A CIDADE SOMBRIA
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Da autora: Círculo negro Série O Mestre das Relíquias
A Cidade Sombria A Herdeira perdida A Coroa Oculta o Margrave
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CATHERINE FISHER
O MESTRE DAS RELÍQUIAS
A CIDADE SOMBRIA Tradução Bruna Hartstein
Rio de Janeiro | 2013
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A
s sete luas estavam todas no céu ao mesmo tempo. Essa noite, elas se posicionavam do jeito que Galen costumava chamar de teia: uma no centro — Pyra, a pequena e vermelha — e as outras formando um círculo ao seu redor. Elas cintilavam acima das copas das árvores; era um bom presságio, a dança mais perfeita das irmãs. Com os braços carregados de lenha para o fogo, Raffi ergueu os olhos e observou-as. Como experiência, abriu o terceiro olho e criou pequenos filamentos de luz roxa, que partiam da lua central em direção às outras, unindo-as numa malha reluzente. Após algum tempo, mudou a cor para o azul e a manteve assim durante alguns minutos. Mesmo depois de a luz esmorecer, um suave eco persistiu. Raffi observou-as até seus braços se cansarem; em seguida, ajeitou a madeira com cuidado e se virou. Fora melhor do que da última vez. Estava ficando bom nisso — precisava contar a Galen. Ou talvez não. Reunindo mais alguns galhos secos, prosseguiu, resmungando, através das árvores escuras. Não adiantava contar a Galen. 13
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A CIDADE SOMBRIA O guardião estava de mau humor; ele simplesmente riria, aquela risada curta e implacável de desdém. A madeira estava bem seca, apodrecendo no chão da floresta. Formigas enormes corriam em meio aos galhos, que também se encontravam repletos daquelas larvas cascudas de insetos que lentamente se alimentam da madeira. Ele sacudiu as roupas, e uma chuva desses bichinhos caiu no chão. A floresta estava quieta. Duas noites antes, um grupo de homenssímios passara por ali, abrindo grandes buracos nas copas das árvores; a destruição ainda era visível debaixo dos carvalhos. Sob o brilho esverdeado da noite, os insetos zuniam; Raffi escutou um assobio na floresta às suas costas. Estava na hora de voltar. Abriu caminho pelas heras que pendiam dos galhos e atravessou uma clareira cheia de samambaias enormes, atento às cobras e às venenosas aranhas azuis, porém apenas sombras tremulavam e se remexiam entre as árvores, longe demais para ele ver ou sentir alguma coisa. Afastara-se mais do que havia imaginado e, sob os raios de luar vermelhos, esbranquiçados e rosados, o caminho parecia diferente, desconhecido, até que por fim as árvores deram lugar a um platô de folhas mortas. Raffi prosseguiu devagar, indo em direção à encosta da colina, vendo a protuberância negra do cromlech e a fogueira de Galen destacando-se como uma fagulha em meio às sombras. De repente, parou. Em algum lugar às suas costas, bem longe, algo ativara uma das linhas de proteção. O aviso desencadeou uma leve dor sobre um dos olhos; reconheceu-a de imediato. As linhas ficavam bem acima do solo; o que quer que fosse era grande e vinha em sua direção. 14
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a caixa de fogo Apurou a audição, atento, mas só conseguiu escutar os sons da noite, o zumbido dos insetos e dos morcegos, o crepitar do fogo. Desceu a encosta correndo, deixando parte da lenha cair. — O que houve? — Galen estava descuidadamente sentado, encostado a uma das pedras da tumba, o casaco apertado em volta do corpo. — Está com medo de mariposas agora, é? Raffi soltou a madeira; uma poeira rosa elevou-se dela. — Uma das linhas de proteção acabou de arrebentar! O guardião observou-o por alguns instantes. Em seguida, virou-se para o fogo e começou a alimentá-lo com os galhos. — Não diga. — Não faça isso! Alguém pode estar vindo! Galen deu de ombros. — Deixe que venha. — Mas pode ser qualquer um! — Raffi se agachou, quase enjoado de tanta preocupação, fazendo os colares de pedrinhas roxas e azuis balançarem. Segurou-os. — Pode ser um Vigia! Pelo menos, apague o fogo! Galen parou. Ao erguer os olhos, seu rosto era uma máscara de luz chamejante e sombras emaciadas, os olhos encovados emitiam um brilho quase imperceptível. O nariz era exageradamente adunco, semelhante ao de um falcão. — Não — respondeu, com uma voz rouca. — Se eles me querem, deixe que venham. Estou cansado de me esconder no escuro. — Ajeitou a perna esquerda com as duas mãos. — O barulho veio de que direção? — Oeste. — Das montanhas. — Ele ponderou. — Pode ser apenas um viajante. 15
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A CIDADE SOMBRIA — Talvez. — Raffi estava preocupado. Outra linha vibrou em seu cérebro, dessa vez mais perto. Galen o observou. — Pois bem. Vamos fazer meu pupilo rever os passos. — O quê? Agora? — Não há hora melhor. — Virou o rosto comprido para o fogo. — Se for um inimigo, o que devemos jogar nas chamas? Raffi coçou a cabeça, consternado. Estava com medo; odiava quando Galen ficava desse jeito. — Genciana amarga, erva daninha e, se tivéssemos, arnica, para deixá-lo com sono. Devo fazer isso? — Não faça nada, a menos que eu mande. Fique quieto. — Num gesto brusco, Galen ergueu a cabeça, o perfil destacado contra a menor das luas. — A caixa azul está com você? Raffi fez que sim; enfiando a mão no bolso, apertou-a. — Só use em caso de perigo extremo. — Eu sei, eu sei. Mas… Um galho se partiu. Em algum lugar nas proximidades, um rapineiro — um daqueles seres semelhantes aos lobisomens, mas que se transformam em pássaros nas noites de lua cheia — soltou um pio e alçou voo. Pouco depois, Raffi escutou o relinchar de um cavalo. Levantou-se, o coração martelando no peito. Às suas costas estava o cromlech, negro e sólido, e a face da rocha irregular sob suas palmas, desgastada por milhares de anos de geadas e chuvas. O limo a cobrira, um tapete verde sobre as espirais escavadas, agora quase invisíveis. Ele parecia uma fera enorme, fossilizada e corcunda. Galen se levantou também, sem a ajuda do cajado. Seus cabelos longos penderam para a frente, os colares emaranhados de pedras 16
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a caixa de fogo de azeviche e cristal verde cintilando sob a luz, o capuz pesado do casaco engruvinhado em torno do pescoço. — Pronto? — Ele soltou um suspiro. — Acho que sim. O guardião o fitou com desprezo. — Não se preocupe. Não vou arriscar a sua vida. — Não é com a minha vida que eu estou preocupado — Raffi murmurou com tristeza por entre os dentes, apalpando os pós e a caixa azul em seu bolso. De repente, um cavalo saiu do meio da mata. Era um animal alto, um exemplar das espécies magras e avermelhadas que eram criadas do outro lado das montanhas. O suor que escorria por seu pescoço comprido e esquelético dava-lhe uma aparência fantasmagórica sob a luz das irmãs. Ele se aproximou e parou um pouco atrás da fogueira. Envolto em sombras, Raffi mal conseguiu distinguir o cavaleiro: uma figura grande e indistinta, enrolada em algum tipo de manto para se proteger do frio. Ninguém disse nada. O aprendiz olhou de relance para as árvores. Não sentia mais ninguém. Tentou ver dentro da mata com seu terceiro olho, mas estava nervoso demais; tudo o que viu foram sombras se mexendo. O cavaleiro se pronunciou. — Uma bela noite, meus amigos. — Sua voz era grave; um homem grande. Galen concordou com um menear de cabeça, fazendo os cabelos compridos balançarem. — É mesmo. Você veio de longe? — Longe o bastante. 17
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A CIDADE SOMBRIA O cavalo mudou de posição, os arreios tilintaram suavemente. O cavaleiro incitou-o a se aproximar um pouco mais, talvez para enxergá-los melhor. — Chegue mais perto do fogo — sugeriu Galen, perigosamente. O medo do cavalo era tangível, dava para sentir o cheiro no ar. Ele estava apavorado com o cromlech, ou talvez com as linhas de proteção invisíveis que dele irradiavam por baixo da terra. O homem também pareceu tenso ao falar novamente. — Acho melhor não, guardiões. Galen respondeu baixinho. — Um título agourento. Por que acha que somos guardiões? — Este é um lugar agourento. Quem mais viveria aqui? — O cavaleiro hesitou, então desmontou do cavalo e se aproximou alguns passos, soltando o cachecol fino de tricô que trazia enrolado no rosto. Eles viram um homem forte e corpulento com uma barba negra. Trazia uma espécie de balesta pendurada no ombro e usava uma armadura de metal, que brilhou sob a luz das luas. Perigoso, pensou Raffi. Mas nada que eles não pudessem encarar. O estranho devia ter pensado a mesma coisa. — Não sou uma ameaça — disse, rapidamente. — E como poderia? Sem dúvida vocês têm vários tipos de magia apontados para mim. — Ele ergueu as duas mãos, vazias; uma joia cintilou num dos dedos da luva esquerda. — Estou procurando por um homem chamado Galen Harn, um Mestre das Relíquias. — Olhou de relance para Raffi, o rosto impassível. — E pelo aprendiz dele, Raffael Morel. — Não diga — Galen retrucou com frieza. Mudou de posição; Raffi sabia que a perna dele devia estar doendo, porém o rosto do guardião não demonstrou nada. — E o que você quer com eles? 18
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a caixa de fogo — Entregar uma mensagem. A cerca de umas vinte léguas a oeste daqui, ao pé das colinas onde os rios se encontram, há um povoado. As pessoas de lá precisam da ajuda deles. — Por quê? O cavaleiro abriu um sorriso irônico, mas respondeu: — Elas encontraram uma relíquia enquanto lavravam a terra. Um tubo. Quando você o toca, ele emite um zumbido. E pequenas luzes verdes se movem dentro dele. Galen nem sequer pestanejou, mas Raffi sabia que ele estava alerta. O cavaleiro sabia também. — Peço a vocês — continuou ele, ironicamente — que, se virem esse tal de Galen, repassem a mensagem. As pessoas estão desesperadas, desejando que ele apareça e lide com a relíquia. Ninguém ousa chegar perto dela. Galen assentiu com um meneio de cabeça. — Estou certo de que sim. Contudo, a Ordem dos Guardiões foi banida. Todos os membros ou estão mortos ou se escondendo dos Vigias. Se eles forem pegos, serão torturados. Esse guardião poderia suspeitar de uma armadilha. — Ele estaria seguro. — O cavaleiro coçou a barba e deu um passo à frente. — Precisamos dele. Não o trairíamos. Somos leais à antiga Ordem. Isso é tudo o que eu posso dizer, mestre. Ele teria de confiar em nós. Dê mais um passo, pensou Raffi. Os dedos da mão metida no bolso tremeram sobre a caixa de cristal azul. Jamais a usara num homem antes. Até o momento. O cavaleiro ficou onde estava, como se sentisse a tensão. De repente, Galen se moveu, afastou-se mancando da sombra da tumba e aproximou-se da luz vermelha e dourada do fogo. Parou, empertigado, com uma expressão grave. 19
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A CIDADE SOMBRIA — Diga a eles que iremos. Enterrem a relíquia até chegarmos lá. Coloquem uma pessoa para vigiá-la e não deixem ninguém chegar perto. Ela pode ser perigosa. O cavaleiro sorriu. — Obrigado. Vou me certificar de que isso seja feito. — Ele se virou e montou no cavalo; a fera vermelha circundou-os com cautela. — Em quanto tempo vocês chegarão lá? — Quando chegarmos. — Galen o encarou, olho no olho. — Eu o convidaria para passar a noite conosco, mas os foras da lei não têm muito para dividir. — Eu não ficaria mesmo, guardião. Não debaixo dessas pedras. — Ele começou a se afastar, mas parou e olhou por cima do ombro. — As pessoas ficarão felizes em ouvir isso. Acreditem: vocês estarão seguros com a gente. Procurem por Alberic. Em seguida, o cavalo se afastou cautelosamente em direção à mata. Os dois ficaram em silêncio por um longo tempo, escutando os estalos dos galhos e o farfalhar das folhas, o chilrear distante dos pássaros incomodados pelo barulho. Uma a uma, as linhas de proteção arrebentaram na cabeça de Raffi. Por fim, Galen se moveu. Ele se sentou, soltando um assobio por entre os dentes ao sentir a perna enrijecida. — Bom, o que você achou de tudo isso? Raffi soltou a caixa azul e despencou ao lado dele. De repente, sentia-se inacreditavelmente cansado. — Que ele tem coragem, vindo até aqui. — E quanto à história? — Não sei. — Deu de ombros. — Pareceu-me verdadeira, mas… — Mas. Exatamente. — O guardião se recostou, o rosto envolto em sombras. 20
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a caixa de fogo — Pode ser uma armadilha — arriscou Raffi. — Pode. — Mas você vai mesmo assim. Galen riu com amargura. Uma súbita fagulha iluminou seu rosto retorcido de dor. — Eu costumava saber quando as pessoas estavam mentindo, Raffi. Se elas imaginassem! — Olhou para algum ponto ao longe. — Nós vamos. Alguém precisa lidar com essa relíquia. Incomodado, Raffi fez que não. — Talvez não exista relíquia alguma. Galen cuspiu no fogo. — Como se eu me importasse — retrucou, baixinho.
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