Um sonho de vida

Page 1


Nora Roberts Um Sonho de Vida Volume 2 da Trilogia do Sonho

Tradução A. B. Pinheiro de Lemos


Prezados Leitores: Uma das vantagens de ser uma escritora é se tornar — pelo menos durante o tempo necessário para escrever o livro — outra pessoa. Para escrever bem, é preciso entrar na pele e personalidade do personagem. Em Um Sonho de Amor, consegui me tornar a fascinante, encantadora e corajosa Margo Sullivan. Foi uma experiência agradável. Em Um Sonho de Vida, o segundo livro da minha Trilogia do Sonho, tornei-me Kate Powell. Órfã aos oito anos de idade, Kate foi criada pelos Templeton, e jurou que nunca os desapontaria. Ela é inteligente, perceptiva, irrequieta e ousada, com uma boa cabeça para cálculos. Como eu era péssima em álgebra na escola secundária, foi bastante emocionante para mim. Gostei de focalizar Kate nesta história, explorando seu coração e mente, ao mesmo tempo em que continuava a desenvolver o relacionamento íntimo e afetuoso entre ela, Margo e Laura. Gostei de observála tendo uma participação mais ativa na direção da Pretenses, a loja incomparável que as três irmãs de coração criaram. E, como não podia deixar de ser, gostei dos passos e estágios de seu romance com o belo hoteleiro Byron De Witt. Aí está um homem, em minha opinião, que pode fazer com que até a pragmática Kate esqueça que dois e dois são quatro. Espero que vocês gostem, como eu gostei, de acompanhar a vida de Kate, à medida que suas necessidades mudam e se transformam, enquanto ela luta com a perda de um sonho e o início de outro.

Nora Roberts


Capítulo Um

S

ua infância fora uma mentira. O pai fora um ladrão. E sua mente se empenhava em absorver esses dois fatos... absorver, analisar e aceitar. Kate Powell se condicionara a ser uma mulher prática, que trabalhava com afinco para alcançar objetivos, conquistando-os passo a passo, com o maior cuidado. Hesitações não eram permitidas, nem seguir por atalhos. As recompensas eram obtidas com suor, planejamento e esforço. Kate sempre acreditara que era assim; um produto de sua hereditariedade e criação, dos padrões rigorosos que ela fixara para seu comportamento. Quando uma criança ficava órfã ainda pequena, quando convivia com a perda, quase testemunhava a morte dos pais, parecia haver pouco mais que pudesse ser tão angustiante. Só que havia, compreendeu Kate, sentada à sua mesa pequena e arrumada na Bittle & Associates, ainda em choque. Uma enorme bênção decorrera daquela tragédia inicial. Perdera os pais, é verdade, mas ganhara outros. O parentesco distante não fizera a menor diferença para Thomas e Susan Templeton. Aceitaram-na em sua casa, criaram-na, deram-lhe um lar e amor. Deram-lhe tudo, sem questionar.


10

Nora Roberts

E deviam saber, refletiu ela. Deviam ter sempre sabido. Sabiam quando a tiraram do hospital, depois do acidente. Sabiam de tudo quando a confortaram e lhe deram a dádiva de sua companhia. Levaram-na através do continente até a Califórnia. Para os penhascos imponentes e a beleza de Big Sur. Para a Templeton House. Ali, naquela vasta casa, tão graciosa e acolhedora quanto qualquer dos hotéis Templeton, fizeram-na parte de sua família. Deram-lhe Laura e Josh, seus filhos, como irmãos. Deram-lhe Margo Sullivan, a filha da governanta, que já fora aceita como parte da família antes mesmo de Kate. Deram-lhe roupas e comida, educação e vantagens. Deram-lhe regras e disciplina, o estímulo para partir em busca de seus sonhos. E, acima de tudo, deram-lhe amor, uma família e orgulho. Mas sabiam desde o início o que Kate, vinte anos depois, acabara de descobrir. Seu pai fora um ladrão, um homem processado por peculato. Surpreendido desviando dinheiro das contas dos clientes, ele morrera confrontando a vergonha, a ruína e a prisão. Talvez ela nunca descobrisse se um capricho do destino não levasse um velho amigo de Lincoln Powell à sua sala naquela manhã. Ele demonstrou a maior satisfação ao vê-la, pois se lembrava dela quando criança. Kate gostou de ser lembrada, de saber que ele trouxera sua conta por causa do vínculo antigo com seus pais. Não se apressou na reunião, conversou bastante com o visitante, embora tivesse pouco tempo de folga durante aquelas últimas semanas que antecediam a entrega da declaração de renda, em 15 de abril. E sentado ali, na cadeira no outro lado da mesa, ele entrou em reminiscências. Pegara Kate no colo quando era pequena. Trabalhara na mesma firma de seu pai. Por isso, ao se mudar para a Califórnia e abrir sua própria firma, queria tê-la como contadora. Ela agradeceu e misturou perguntas sobre sua empresa e necessidades financeiras com indagações sobre seus pais. Então, quando ele falou sobre as acusações, o processo, o pesar que sentira porque o pai de Kate morrera antes de poder fazer a restituição, ela não disse nada, não podia dizer nada.


UM SONHO DE VIDA

11

— Ele nunca teve a intenção de roubar, apenas pegou emprestado. Foi errado, é claro. Sempre me senti parcialmente responsável porque fui eu quem lhe falou sobre o negócio imobiliário, encorajei-o a investir. Não sabia que ele já havia perdido a maior parte de seu capital em duas transações que malograram. Linc teria devolvido o dinheiro. Encontraria um jeito. Sempre encontrava. É verdade que acalentava algum ressentimento pelo primo ser tão bem-sucedido, enquanto ele mal conseguia sobreviver. E o homem — oh, Deus, ela não podia lembrar seu nome, não recordava qualquer coisa além das palavras — sorriu para ela. Durante todo o tempo em que ele falou, oferecendo desculpas, acrescentando suas próprias explicações para os fatos, Kate limitou-se a acenar com a cabeça. Aquele estranho que conhecera seu pai estava destruindo as fundações de sua vida. — Seu pai tinha um certo ressentimento de Tommy Templeton. O que é irônico, pois no final foi Templeton quem criou você. Mas Linc nunca teve a intenção de causar prejuízo a quem quer que fosse, Katie. Apenas foi imprudente. Nunca teve a chance de provar isso, o que foi o verdadeiro crime, se quer saber minha opinião. O verdadeiro crime, pensou Kate, enquanto seu estômago fervia e embrulhava. O pai roubara, porque estava desesperado em busca de dinheiro, e optara pelo caminho mais fácil. Porque era um ladrão, pensou ela agora. Um trapaceiro. E fraudara o sistema judiciário ao derrapar num trecho gelado de uma estrada, batendo com o carro numa árvore. Ele e a mulher morreram, deixando órfã a filha. Assim, o destino lhe dera como pai o homem que seu próprio pai tanto invejava. E, por causa de sua morte, ela se tornara, na essência, uma Templeton. Fora deliberado?, especulou Kate. O pai se sentia tão desesperado e furioso, que optara pela morte? Kate mal se lembrava dele, um homem magro, pálido e nervoso, de temperamento explosivo. Um homem de grandes planos, refletiu ela agora. Um homem que desenvolvera esses planos em fantasias maravilhosas para a filha. Visões de enormes casas, carros espetaculares, viagens divertidas a Disney World. E durante todo o tempo eles moraram numa casa pequena, como


12

Nora Roberts

todas as outras casas pequenas do quarteirão, com um velho sedã barulhento, sem viajar para qualquer lugar. Por isso ele roubara. Fora apanhado. E morrera. O que sua mãe fizera?, especulou Kate. O que sentira? Era por isso que Kate se lembrava dela como uma mulher com a preocupação nos olhos e um sorriso tenso? O pai teria roubado antes? A simples idéia deixou-a gelada por dentro. Teria roubado e conseguira de alguma forma escapar impune? Um pouco aqui, um pouco ali, até que se tornara descuidado? Ela se lembrava das discussões em casa, muitas vezes por causa de dinheiro. E, pior ainda, os silêncios que se seguiam. O silêncio naquela noite. Aquele silêncio opressivo e magoado entre os pais, antes da derrapagem terrível, os gritos e a dor. Kate estremeceu, fechou os olhos, cerrou os punhos, tentou reagir à dor que fazia sua cabeça latejar. Ah, como ela os amara! E amava também a memória dos pais. Não podia admitir que fosse maculada. E não suportaria encarar, ela compreendeu com uma profunda vergonha, ser a filha de um homem desonesto. Não podia acreditar. Ainda não. Kate respirou devagar, várias vezes, antes de se virar para seu computador. Com uma eficiência mecânica, acessou a biblioteca na cidade de New Hampshire, em que nascera e vivera os primeiros oito anos de sua vida. Era um trabalho tedioso, mas ela encomendou cópias de jornais do ano anterior ao acidente, solicitou faxes de qualquer artigo ou reportagem que mencionasse Lincoln Powell. Enquanto esperava, entrou em contato com o advogado do Leste que cuidara do espólio dos pais. Kate era uma mulher à vontade com a tecnologia. Em uma hora, já tinha tudo de que precisava. Pôde ler os detalhes em preto e branco, detalhes que confirmaram os fatos transmitidos pelo advogado. As acusações, o processo criminal, o escândalo. Um escândalo, ela compreendeu, que ganhara espaço na imprensa por causa das ligações da família de Lincoln Powell com os Templeton. E o dinheiro desaparecido fora restituído integralmente depois do enterro dos pais... resti-


UM SONHO DE VIDA

13

tuído, Kate tinha certeza, pelas pessoas que a haviam criado como uma pessoa da família. Os Templeton, refletiu ela, haviam sido arrastados para o escândalo, assumiram a responsabilidade e a criança. E sempre protegeram a criança. Ali, no silêncio de sua sala, sozinha, ela encostou a cabeça na mesa e chorou. E, quando acabou de chorar, tomou uma pílula para dor de cabeça, outra para a azia no estômago. Quando pegou sua pasta para ir embora, disse a si mesma que enterraria o assunto. Simplesmente enterraria. Como enterrara os pais. O fato não podia ser mudado, não podia ser reparado. E ela continuava igual, assegurou a si mesma, a mesma mulher que fora naquela manhã. Mas descobriu que não era capaz de abrir a porta da sala, correr o risco de deparar com um colega no corredor. Em vez disso, tornou a se sentar, fechou os olhos, procurou conforto em antigas lembranças. Um retrato, ela pensou, de família e tradição. De quem ela era, o que recebera, o que fora criada para ser. Aos dezesseis anos, ela assumira uma carga extra de cursos, a fim de poder se formar um ano antes de sua turma. Como não chegava a ser um desafio excessivo, estava determinada também a se formar como a primeira da turma. Já esboçara mentalmente seu discurso como oradora. As atividades extracurriculares incluíam outro mandato como tesoureira da turma, a presidência do clube de matemática e um lugar na formação titular da equipe de beisebol. Tinha esperança de ser escolhida outra vez na próxima temporada como MVP, a jogadora mais valiosa. No momento, porém, sua atenção focalizava-se em cálculos. Os números eram seu ponto forte. Fascinada pela lógica, Kate já decidira que usaria esses conhecimentos em uma carreira. Depois de se formar — era mais do que provável que seguisse Josh em Harvard para tirar o diploma —, trataria de se dedicar à contabilidade. Não importava que Margo dissesse que suas aspirações eram uma chatice. Para Kate, eram realistas. Demonstraria para si mesma, assim como para todos que considerava importantes, que aproveitara ao máximo a oportunidade que lhe fora concedida.


14

Nora Roberts

Como os olhos ardiam, ela tirou os óculos e recostou-se na cadeira. Era importante, Kate sabia, descansar o cérebro periodicamente, a fim de mantê-lo em seu nível mais alerta. Foi o que fez agora, deixando os olhos correrem pela sala. Os novos acessórios que os Templeton haviam insistido em que ela escolhesse, para o seu 16º. aniversário, eram bem a seu gosto. As prateleiras simples de pinho por cima da mesa continham seus livros e material de estudo. A mesa era uma beleza, uma Chippendale, com gavetas profundas, a madeira toda entalhada. Kate sentia-se bem-sucedida só de sentar ali. Não quisera papel de parede requintado ou cortinas extravagantes. O papel de parede listrado e as persianas verticais condiziam com seu estilo. Como compreendia a necessidade da sua tia de mimar, escolhera um sofá bonito, verde-escuro, com arabescos nos lados. Em raras ocasiões, até se deitava ali, para ler por prazer. Afora isso, o quarto era funcional, como ela preferia. A batida à porta interrompeu-a no momento em que voltava a se concentrar no livro. Sua resposta foi um grunhido distraído. — Kate... — Susan Templeton, elegante num conjunto de cashmere, entrou no quarto, pôs as mãos nos quadris. — O que vou fazer com você? — Estou quase acabando. — Kate aspirou a fragrância do perfume da tia, enquanto Susan atravessava o quarto. — Prova do semestre. Matemática. Amanhã. — Como se você já não estivesse preparada... Susan sentou na beira da cama arrumada e estudou Kate. Aqueles enormes e exóticos olhos castanhos a focalizavam de trás dos óculos de leitura de armação grossa. Os cabelos, lisos e escuros, estavam presos atrás num volumoso rabo-de-cavalo. Kate os cortava mais curtos a cada ano que passava, pensou Susan, com um suspiro. Um training cinza cobria o corpo magro, até os pés descalços. Enquanto Susan observava, Kate contraiu a boca larga numa expressão entre chateada e preocupada. A expressão cavou um vinco entre as sobrancelhas. — Caso você ainda não tenha notado — começou Susan —, faltam dez dias para o Natal. — Hum... Última semana do semestre. Quase acabando.


UM SONHO DE VIDA

15

— E já são seis horas. — Não atrase o jantar por minha causa. Quero terminar isto. — Kate... — Susan levantou-se e tirou os óculos de Kate. — Josh voltou da universidade. A família a espera para enfeitar a árvore de Natal. — Ah... — Piscando, Kate fez um esforço para afastar a mente das fórmulas. A tia a observava, os cabelos louro-escuros emoldurando o rosto bonito. — Desculpe. Eu tinha esquecido. Mas se me sair bem nesta prova... — O mundo como o conhecemos vai acabar. Já sei. Kate sorriu e sacudiu os ombros para relaxá-los. — Acho que posso dispensar umas duas horas... mas só desta vez. — Será uma honra para nós. — Susan largou os óculos na mesa. — Não esqueça de se calçar, Kate. — Certo. Já vou descer. — Não posso acreditar que direi isso para uma das minhas meninas, mas... — Susan encaminhou-se para a porta. — Se abrir um desses livros de novo, vai ficar de castigo. — Está bem. Kate foi até a cômoda, escolheu um par de meias da pilha impecável. Por baixo das meias ficava seu estoque secreto de Weight-On, que não tivera muito êxito no esforço para acrescentar mais quilos em torno de seus ossos. Depois de pôr as meias, ela tomou duas aspirinas para conter a dor de cabeça que começava a se manifestar. — Já era tempo. — Margo encontrou-a no alto da escada. — Josh e o Sr. T. já começaram a pendurar as luzes. — Podem levar horas. Sabe como eles adoram discutir se devem estender os fios no sentido dos ponteiros do relógio ou ao contrário. — A cabeça inclinada, ela estudou Margo. — Por que você está toda enfeitada? — Estou apenas sendo festiva. — Margo alisou a saia do vestido vermelho, satisfeita porque o decote insinuava o vale entre os seios. Calçara sapatos de salto alto, pois queria que Josh notasse suas pernas e se lembrasse de que ela era uma mulher agora. — Ao contrário de você, não escolho trapos para armar a árvore de Natal.


16

Nora Roberts

— Pelo menos ficarei confortável. — Kate farejou. — Você roubou o perfume de tia Susie. — Não roubei nada. — Erguendo o queixo, Margo afofou os cabelos. — Ela me ofereceu um esguicho. — Ei — gritou Laura lá de baixo —, vocês duas vão ficar paradas aí em cima discutindo? — Não estamos discutindo, apenas elogiando nossos trajes. Kate soltou uma risada, enquanto começava a descer. — Papai e Josh estão quase terminando a discussão sobre as luzes. — Laura lançou um olhar para a sala de estar da família, através do saguão espaçoso. — E começaram a fumar charutos. — Josh fumando um charuto? Kate não pôde conter uma gargalhada ao pensamento. — Ele é um homem de Harvard agora. — Laura falou com um exagerado sotaque da Nova Inglaterra. — Você está com olheiras. — E você parece que tem estrelas nos olhos. E também se enfeitou toda. — Contrariada, Kate deu um puxão no blusão. — Qual é o caso? — Peter vai aparecer mais tarde. — Laura virou-se para o espelho no saguão, a fim de inspecionar o vestido de lã cor de marfim. Ocupada em sonhar, não notou os olhares sobressaltados que Kate e Margo trocaram. — Apenas por uma hora, mais ou menos. Mal consigo esperar pelas férias de inverno. Mais um semestre em seguida, e depois terei a liberdade. Corada por antecipação, ela olhou radiante para as amigas. — Serão as melhores férias de inverno da minha vida. Tenho o pressentimento de que Peter vai me pedir em casamento. — O quê? — gritou Kate, antes que Laura pudesse silenciá-la. — Fale baixo! — Laura atravessou depressa o saguão de blocos azuis e brancos, em direção a Margo e Kate. — Não quero que mamãe e papai saibam... ainda não. — Laura, você não pode estar pensando a sério em casar com Peter Ridgeway. Mal o conhece... e só tem dezessete anos. Um milhão de motivos contra aquele casamento se agitavam na mente de Margo.


UM SONHO DE VIDA

17

— Farei dezoito anos dentro de algumas semanas. E, de qualquer forma, é apenas um pressentimento. Prometam que não dirão nada. — Claro que não diremos. — Kate chegou ao fundo da escada curva. — Mas você não fará nenhuma besteira, não é? — Alguma vez já fiz? — Um sorriso pensativo contraiu os lábios de Laura, enquanto ela afagava a mão de Kate. — Vamos entrar. Assim que Laura se afastou, Kate murmurou para Margo: — O que ela vê em Peter? Ele é velho demais. — Tem vinte e sete anos — corrigiu Margo, preocupada. — Peter é muito bonito e a trata como uma princesa. Ele tem... Margo fez uma pausa, procurando pela palavra certa. — Refinamento. — Pode ser, mas... — Psiu! — Margo avistou a mãe se aproximando pelo corredor, empurrando um carrinho com chocolate quente. — Não queremos estragar esta noite. Falaremos sobre isso mais tarde. Ann Sullivan franziu a testa, enquanto estudava a filha. — Margo, pensei que esse vestido era para o Dia de Natal. — Estou num clima de festa — respondeu Margo, jovial. — Deixe-me levar isso, mamãe. Longe de se mostrar satisfeita, Ann observou a filha empurrando o carrinho para a sala, antes de se virar para Kate. — Tem forçado demais a vista outra vez, Miss Kate. Está com os olhos injetados. Quero que descanse mais tarde com fatias de pepino nos olhos. E onde estão seus chinelos? — No meu closet. — Como compreendia a necessidade de repreender da governanta, Kate passou o braço pelo de Ann. — Ora, Annie, não se aflija com essas coisas. É o momento de enfeitar a árvore. Lembra daqueles anjos que você nos ajudou a fazer quando tínhamos dez anos? — Como eu poderia esquecer a bagunça que vocês três fizeram? E o Sr. Josh zombando de todas, mordendo as cabeças dos bonecos de pão de mel que a Sra. Williamson fez. — Ela ergueu a mão para tocar no rosto de Kate. — Vocês cresceram desde então. Em ocasiões como esta, sinto saudade das minhas garotinhas. — Sempre seremos suas garotinhas, Annie.


18

Nora Roberts

Elas pararam na porta da sala para contemplar a cena. Kate não pôde deixar de sorrir, só de olhar. A árvore, já com as luzes faiscando, erguia-se por uns três metros de altura. Ficava junto das janelas altas que davam para a frente da casa. As caixas de enfeites, trazidas do depósito, esperavam para serem abertas. Na lareira de lápis-lazúli, ornamentada com velas e ramos verdes, ardia um fogo suave. As fragrâncias de lenha, macieira e pinheiro impregnavam o ar. Como adorava aquela casa, pensou Kate. Ao final da ornamentação, cada sala teria os toques certos para irradiar o clima de alegria dos feriados. Uma tigela de prata georgiana, cheia de pinhas, estaria ladeada por velas. Haveria poinsétias em vasos com frisos dourados nos bancos das janelas. Delicados anjos de porcelana enfeitariam as mesas de mogno envernizadas no vestíbulo. O velho Papai Noel vitoriano ocuparia o lugar de honra no piano de cauda. Kate ainda podia se lembrar do seu primeiro Natal na Templeton House. Como o esplendor deslumbrara seus olhos e o afeto constante atenuara a dor em seu coração. Agora, a metade de sua vida fora vivida aqui, e as tradições eram suas também. Ela quis congelar aquele momento em sua mente, torná-lo eterno e inalterável. A maneira como a luz das chamas na lareira parecia dançar no rosto de tia Susie, enquanto ela ria para tio Tommy... e o modo como ele pegava sua mão e a apertava. Como ambos pareciam perfeitos, refletiu Kate, a mulher de estrutura delicada e o homem alto e distinto. Hinos de Natal tocavam baixinho. Laura ajoelhara entre as caixas, pegara uma bola vermelha, que refletia a luz. Margo servia chocolate quente de um bule de prata, ao mesmo tempo em que praticava a arte do flerte com Josh. Ele estava numa escada, com as luzes da árvore cintilando nos cabelos cor de bronze. Também dançavam em seu rosto, enquanto ele sorria para Margo. Naquela sala, repleta de prataria reluzente, cristais faiscantes, madeira antiga e tecidos em cores suaves, eles pareciam perfeitos. E eram a sua família.


UM SONHO DE VIDA

19

— Eles não são lindos, Annie? — São, sim. E você também é. Mas não como eles, pensou Kate, enquanto entrava na sala. — Ah, minha Katie chegou! — Thomas fitou-a com uma expressão radiante. — Deixou os livros de lado por algum tempo, hein? — Se você pode deixar de atender ao telefone por uma noite, também posso parar de estudar. — Nada de tratar de negócios na noite em que armamos a árvore de Natal. — Ele piscou para Kate. — Acho que os hotéis podem funcionar sem a minha ajuda por uma noite. — Mas não tão bem quanto funcionam com você e tia Susie. Margo alteou uma sobrancelha ao entregar uma xícara de chocolate quente a Kate. — Acho que alguém está querendo ganhar outro presente. Espero que esteja pensando em outra coisa que não aquele computador sem graça pelo qual vem babando. — Os computadores se tornaram instrumentos necessários em qualquer empreendimento. Certo, tio Tommy? — Não se pode viver sem eles. Mas fico contente que sua geração esteja prestes a assumir o comando. Detesto os desgraçados. — Terá de adaptar todo o sistema de reservas — comentou Josh, enquanto descia da escada. — Não há motivo para fazer todo o trabalho manualmente, quando uma máquina pode realizá-lo. — Fala como um verdadeiro hedonista. — Margo sorriu para ele. — Tome cuidado, Josh, pois talvez você tenha de aprender datilografia. Imaginem só, Joshua Conway Templeton, herdeiro dos hotéis Templeton, com uma habilidade útil e corriqueira. — Escute, duquesa... — Esperem um pouco! — Susan interrompeu a resposta irritada do filho com a mão levantada. — Nada de conversa sobre trabalho esta noite. Margo, seja uma boa moça e entregue os enfeites a Josh. Kate, cuide daquele lado da árvore com Annie, está bem? Laura, você e eu começaremos por aqui. — E eu? — indagou Thomas. — Você faz aquilo em que é melhor, querido. Será o supervisor.


PARTE 1

4/30/10

20

1:54 PM

Page 20

Nora Roberts

Isso não era suficiente para ocupá-los. Os ornamentos tinham de ser apreciados e histórias contadas sobre eles. Havia o duende de madeira que Margo jogara em Josh em um ano, a cabeça agora presa ao corpo por cola. A estrela de vidro que Laura acreditara ter sido arrancada do céu pelo pai para presenteá-la. Os flocos de neve que Annie fizera em crochê para cada pessoa da família. A grinalda de feltro com frisos prateados que fora o primeiro e último projeto de costura de Kate. O simples e familiar pendia dos galhos junto com os ornamentos antigos, de valor inestimável, que Susan comprara em todos os cantos do mundo. Quando acabou, todos prenderam a respiração, enquanto Thomas apagava as lâmpadas. A sala ficou iluminada pela claridade das chamas e a magia da árvore. — Está linda... sempre linda... — murmurou Kate, enquanto pegava a mão de Laura. Tarde daquela noite, quando o sono se esquivava, Kate tornou a descer. Entrou na sala, deitou no tapete, por baixo da árvore, e ficou contemplando a dança das luzes. Gostava de escutar a casa, o tique-taque suave dos velhos relógios, os suspiros e murmúrios da madeira se acomodando, o crepitar da lenha na lareira. A chuva caía como pontadas de agulha contra as janelas. O vento era uma canção sussurrante. Ajudou muito ficar deitada ali. O nervosismo por causa da prova no dia seguinte foi se desvanecendo pouco a pouco. Ela sabia que todos se encontravam em suas camas, seguros, em sono profundo. Ouvira Laura voltar de seu passeio com Peter. Algum tempo depois, Josh também retornara de um encontro. Seu mundo estava em ordem. — Se vai esperar por Papai Noel, devo avisar que a espera será longa. — Margo entrou na sala, descalça, foi se acomodar ao lado de Kate. — Não está mais obcecada por alguma estúpida prova de matemática, não é? — É uma prova do semestre. E, se dispensasse mais atenção às suas provas, não passaria raspando com tanto C. — A escola é apenas uma coisa que a gente tem de suportar. — Margo tirou um maço de cigarros do bolso do chambre. Com todos os


UM SONHO DE VIDA

21

outros deitados, era seguro fumar. — Dá para acreditar que Josh está saindo com a vesga da Leah McNee? — Ela não é vesga, Margo. E tem um corpo atraente. Margo soprou a fumaça, irritada. Qualquer pessoa que não fosse cega poderia perceber que Leah mal podia ser considerada uma mulher em comparação com Margo Sullivan. — Josh só sai com Leah porque ela é oferecida. — Por que você se importa? — Não me importo. — Margo fungou, demonstrou toda a sua irritação. — Apenas acho que ela é... ordinária. É uma coisa que nunca serei. Kate virou-se para a amiga, sorrindo. Num chambre azul de chenille, os cabelos louros soltos, Margo estava fascinante, irresistível. — Ninguém jamais a acusaria de ser ordinária, amiga... pelo menos no sentido comum da palavra. Pode ser detestável, presunçosa, grosseira e um pé no saco, mas nunca ordinária. Margo alteou uma sobrancelha, sorriu também. — Sempre posso contar com você. E, por falar nisso, será que Laura está mesmo apaixonada por Peter Ridgeway? — Não sei. — Kate mordeu o lábio. — Mas ela exibe uma expressão sonhadora desde que tio Tommy o transferiu para cá. Eu gostaria de que ele ainda estivesse cuidando do Templeton Chicago. Ela fez uma pausa, deu de ombros, depois acrescentou: — Peter deve ser bom no trabalho; caso contrário, tio Tommy e tia Susie não o teriam promovido. — Saber como administrar um hotel não tem nada a ver com isso. O Sr. e Sra. T. têm dezenas de gerentes no mundo inteiro. Este é o único por quem Laura se apaixonou. Kate, se ela casar... — A decisão é dela. — Kate soltou um suspiro. — E a vida também. Só não posso imaginar por que alguém haveria de querer se amarrar desse jeito. — Nem eu. — Margo apagou o cigarro, deitou de costas no tapete. — Não farei isso. Quero deixar minha marca neste mundo. — Eu também. Margo lançou um olhar enviesado para Kate.


22

Nora Roberts

— Fazendo contas? É mais provável que deixe apenas números no papel. — Você deixa a sua marca, eu a minha. Nesta época, no próximo ano, já estarei na universidade. Margo estremeceu. — Que perspectiva horrível! — Você também vai — lembrou Kate. — Se não quiser desperdiçar seu teste de aptidão. — Veremos. — A universidade não figurava nos planos de Margo. — Seria melhor encontrarmos o dote de Seraphina e fazer aquela viagem ao redor do mundo de que tanto falávamos. Há lugares que desejo conhecer enquanto ainda sou jovem. Roma e Grécia, Paris, Milão, Londres. — São muito bonitos. — Kate já conhecia esses lugares. Os Templeton haviam-na levado... e teriam levado Margo também, se Ann tivesse permitido. — Eu a vejo casando com um cara rico, gastando tudo, indo a festas no mundo inteiro. — Não é uma fantasia das piores. — Divertida, Margo esticou os braços. — Mas prefiro ser rica por mim mesma, ter um bando de apaixonados. A um barulho no corredor, ela empurrou o cinzeiro para debaixo das dobras do chambre. — Laura! — Com um grunhido, Margo sentou. — Você me deu o maior susto. — Desculpe. Eu não conseguia dormir. — Entre na festa — convidou Kate. — Planejávamos nosso futuro. — Ah... — Com um sorriso suave, Laura ajoelhou-se no tapete. — Isso é ótimo. — Espere um instante. — Os olhos contraídos, Margo virou-se e segurou o queixo de Laura. Depois de um momento, soltou um suspiro. — Não chegou ao fim com ele. Corando, Laura afastou a mão de Margo. — Claro que não. Peter nunca me pressionaria. — Como sabe que ela não fez nada? — indagou Kate. — Dá para perceber. Não acho que você deva fazer sexo com ele,


UM SONHO DE VIDA

23

Laura. Mas, se está mesmo pensando em casamento, é melhor experimentá-lo primeiro. — Sexo não é como um par de sapatos — murmurou Laura. — Mas é sempre melhor quando se ajusta direito. — Quando eu fizer amor pela primeira vez, será com meu marido, na noite de núpcias. É assim que eu quero. — Ah, ela tem a impaciência Templeton na voz. — Com outro sorriso, Kate afastou uma mecha que caíra no rosto de Laura. — Inflexível. Não dê atenção a Margo, Laura. Na cabeça dela, sexo é a mesma coisa que salvação. Margo acendeu outro cigarro. — Eu gostaria de saber o que é melhor. — Amor — declarou Laura. — Sucesso — disse Kate ao mesmo tempo. — Ora, isso resume tudo. Kate passou os braços pelos joelhos, antes de continuar: — Margo será uma maníaca sexual, Laura vai procurar por amor. Já eu vou me matar de trabalhar para alcançar o sucesso. Que bando! — Já estou apaixonada — murmurou Laura. — Quero alguém que me ame também... e quero filhos. Quero acordar todas as manhãs sabendo que serei capaz de oferecer um lar à minha família, proporcionar a todos uma vida feliz. E quero adormecer todas as noites ao lado de alguém em quem possa confiar. — Prefiro adormecer à noite ao lado de alguém que me deixe com tesão. — Margo riu quando Kate a cutucou. — Brincadeira... mais ou menos. Mas quero ir a lugares, fazer coisas. Ser alguém. Quero saber, ao acordar pela manhã, que alguma coisa excitante me aguarda logo depois da esquina. E, o que quer que seja, farei com que seja minha. Kate encostou o queixo nos joelhos. — Pois eu quero me sentir realizada. Fazer as coisas funcionarem da maneira como acho que devem funcionar. Quero acordar pela manhã sabendo exatamente o que farei em seguida, e como vou fazer. Quero ser a melhor no que fizer, saber que não desperdicei coisa alguma. Porque, se eu desperdiçasse, seria como... fracassar. A voz tremeu, embaraçando-a.


24

Nora Roberts

— Devo estar cansada demais... — Como os olhos ardiam, ela esfregou-os com vigor. — Tenho de ir me deitar. A prova será no primeiro horário. — Vai passar com a maior facilidade. — Laura levantou-se também. — Não precisa se preocupar tanto. — Uma estudante como você não pode deixar de se preocupar. — Mas Margo também se ergueu, apertou o braço de Kate. — Vamos dormir. Kate parou na porta e olhou para a árvore de Natal. Por um momento, ficara chocada ao descobrir que uma parte dela gostaria de poder permanecer ali para sempre, daquele jeito. Nunca ter de se preocupar com o amanhã, o dia seguinte. Nunca ter de se preocupar com o sucesso ou o fracasso. Ou com a mudança. A mudança era inevitável, ela sabia. Aproximava-se na expressão romântica nos olhos de Laura, no nervosismo de Margo. Ela apagou as luzes. Não havia como evitar os acontecimentos. Por isso, era melhor se preparar.

ª prova


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.