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Colin Wells
DE BIZÂNCIO PARA O MUNDO A SAGA DE UM IMPÉRIO MILENAR
Tradução Pedro Jorgensen
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INTRODUÇÃO
Império Bizantino foi o herdeiro medieval da Grécia e da Roma antigas, continuação do Império Romano em território grego, tendo o cristianismo como religião de Estado. Nasceu no início do século IV com a fundação de uma nova capital cristã, Constantinopla, no lugar da antiga cidade grega de Bizâncio, e terminou quando os turcos otomanos capturaram a cidade em 1453 e fizeram dela a capital de seu império islâmico, que o substituiu em termos de aspirações territoriais e estilo imperial. Os historiadores ocidentais, a começar por Edward Gibbons em seu Declínio e queda do Império Romano, até muito recentemente tratavam a história de Bizâncio como uma longa e pouco edificante narrativa de decadência imperial. Se a medida de um império é seu território, isso talvez seja verdade. Da vastidão do Império Romano de outrora, passado um milênio de adversidades, Bizâncio se viu reduzida, em suas décadas finais, a pouco mais do que a própria cidade de Constantinopla. Pesquisas mais recentes têm revelado, no entanto, que ,sob o ângulo da influência cultural, Bizâncio tem uma história de realizações duradouras e, em alguns momentos, de vigorosa expansão. De Bizâncio para o mundo conta essa história ao leitor comum.
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DE BIZÂNCIO PARA O MUNDO
A organização do livro procede de duas ideias que, juntas, facilitam sobremaneira a compreensão do legado cultural bizantino. A primeira é a dupla natureza desse legado, refletida na combinação de fé cristã com cultura grega. A segunda é que os beneficiários desse duplo legado foram três civilizações mais jovens surgidas em terras arrebatadas a Bizâncio: os mundos ocidental, islâmico e eslavo. Essas três civilizações globais foram essencialmente moldadas por Bizâncio — cada uma delas adotando, de maneira altamente seletiva, um aspecto seu. Este livro celebra tanto a energia e o dinamismo dessas três culturas mais jovens quanto a extraordinária riqueza da cultura bizantina. De Bizâncio para o mundo se divide, pois, em três partes. A primeira, Parte, “Bizâncio e o Ocidente”, trata do legado de Bizâncio à civilização ocidental, fundamentalmente a transmissão da literatura da Grécia antiga. Enquanto os ocidentes latino e grego vegetavam na Idade Média, os eruditos bizantinos cuidavam de preservar zelosamente os clássicos gregos. Quando, na aurora do Renascimento, os primeiros humanistas italianos começaram a ansiar pelo conhecimento da Antiguidade greco-romana, lá se foram os bizantinos à Itália lhes ensinar a literatura da Grécia antiga. Não fosse por esse pequeno, porém dinâmico grupo de professores humanistas bizantinos, a literatura grega poderia ter se perdido para sempre quando os turcos conquistaram Constantinopla em 1453.1
Os termos humanismo e humanista têm sido usados de várias formas desde meados do século XIV, quando o poeta italiano Petrarca recuperou o antigo conceito de humanitas, usado pelo escritor romano Cícero como equivalente do grego paideia, “educação”. Nas universidades italianas de fins do século XV, os professores de studia humanitatis — literalmente “estudo da humanidade”, um plano de estudos que incluía gramática, retórica e filosofia antigas — eram chamados de humanistas. A partir daí, os eruditos alemães do século XIX cunharam o termo humanismus. A maioria dos eruditos renascentistas, a começar por Petrarca, usaria esse termo somente para designar o estudo e o estudioso da literatura e das civilizações grega e latina antigas no Ocidente. Neste livro, os termos são aplicados a Bizâncio e a seus eruditos clássicos, antes e depois de Petrarca. Algumas autoridades modernas contestaram tal uso como anacrônico, além de apagar algumas diferenças importantes. Contudo, ele me parece uma boa maneira de enfatizar aquilo que os “humanistas” bizantinos tinham em comum com seus congêneres italianos: um profundo interesse pelo mundo da Antiguidade clássica. 1
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A segunda parte, “Bizâncio e o Mundo Islâmico”, volta no tempo para descrever a ascensão do Império Árabe islâmico em terras outrora bizantinas no Oriente Médio. Muito antes de os italianos redescobrirem a Grécia antiga, os árabes adotaram-lhes a ciência, a medicina e a filosofia, apoiando-se nessas obras para fundar o iluminismo árabe, reconhecido como a idade de ouro da ciência islâmica. Esses textos vieram basicamente de Bizâncio, assim como os eruditos que os traduziram e ensinaram. A repressão, por parte das autoridades religiosas, da inquirição racionalista sobre a qual se baseavam a ciência e a filosofia da Grécia antiga, acabou levando à rejeição do seu legado pelo mundo islâmico. Na terceira parte, “Bizâncio e o Mundo Eslavo”, é abordado o aspecto religioso do legado bizantino. Séculos de obstinado trabalho missionário bizantino transformaram os eslavos do sul e do leste de invasores incultos em grandes defensores do cristianismo ortodoxo. Convertendo primeiramente os búlgaros, depois os sérvios e finalmente os russos, os monges bizantinos e eslavos trabalharam juntos para criar o que um importante erudito moderno chamou de “a comunidade bizantina”.2 Essa entidade cultural pan-eslava, que transcendia limites nacionais mesclando tradições monásticas ortodoxas de contemplação mística com um enérgico zelo missionário, remodelou por completo o mundo tal como existia ao norte de Bizâncio. Embora essas histórias estejam aqui contadas uma de cada vez, o leitor deve ter em mente que elas aconteceram, em sua maior parte, simultaneamente. Pareceu-me melhor contá-las na ordem em que começam. Seus clímaces, porém, se dão numa ordem diferente. A primeira parte começa com o ocaso da Antiguidade greco-romana e vai até sua descoberta humanística nos séculos XIV e XV. A segunda está focada na ascensão da civilização islâmica, do século VII ao IX, à sombra de Bizâncio. A terceira tem sucessivos clímaces narrativos entre os séculos IX e XIV, período em que o mundo eslavo se amalgamou para assumir o lugar de legítimo herdeiro de Bizâncio. Para uma visão geral dos desenvolvimentos nessas três áreas, sugerimos ao leitor recorrer ao quadro cronológico da página 17.
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A expressão é de Dimitri Obolensky.
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PRÓLOGO
um canto retirado de Istambul, aninhada sob as compactas muralhas terrestres da Cidade Velha, bem perto de onde elas começam a descer até o Corno de Ouro, há uma pequena Igreja ortodoxa junto a uma praça tranquila. Os guias turísticos a chamam de Kariye Camii, versão turca de seu nome grego bizantino, mais antigo — igreja de São Salvador em Chora. Mais ou menos o equivalente à gíria estadunidense in the sticks3, o qualificativo “em Chora” exprime a localização periférica da igreja em relação ao movimentado coração urbano da Cidade Velha. A cidade moderna — vibrante, suja, caótica, eletrizante — se estendeu para além das antigas muralhas terrestres, mas a igreja de Chora permanece totalmente à margem das sendas que conduzem a maior parte dos turistas a atrações maiores e mais conhecidas, como a basílica de Santa Sofia, a Mesquita Azul e o palácio Topkapi. O exterior despojado de Chora não disputa a atenção dos passantes com as recém-restauradas casas do período otomano que ficam de frente para a praça, uma convertida em hotel, outra em um agradável café. No entanto, os felizardos que a incluírem em seus roteiros não esquecerão tão cedo os ousados e dinâmicos afrescos que lhe adornam o teto,
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Na periferia. (N. T.).
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nem os graciosos e delicados mosaicos que lhes cobrem as paredes, todos cuidadosamente restaurados na década de 1960. A qualidade e a força emotiva das cenas e passagens do Velho e do Novo Testamento ali retratados são eloquentes testemunhos das realizações da civilização que floresceu na cidade antes da chegada dos turcos. A Igreja e seu monastério foram provavelmente construídos ainda nos séculos VI e VII, passaram por várias restaurações, mas seu estado era péssimo no começo do século XIV. O monastério há muito se acabou. A igreja que ainda existe é, quase inteiramente, obra de um único homem, um abastado grego bizantino chamado Teodoro Metochites, que financiou e supervisionou a total renovação da igreja e do monastério entre os anos de 1316 e 1321. Datam dessa época os mosaicos e os afrescos de Chora, estes rapidamente pintados sobre gesso ainda úmido. Melhor, mais concentrado e mais bem-preservado exemplo de arte bizantina ainda existente, a igreja de Chora é também o registro material de uma fase nova e surpreendente na longa história das realizações artísticas do império. Mais de 1.500 quilômetros a oeste, o pintor italiano Giotto di Bondone — contemporâneo quase exato de Metochites — acabara de concluir seu ciclo de afrescos na capela Arena, em Pádua, obraprima hoje reconhecida como pioneira da revolução artística que foi a Renascença italiana. Seguindo a pista da clara semelhança entre esses dois ciclos de afrescos, os historiadores da arte sugeriram que eles compartilham a mesma estética humanista e o renovado interesse pela representação realística da figura humana. Para alguns, esse interesse remonta a Bizâncio, mais exatamente a um período de renovação da arte bizantina que culminou em Chora e ajudou a deflagrar a revolução artística que se seguiu no Ocidente. A Renascença italiana foi prefigurada por um movimento análogo, menos conhecido, vivido pela Bizâncio de Metochites, sobre a qual o eminente bizantinista Sir Steven Runciman, falecido em 2000, aos 97 anos de idade, escreveu uma pequena pérola intitulada A última Renascença bizantina. Outros historiadores a chamam de Renascença Paleóloga — nome da dinastia que governou o império durante os dois últimos séculos de sua existência.
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Existem óbvias e importantes diferenças entre a Renascença italiana e a bizantina. É muito significativo que reconheçamos Giotto, mas não o artista que dirigiu a restauração de Chora, inteiramente creditada, por essa mesma razão, ao seu rico patrono Metochites. Os italianos da época se desvencilhavam da visão de mundo medieval de um modo que os bizantinos não chegariam a fazer antes que seu tempo se esgotasse. Bastaria a restauração de Chora para que Teodoro Metochites tivesse seu nome lembrado pela posteridade. Mas ele é também considerado o fundador da Última Renascença bizantina. Mais importante intelectual de seu tempo, Metochites foi um escritor de notável erudição, além de poderoso homem de governo, tendo servido durante quase um quarto de século como chanceler do imperador Andrônico II Paleólogo. Tal como a maioria dos bizantinos ilustrados, Metochites foi, pelos padrões modernos, um tremendo falastrão. Até mesmo os normalmente prolixos bizantinos achavam repetitiva, jactanciosa e muitas vezes completamente impenetrável sua prosa grega pretensamente classicista. Todos os seus escritos sobrevivem, exceto as cartas, destruídas por um incêndio em 1671, perda que não há de ser chorada pelos que hoje labutam para entender sua obra: densos comentários sobre Aristóteles, tratados astronômicos, poemas flácidos, tépidas vidas de santos, pomposas orações e, acima de tudo, páginas e páginas de ensaios diversos sobre história e literatura grega. Contudo, os eruditos modernos também descobriram em Metochites pepitas de originalidade e descortino liberal, duas qualidades que não se têm como encontradiças entre escritores bizantinos. Ele chegou a ser chamado de humanista e seus interesses literários tidos como complementares aos valores artísticos refletidos nos mosaicos e afrescos de Chora. Tal como sua congênere italiana, a Última Renascença bizantina foi um movimento tanto literário e intelectual quanto (ou ainda mais que) artístico que bebeu na fonte do mundo greco-romano précristão. Em sua piedosa apreciação das novas imagens de Chora, Metochites era desapaixonadamente convencional. Em contraste, era todo eloquência e ardor para com os manuscritos seculares, clássicos da literatura
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grega com que abasteceu a biblioteca do monastério de Chora, agora a melhor da cidade. Era a sua coleção pessoal, doada com a condição de que servisse também como biblioteca pública. Metochites considerou-o um ato de filantropia mais importante que qualquer outro, como diz explicitamente numa longa carta de advertência aos monges de Chora: “Em consideração a mim”, roga ele em conclusão, “mantenham em segurança os depósitos dessa imensa riqueza, a saber, estes livros inapreciáveis”, preservando “com o maior cuidado estes verdadeiros tesouros que hão de ser de grande valia para os homens de épocas vindouras”. Quando um neto rebelde destronou Andrônico II em 1328, Metochites foi destituído de seu poder e riquezas. Depois de uma breve temporada de prisão e exílio, ele tornou-se monge no monastério de Chora, como era o costume bizantino, sob o nome de Theoleptos. Morreu lá poucos anos depois, com pouco mais de 60 anos de idade. Embora o paradeiro dos livros de Metochites seja desconhecido, em sentido mais geral suas palavras não poderiam ser mais proféticas: em poucas décadas o Ocidente começaria sua lenta e hesitante redescoberta da literatura da Grécia antiga. A percepção de que tais obras clássicas só estavam disponíveis em Bizâncio levaria homens como Petrarca, Boccaccio e seus sucessores a formar uma aliança com os humanistas bizantinos, herdeiros intelectuais de Metochites. Durante cerca de um século, enquanto os remanescentes do império desmoronavam ao seu redor, os professores bizantinos e seus alunos italianos salvaram a literatura da Grécia antiga da destruição em mãos dos conquistadores turcos. A dádiva bizantina — os clássicos gregos — propiciou que a promessa do humanismo renascentista fosse cumprida, permitindo ao Ocidente reclamar o pacote literário que constitui o alicerce de sua civilização. É assustador imaginar o mundo sem essas obras e inquietante perceber a fragilidade da linha da qual elas pendiam sobre o vazio.
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