Sy lv ia Town s e n d Wa r n e r
Lolly Willowes
Tradução Regina Lyra
Rio de Janeiro | 2013
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Parte 1
Quando a morte levou-lhe o pai, Laura Willowes foi morar em
Londres com o irmão mais velho e a família dele. — É claro — disse Caroline — que você ficará conosco. — Mas vou atrapalhar seus planos. Serei um grande estorvo. Têm certeza de que me querem? — Ora, querida, naturalmente. Caroline falou com afeto, mas seus pensamentos estavam em outro lugar. Neles, ela já voltara a Londres para comprar um edredom para a cama do pequeno quarto de hóspedes. Será que puxando a penteadeira para perto da porta sobraria espaço para encaixar uma escrivaninha entre ela e a lareira? Ou seria preferível uma secretária, com suas gavetas extras? Sim, isso mesmo. Lolly poderia trazer a pequena escrivaninha de nogueira com os puxadores falsos de um lado e o tampo que subia de chofre quando se apertava a mola ao lado do tinteiro. O móvel pertencera à mãe de Lolly, e Lolly sempre fizera uso dele, motivo pelo qual Sibyl não faria objeções. Com efeito, Sibyl não tinha direito algum a reclamá-lo. Estava casada com James havia dois anos apenas, e, se a escrivaninha tivesse deixado alguma marca no papel de parede
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da salinha, bastaria pôr algo em seu lugar. Samambaias e plantas em vasos cumpririam bem esse propósito. Lolly era uma criatura meiga, e as meninas a adoravam; logo ela estaria adaptada ao seu novo lar. O pequeno quarto de hóspedes decerto faria muita falta. Não podiam dar a Lolly o grande, e, dos dois, o pequeno era o mais indicado para os hóspedes comuns. Seria por demais extravagante lavar dois lençóis grandes de linho por causa de um único convidado que não se demorava mais que duas ou três noites. Ainda assim, Henry tinha razão — Lolly devia ir morar com eles. Londres seria uma mudança bem-vinda para ela, que conheceria pessoas gentis e teria mais chances de se casar. Lolly estava com vinte e oito anos. Precisava se apressar se queria encontrar um marido antes dos trinta. Pobre Lolly! O preto não a favorecia em nada, deixando-a pálida. Os olhos cinza-claro ficavam ainda mais desbotados e atônitos debaixo daquele chapéu preto que lembrava um cogumelo e em nada a enfeitava. Roupas de luto compradas numa cidade provinciana não podiam mesmo causar alguma satisfação. Enquanto tais pensamentos povoavam a cabeça de Caroline, Laura não pensava em coisa alguma. Colhera um gerânio vermelho e se ocupava em colorir o pulso esquerdo com a seiva das pétalas esmagadas. Do mesmo jeito colorira o rosto pálido, quando era mais jovem, antes de se inclinar sobre o tanque da estufa para conferir a própria aparência. O tanque da estufa, porém, apenas lhe devolvera a imagem de uma Laura sombria e soturna, tão sombria e soturna quanto a mulher do velho quadro sacro pendurado na parede da sala de jantar ao qual todos se referiam como “o Leonardo”.
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— As meninas ficarão encantadas — observou Caroline. Laura despertou do devaneio. Estava tudo acertado, então, e ela iria morar em Londres com Henry e a esposa, Caroline, e as filhas, Fancy e Marion. Tornar-se-ia moradora da casa imponente em Apsley Terrace, onde até hoje não passava de uma cunhada provinciana em visita. Reconheceria um detalhe especial na aparência daquela fachada que lhe permitiria ter certeza de estar no lugar certo sem precisar conferir o número acima da porta. Uma vez lá dentro, saberia, sem hesitação, aonde levava cada uma das portas marrons lustrosas e não mais se importaria com a localização da cisterna, algo que tanto a perturbara durante uma noite de insônia em que havia tentado refazer mentalmente a planta da casa. Tomaria ar no Hyde Park e observaria as crianças em seus pôneis e as damas elegantes passeando em Rotten Row, além de ir ao teatro de cabriolé. A vida em Londres era movimentada e excitante. Havia lojas, desfiles da Família Real e dos desempregados, o túnel dourado em Whiteley e a iluminação feérica das ruas à noite. Quando pensava nos postes de luz, tão imparciais, tão imperturbáveis, em seus diminuendos imponentes, Laura se sentia intimidada sob essa vigilância constante. Sua sombra passava de um a outro enquanto ela palmilhava as ruas e os lugares desconhecidos — que, no entanto, logo se tornariam familiares —, sujeitando-se aos imperativos secretos do destino; não demoraria para encará-los com naturalidade, como fazem os londrinos. Em Londres, porém, não haveria estufa com um tanque espelhado, não haveria um celeiro cheio de maçãs nem barracão de ferramentas cheirando a terra cálida, com buquês de magnólias pendendo do teto, ou sementes de girassol numa
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jardineira de madeira e bulbos em grossos sacos de papel e rolos de barbante alcatroado e lavanda secando em uma bandeja de chá. Ela teria de abandonar tudo isso ou tão somente aproveitar essas coisas como visita, a menos que James e Sibyl por acaso achassem, como achavam Henry e Caroline, que, sem dúvida, seu lugar era com eles. Sibyl dissera: — Lolly querida! Então, Henry e Caroline vão levá-la para morar com eles... Você nos fará uma falta enorme, mas, é claro, há de preferir morar em Londres. A velha Londres, encantadora com sua bruma pitoresca e toda aquela gente interessante e tudo o mais. Na verdade, tenho inveja de você. Mas não abandone Lady Place. Venha nos fazer visitas longas, para que Titus não se esqueça da tia. — Você vai sentir saudade de mim, Titus? — indagou Laura, abaixando-se para encostar o rosto contra o babador que pinicava e a testinha macia e morna. O sobrinho agarrou-lhe o dedo com as mãos. — Garanto que ele há de sentir saudades do seu anel, Lolly — disse Sibyl. — Você vai ter de afiar seus dentinhos no velho coral depois que a tia Lolly se for, não é, meu anjinho? — Dou a ele o anel, se você acha mesmo que lhe fará falta, Sibyl. Os olhos de Sibyl brilharam, mas ela atalhou: — Não, Lolly, eu jamais aceitaria. Imagine, é uma joia de família! Anos mais tarde, tendo crescido, se casado e perdido o marido na guerra, depois de dirigir um caminhão para o governo e voltar
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a se casar movida pelo patriotismo, Fancy Willowes diria a Owen Wolf-Saunders, seu segundo marido: — Como as mulheres eram pouco empreendedoras antigamente! Tia Lolly, por exemplo. Vovô lhe deixou uma pensão de quinhentas libras anuais, e ela beirava trinta anos quando ele morreu, mas não achou nada melhor para fazer do que vir morar com papai e mamãe e ficar com eles para sempre. — A situação das mulheres solteiras era muito diferente naquela época — respondeu o sr. Wolf-Saunders. — Femme seule, femme couverte, e todas essas tolices antigas. Mesmo em 1902 existiam alguns espíritos progressistas que se perguntaram por que a srta. Willowes, razoavelmente abastada e com pouca chance de se casar, não optara por morar sozinha e se dedicar a uma atividade artística ou intelectual. Essas possibilidades não ocorreram a qualquer dos parentes de Laura. Com o pai morto, esperava-se dela que se integrasse ao lar de um ou de outro irmão. E Laura, sentindo-se um pouco como uma parte do patrimônio deixada de fora do testamento, se dispôs a ser alocada de acordo com as necessidades da família. O ponto de vista parecia antiquado, mas os Willowes eram uma família conservadora, apegada às tradições. Preferência, não preconceito, mantinha-os fiéis ao passado. Dormiam em camas e se sentavam em cadeiras cujo conforto os convencia a respeitar o bom-senso dos próprios antepassados. Constatando que a madeira bem escolhida e o vinho bem selecionado melhoravam com a idade, acreditavam que a mesma lei se aplicava aos bons costumes. Moderação, polidez, os prazeres do espírito e uma simplicidade educada eram padrões de comportamento aprendidos com o exemplo de seus ancestrais.
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A obediência a esses padrões não levara nenhum membro da família Willowes à glória. Talvez a tia-bisavó Salomé fosse quem mais próximo chegara da fama. A família gostava de se gabar comedidamente porque o rei Jorge III adorava os folheados da tia-bisavó Salomé. E o livro de orações da tia-bisavó Salomé, com as missas para o rei Carlos, o Mártir, e pela Restauração da Família Real e a prosperidade da Casa de Hanover — um belo exemplo de piedade imparcial —, era sempre usado pela esposa do chefe da família. Salomé, embora casada com um cônego de Salisbury, descalçara as luvas bordadas, arregaçara as mangas e entrara na cozinha para preparar a massa folheada para a mesa de Sua Majestade, as pelancas envoltas em renda de Veneza balançando sobre a tigela enfarinhada. Era uma súdita leal, uma fiel cristã praticante e uma boa dona de casa. Os Willowes tinham motivos para sentir orgulho dela. Titus, seu pai, fizera uma viagem às Índias e trouxera com ele um periquito verde, o primeiro da espécie a ser visto em Dorset. O periquito recebeu o nome de Ratafee e viveu quinze anos. Quando morreu, foi empalhado; empoleirado, como em vida, em seu aro de metal, pendia da cornija da cristaleira, de onde vigiou quatro gerações de Willowes com seus olhos de vidro. No início do século XIX, um olho caiu e se perdeu. O olho que o substituiu era maior, mas inferior tanto em termos de brilho quanto de expressão, dando a Ratafee um olhar bastante desconfiado, que nem por isso comprometeu a estima de que gozava. À sua maneira humilde, o pássaro ganhou fama na localidade provinciana, e a família reconheceu o fato cedendo-lhe um pequeno espaço na própria história. Ao lado da cristaleira e debaixo de Ratafee ficava a harpa de Emma, uma harpa verde ornamentada, ao estilo davídico, com
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volutas douradas e folhas de acanto. Na infância, Laura, às vezes, entrava sorrateiramente na sala e puxava as cordas ainda incólumes. Elas respondiam com uma voz melancólica e, abatida, e Laura adorava meter medo em si mesma imaginando que o fantasma de Emma voltara para fazer música com seus dedos gelados, entrando tão sorrateiramente quanto ela na sala vazia. Mas Emma era um fantasma bonzinho. Morrera de consumição, e, quando jazia inerte com um buquê de campânulas sob as mãos entrelaçadas, cortaram um cacho de seus cabelos para incrustá-lo numa tapeçaria que retratava um salgueiro cujos ramos suspiravam sobre um túmulo forrado de cetim branco. — Isso — dizia a mãe de Laura — é uma recordação da sua tia-avó Emma, que morreu. E Laura se enchia de pena da pobre moça que lhe parecia ser, de todos os membros da família, a única que tivera a infelicidade de morrer. Henry, nascido em 1818, avô de Laura e sobrinho de Emma, tornou-se o chefe do clã Willowes aos vinte e quatro anos apenas, tendo perdido para a varíola o pai e o irmão mais velho — e solteiro —, no espaço de quinze dias. Na juventude, Henry exibira um temperamento aventureiro e pouco respeitara as tradições, motivo pelo qual foi uma sorte que, como cadete, pudesse levar a vida como bem entendesse. Aproveitara essa liberdade para casar-se com uma gaulesa e fincar raízes próximo a Yeovil, onde o pai lhe comprou um quinhão de sociedade numa cervejaria. Seria de esperar que, ao se tornar chefe da família, Henry abandonasse, se não a esposa gaulesa e a cervejaria, ao menos a moradia em Somerset, retornando à terra natal. Mas não foi o que ele fez. Apegara-se ao lugar
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em que vivera durante os primeiros anos de casado. Uma brincadeira de mau gosto do tio almirante, que comentou que Henry cortejava uma gaulesa que usava chapéu de bruxa e entrava na igreja carregando os sapatos nas mãos, levou-o a romper secretamente com a família e — o motivo mais relevante de todos — Lady Place, uma mansão pequena e sólida, que durante muito tempo cobiçara, dizendo a si mesmo que, se fosse rico o bastante, faria da esposa sua castelã, acabara de ser posta à venda. A obstinação dos Willowes, que ao longo de tanto tempo mantivera intacta a casa em Dorset, seria agora responsável pela transferência desta para o outro lado da fronteira do condado. Vendeu-se a velha residência, e a mobília e os pertences de família foram acomodados em Lady Place. Várias cordas da harpa de Emma se partiram, algumas penas se soltaram do rabo de Ratafee, e a sra. Willowes, que havia sido criada como evangélica, passou muitos domingos aflita ante as coisas estranhas que encontrou no livro de orações de Salomé. Em essência, porém, a tradição dos Willowes enfrentou muito bem a mudança. As mesas e cadeiras e armários permaneceram arrumados tal qual eram antes; os quadros foram pendurados na mesma ordem nas novas paredes, e as colinas de Dorset ainda podiam ser admiradas das janelas, embora agora o fossem daquelas viradas para o sul e não das viradas para o norte, como antes. Até mesmo a cervejaria, apesar de contrariar a tradição, acabou adquirindo a pátina do tempo e se tornou parte integrante do estilo de vida dos Willowes. Henry Willowes teve três filhos e quatro filhas. Everard, o primogênito, casou-se com uma prima de segundo grau, a srta. Frances D’Urfey, que trouxe para o clã de Somerset outros bens
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do patrimônio dos Willowes: um conjunto precioso de granadas; um serviço de chá bege e dourado que lhe deixara o almirante, um amante de porcelanas que legara como dote a todas as sobrinhas e sobrinhas netas porcelanas Worcester, Minton e orientais; e dois quadros a óleo de mestres italianos que o Titus mais jovem, irmão de Emma, comprara em Roma enquanto viajava para tratar da saúde. Frances deu a Everard três filhos: Henry, nascido em 1867; James, nascido em 1869; e Laura, nascida em 1874. Quando Henry nasceu, Everard mandou envelhecer doze dúzias de Porto para celebrar a maioridade do filho. Tinha orgulho da cervejaria e declarou que cerveja era a bebida apropriada para os ingleses de todas as classes sociais, preferível aos vinhos estrangeiros. O Porto, porém, como o sherry, escapava a tal regra; seu desprezo visava, sobretudo, os claretes. Outras doze dúzias de Porto foram guardadas para James, e os indícios indicavam que tudo acabaria por aí. Everard era um grande admirador do sexo feminino. Ansiava por uma filha, e, quando esta chegou, foi ainda mais amada por ter nascido quando o pai já quase abandonara a esperança de tê-la. A felicidade que sentiu na ocasião, porém, não podia ser manifestada de forma tão ostensiva. Não ficava bem guardar vinho do Porto para Laura. Finalmente lhe ocorreu a solução para o problema. Usando o pretexto misterioso e inadequado de estar ficando careca, Everard partiu para Londres, retornando com um minúsculo colar de pérolas, pequenas e absolutamente idênticas, que se ajustou com perfeição ao pescoço do bebê. A cada ano, explicou ele, o colar poderia ser aumentado até caber no pescoço de uma mulher adulta no dia de seu primeiro baile. O baile, acrescentou,
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deveria acontecer no inverno, pois ele desejava ver Laura envolta em arminho. — Meu Deus — exclamara a sra. Willowes —, a pobrezinha vai parecer um guarda real, um autêntico Beefeater! Everard, contudo, não se deixou dissuadir. O arminho empalhado que vira na infância continuava a representar em sua lembrança a princesa encantada ideal, de tão puro e esbelto, com a cabecinha arrematando graciosamente o pescoço comprido. — Uma doninha! — exclamou a esposa. — Como é possível, Everard, alguém gostar de um bicho desses? Laura escapou à sina comum aos recém-nascidos, já que nunca exibiu qualquer vestígio de rubor. Para Everard, era a própria encarnação do seu arminho. Apaixonou-se pela feminilidade da filha desde o momento em que lhe pôs os olhos. — Que menina graciosa! — exclamou quando a trouxeram pela primeira vez para que a visse, envolta em mantas e reclamando chorosa da claridade intensa de uma manhã glacial de dezembro. Três dias depois veio o degelo, e o sr. Willowes partiu para caçar. Voltou, porém, depois de matar o primeiro animal. — Foi uma raposa — explicou. — Uma linda raposa novinha. Fez com que eu me lembrasse da minha e voltei para ver como ela estava se portando. Trouxe a cauda. Laura cresceu praticamente como filha única. Mal deixara de ser bebê quando os irmãos entraram na escola. Quando vinham para casa nas férias, a sra. Willowes lhes dizia: — Brinquem com cuidado com Laura, que alimentou os coelhos de vocês diariamente enquanto estavam fora. Prestem atenção para que ela não caia no lago.
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Henry e James se esforçavam ao máximo para seguir as instruções da mãe. Quando Laura se aproximava demais da beira do lago, um ou outro em geral se lembrava de chamá-la; e, antes de voltarem para casa, Henry, por precaução, munido de um chumaço de grama, limpava qualquer vestígio incriminatório de limo que por acaso estivesse grudado nos sapatos de Laura. Era, porém, quase impossível brincar com cuidado com uma irmã tão mais novinha. Ambos desempenharam a tarefa fraterna de ensiná-la a jogar bola, e, quando brincavam de cavaleiros ou de índios, os dois lhe reservavam, atenciosamente, um papel feminino passivo, o que permitia preservar a honra sem afetar por demais o desenrolar da ação, caso mais tarde se descobrisse que a princesa cativa ou a pele-vermelha leal havia se esquivado discretamente para fazer companhia a Brewer na cocheira ou a Oliver Cromwell, o sapo que morava debaixo da copa castanha de um pé de violetas junto ao poço abandonado. Um dia, com efeito, quando Laura fazia o papel de uma princesa cativa amarrada a uma árvore, os irmãos, por demais envolvidos em uma série de lutas travadas por sua causa, se esqueceram de resgatá-la antes de jurar fidelidade e partir para a Terra Santa. O sr. Willowes, ao voltar da cervejaria para casa em meio a uma nuvem de mosquitos em um dado final de tarde, por acaso passou pelo pomar para ver se os coelhos haviam atacado mais brotos de suas plantas. Ali encontrou a filha, sentada satisfeita sob grilhões feitos de feno, contando para si mesma a história de uma cobra que não tinha capa de chuva. O sr. Willowes ficou extremamente envergonhado ao entender, pelo relato tranquilo de Laura, o que acontecera. Tirou-lhe os sapatos e massageou seus pés.
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Depois, levou-a para o escritório que tinha em casa e deu ordens para que preparassem imediatamente uma jarra de limonada com açúcar para a filha. Laura tomou a limonada sentada no colo do pai, enquanto ele lhe falava da nova doninha. Quando os gritos de guerra anunciaram a chegada de Henry e James, o sr. Willowes depositou Laura na poltrona de couro e saiu para encontrá-los. Os gritos de guerra foram diminuindo até cessar por completo ante a visão do rosto sério do pai. O crepúsculo pareceu se fechar sobre os dois com reprovação, quando o pai lhes recordou que já passava da hora do jantar e os fez saber que, se não houvesse casualmente esbarrado na filha, Laura ainda estaria amarrada ao tronco da pereira Bon Chrétien. Isso se deu em um dos dias que a sra. Willowes passara acamada, padecendo de dor de cabeça. — Sempre acontece alguma coisa ruim quando estou indisposta — queixou-se a pobre senhora. Foi também em um desses dias que Everard deu a Laura para comer as cerejas em calda do bolo que estava na sala de estar. Laura imediatamente passou mal, e mandaram o cavalariço sair em disparada na égua de Everard para chamar o médico. A sra. Willowes jamais se recuperou totalmente do parto de Laura. Com o tempo, sua saúde foi ficando cada vez mais precária, embora não a tornasse ranzinza. Raramente se sentia disposta a receber visitas, razão pela qual Laura cresceu em um ambiente silencioso. Senhoras vestidas com sedas ou peles, dependendo da estação do ano, apareciam para visitar, sentando-se no sofá e comentando:
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— Laura já está uma mocinha. Logo, imagino, há de ir para a escola. A sra. Willowes ouvia as amigas com os olhos semicerrados. Inclinando, com reprovação, a cabeça para o lado, a dona da casa respondia de forma evasiva. Em seguida, fechava em definitivo os olhos, convencendo as visitas a partir, e chamava Laura: — Querida — dizia ela —, suas saias não estão ficando um tantinho curtas? A babá, então, descia a bainha das saias de algodão e de lã, e alguns meses se passavam antes que as senhoras voltassem ao ataque. Todas gostavam da sra. Willowes, mas concordavam quanto à ideia de que a amiga precisava assumir as responsabilidades que lhe cabiam, sobretudo no tocante à filha. Não era correto deixar a menina entregue à própria sorte. Pobre srta. Taylor, uma excelente criatura. Não era fato que viera com referências de todas as escolas de renome das redondezas? Mas três horas diárias com a srta. Taylor e as aulas de dança de Mme. Brevet no inverno não supriam, não podiam suprir, todas as necessidades de Laura, que carecia da companhia de meninas da sua idade ou acabaria virando uma excêntrica. Outra pequena sugestão à mãe decerto abriria os olhos da pobre senhora. No entanto, apesar de ouvir seus conselhos com a expressão agradecida de quem está prestes a ser convencida e de encher suas xícaras de chá com uma bela quantidade daquele creme delicioso, a sra. Willowes deixava caírem no vazio as sugestões das senhoras vestidas com seda e com peles, pois Laura continuava em casa quando a mãe morreu. Em seus últimos anos de vida, a sra. Willowes se tornou cada vez mais competente na tarefa de fugir às próprias responsabilidades,
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e sua morte não pareceu senão a derradeira e perfeita expressão de tal competência. Era como se houvesse dito, bocejando da forma delicada como faz um gato: “Acho que vou me retirar para a minha tumba”, antes de deixar a sala arrastando atrás de si o xale branco. Laura pranteou a mãe usando saias que chegavam quase até o chão, pois a srta. Boddle, a costureira da família, era dona de grande sensibilidade e não achava que pernas à mostra combinassem com luto. Com efeito, as de Laura eram muito esbeltas e ágeis e gostavam de subir em árvores e pular feixes de feno, não tendo desejo algum de se aposentar do mundo e pertencer a uma mocinha. Quando, porém, vestiu as roupas novas de odor tão estranho e, olhando para o espelho, se viu triste e adulta, Laura aceitou o inevitável. Mais cedo ou mais tarde, teria de se sujeitar à condição de moça respeitável. E lhe pareceu conveniente que a mudança chegasse em um momento solene em lugar de vir acompanhada da agitação convencional e educada de uma animada “estreia no mundo” — expressão singular que, segundo seu entendimento, uma vez esvaziadas as garrafas de champanhe e despido o esvoaçante vestido de baile, mais parecia significar uma espécie de aprisionamento. Na verdade, Laura foi recompensada pela perda da liberdade. Porque precisava de consolo, Everard precisava de uma mulher para consolá-lo, e, encorajada pelas insinuações da srta. Boddle, Laura conseguiu rapidamente convencê-lo de que era capaz de prover o genuíno consolo feminino de que ele precisava. Era fácil, muito mais fácil do que imaginara, ser adulta; ser racional e vigilante, agir com vagar e pensar bem antes de abrir a boca. Suas
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mãos já pareciam muito mais brancas pousadas sobre o colo enlutado. Não podia assumir o lugar da mãe — isso era tão impossível quanto tocar piano como ela, pois a sra. Willowes tivera aulas com um ex-pupilo de Field e tinha um jeu perlé. Podia, porém, criar seu próprio lugar. Assim, Laura se comportou muito bem — segundo os comentários do clã Willowes, unânime e aprovador — e cuidou de seus afazeres, chorando apenas quando se via sozinha na estufa, onde um par de velhas luvas de jardinagem lhe recordava a forma das mãos da mãe. Esse comportamento resultou mais importante ainda, pois nenhum dos irmãos estava presente quando a sra. Willowes morreu. Henry, agora membro da prestigiosa Sociedade de Advogados, acabara de pedir em casamento uma tal srta. Caroline Fawcett. Quando retornou a Londres após o enterro, era impossível deixar de supor que ele estivesse fugindo da sombra que pesava sobre Lady Place para mergulhar na glória particular de um noivado conveniente. Deixou a cargo do pai e da irmã a tarefa de encontrar consolo em se consolarem um ao outro. Isso porque, embora James tivesse permanecido com os dois e embora a sua tristeza fosse incomensurável, pai e filha não podiam esperar grande ajuda de James. O rapaz estava na Alemanha estudando química quando Everard e Laura lhe enviaram o telegrama. Tendo calculado o tempo que ele levaria para chegar a Lady Place, planejaram como recebê-lo da maneira mais confortadora, pois o sopro gélido do luto já os obrigava a fortalecer os laços familiares que os uniam. Ao ouvir o ruído da charrete na entrada de casa e o farfalhar dos rododendros úmidos, pai e filha trocaram um olhar tranquilizador, pensando no
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fogo a crepitar na lareira do quarto de James e no jantar cuidadosamente escolhido que o aguardava. Quando, porém, o viram entrar e olharam para o rosto vermelho e contorcido, ambos se impressionaram com a austeridade de uma dor vivenciada de forma tão diversa. Nada que pudessem oferecer seria capaz de remediar aquele coração partido. Deixaram-no sozinho e buscaram alento na companhia um do outro, tanto para fugir do sofrimento de James quanto da própria dor. Na companhia do rapaz sentavam-se mudos, como duas crianças comportadas diante de um luto adulto cuja compreensão lhes era impossível. James talvez tenha aceitado essa auto-omissão com uma gratidão silenciosa, ou talvez sequer a tenha notado — impossível dizer com certeza. Pouco depois do seu retorno, ele fez algo tão inédito nos anais da família que somente poderia ser explicado pela extrema exaltação mental que o possuiu: sem consultar ninguém, mudou os móveis de lugar, transferindo do quarto da mãe para o seu um espelho e um canapé forrado de brocado verde-amêndoa. Isso feito, desceu lentamente a escada e se dirigiu até o estábulo, onde Laura e o pai admiravam uma ninhada de filhotes. Contou-lhes, então, o que fizera, falando sem emoção, como se comentasse uma ocorrência trivial. Quando os dois, timidamente, tentaram reagir como se também eles encarassem o fato como algo natural e conveniente, James acrescentou que não pretendia voltar para a Alemanha e, sim, dali em diante, permanecer em Lady Place para ajudar o pai na cervejaria. Everard ficou contentíssimo. Sua fé nos méritos da fabricação de cerveja havia sido rudemente abalada pela recusa do seu primogênito em se envolver na atividade. Mesmo antes de sair da
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