A villa, de Nora Roberts

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N o r a R o b e r t s

A VILLA Tradução Alda Porto

A. B. Pinheiro de Lemos


Prólogo

a noite em que foi assassinado, Bernardo Baptista jantou apenas pão e queijo, e tomou uma garrafa de Chianti. O vinho era um pouco novo, ele não. Nenhum dos dois continuaria a envelhecer. Como o pão e o queijo, Bernardo era um homem simples. Vivia na mesma casinha, nas suaves colinas ao norte de Veneza, desde o casamento, há cinqüenta e um anos. Os cinco filhos haviam sido criados ali e a mulher morrera também ali. Agora, aos setenta e três anos, morava sozinho, com quase toda a família à distância de uma pedrada, nas cercanias do grandioso vinhedo Giambelli, onde ele trabalhara desde a juventude. Conhecia La Signora desde menina, e desde essa época o ensinaram a tirar o chapéu sempre que ela passava. Mesmo agora, quando Tereza Giambelli voltava da Califórnia para o castello e o vinhedo, ela parava sempre que o via. E os dois conversavam sobre os velhos tempos, quando o avô dela e o pai dele trabalhavam nas vinhas. Signore Baptista, como ela o chamava respeitosamente. Ele tinha grande apreço por La Signora e fora leal a ela e aos seus a vida toda.

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Durante mais de sessenta anos, Bernardo participara da feitura do vinho Giambelli. Houvera muitas mudanças — algumas boas, em sua opinião, outras nem tanto. Ele já vira muito. Segundo alguns, demais. As vinhas, adormecidas pelo acalanto do inverno, logo seriam podadas. A artrite impedia-o de fazer grande parte do trabalho braçal como antes, mas mesmo assim saía todas as manhãs para ver os filhos e os netos darem continuidade à tradição. Um Baptista sempre trabalhara para a Giambelli. E, na mente de Bernardo, sempre trabalharia. Nessa última noite, aos setenta e três anos, ele examinava as vinhas — suas vinhas —, vendo o que fora feito, o que precisava ser feito, ouvindo o vento de dezembro assobiar por entre a estrutura da videira. Da janela por onde o vento tentava esgueirar-se, Bernardo via os esqueletos na firme subida pelas elevações. Iam adquirir carne e vida com o tempo, e não continuar secos e murchos como os de um homem. Era o milagre da uva. Bernardo via as sombras e formas do majestoso castello, que governava aquelas vinhas e todos que as cultivavam. Era solitário agora, à noite, no inverno, quando apenas os empregados dormiam no castello e as uvas ainda tinham de nascer. Ele queria a primavera, e o longo verão que a seguia, quando o sol lhe aquecia as entranhas e amadurecia a fruta nova. Queria, como sempre parecera querer, mais uma colheita. Bernardo sentia dores causadas pelo frio no fundo dos ossos. Pensou em aquecer um pouco de sopa que a neta trouxera, mas sua Annamaria não era a melhor das cozinheiras. Com isso em mente, contentou-se com o queijo e tomou o bom e encorpado vinho tinto junto à pequena lareira. Orgulhava-se daquele trabalho de toda uma vida, parte do qual estava na taça que captava a luz do fogo e fulgia num vermelho muito escuro. A bebida fora um presente, um dos muitos que rece-


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bera na aposentadoria, embora todos soubessem que a aposentadoria era apenas um detalhe técnico. Mesmo com os ossos doendo e o coração enfraquecido, Bernardo percorria o vinhedo, provava as uvas, examinava o céu e cheirava o ar. Vivia pelo vinho. E por ele morria. Tomava-o e balançava a cabeça junto ao fogo, com uma manta enrolada nas pernas finas. Por sua mente passavam imagens dos campos banhados de sol, da mulher rindo, dele mesmo mostrando ao filho como escorar a vinha nova para podar a madura. De La Signora parada a seu lado entre as fileiras que seus avós haviam cultivado. Signore Baptista, ela lhe dizia quando ainda tinham o rosto muito jovem, recebemos um mundo. Precisamos protegê-lo. E assim o fizeram. O vento assobiava nas janelas da casinha. O fogo se extinguia em brasas. E quando a dor estendeu a mão como um punho, esmagandolhe o coração para a morte, seu assassino, a quase dez quilômetros dali e cercado por amigos e associados, saboreava um salmão ao vapor à perfeição e um excelente Pinot Blanc.


PARTE UM

A poda

O homem é um feixe de relações, um nó de raízes, que tem o mundo como flor e fruto. RALPH WALDO EMERSON


Capítulo Um

bela garrafa de Cabernet Sauvignon 1902, Castello di Giambelli, foi leiloada por cento e vinte e cinco mil e quinhentos dólares americanos. Um dinheirão, pensou Sophia, por um vinho misturado com sentimento. O vinho na primorosa e velha garrafa fora produzido com uvas colhidas no ano em que Cezare Giambelli estabelecera o vinhedo Castello di Giambelli numa faixa de terra montanhosa ao norte de Veneza. Naquela época o castello era uma verdadeira zombaria ou um supremo otimismo, a depender do ponto de vista. A modesta casa e a pequena adega de pedra de Cezare estavam longe de ser majestosas. Mas as vinhas eram régias e ele construíra um império a partir delas. Após quase um século, talvez até mesmo um superior Cabernet Sauvignon fosse mais palatável borrifado numa salada do que ingerido, mas não lhe cabia discutir com o ricaço que o arrematara. A sua avó tinha razão, como sempre. Pagariam, e regiamente, pelo privilégio de ter um pedaço da história dos Giambelli.

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Sophia anotou o lance final e o nome do comprador, embora não fosse provável que esquecesse os dois, para o bilhete que enviaria à avó quando terminasse o leilão. Ela participava do evento não apenas como a relações-públicas executiva que planejara e realizara a promoção e o catálogo do leilão, mas como representante da família Giambelli nessa exclusiva comemoração de abertura do centenário. Como tal, sentava-se discretamente nos fundos da sala para observar os lances e a apresentação. Tinha as pernas cruzadas numa linha longa e elegante. As costas retas, uma disciplina adquirida em internato de freiras. Usava um terninho preto, italiano, de riscas finas, feito sob medida, que conseguia parecer ao mesmo tempo profissional e inteiramente feminino. Era a idéia exata que fazia de si mesma. O rosto definido, um triângulo de dourado-claro dominado por grandes e profundos olhos castanhos e a boca larga e inconstante. As maçãs do rosto que pareciam esculpidas com picador de gelo, o queixo, uma ponta de diamante, compondo um semblante parte feérico, parte guerreiro. Ela usava, deliberada e brutalmente, o rosto como uma arma quando parecia mais conveniente. Acreditava que as ferramentas eram para ser usadas, e bem usadas. Um ano antes, cortara os cabelos, que batiam na cintura, num curto gorro preto, rematado por uma franja cheia de pontas na testa. Combinava com ela. Sophia sabia exatamente o que lhe caía bem. Exibia a única volta de pérolas antigas que a avó lhe dera em seu vigésimo primeiro aniversário, com uma expressão de polido interesse. Pensava nela como a aparência do escritório do pai. Seus olhos se iluminaram, e os cantos da boca larga curvavam-se ligeiramente, quando se pôs na vitrina o artigo seguinte. Era uma garrafa de Barolo 1934, do barril que Cezare denominara Di Tereza, em homenagem ao nascimento da avó dela. Essa reserva privada ganhara uma foto de Tereza aos dez anos no rótulo, o ano em que o vinho amadurecera o suficiente no carvalho e fora engarrafado.


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Agora, aos sessenta e sete anos, Tereza Giambelli era uma lenda, cuja fama como vinicultora ofuscava até mesmo a do avô. Aquela era a primeira garrafa desse rótulo oferecida à venda, ou passada para fora da família. Como esperava Sophia, os lances foram rápidos e animados. O homem sentado ao lado dela bateu no catálogo em que se exibia a foto do rótulo. — Você se parece com ela. Sophia mudou ligeiramente de posição, sorriu primeiro para ele — um homem distinto, que pairava desconfortável em algum ponto perto dos sessenta anos —, depois para a foto da moça olhando séria na garrafa de vinho tinto do catálogo. — Obrigada. Marshall Evans, ela lembrou. Corretor de imóveis, segunda geração dos quinhentos mais ricos da revista Fortune. Ela fazia questão de conhecer os nomes e as estatísticas vitais dos fanáticos por vinho e colecionadores com muito dinheiro e gostos autênticos. — Eu esperava que La Signora assistisse ao leilão de hoje. Ela está bem? — Muito bem. Mas, fora isso, ocupada. O bipe no bolso de seu paletó vibrou. Vagamente aborrecida com a interrupção, Sophia ignorou-o para ver os lances. Percorreu a sala com os olhos, observando os sinais. O erguer casual de um dedo na terceira fila elevou o preço em mais quinhentos. Um sutil aceno de cabeça na quinta cobriu o lance. No fim, o Barolo deixou para trás o Cabernet Sauvignon em mil e quinhentos, e ela se voltou para estender a mão ao homem a seu lado. — Parabéns, Sr. Evans. Sua contribuição à Cruz Vermelha Internacional terá bom uso. Em nome dos Giambelli, a família e a empresa, espero que desfrute o prêmio. — Disso, não há dúvida. — Ele tomou-lhe a mão e levou-a aos lábios. — Tive o prazer de encontrar La Signora muitos anos atrás. É uma mulher extraordinária.


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— É, sim. — Talvez a neta aceitasse jantar comigo hoje à noite. Era velho o bastante para ser pai dela, mas Sophia também era européia o bastante para julgar isso um impedimento. Em outra ocasião, teria aceito e sem dúvida gostado da companhia dele. — Desculpe — disse —, mas eu tenho um compromisso. Talvez em minha próxima viagem ao leste, se você estiver livre. — Vou dar um jeito de estar. Pondo um certo calor no sorriso, ela se levantou. — Se me der licença. Deslizou para fora da sala e pegou o bipe no bolso para conferir o número. Foi até o salão do banheiro das mulheres, olhou o relógio de pulso e tirou o telefone da bolsa. Após teclar o número, sentouse num dos sofás e pôs a caderneta de notas e a agenda eletrônica no colo. Após uma longa e exaustiva semana em Nova York, ainda estava acelerada e, verificando os apontamentos, satisfeita por ter tempo para encaixar algumas compras antes de precisar trocar de roupa para o jantar marcado. Jeremy DeMorney, pensou. Isso queria dizer uma noite elegante e sofisticada. Restaurante francês, discussão de pratos, viagem e teatro. E, claro, vinho. Como descendia dos DeMorney da vinícola La Coeur, e era um alto executivo ali, e ela vinha da cepa dos Giambelli, haveria algumas tentativas brincalhonas de arrancar segredos empresariais um do outro. E champanhe. Ótimo, ela estava no clima. Tudo seguido de uma revoltante tentativa romântica de levá-la para a cama. Ela imaginava se estaria no clima para isso também. Ele era atraente, e a coisa podia ser divertida, pensou. Talvez se os dois não soubessem que o pai dela um dia dormira com a esposa dele, a idéia de um pequeno romance entre eles não pareceria tão incômoda, e meio incestuosa. Ainda assim, vários anos se haviam passado...


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— Maria. — Sophia guardou Jerry e a noite próxima no canto da mente quando a criada dos Giambelli atendeu. — Tenho um telefonema de minha mãe no celular. Ela pode atender? — Ah, sim, Srta. Sophia. Ela esperava a sua ligação. Só um instante. Sophia imaginou a mulher atravessando toda a ala, examinando os aposentos em busca de alguma coisa para arrumar, quando Pilar Giambelli Avano já teria, ela própria, arrumado tudo. Mama, pensou Sophia, ficaria contente numa pequena cabana coberta de rosas, onde pudesse assar pão, fazer o trabalho de agulha e cuidar do jardim. Devia ter tido meia dúzia de filhos, pensou com um suspiro. E teve de se contentar comigo. — Sophia, eu estava saindo da estufa. Espere. Me deixe recuperar o fôlego. Não esperava que me ligasse de volta tão rápido. Achei que estaria no meio do leilão. — Acabou. E acho que posso dizer que foi um absoluto sucesso. Vou mandar por fax um memorando dos detalhes hoje à noite, ou logo cedo pela manhã. Agora preciso voltar e amarrar as pontas soltas. Está tudo bem aí? — Mais ou menos. A sua avó convocou uma conferência de cúpula. — Oh, Mama, ela não vai agonizar de novo. Já passamos por tudo isso seis meses atrás. — Oito — corrigiu Pilar. — Mas, fazer o quê? Sinto muito, querida, mas ela insiste. Acho que não planeja morrer desta vez, mas planeja alguma coisa. Chamou os advogados para outra revisão do testamento. E me deu o broche de camafeu da mãe dela, o que significa que está pensando à frente. — Eu achei que ela já o tinha dado da última vez. — Não, da última vez foram as contas de âmbar. Ela mandou chamar todo mundo. Você precisa voltar. — Tudo bem. Tudo bem. — Sophia olhou a agenda eletrônica e soprou um beijo de despedida para Jerry DeMorney. — Vou terminar aqui e irei. Mas realmente, mamãe, esse novo hábito dela de


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morrer ou revisar o testamento de poucos em poucos meses é muito inconveniente. — Você é uma boa menina, Sophia. Vou deixar minhas contas de âmbar pra você. — Muito obrigada. Com uma risada, Sophia desligou. Duas horas depois, já voava para o oeste e especulava se dali a quarenta anos teria o poder de estalar os dedos e fazer todo mundo atender correndo. Só a idéia a fez sorrir ao recostar-se com uma taça de champanha e Verdi tocando nos fones de ouvido.

NEM TODO MUNDO ATENDEU CORRENDO. TYLER MACMILLAN podia estar a minutos, e não a horas, da Villa Giambelli, mas considerava as vinhas uma atividade muito mais importante que uma convocação de La Signora. E foi o que disse. — Ora, Ty. Você pode tirar algumas horas. — Agora, não. — Ty andava de um lado para outro no escritório, ansioso por voltar aos campos. — Sinto muito, vovô. Você sabe como é vital a poda do inverno, e Tereza também. — Transferiu o celular para o outro ouvido. Odiava celulares. Vivia perdendo-os. — As vinhas MacMillan precisam de tanto cuidado quanto as Giambelli. — Ty... — Você me pôs no comando aqui. Estou fazendo meu trabalho. — Ty — repetiu Eli. Sabia que com o neto tinha-se de pôr tudo num nível bem básico. — Tereza e eu somos tão dedicados à MacMillan quanto às vinhas sob o rótulo Giambelli, e assim tem sido há vinte anos. Você foi posto no comando porque é um vinhateiro excepcional. Tereza tem planos. E esses planos envolvem você. — Na semana que vem.


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— Amanhã. — Eli não fincava pé com freqüência; não era o seu jeito de agir. Mas, se necessário, sabia fazê-lo de uma forma implacável. — Uma hora da tarde. Almoço. E se arrume direito. Ty franziu a testa e olhou as botas antigas e as bainhas puídas das calças grossas. — É o meio do maldito dia. — Você é o único na MacMillan capaz de podar vinhas, Tyler? Ao que parece, perdeu vários empregados durante a última estação. — Vou estar aí. Mas me diga uma coisa... — Claro. — Esta é a última vez que ela vai morrer por algum tempo? — À uma da tarde — respondeu Eli. — Tente chegar na hora. — Tá bom, tá bom, tá bom — murmurou Tyler, mas só depois de desligar o telefone. Adorava o avô. Adorava até mesmo Tereza, talvez por ser tão teimosa e irritante. Quando o avô se casara com a herdeira Giambelli, Tyler tinha onze anos. Apaixonara-se pelos vinhedos, a elevação das colinas, as sombras das grutas, as grandes cavernas que eram as adegas. E, num sentido muito real, apaixonara-se por Tereza Louisa Elana Giambelli, a figurinha macérrima, reta como uma vara e meio aterrorizante que vira pela primeira vez de botas e calças não tão diferentes das suas, atravessando a passos largos os pés de mostarda entre as fileiras de uvas. Ela lhe dera uma olhada, erguera uma sobrancelha fina como um fio de navalha e julgara-o frágil e urbano. Disse-lhe que, se ia ser seu neto, teria de endurecer-se. Ordenara-lhe que ficasse na villa durante o verão. Ninguém pensara em discutir a questão. Certamente não os pais dele, que haviam ficado mais que felizes por verem-no pelas costas durante um extenso período e poderem voar para festas e amantes. Por isso ele ficara, pensava Tyler agora, dirigindo-se para a janela. Um verão após outro, até as vinhas serem mais um lar para ele que a casa em São Francisco, até ela e o avô serem mais seus pais que sua mãe e pai.


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Ela o fizera. Podara-o aos onze anos e treinara-o para tornar-se o que era. Mas não era dona dele. Irônico, ele pensou, que todo o trabalho de Tereza moldara-o na única pessoa sob a égide dela com mais probabilidade de ignorar suas ordens. Era mais difícil, claro, ignorar as ordens quando ela e o avô se uniam. Com um encolher de ombros, Tyler deixou o escritório. Podia tirar algumas horas, e eles sabiam tanto disso quanto ele. Os vinhedos MacMillan empregavam os melhores, e ele podia facilmente ausentar-se a maior parte de uma estação com confiança nos que deixava no comando. O simples fato era que odiava os grandes e prolongados eventos que os Giambelli geravam. Invariavelmente pareciam um circo, com todos os três picadeiros lotados de números pitorescos. Não se conseguia acompanhar os acontecimentos, e sempre era possível um dos tigres saltar fora da jaula e partir para a garganta da gente. Todas aquelas pessoas, questões, fingimentos e sombrias influências ocultas. Ele se sentia mais feliz andando pelos vinhedos, verificando os barris ou conversando com um de seus vinicultores sobre as qualidades do Chardonnay daquele ano. Os deveres sociais eram simplesmente isso. Deveres. Ele contornou a encantadora alameda da casa que pertencera ao avô e entrou na cozinha para reabastecer de café a garrafa térmica. Meio ausente, largou na bancada o celular que ainda trazia e começou então a rearrumar seu programa na cabeça para atender La Signora. Não era mais urbano, nem frágil. Tinha pouco mais de um metro e oitenta, o corpo esculpido pelo trabalho no campo e uma preferência pela vida ao ar livre. Mãos largas, duras de calos, dedos compridos que sabiam mergulhar delicadamente sob as folhas e pegar as uvas. Os cabelos tendiam a encaracolar-se se ele esquecesse de mandar aparar, o que muitas vezes acontecia; eram de um castanho-escuro que mostrava sinais de ruivo, como um borgonha enve-


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lhecido à luz do sol. O rosto de ossos salientes era mais áspero do que bonito, com rugas que começavam a abrir-se em leque dos olhos azul-claros e calmos que podiam endurecer-se como aço. A cicatriz no queixo, que ele ganhara com um tropeção numa pilha de pedras aos treze anos, só o aborrecia quando começava a barbear-se. O que, lembrou a si mesmo, teria de fazer antes do almoço no dia seguinte. Os que trabalhavam para ele consideravam-no um homem justo, embora às vezes voltado a um único objetivo. Tyler teria apreciado a análise. Também o consideravam um artista, e isso o teria intrigado. Para ele, o artista era a uva. Mergulhou no ar seco do inverno. Ainda restavam duas horas antes do pôr-do-sol e muitas vinhas a cuidar.

DONATO GIAMBELLI TINHA UMA DOR DE CABEÇA DE REVOLtantes proporções. Ela se chamava Gina e era sua esposa. Quando chegara a intimação de La Signora, ele estava feliz da vida empenhado em fazer sexo de revirar os olhos com a atual amante, uma aspirante a atriz de múltiplos talentos e com força suficiente nas coxas para quebrar nozes. Ao contrário da esposa, exigia apenas o ocasional badulaque e a suada travessura sexual três vezes por semana. Não exigia conversa. Às vezes ele achava que era só o que Gina exigia. Ela tagarelava com ele. Tagarelava com cada um dos três filhos deles. Tagarelava com a sogra até o ar no jato da empresa vibrar com a interminável torrente de palavras. Entre ela, o berreiro do bebê, as pancadas do pequeno Cezare e os pinotes de Tereza Maria, Don pensava a sério em abrir o alçapão e empurrar toda a família para fora do avião rumo ao esquecimento. Só a mãe dele não falava, e apenas porque tomara um sonífero,


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um comprimido contra enjôo em avião, outro antialérgico, e Deus sabe o que mais, mandara tudo para dentro com duas taças de Merlot antes de pôr a máscara nos olhos e apagar. Ela passara a maior parte da vida, pelo menos a parte que ele conhecia, medicada e apagada. No momento, ele considerava isso uma sabedoria superior. Restava-lhe apenas ficar sentado, as têmporas latejando e mandando a tia Tereza para o inferno por insistir que toda a família fizesse aquela viagem. Era vice-presidente executivo da Giambelli em Veneza, não era? Qualquer negócio que se precisasse fazer exigia a sua presença, não a da família. Por que Deus o atormentara com uma família como aquela? Não que Don não os amasse. Claro que amava. Mas o bebê era gordo como um peru, e lá estava Gina puxando um seio para a boca faminta. Antes, aquele seio fora uma obra de arte, pensou. Dourado, firme e com gosto de pêssego. Agora, esticado como um balão enchido demais e, se ele estivesse a fim de provar, temperado com baba de bebê. E a mulher já estava fazendo alarde sobre ter ainda mais um. A mulher com quem se casara era madura, sensual, com uma boa libido, mas a cabeça era vazia. Fora a perfeição. Em cinco breves anos, tornara-se gorda, desleixada e só pensava nos bebês. Era de admirar que ele buscasse conforto em outra parte? — Donny, eu acho que Zia Tereza vai dar uma grande promoção a você, e todos nos mudaremos para o castelo. Ela cobiçava a majestosa casa Giambelli — todos aqueles belos aposentos, todos os empregados. Os filhos seriam criados no luxo, com privilégios. Belas roupas, as melhores escolas e, um dia, a fortuna dos Giambelli a seus pés. Era ela a única que dava bebês a La Signora, não era? Isso contava muito.


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— Cezare — disse ao filho quando ele arrancou a cabeça da boneca da irmã. — Pare com isso! Agora você fez sua irmã chorar. Vamos, vamos, me dê a boneca. Mama vai consertar. O pequeno Cezare, olhos brilhando, olhou rindo para trás e começou a provocar a irmã. — Inglês, Cezare! — Ela brandiu o dedo para ele. — Nós vamos para os Estados Unidos. Você vai falar inglês com a Zia Tereza e mostrar a ela como é inteligente. Vamos, vamos. Tereza Maria, chorando pela morte da boneca, pegou a cabeça e correu de um lado para outro da cabine, numa agitação de dor e raiva. — Cezare! Faça o que mamãe mandou. Em resposta, o menino jogou-se no chão, debatendo-se. Don levantou-se, saiu cambaleando e foi trancar-se no refúgio de seu escritório a bordo.

ANTHONY AVANO GOSTAVA DAS MELHORES COISAS. ESCOlhera a cobertura dúplex na Back Bay em São Francisco com cuidado e deliberação, depois contratara o mais caro decorador da cidade para equipá-la ao seu estilo. Status e classe eram altas prioridades. Tê-las sem precisar fazer qualquer esforço verdadeiro, outra. Ele não via como alguém podia viver com conforto sem esses elementos básicos. Os aposentos refletiam o que Anthony julgava um gosto clássico — das paredes em chamalote de seda aos tapetes orientais, até os reluzentes móveis de carvalho. Ele, ou o decorador, escolhera ricos tecidos em tons neutros com poucos salpicos de cores fortes artisticamente distribuídos. Haviam-lhe dito que a arte moderna, que nada significava em absoluto para ele, formava um ousado contraponto com a elegância moderna.


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Anthony dependia muito dos serviços de decoradores, alfaiates, corretores, joalheiros e marchands para cercar-se do melhor. Sabia-se que alguns de seus detratores diziam que Tony Avano nascera com gosto. E todo na boca. Não seria ele quem iria contestar aquela afirmação. Mas o dinheiro, em sua opinião, comprava todo o gosto necessário. Uma coisa ele conhecia. E era vinho. Podia dizer-se que suas adegas se achavam entre as melhores da Califórnia. Cada garrafa fora pessoalmente selecionada. Embora não distinguisse uma uva Sangiovese de uma Semillon na videira, e não se interessasse pelo cultivo da parreira, tinha um nariz superior. E esse nariz subia firme a escada empresarial na Giambelli da Califórnia. Trinta anos antes, casara-se com Pilar Giambelli. O nariz levara menos de dois anos para começar a farejar outras mulheres. Tony era o primeiro a admitir que as mulheres constituíam a sua fraqueza. Eram tantas, afinal. Amara Pilar tão profundamente quanto era capaz de amar outro ser humano. Sem dúvida, amara a posição privilegiada na organização Giambelli como marido da filha de La Signora e pai da neta da patroa. Por esses motivos, durante muitos anos tentara ser bastante discreto com sua fraqueza particular. Chegara mesmo a tentar, várias vezes, corrigir-se. Mas sempre havia outra mulher, macia e cheirosa ou quente e sedutora. Que se ia fazer? A fraqueza acabara por custar-lhe o casamento, num sentido técnico, embora não legal. Ele e Pilar viviam separados havia sete anos. Nenhum dos dois dera um passo sequer para o divórcio. Ela, ele sabia, porque o amava. E ele porque parecia problema demais e teria desagradado seriamente Tereza. De qualquer modo, no que lhe dizia respeito, a atual situação convinha muito bem a todos. Pilar preferia o campo; ele, a cidade. Os dois mantinham uma relação de amizade polida, até mesmo


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razoavelmente amistosa. E ele manteve a posição como o diretorpresidente de vendas da Giambelli na Califórnia. Durante sete anos eles trilharam essa linha civilizada. Agora ele receava estar prestes a cair pela borda. Rene insistia no casamento. Como um rolo compressor forrado de seda, tinha um jeito de avançar para uma meta e aplainar todos os obstáculos no caminho. As discussões com ela deixavam Tony bambo e tonto. A amante sentia um ciúme violento, arrogante, exigente e inclinado a gélidos amuos. E ele era louco por ela. Aos trinta e dois anos, Rene era vinte e sete mais moça que ele, fato que acariciava o seu bem desenvolvido ego. O fato de saber que ela era tão interessada em seu dinheiro quanto no resto não o perturbava. Respeitava-a por isso. Receava que, se lhe desse o que queria, perderia o motivo de ela o querer. Era uma situação dos diabos. Para resolvê-la, Tony fez o que em geral fazia em relação às dificuldades. Ignorava-as pelo tempo humanamente possível. Examinando a vista da baía, tomando um pouco de vermute, ele esperava que Rene acabasse de se vestir para a saída noturna. E receava que seu tempo houvesse acabado. A campainha da porta o fez virar-se, com uma leve carranca. Não esperavam ninguém. Na verdade, era a noite de folga do mordomo e ele foi verificar quem era. A carranca desapareceu ao abrir a porta e ver a filha. — Sophia, que bela surpresa! — Pai. Ela se ergueu um pouco nas pontas dos pés e beijou-o na face. Um homem de beleza estonteante como sempre, pensou. Bons genes e um excelente cirurgião plástico lhe serviram bem. Sophia fez o melhor possível para ignorar a instintiva e súbita pontada de res-


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sentimento, e tentou concentrar-se na igualmente instintiva e rápida pontada de amor. Ela parecia viver puxada para lados opostos em relação ao pai. — Acabei de voltar de Nova York e queria ver você antes de ir para a villa. Examinou o rosto dele — liso, quase sem rugas e, sem dúvida, despreocupado. Os cabelos negros raiados de um modo atraente com fios cinza nas têmporas, os profundos olhos azuis límpidos. Ele tinha um queixo duplo com uma covinha no meio. Ela adorava enfiar o dedo ali quando criança e fazê-lo rir. O amor por ele percorreu-a, misturando-se numa bagunça com o ressentimento. Era sempre assim. — Vejo que vai sair — ela disse, notando o smoking. — Daqui a pouco. — Ele pegou a mão dela e puxou-a para dentro. — Mas temos tempo suficiente. Sente-se, princesa, e me diga como vai você. Toma alguma coisa? Inclinou para ela o copo que segurava. Sophia cheirou e aprovou. — O que você está bebendo seria ótimo. Ela examinou a sala quando ele se encaminhou para o armário de bebidas. Um dispendioso pretexto, pensou. Tudo exibição sem substância. Típico do pai. — Vai subir amanhã? — Subir pra onde? Ela virou a cabeça quando ele voltou. — Pra villa. — Não, por quê? Ela pegou a taça, pensando enquanto bebia. — Não recebeu um telefonema? — Sobre o quê? As lealdades puxavam e se embaralhavam de um lado para outro dela. Ele tapeara sua mãe, ignorava com toda indiferença os votos matrimoniais desde que Sophia se lembrava, e no fim deixara as duas quase sem um olhar para trás. Mas ainda era família, e a família estava sendo chamada à villa.


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— La Signora. Uma de suas conferências de cúpula com os advogados, segundo me disseram. Talvez você quisesse estar presente. — Ah, bem, realmente, eu ia... Interrompeu-se quando Rene entrou. Se havia um pôster da amante-troféu, pensou Sophia, o gênio fervendo, seria de Rene Foxx. Alta, curvilínea e louríssima. O vestido Valentino emoldurava um corpo bronzeado de arrasar e conseguia parecer discreto e elegante. Os cabelos puxados para cima caíam lisos atrás para realçar o belo rosto emoldurado pela boca sensual — botox, pensou Sophia, maldosa — e astutos olhos verdes. Escolhera diamantes para combinar com o Valentino, e eles brilhavam e tremeluziam contra a pele polida. Exatamente quanto, pensou Sophia, custara ao pai aquelas pedras? — Oi. — Sophia tomou outro gole de vermute para lavar um pouco do amargor da língua. — Rene, não é? — Sou, e tenho sido há quase dois anos. Ainda é Sophia? — Sou, há vinte e seis. Tony pigarreou. Nada, pensou, era mais perigoso que duas mulheres se alfinetando. — Rene, Sophia acabou de chegar de Nova York. — É mesmo? — Divertindo-se, Rene pegou o copo de Tony e tomou um gole. — Isso explica por que você está parecendo meio desgastada pela viagem. Estamos indo a uma festa. Você é bemvinda para juntar-se a nós — acrescentou, passando o braço pelo de Tony. — Devo ter alguma coisa no armário que lhe cairia bem. Se desejasse engalfinhar-se com Rene, pensou Sophia, não seria após um vôo de costa a costa e no apartamento do pai. Escolheria o tempo e o lugar certos. — É uma coisa a pensar, mas eu me sentiria meio sem jeito usando um vestido obviamente tão grande. E — acrescentou cobrindo de açúcar as palavras — estou indo para o norte. Negócios de família. — Largou a taça. — Aproveitem a noite.


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Dirigiu-se à porta, onde Tony a alcançou para dar-lhe no ombro um tapinha rápido e tranqüilizante. — Por que não vem com a gente, Sophia? Você está ótima assim como está. Você é linda. — Não, obrigada. — Ela se voltou e os olhos dos dois se encontraram. Era uma expressão que ela já se acostumara demais a ver para ser eficaz. — Não estou me sentindo muito festiva. Ele piscou os olhos quando a filha fechou a porta em sua cara. — O que ela queria? — perguntou Rene. — Só deu uma passada, como eu disse. — Sua filha jamais faz coisa alguma sem motivo. Ele deu de ombros. — Talvez tenha pensado que a gente podia ir junto de carro para o norte pela manhã. Tereza mandou uma intimação. Rene estreitou os olhos. — Você não me falou nisso. — Eu não recebi. — Ele descartou todo o assunto e pensou apenas na festa, que impressão causaria a entrada dele e de Rene. — Você está fabulosa, Rene. É uma vergonha cobrir esse vestido, mesmo com pele de marta. Quer que eu pegue sua capa? — Que quer dizer com não recebeu? — Rene largou o copo vazio na mesa. — Sua posição na Giambelli certamente é mais importante que a de sua filha. — E ela pretendia fazer com que assim continuasse. — Se a velha está chamando a família, você vai. Vamos de carro amanhã. — Nós? Mas... — É a oportunidade perfeita pra você tomar uma posição, Tony. Vai dizer a Pilar que quer o divórcio. Vamos voltar cedo da festa, para estarmos os dois com as idéias claras. Ela se aproximou dele e correu o dedo pelas suas faces. Sabia que, com Tony, a manipulação exigia firmes exigências e recompensas físicas, em ponderada fusão. — E, quando voltarmos hoje à noite, vou mostrar a você exatamente o que pode esperar quando estivermos casados. Quando vol-


A VILLA

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tarmos, Tony... — Ela se ergueu e mordeu de leve o lábio inferior dele. — Você pode fazer o que quiser. — Vamos simplesmente pular a festa. Ela deu uma risada e escorregou para longe das mãos dele. — É importante. E vai dar tempo a você pra pensar no que quer fazer comigo. Pegue minha pele, sim, querido? Ela própria se sentia como uma pele de marta nessa noite, pensou, enquanto Tony ia obedecer à sua ordem. Sentia-se rica nessa noite.


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