Lua de Sangue

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N o r a R o b e r t s

LUA DE SANGUE Tradução A. B. Pinheiro de Lemos


Às amigas da minha infância, irmãs de sangue e confidentes, que ajudaram a transformar quintais em florestas mágicas


To r y V Para mim, cara amiga, nunca poderás ser velha, Pois como eras quando te contemplei pela primeira vez, Até hoje tua beleza permanece intacta. — William Shakespeare


Capítulo Um

E

la despertou no corpo de uma amiga morta. Tinha oito anos, alta para a sua idade, frágil na compleição, delicada nas feições. Os cabelos tinham a cor da palha do milho e desciam lustrosos pelas costas estreitas. A mãe adorava escová-los todas as noites, cem vezes, com a escova de cerdas macias e cabo de prata, guardada na graciosa penteadeira de cerejeira. O corpo da criança se lembrava disso, sentia isso, cada movimento longo e firme com a escova, como isso a fazia se imaginar uma gata sendo acariciada. Como a luz que se inclinava sobre as caixas de pinho e os vidros de cristal, transparentes, azulados, e faiscava no cabo de prata da escova, descendo sobre seus cabelos. Ela se lembrava da fragrância. Podia senti-la até agora. Gardênia. Sempre gardênia para a mãe. E, no espelho, à luz do lampião, podia avistar o oval pálido de seu rosto, tão jovem, tão belo, com seus olhos azuis pensativos, a pele tão lisa. E tão viva.


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Seu nome era Hope. As janelas e as portas de vidro estavam fechadas, porque era o auge do verão. O calor comprimia seus dedos úmidos contra o vidro, mas dentro da casa o ar era fresco. A camisola permanecia tão bempassada e engomada que até estalava quando ela se movimentava. Era o calor que ela queria, era a aventura, mas guardou esses pensamentos para si, enquanto dava um beijo de boa-noite na mãe. Um beijo delicado, num rosto perfumado. A mãe mandava retirar as passadeiras dos corredores todo mês de junho. Eram enroladas e guardadas no sótão. Agora, o assoalho de pinho, com sua camada de cera, parecia liso e escorregadio sob os pés descalços da menina, enquanto ela saía do carro, atravessava o corredor, com seus painéis de cipreste e quadros, em grossas molduras de um dourado opaco, subia pela escada curva até o gabinete do pai. Podia sentir o cheiro do pai. Fumaça, couro, Old Spice e bourbon. Ela adorava aquela sala, com suas paredes arredondadas, as poltronas enormes e pesadas, o couro da cor do vinho do Porto que o pai às vezes tomava depois do jantar. As estantes ao longo das paredes estavam atulhadas de livros e outros tesouros. Hope adorava o homem que sentava por trás da enorme escrivaninha, com seu charuto, seu copo pequeno e seus livros de contas. O amor era um anseio no coração da mulher dentro da criança, uma pontada de ansiedade, de inveja por aquele amor simples, sem qualquer complicação. A voz do pai trovejou, os braços eram fortes e a barriga, macia, quando ele a envolveu num abraço, que era muito diferente do beijo de boa-noite da mãe, sempre gentil e contido. Lá vai minha princesa para o reino dos sonhos. Vou sonhar com quê, papai? Cavaleiros em cavalos brancos, aventuras no outro lado do mar. Ela riu, mas encostou a cabeça no ombro do pai, um pouco além do tempo habitual, cantarolando baixinho, como uma gatinha ronronando.


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Será que ela sabia? Já pressentia que nunca mais tornaria a sentar no colo do pai, com toda a segurança que ali experimentava? Tornou a descer a escada. Passou pelo quarto de Cade. Ainda não era a hora de o irmão se deitar. Ele era quatro anos mais velho e homem, ainda por cima. Podia ficar acordado até mais tarde nas noites de verão, assistindo televisão ou lendo livros, desde que acordasse na hora certa, pronto para suas tarefas, na manhã seguinte. Um dia, Cade seria o dono de Beaux Reves. Sentaria na enorme escrivaninha, no escritório da torre, com os livros de contas. Seria encarregado de contratar e despedir, supervisionaria a fábrica e a colheita, fumaria charutos em reuniões, sempre reclamaria do governo e dos preços do algodão. Porque ele era o filho. Hope não se incomodava. Não queria se sentar em uma escrivaninha e ficar fazendo cálculos. Ela parou na frente da porta da irmã, hesitante. A situação não era nada boa com Faith. Nada parecia jamais estar certo com Faith. Lilah, a governanta, dizia que Miss Faith seria capaz de argumentar com Deus Todo-Poderoso só para irritá-lo. Hope supunha que devia ser verdade. Embora Faith fosse sua irmã gêmea, ela não entendia o que deixava a irmã tão irritada durante todo o tempo. Ainda naquela noite, Faith fora mandada de castigo para seu quarto por responder desrespeitosamente. Agora, a porta estava fechada e não havia luz por baixo. Hope imaginava que Faith olhava para o teto com uma expressão mal-humorada, os punhos cerrados, como se quisesse lutar boxe com as sombras. Hope pôs a mão na maçaneta. Na maioria das vezes, conseguia persuadir Faith a sair de sua fúria. Deitava na cama com ela, no escuro, inventava histórias, até que Faith ria e o rancor desaparecia de seus olhos. Mas aquela noite era para outras coisas. Era uma noite para aventuras. Estava tudo planejado, mas Hope não permitiu que a excitação a dominasse até entrar em seu quarto e fechar a porta. Deixou a luz apagada, movimentando-se em silêncio no quarto prateado pelo


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luar. Tirou a camisola de algodão e vestiu um short e uma camiseta. O coração batia no peito, de uma maneira agradável, enquanto ajeitava os travesseiros na cama, criando uma elevação que, a seus olhos ingênuos e infantis, parecia um corpo adormecido. Pegou seu kit de aventura embaixo da cama. A velha lancheira continha uma Coca-Cola que já esquentara, um saco de biscoitos tirados com a maior cautela do pote na cozinha, um canivete pequeno e enferrujado, fósforos, uma bússola, uma pistola de água — carregada — e uma lanterna de plástico vermelho. Hope ficou sentada no chão por um momento. Podia sentir o cheiro de seus lápis de cera, do talco passado depois do banho, ainda aderindo à pele. Podia ouvir, quase indistintamente, a música saindo da sala de estar da mãe. Sorria exultante quando abriu a janela e retirou a tela. Ágil e vibrando de expectativa, passou a perna pelo peitoril e encontrou um ponto de apoio na treliça, por onde subia a glicínia. O ar era denso como uma calda. O aroma quente e doce enchia seus pulmões, enquanto descia. Uma farpa espetou seu dedo, fazendo-a soltar um grito abafado. Mesmo assim, continuou a descer, os olhos fixos nas janelas acesas do primeiro andar. Era uma sombra, pensou ela, e ninguém podia vê-la. Era Hope Lavelle, a jovem espiã, e tinha um encontro marcado com a pessoa que era seu contato e parceira, pontualmente às dez e trinta e cinco. Teve de reprimir o riso. Estava ofegante pelo esforço quando chegou lá embaixo. Para aumentar sua excitação, saiu correndo para trás dos troncos grossos das árvores enormes e antigas que ensombreavam a casa. Parou para dar uma espiada. Uma tênue claridade azul parecia pulsar na janela do quarto em que o irmão assistia televisão. Havia uma claridade amarela nas janelas por trás das quais os pais passavam a noite. Ser descoberta agora significaria o desastre para a missão, pensou Hope. Agachada, ela saiu em disparada pelo jardim, aspirando


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a fragrância suave das rosas e damas-da-noite. Tinha que evitar ser capturada a qualquer custo, já que o destino do mundo dependia dela e de sua intrépida companheira. A mulher dentro da criança protestou: Volte agora! Por favor, volte! Mas a criança não ouviu. Hope tirou a bicicleta rosa de trás das camélias, onde a escondera naquela tarde. Pôs o kit no cesto branco. Foi empurrando a bicicleta pelo gramado, ao lado do caminho de cascalho, até que a casa e as luzes ficaram indistintas na distância. Quando subiu no selim e saiu pedalando, veloz como o vento, imaginou que a linda bicicleta era uma moto especial, capaz de expelir gás nervoso, equipada com uma metralhadora embutida. As bandeirolas de plástico branco balançavam nas extremidades do guidão, batiam uma na outra alegremente. Parecia voar pelo ar denso. O coro das rãs e cigarras era como o rugido de pantera de sua moto a toda velocidade. Ao chegar à encruzilhada da estrada, ela saltou da bicicleta com a maior agilidade. Saiu da estrada e entrou na ravina, onde a bicicleta ficaria escondida pelas moitas. Embora o luar clareasse tudo, ela pegou a lanterna. A risonha Princesa Leia no mostrador do relógio indicou que chegara quinze minutos mais cedo. Sem medo, sem pensar, Hope seguiu pelo caminho estreito que levava ao pântano. Para o final do verão. Da infância. E da vida. Ali, o mundo parecia fervilhar, com os sons, a água, os insetos, as pequenas criaturas noturnas. A claridade infiltrava-se em fitas delgadas, através do dossel de nissáceas e ciprestes, cobertos de musgo. As flores de magnólia eram enormes, exalando seu perfume forte. O caminho para a clareira era quase como uma segunda natureza para Hope. Era o ponto de encontro, um local secreto, bem-cuidado, protegido, muito amado. Como foi a primeira a chegar, ela removeu os gravetos e galhos que escondiam a pilha de lenha e tratou de acender a fogueira. A fumaça afugentava os mosquitos, mas já se coçava das picadas que


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pontilhavam suas pernas e braços. Acomodou-se para esperar, segurando a Coca-Cola e os biscoitos. Enquanto o tempo passava, seus olhos foram se tornando pesados. A música do pântano embalou-a para um cochilo. O fogo subiu na lenha seca, depois se retraiu. A cabeça balançando na vontade de dormir, Hope encostou o rosto nos joelhos levantados. A princípio, o farfalhar foi apenas parte do sonho, em que se esgueirava pelas ruas sinuosas de Paris, fugindo do impiedoso espião russo. Mas o estalo de um graveto partido pelo pé de alguém fez sua cabeça se erguer num movimento brusco. O sono se dissipou por completo dos olhos. O sorriso largo aflorou primeiro, mas, no instante seguinte, Hope assumiu a solene expressão profissional de uma das maiores agentes secretas do país. A senha! Havia silêncio no pântano, rompido apenas pelo monótono zumbido dos insetos e o tênue crepitar do fogo baixo. Ela se levantou, empunhando a lanterna quase como se fosse uma pistola. A senha!, gritou de novo, apontando o facho curto da lanterna. Mas agora o barulho vinha de trás. Hope virou-se, o coração disparado, o feixe de luz dançando em movimentos nervosos. O medo, algo pouco saboreado em seus curtos oito anos de vida, insinuou-se por sua garganta, quente, ardendo. Pare com isso! Não está me assustando! Um som da esquerda, deliberado, zombeteiro. No momento em que a nova pontada de medo provocou-lhe um calafrio na espinha, ela deu um passo para trás. E ouviu a risada, suave, ofegante, próxima. Ela saiu correndo, através das sombras densas, a luz dando saltos. O terror era tão intenso que cortava os gritos na garganta, antes que pudessem escapar. Passos pesados em seu encalço. Rápidos, muito rápidos... e muito perto. Alguma coisa a atinge por trás. Uma


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dor intensa nas costas que desce vibrando até as solas dos pés. Depois o solavanco quando cai no chão com toda a força. O ar escapa dos pulmões, num soluço, quando o peso dele a imobiliza. Ela sente o cheiro de suor e uísque. Grita agora, um grito longo, desesperado, chamando a amiga. Tory! Tory! Socorro! E a mulher acuada dentro da criança morta desata a chorar.

QUANDO TORY RECUPEROU OS SENTIDOS, ESTAVA DEITADA nas lajes do pátio, usando apenas uma camisola, já encharcada da chuva miúda da primavera. Tinha o rosto molhado e podia sentir o gosto salgado das próprias lágrimas. Gritos ressoavam em sua cabeça, mas não sabia se eram os seus ou os da criança que não conseguia esquecer. Tremendo, ela deitou de costas para que a chuva pudesse esfriar seu rosto e lavar as lágrimas. Os episódios — a mãe sempre dizia que era feitiço — costumavam deixá-la fraca e nauseada. Houvera um tempo em que ainda era capaz de contê-los antes que a dominassem. Ou fazia isso, ou iria sentir a dor intensa do cinto do pai. Vou surrá-la para tirar o demônio de você, menina. Para Hannibal Bodeen, o demônio estava em toda parte; em cada medo e tentação espreitava a mão de Satã. E ele fizera o melhor de que era capaz para expulsar o mal da mente da filha única. No momento, com a náusea pulsando em seu estômago, Tory desejou que ele tivesse conseguido. Espantava-a que, por um período de alguns anos, até aceitasse o que havia nela e que poderia explorar, usar, celebrar. Um legado, a avó lhe dissera. A visão. O brilho. Um dom do sangue através do sangue. Mas havia Hope. Mais e mais, havia Hope. Aqueles relances de lembranças da amiga de infância machucavam seu coração. E a deixavam apavorada. Nada do que experimentara antes, bloqueando ou aceitando o


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dom, jamais a dominara daquele jeito, por completo, esvaziando-a de todo o resto e deixando-a desamparada, apesar de ter prometido a si mesma que nunca mais se sentiria assim. Mas lá estava ela, deitada no pátio, sob a chuva, sem ter a menor recordação de como viera parar ali. Estava primeiro na cozinha, fazendo um chá, de pé ao lado do balcão, as luzes acesas, ouvindo música. Lia uma carta da avó. Fora esse o gatilho, compreendeu Tory agora, enquanto se levantava. A avó era sua ligação com a infância, com Hope. Para dentro de Hope, pensou ela, enquanto fechava a porta do pátio. Para a angústia, o medo e o terror daquela noite terrível. E até hoje ela não sabia quem ou por quê. Ainda tremendo, Tory foi para o banheiro. Tirou as roupas e abriu o chuveiro quente. — Não posso ajudá-la — murmurou ela. — Não pude ajudála na ocasião, também não posso ajudá-la agora. Sua melhor amiga, a irmã de seu coração, morrera naquela noite no pântano, enquanto ela se encontrava trancada em seu quarto, soluçando depois da última surra. E soubera de tudo, vira tudo, sem poder fazer nada. O sentimento de culpa, tão intenso quanto fora dezoito anos antes, tornou a envolvê-la. — Não posso ajudá-la — murmurou Tory de novo. — Mas voltarei. Tínhamos oito anos naquele verão distante, verão com a impressão de que os dias quentes e abafados durariam para sempre. Foi um verão de inocência, despreocupação e amizade, do tipo em que tudo se combina para formar um lindo globo de vidro em torno do seu mundo. E numa noite tudo mudou para sempre. Nada para mim foi o mesmo desde então. Como pôde acontecer? Evitei falar a respeito durante a maior parte de minha vida, o que não impediu as lembranças, nem as imagens. Mas, por al-


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gum tempo, tentei sepultar tudo, como Hope foi sepultada. Enfrentar os fatos agora, contar tudo, em voz alta, gravando, mesmo que seja apenas para mim, é um alívio. É como tirar uma farpa do coração. Mas a dor vai perdurar. Ela era a minha melhor amiga. Nossa relação tinha a intensidade profunda e imediata que só as crianças são capazes de produzir. Formávamos uma dupla estranha: a loura e privilegiada Hope Lavelle e a morena e tímida Tory Bodeen. Meu pai arrendara uma pequena extensão de terra, um cadinho da vasta plantação que os pais de Hope possuíam. Às vezes, quando a mãe dela oferecia um grande jantar para a sociedade ou uma de suas festas suntuosas, minha mãe ajudava na limpeza e servia os convidados. Mas essa vasta diferença de classe e posição nunca afetou a amizade entre as famílias. Para dizer a verdade, isso nunca nos ocorreu. Hope morava numa casa enorme que um ancestral supostamente excêntrico construíra para parecer um castelo, em vez de aceitar o estilo georgiano, tão popular em sua época. Era de pedra, com torres e muralhas, mas não havia nada de princesa em Hope. Ela vivia para aventuras. E quando me encontrava com ela, eu também. Com Hope, escapava dos tormentos e tumultos de minha casa, de minha vida, e me tornava sua parceira. Éramos espiãs, detetives, amazonas em busca da verdade, piratas ou saqueadoras do espaço. Éramos corajosas e honestas, intrépidas e impetuosas. Na primavera antes daquele verão usamos o canivete de Hope para fazer um pequeno corte em nossos pulsos. Solenemente, misturamos nosso sangue. Tivemos sorte, eu suponho, de não acabarmos com tétano. Em vez disso, nós nos tornamos irmãs de sangue. Ela tinha uma irmã gêmea. Mas Faith quase nunca participava de nossas brincadeiras. Eram tolas demais para ela. Ou rudes demais. Ou sujas demais. Eram sempre alguma coisa demais para Faith. Não sentíamos falta de seu mau humor e suas queixas. Naquele verão, Hope e eu fomos as gêmeas. Se alguém me perguntasse se a amava, eu ficaria embaraça-


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da. Mas sinto saudade todos os dias, desde aquela terrível noite de agosto. Sinto saudade de Hope tanto quanto daquela parte de mim que morreu com ela. Deveríamos nos encontrar no pântano, em nosso lugar secreto. Não era tão secreto assim, mas era nosso. Costumávamos brincar ali, no ar úmido, cercadas pelo verde, imaginando nossas aventuras entre o canto dos passarinhos, o musgo, as azaléias silvestres. Era contra as regras ir até lá depois do pôr-do-sol, mas aos oito anos de idade é sempre emocionante desafiar as regras. Eu deveria levar marshmallows e limonada. Em parte por orgulho. Meus pais eram pobres, mas eu precisava contribuir. Usara o dinheiro do pote de vidro que escondia debaixo da cama. Tinha dois dólares e oitenta e seis centavos naquela noite de agosto — depois de ter comprado as coisas no Hanson’s —, o valor total do meu patrimônio, guardado num vidro para conservas, consistindo de moedas de cinco e dez centavos, e duas ou três de um quarto de dólar, ganhas com muito esforço. Tivemos galinha e arroz no jantar. A casa estava tão quente, mesmo com os ventiladores ligados na potência máxima, que até comer era desagradável. Mas, se restava um grão de arroz em seu prato, papai esperava que você comesse e se mostrasse agradecida. Antes do jantar havia a oração de graças. Dependendo do ânimo de papai, podia durar de cinco a vinte minutos, enquanto a comida esfriava, a barriga roncava e o suor escorria pelas costas em rios repugnantes. Minha avó costumava dizer que, quando Hannibal Bodeen encontrasse Deus, até mesmo Ele tentaria encontrar outro lugar para se esconder. Era um homem enorme, meu pai, o peito e os braços musculosos. Soube que outrora ele fora considerado bonito. Os anos esculpem um homem de maneiras diferentes. No caso de meu pai, deixaram-no amargo e rigoroso, com uma terrível mesquinhez por trás. Usava os cabelos escuros penteados para trás. O rosto parecia se projetar desse domo como rochas pontiagudas numa


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montanha. Rochas que poderiam esfolar a pele de seus ossos por qualquer passo em falso. Os olhos também eram escuros. Pareciam arder, com uma expressão que reconheço agora em alguns pregadores da televisão e em pessoas nas ruas. Minha mãe tinha medo dele. Tento perdoá-la por isso, por temê-lo tanto que nunca ficou do meu lado quando ele usava o cinto para me impor seu deus vingativo. Tratei de me manter quieta naquela noite, ao jantar. Era bem possível que ele me ignorasse se eu ficasse calada e limpasse o prato. Dentro de mim a expectativa daquela noite era como uma coisa viva, irrequieta, alegre. Mantive os olhos baixos, tentando comer no ritmo certo para que ele não me acusasse de demorar demais, nem de devorar tudo às pressas. Era sempre difícil encontrar o meio-termo que agradasse papai. Lembro-me do som dos ventiladores girando, os garfos raspando os pratos. Lembro-me do silêncio das almas escondidas no medo que viviam na casa de meu pai. Quando mamãe lhe ofereceu mais galinha, ele agradeceu polidamente e se serviu de uma segunda porção. A sala parecia mais aliviada. Era um bom sinal. Encorajada, mamãe comentou que a colheita de tomate e milho seria ótima e de como ela estaria ocupada arrumando as conservas durante as próximas semanas. Também estavam preparando as conservas em Beaux Reves e ela perguntou se papai achava que seria uma boa idéia se fosse ajudar, pois fora chamada. Não mencionou o dinheiro que ganharia por isso. Mesmo quando o humor de papai era brando, nunca era sensato falar sobre o dinheiro que os Lavelles pagavam por serviços prestados. Ele era o provedor naquela casa e não tínhamos permissão para esquecer esse fato de suprema importância. Todos prenderam a respiração de novo. Havia ocasiões em que a simples menção dos Lavelles punha uma tempestade nos olhos escuros de papai. Mas naquela noite ele admitiu que seria uma atitude sensata, desde que ela não negligenciasse os deveres sob o teto que ele punha sobre sua cabeça.


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Essa resposta relativamente agradável fez mamãe sorrir. Lembro-me de como seu rosto desanuviou, como quase voltou a ficar bonito. Em alguns momentos, se faço um esforço para lembrar, posso ver mamãe tão bonita. Han, ela o chamava assim, quando sorria. Tory e eu cuidaremos de tudo aqui. Não se preocupe. Conversarei com Miss Lilah amanhã para saber o que temos de fazer. E com as amoras sendo colhidas, também farei geléia. Sei que temos parafina em casa, mas não consigo me lembrar onde está guardada. E foi isso, um comentário casual sobre geléia, cera e distração, que mudou tudo. Imagino que minha mente vagueara durante a conversa, já se concentrava na aventura iminente. Falei sem pensar, sem cogitar sobre as conseqüências. Foi assim que saíram as palavras que me condenaram. A caixa de parafina está na prateleira superior do armário sobre o fogão, por trás do melaço e da maisena. Simplesmente disse o que aflorou em minha mente, a caixa quadrada com o bloco de cera, por trás do vidro escuro de melaço. E estendi a mão para o chá frio que me ajudaria a engolir os grãos de arroz muito duros. Antes de tomar o primeiro gole, ouvi o silêncio voltar, a onda muda que abafou até o zumbido dos ventiladores. Meu coração começou a bater forte dentro desse vácuo, uma martelada depois da outra, com um estrondo que só existia dentro de minha cabeça, a pulsação súbita e violenta do sangue. A pressão do medo. Papai falou baixinho naquele momento, como sempre fazia um instante antes da explosão de ira. Como você sabe onde está a cera, Victoria? Como sabe que está lá no alto, num lugar que não pode ver e onde não pode alcançar? Menti. Foi uma insensatez, porque eu já estava condenada. Mas a mentira saiu, incontrolável, numa defesa desesperada. Respondi que achava que vira mamãe guardar ali. Só me lembrava de tê-la visto guardar ali, mais nada.


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Ele estraçalhou a mentira. Tinha um jeito de ver através das mentiras, de destruí-las em fragmentos. Quando eu vira isso? Por que não era uma aluna melhor, se tinha uma memória tão boa que era capaz de lembrar onde a parafina fora guardada, um ano depois de terminar a última temporada de preparação de conservas? E como eu sabia que se encontrava por trás do melaço e da maisena e não na frente ou ao lado? Um homem inteligente, meu pai, e nunca deixava escapar qualquer detalhe. Mamãe não disse nada enquanto ele falava esmurrando-me com as palavras, como punhos envoltos por seda. Ela cruzou as mãos trêmulas. Será que tremia por mim? Gosto de pensar que sim. Mas ela continuou calada enquanto a voz de papai se tornava mais alta. Não se manifestou quando ele empurrou sua cadeira para trás da mesa. Ou quando o copo escapuliu de minha mãe e se espatifou no chão. Um caco cortou meu tornozelo. Mesmo com o terror crescente, ainda senti aquela pequena dor. Papai foi verificar primeiro, é claro. Diria a si mesmo que era o justo, a coisa certa a fazer. Quando abriu o armário, empurrou os vidros para os lados e tirou a caixa azul e quadrada de cera de trás do vidro de melaço e, então, desatei a chorar. Ainda tinha lágrimas naquele tempo, ainda tinha esperança. E mesmo quando ele me deu um puxão, obrigando-me a ficar de pé, torci para que a punição consistisse apenas de orações, horas e horas de oração, até meus joelhos ficarem dormentes. Às vezes, naquele verão, isso era suficiente. Ele não havia me advertido para não deixar o demônio entrar? Apesar disso, eu trouxera a iniqüidade para sua casa, envergonhara-o diante de Deus. Eu disse que estava arrependida, não tivera a intenção. Por favor, papai, por favor, nunca mais farei isso. Prometo que serei uma boa menina. Supliquei, mas ele continuou a gritar, citando as Escrituras. As mãos enormes e duras arrastaram-me para meu quarto. Ainda assim, continuei a suplicar. Foi a última vez que fiz isso. Não houve reação. Era pior quando se reagia. O Quarto


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Mandamento era sagrado e você tinha que honrar, respeitar o pai em sua casa, mesmo que ele a espancasse até tirar sangue. O rosto de papai estava vermelho de indignação; enorme e ofuscante como o sol. Ele me deu um único tapa. Não foi preciso mais nada para interromper minhas súplicas, minhas desculpas, e destruir minha esperança. Eu me deito na cama, de barriga para baixo, passiva agora, como qualquer cordeiro sacrificial. O som do cinto ao sair das alças da calça de trabalho foi como uma serpente sibilando. Depois, o estampido alto do cinto estalando. Ele sempre batia três vezes. A santíssima trindade da crueldade. O primeiro golpe é sempre o pior. Não importa quantas vezes já tenha havido um primeiro golpe. O choque e a dor são atordoantes, arrancam um grito que vem lá do fundo. O corpo se contrai todo em protesto. Não, em incredulidade... e depois vem o segundo golpe, que faz a carne parecer em brasa, logo seguido pelo terceiro. Seus gritos logo se tornam mais animais do que humanos. Sua humanidade fica comprometida, soterrada por uma avalanche de dor e humilhação. Ele pregava enquanto me batia. A voz era como um terrível rugido. E por trás desse rugido havia uma excitação hedionda, o tipo mais vil de prazer que eu não compreendia e não reconhecia. Nenhuma criança deveria saber dessa satisfação insidiosa e fui poupada disso por algum tempo. Tinha cinco anos na primeira vez em que ele me bateu. Mamãe tentou detê-lo e ficou com um olho roxo por isso. Nunca mais tentou. Não sei o que ela fez naquela noite, enquanto papai me espancava, para expulsar o demônio que me dava visões. Eu não podia ver coisa alguma, nem com os olhos, nem com a mente, além do nevoeiro vermelho de sangue. O nevoeiro era ódio, mas eu também não reconhecia isso. Papai me deixou chorando no quarto. Trancou a porta por fora. Depois de algum tempo, a dor me fez dormir.


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Estava escuro quando acordei. Tinha a sensação de que um fogo ardia dentro de mim. Não posso dizer que a dor era insuportável, porque sempre se consegue agüentar. Que opção eu tinha? Orei também, orei para que tudo o que havia dentro de mim fosse finalmente expulso. Não queria ser uma pecadora. Mas, mesmo enquanto eu orava, a pressão se acumulava em minha barriga. Comecei a sentir o formigamento, como dedos pequenos e afiados dançando em minha nuca. Pensei que estava doente, com febre. Avistei Hope no instante seguinte, com absoluta nitidez, como se estivesse sentada ao seu lado em nossa clareira no pântano. Podia aspirar a fragrância da noite, ouvir o zumbido dos mosquitos, o som incessante dos insetos. E, como Hope, ouvi o farfalhar nas moitas. Como Hope, senti o medo. Intenso, em pontadas ardentes. Quando ela correu, eu corri, a respiração tão difícil que meu peito doía. Vi-a cair sob o peso do que pulou em cima dela. O que quer que fosse. Uma sombra, contornos que não conseguia divisar direito, embora pudesse vê-la. Hope me chamou. Gritou por mim. E, depois, não vi mais nada. Havia apenas o escuro. Quando acordei, o sol já subira bem alto no céu. Eu estava estendida no chão. E Hope não existia mais.


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