocupado com os dois fulanos e suas nove milímetros. Estava maneta, por causa das roupas, mas calculou que seria moleza dar um chega pra lá nos dois. O problema estava no seu flanco e retaguarda. Ergueu os olhos para a janela da tinturaria e a usou como um espelho. A uns vinte metros das suas costas havia uma massa compacta de gente apressada na calçada. Uma dupla de balas perdidas acertaria um par de alvos. Sem dúvida. Sem nenhuma sombra de dúvida. Esse era o obstáculo da retaguarda. O problema ao seu lado era a tal desco-
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nhecida. Suas habilidades eram um enigma. Uma das pernas estava capenga. A reação seria lenta. Ele não estava pronto para travar um combate. Não nesses arredores, e não com essa parceira. O cara com sotaque californiano esticou o braço e agarrou o pulso de Reacher preso no colarinho pelo peso dos nove cabides de roupas limpas. Ele o usou para arrastá-lo para o carro. O dedo no gatilho ainda parecia pronto para a ação. Reacher o observava de rabo de olho. Soltou o braço da mulher, foi até o carro, jogou as roupas no banco traseiro e entrou. A mulher foi empurrada para dentro em seguida. Então o agitadinho se espremeu junto com eles e bateu a porta. O líder entrou na frente. Bateu a porta. O motorista acionou a alavanca do automático e o carro se moveu suave e silenciosamente pela rua. A mulher ofegava de dor e Reacher calculou que a arma do nervosinho estava metida nas costelas dela. O líder mantinha o corpo retorcido no banco da frente, com sua arma apoiada no encosto de cabeça. Estava apontando diretamente para o peito de Reacher. Era uma Glock 17. Reacher sabia tudo sobre a pistola. Avaliara o protótipo para sua unidade. Essa tinha sido sua tarefa durante a recuperação, trabalho leve, após o ferimento em Beirute. A Glock era uma arminha danada. Dezenove centímetros de comprimento, do percussor até a ponta da boca. Longa o suficiente para torná-la precisa. Reacher tinha acertado cabeças de tachinhas a vinte e cinco metros com ela. E a Glock disparava um projétil de respeito. Balas de sete gramas a quase mil e trezentos quilômetros por hora. Dezessete balas por pente, daí o nome. E era leve. Apesar de toda a sua potência, pesava menos de um quilo. As partes importantes eram de aço, o resto, de plástico. Policarbonato preto, como o de uma câmera cara. Uma fina obra artesanal. Mas não gostou muito dela. Não para as exigências específicas da sua unidade. Recomendou a rejeição. Apoiou a Beretta 92F. Ela também era uma nove milímetros, cerca de vinte gramas mais pesada, por volta de três centímetros mais longa, duas balas a menos no pente. Mas tinha aproximadamente dez por cento mais poder de impacto do que a Glock. Isso era importante para ele. E não era
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de plástico. A Beretta foi a escolha de Reacher. Seu comandante de unidade concordou e avalizou o relatório. Todo o exército apoiou a recomendação. Na mesma semana em que foi promovido e condecorado com a Estrela de Prata e o Coração Púrpura, requisitaram Berettas, apesar de serem mais caras, de a OTAN ter ficado louca pela Glock e de Reacher ser apenas uma voz solitária que tinha se formado há pouco tempo em West Point. Depois disso, teve que ir cumprir missão em outra parte, e mais tarde servir ao redor do mundo, e não tinha visto sequer uma Glock 17 desde a época. Até agora. Doze anos depois estava dando uma bela reexaminada na máquina. Desviou a atenção da arma e deu outra olhada de butuca para o fulano que a estava segurando. Bronzeado razoável que embranquecia perto da borda do cabelo. Corte recente. O motorista tinha uma baita testa brilhante, cabelo ralo penteado para trás, feições rosadas e vívidas, sorriso afetado do tipo que sujeitos feios que nem o diabo esboçam quando se julgam bonitos. A mesma camisa barata de lojas populares, o mesmo paletó. O mesmo porte construído a milho. A mesma confiança de quem está no comando, norteado por uma ligeira avidez. Três caras, todos com talvez trinta ou trinta e cinco anos. Um líder, um seguidor firme, um seguidor agitado. Todos tensos, porém treinados, cumprindo algum tipo de missão às pressas. Um enigma. Reacher tirou o olho da Glock e mirou o líder, e nesse momento o cara balançou a cabeça. — Boca calada, idiota — ele disse. — Se abrir o bico, leva chumbo. Eu te prometo. Se ficar quieto, talvez fique na boa. Reacher o levou a sério. O olhar do cara era sinistro e a boca, uma linha tensa. Por isso ficou de bico fechado. Então o carro reduziu a velocidade e entrou num pátio de concreto irregular. Deu a volta e foi para os fundos de uma instalação industrial abandonada. Tinham se dirigido para o sul. Reacher calculou que estavam agora a cerca de oito quilômetros ao sul do Loop, o centro de Chicago. O motorista foi reduzindo a velocidade do grande sedã até parar, com a porta traseira alinhada à traseira de um furgão de entregas que se encontrava sozinha no estacionamento vazio. Era um Ford Econoline, branco encardido, um furgão não
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muito velho, porém bem usado. Algum tipo de letreiro na lateral fora coberto com tinta branca fresca, que não combinava exatamente com a lataria que Reacher observava. O estacionamento estava cheio de lixo. Viu uma lata de tinta jogada perto do veículo. Um pincel. Não havia ninguém à vista. O lugar estava deserto. Se fosse para tentar algo, este era o momento e o lugar certos. Mas o indivíduo em frente deu um sorriso sarcástico e se inclinou para a traseira do carro. Agarrou o colarinho de Reacher com a mão esquerda e enfiou a ponta da Glock na sua orelha com a direita. — Não se mexa, seu babaca — o cara ordenou. O motorista saiu do carro e rodeou a capota. Tirou um molho novo de chaves do bolso e abriu as portas traseiras do furgão. Reacher ficou sentado imóvel. Enfiar uma arma na orelha de alguém não é necessariamente uma jogada esperta. Se a pessoa de repente lançar a cabeça na direção da arma, ela se desloca, rolando ao redor da testa. Aí, nem mesmo um dedo rápido no gatilho causará muito dano. Pode fazer um furinho besta de brinco na orelha, apenas na aba externa, e estourar os tímpanos, na certa, mas não são ferimentos fatais. Reacher passou alguns segundos pesando essas possibilidades. Então o sujeitinho agitado tirou a mulher do carro, arrastou-a apressadamente até o furgão e colocou-a na traseira. Direto, de uma porta a outra. Ela percorreu a curta distância aos trancos e barrancos, mancando e saltitando. Reacher ficou observando, de rabo de olho. O cara que cuidava dela tomou sua bolsa e a jogou de volta no carro, que caiu aos pés de Reacher, batendo pesadamente no tapete grosso. Uma grande e cara bolsa de couro, algo pesado dentro dela. Algo metálico. Mulheres carregavam apenas uma coisa metálica que faria um barulho pesado como esse. Ele olhou de soslaio para ela, de repente, curioso. Ela estava estirada na traseira do furgão. Sua perna, um empecilho. Então o líder, na frente, puxou Reacher ao longo do banco de couro e o passou para o tipinho agitado. Assim que uma Glock saiu da sua orelha, outra foi enfiada na sua lateral. Foi arrastado pelo terreno acidentado
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para a porta traseira. E empurrado para dentro junto da mulher. O sujeito agitado cobria ambos com a Glock trêmula, enquanto isso o líder meteu a mão no carro e retirou a muleta de metal da mulher. Andou até eles e a atirou dentro do furgão. Ela tiniu e estrondou na lateral metálica. Deixou as roupas dela na traseira do sedã com a bolsa. Depois tirou um par de algemas do bolso do paletó. Agarrou o pulso direito da mulher e colocou um aro. Puxou-a rudemente para o lado e agarrou o pulso esquerdo de Reacher. Colocou outro. Balançou para ver se estava firme. Bateu a porta traseira esquerda do veículo. Reacher observou o motorista esvaziar garrafas plásticas dentro do sedã. Reconheceu a cor e logo sentiu o cheiro forte de gasolina. Uma garrafa no banco traseiro, outra na frente. Então o líder fechou a porta direita traseira do furgão com um estrondo. A última coisa que Reacher viu antes da escuridão envolvê-lo foi o motorista tirar uma caixa de fósforos do bolso.
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