MAONOMICS
Por que os comunistas chineses se saem melhores capitalistas do que nós
LORETTA NAPOLEONI Tradução de Pedro Jorgensen
Rio de Janeiro | 2014
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Podem os acontecimentos no norte da África e no Oriente Médio em 2011 ser tomados como um marco adequado à indispensável avaliação crítica do sistema econômico e político ocidental? Pode tal análise ser efetuada usando-se o modelo asiático de desenvolvimento não como uma alternativa ao tradicional paradigma socioeconômico ocidental, mas como algo distinto, novo, único? Desde o início da globalização, essa nova fórmula tem se mostrado bem-sucedida em todos os países emergentes que a adotaram. Esse inusitado exercício poderia nos ajudar a compreender os nossos erros e encontrar explicações razoáveis para a aparente falta de sintonia entre o nosso modelo econômico e o mundo em que vivemos. Quem sabe poderia também lançar alguma luz sobre a obscura complexidade da economia globalizada. Em nossa caminhada rumo a um mundo multipolar, fica cada vez mais claro que não há um modelo de desenvolvimento ideal, tampouco um sistema econômico e político que sirva a qualquer país. Complexidade gera singularidade. A comparação entre o desempenho econômico de dois modelos distintos de desenvolvimento, o ocidental e o chinês, é, pois, um exercício fundamental, capaz de abrir uma janela sobre o novo mundo e nos dar um vislumbre do futuro. O fato é que, enquanto o Ocidente luta para se recuperar economicamente e o Oriente Médio se incendeia — uma explosão causada pela injustiça econômica e social —, a Ásia cresce aceleradamente. Pela primeira vez em gerações, a riqueza começa a dar 7
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poder às pessoas: O crescimento econômico gera melhores padrões de vida, novas oportunidades de negócios e um grau mais elevado de independência. Entre nós, no entanto, poucos têm notícia do lento movimento rumo à participação política impelido pelo crescimento econômico da Ásia e um número ainda menor está ciente da transformação fundamental, em curso no continente, do paradigma socioeconômico conhecido como “capitalismo e democracia” — um terremoto político causado não por uma revolução, mas pela manutenção de uma forma centralizada de governo que muitos ainda definem como comunismo. Ao mesmo tempo que o vírus da liberdade infecta os países do norte da África — governados por democracias de araque e regimes ditatoriais — e as massas se empenham em derrubar líderes oligárquicos há décadas sustentados pelo Ocidente democrático, a fórmula do autoritarismo oriental combinado à liberdade econômica — que nós no Ocidente há tanto tempo criticamos sem compreender — torna-se uma alternativa atraente ao obsoleto modelo socioeconômico de desenvolvimento ocidental. Faça a si mesmo as seguintes perguntas: Se eu fosse, hoje, um egípcio, qual regime econômico preferiria imitar: o ocidental ou o asiático? Confiaria nas lideranças e corporações ocidentais que há décadas fazem negócios com a elite oligárquica que me oprime e me rouba? Ou buscaria os políticos e empresas dos países emergentes, pessoas que até poucas décadas atrás eram tão pobres e espoliadas quanto eu sou? A máquina de propaganda que cega o mundo quer nos fazer crer que o calvário por que passa o Oriente Médio não tem nada a ver com o nosso modelo político e econômico e, mais ainda, que nós não fomentamos regimes repressivos e ditatoriais fantasiados de seguidores da liberdade econômica e da democracia. Em 2010, a União Europeia vendeu à Líbia de Khadafi quase 400 milhões de euros em armamentos que, em 2011, ele usou contra o seu próprio povo. O preço da nossa 8
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democracia parece ser a defesa de regimes antidemocráticos em países distantes, como a Arábia Saudita, uma monarquia repressiva onde as mulheres têm muito menos direitos que os homens. Imagine as consequências econômicas da queda da Casa de Saud, o segundo maior produtor mundial de petróleo depois da Rússia e o maior exportador para o Ocidente: nosso bem-estar poderia desaparecer num piscar de olhos. A crise do crédito e a recessão expuseram a instabilidade endêmica da nossa economia, evidenciando as suas idiossincrasias e contradições. O levante árabe parece ter revelado a fragilidade das nossas democracias quando privadas da energia abundante e barata fornecida por oligarcas e ditadores que, de quebra, asseguram a solvência da nossa indústria bélica. Numa sociedade verdadeiramente democrática, um mundo ideal, quem compraria as nossas armas e a nossa proteção política? O mundo vem mudando rapidamente, rápido demais para aqueles que se mantêm aferrados a um passado já distante. No espaço de uma década, o Ocidente foi uma vez mais tomado de surpresa por acontecimentos perfeitamente previsíveis. E, uma vez mais, nos sentimos totalmente a descoberto. À medida que as notícias das atrocidades praticadas pelos modernos ditadores árabes contra as suas populações chegam às nossas salas de estar, à medida que a imprensa revela a verdadeira natureza das democracias do norte da África e que Khadafi volta a ser um louco sedento de sangue, os ocidentais veem desvanecer as suas certezas. O Egito é uma democracia, ainda que governada por um ditador; a China é um país comunista, embora defenda o capitalismo. A máquina de propaganda escondeu a tempestade política que se acumulava no norte da África e no Oriente Médio. Focados o tempo todo nas atrocidades e na falta de democracia na China, os nossos líderes e nossos meios de comunicação ignoraram o péssimo currículo de Mubarak, do Egito, em matéria de direitos humanos, a impiedosa repressão da oposição por Khadafi, o roubo da riqueza tunisiana por Ben Ali e muito mais. Essa mesma máquina de propaganda escondeu
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de nós a verdadeira natureza do milagre econômico chinês e as dificuldades do nosso próprio modelo. O mundo está mudando ao ritmo dos trens-bala e nós temos de abrir os olhos para não acabar esmagados sob seus vagões. A demografia está redefinindo o Oriente Médio, uma região altamente instável que experimentou, nas últimas três décadas, um surto de crescimento populacional. Foi a explosão da juventude combinada a pressões econômicas — não o terrorismo islâmico — que pôs abaixo os impiedosos regimes ditatoriais norte-africanos. Não se viram, na Tunísia e no Egito, brandir de espadas contra o Ocidente nem homens barbados pregando a charia, somente jovens armados com iPhones e BlackBerries. Graças ao Facebook, ao YouTube e ao Myspace, eles desafiaram a propaganda tradicional dos meios de comunicação, colocando diante de nós, ocidentais, uma realidade nova e profundamente incômoda. Uma revolução diferente está em curso na Ásia sem que tenhamos a menor ideia de sua natureza e objetivos. Bilhões de asiáticos vêm alcançando os nossos padrões de vida e serão, em pouco tempo, a força motriz de mudanças econômicas e financeiras que causarão grande impacto em nossas vidas cotidianas. Ainda que nunca vejamos a juventude chinesa contestando o status quo, ou que imagens desse gênero nunca cheguem às nossas telas, os nossos destinos estarão firmemente entrelaçados. E, para entender o que nos espera na virada da esquina, precisamos deixar de lado a arrogância e o fanatismo, nos elevar acima da propaganda e olhar para a China e a Ásia com humildade e esperança.
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Quase um quarto de século após o fim da Guerra Fria, as democracias ocidentais se veem de braços dados com a primeira crise econômica da globalização. Enquanto isso, a China comunista consegue não apenas limitar o seu impacto, como tirar partido da contração da demanda mundial para pôr em movimento reformas sociais e econômicas verdadeiramente revolucionárias, como o aumento da segurança no trabalho e o esboço de um novo sistema monetário internacional potencialmente atrelado à sua moeda.1 O “norte verdadeiro” da estabilidade econômica vem se deslocando para a China graças a uma série de cataclismos financeiros que estão redefinindo a estrutura macroeconômica do planeta. O último deles, a crise do crédito e a recessão, catapultou a China para o status de um dos países mais poderosos do mundo. Hoje ninguém pode negar que o “New Deal” chinês foi, nessa imensa tempestade recessiva, a tábua de salvação que impediu que o mundo mergulhasse numa nova Grande Depressão. E muitos estão convencidos de que as mudanças atualmente em curso precipitarão o fim da supremacia econômica dos Estados Unidos. As transformações na China não se limitam, no entanto, à reestruturação da economia com base nos princípios do livre-comércio. O crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) caminha de mãos dadas com reformas sociais e políticas impensáveis sob o maoismo, um estranho par num país ainda comunista. Da defesa dos direitos humanos ao 11
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desenvolvimento de fontes de energia renovável, sem falar do indispensável respeito às regras da Organização Mundial do Comércio (OMC) e das aspirações à democracia participativa, esse país parece plenamente comprometido com a produção de um novo modelo de sociedade. Ainda que a democracia do tipo ocidental não pareça, no momento, figurar entre os objetivos da China, não deixa de ser verdade que, durante pelo menos uma década, o país se distanciou do totalitarismo do pós-guerra para mirar exclusivamente um futuro econômico brilhante. Seria, então, possível falarmos de um capitalismo-comunismo, ou capicomunismo — um híbrido político e econômico que pudesse vir a ser o modelo para o século XXI? Uma visita a cidades como Xangai e Pequim nos proporciona um vislumbre das metrópoles de amanhã e a percepção do que significa a nova modernidade chinesa. O dinamismo dessas cidades é uma autêntica “viagem” para qualquer um, estrangeiros em especial. Milhares de jovens ocidentais escolhem morar em Xangai, onde se sentem às portas de um novo mundo. Quem já viveu algum tempo na China tem a clara percepção da iminência do futuro e a certeza de estar participando da sua criação; para esses, a China representa um viveiro de transformações socioeconômicas e de ideias políticas. As metrópoles ocidentais, ainda atoladas no pós-modernismo, projetam uma imagem totalmente diferente. Uma sensação de decadência permeia as suas instituições; seu mecanismo político está oxidado pelo tempo e pelos efeitos da desregulação. Somos velhos, dizem os semblantes dos usuários de sistemas de transportes a cada dia mais lotados e ineficientes; somos velhos, dizem os nossos jovens, condenados ao trabalho precário e ao desemprego; somos velhos, diz uma Europa cuja perspectiva de riqueza parece reduzir-se ao seu patrimônio histórico e cultural, um continente inteiro convertido no maior museu do planeta. A nossa economia é velha e até a nossa democracia dá sinais de senilidade. Os jovens ocidentais que conseguem emprego recebem salários 12
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demasiado baixos em relação ao custo de vida; seus pais, a geração de ouro dos baby boomers, continuam a sustentá-los. A discriminação contra os imigrantes alocados em serviços de baixa qualificação é a ordem do dia; eles são os bodes expiatórios da inépcia da nossa classe política, já não mais uma elite representativa da vontade popular, mas uma casta exclusivamente empenhada em perpetuar-se no poder. E a imprensa parece incapaz de exercer a liberdade que, no passado, inspirou tantas lutas e custou tantas vidas. Examinando com atenção, torna-se claro que a origem da senilidade ocidental coincide com a do renascimento socioeconômico da China: a queda do Muro de Berlim. Quem, de fato, venceu a Guerra Fria? A vitória de pirro do Ocidente
Retornemos ao fatídico ano de 1989, marcado por dois acontecimentos aparentemente antagônicos: a violenta repressão aos protestos da praça Tiananmen e a queda do Muro de Berlim. Ambos puseram em movimento o processo de globalização e influenciaram as futuras políticas econômicas planetárias. A esquerda ocidental implodiu e o neoliberalismo tornou-se o modelo socioeconômico e político triunfante em todo o mundo. Na euforia da vitória neoliberal, poucos suspeitaram que a globalização poderia representar o fim da supremacia econômica do Ocidente. Vinte anos depois, quando as reformas e ajustes produzidos por esses dois acontecimentos redesenham o mapa geopolítico em favor da China comunista, é fácil ver a queda do Muro de Berlim como uma vitória de Pirro. Há vinte anos, no entanto, as expectativas e a interpretação oficial daquelas traumáticas mudanças eram totalmente diferentes. Até hoje o Ocidente só enxerga, na reação armada de Pequim aos protestos da praça Tiananmen, a repressão violenta da democracia
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ao estilo ocidental, e, na derrubada do Muro de Berlim, o seu triunfo sobre o mundo comunista. O Ocidente ainda sustenta que a Guerra Fria terminou com a clara vitória do sistema democrático; vê como felizardos os ex-soviéticos que adotaram a democracia e desafortunados os chineses que até hoje se conservam comunistas. Em tal cenário, a China substitui o inimigo soviético: um regime ditatorial que não respeita os direitos humanos, um país hipócrita que falsifica dados econômicos e explora abjetamente seus trabalhadores, uma nação inapta ao papel de primeira superpotência do mundo globalizado. Tudo isso se atribui, naturalmente, à falta de democracia, sem a qual não pode haver bemestar nem progresso. O problema é que essa linha de raciocínio repousa sobre vários equívocos, quando não sobre mitos consumados. Considerando-se os objetivos econômicos alcançados nos últimos vinte anos, a China lidou muito melhor com o processo de globalização do que as democracias ocidentais. Desde o distante ano de 1989, o padrão de vida médio na China melhorou radicalmente, ao passo que na Europa Oriental e territórios da antiga União Soviética, onde a democracia ao estilo ocidental se enraizou, a pobreza e o analfabetismo voltaram a crescer. E nem se fale de Iraque e Afeganistão, onde a exportação da democracia pela força das armas levou à guerra civil. Uma das potências que, naquele distante ano de 1989, saíram supostamente “derrotadas” da Guerra Fria hoje apresenta a sua candidatura à liderança da economia globalizada. Um paradoxo? Não. Um erro de interpretação, produto da miopia e da arrogância política do Ocidente, acostumado a ver em cada manifestação de dissenso vinda do mundo comunista — um sistema percebido como antitético ao ocidental — o desejo de copiar o seu modelo de sociedade. Um erro que, vinte anos depois, precisa ser corrigido.
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Os diversos significados de democracia
Ao gritar “democracia” em Tiananmen, como em Berlim, os chineses não estavam exigindo um governo idêntico ao nosso, mas acesso ao nosso padrão de vida. Em 1989, nem os chineses nem os povos aprisionados atrás da Cortina de Ferro sabiam grande coisa sobre a democracia ocidental, da qual só tinham uma visão romantizada, distorcida pelos meios de propaganda ocidental e comunista. O que eles queriam era uma melhora significativa de suas condições econômicas, o que, dada a patente riqueza do Ocidente democrático, confundiam com uma mudança de paradigma político. Era muito difundida a ideia de que os países precisavam adotar a democracia para se tornarem ricos. “Não é com eleições que as pessoas sonham, mas com liberdade econômica”, costumava dizer o presidente do Banco Nacional da Hungria quando trabalhei para ele em 1981. “No pregão dos desejos comunistas, a propriedade privada vale mais do que o direito de voto.” E, em nome dessas conquistas econômicas, as pessoas estão dispostas a tudo. O que faltava ao bloco comunista não eram as urnas, mas a motivação do lucro — exatamente aquilo que Karl Marx descrevia como o fulcro do sistema capitalista e que, como todos sabemos, tem funcionado bastante bem sob governos democráticos. Salvo a China, nenhum país comunista entendeu a força e a importância dessa necessidade econômica. Uma das mais surpreendentes verdades surgidas do reexame do que aconteceu nos últimos vinte anos é que o Muro de Berlim não caiu porque a forma de governo favorita do Ocidente venceu a Guerra Fria, mas porque o então chamado socialismo real não entendeu a teoria marxista. O erro dos soviéticos foi eliminar o lucro da equação econômica, achando que essa amputação era suficiente para dar vida à ditadura do proletariado — a única parte da análise marxista baseada não na observação dos fatos, mas em uma série de hipóteses. Um erro
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de interpretação paradoxal, uma vez que a melhor análise do lucro capitalista é precisamente aquela realizada por Karl Marx. Quem o estudar com atenção verá que ele jamais sonhou em eliminar o fulcro do sistema produtivo; ao contrário, seu objetivo era fazer com que a classe trabalhadora se apossasse dele, beneficiando-se na proporção da sua contribuição, isto é, de acordo com o excedente de valor produzido. A teoria marxista é fundamentalmente uma doutrina econômica, não a exegese de uma forma de governo, mas os soviéticos primeiro e, pouco depois, os norte-americanos, transformaram-na na antítese da democracia. O marxismo, distorcido pela ideologia política leninista, convertido por Stálin numa ditadura repressiva e, finalmente, privado de senso de proporção pelas rivalidades da Guerra Fria, tornou-se, na URSS, outra coisa: um regime totalitário. E esse regime tornou-se, por sua vez, sinônimo de comunismo como antítese do capitalismo. Não admira que essa parte do mundo onde ele foi aplicado — e onde a perda da motivação do lucro eliminou também todo incentivo ao crescimento — tenha se transformado num deserto econômico! Ainda que nós, vinte anos depois, continuemos a celebrar a vitória do Ocidente democrático sobre o Oriente totalitário, a verdade é que a aventura econômica soviética desmoronou por si mesma. Como veremos, a retórica ideológica de Reagan e Thatcher, assim como os fundamentos do neoliberalismo e a moldura democrática construída pelo Ocidente ao seu redor, não tem absolutamente nada a ver com a queda do Muro de Berlim. A opinião ainda hoje dominante — a equação que liga a desintegração da URSS ao triunfo da democracia — é uma fabricação da propaganda ocidental. Essa certeza é, para todos nós, uma fonte inesgotável de segurança política. Ela nos leva a acreditar que a “nossa democracia” é superior não apenas ao marxismo como sinônimo do totalitarismo soviético, mas também, e acima de tudo, à versão atual do comunismo chinês. Contudo, o sucesso da China confirma que não é Marx aquele que 16
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a história provou estar errado. Ao contrário dos soviéticos, os chineses conseguiram criar uma forma de comunismo que funciona economicamente, que evolui e que, como confirmam os dados econômicos, assegura mais progresso e bem-estar do que os outros sistemas: De 2009 a 2010, período de elevado desemprego e crescimento zero nas democracias ocidentais, a renda per capita dos chineses cresceu em termos reais e o PIB subiu 9%. Os críticos contestam esses dados com uma objeção ideológica: a China é uma ditadura corrupta que não respeita os direitos humanos. Essa crítica, que se refere a outro país que não a China contemporânea, é, por conseguinte, não apenas velha e enferrujada, mas parcialmente inexata. No que concerne aos direitos humanos, a China deu passos gigantescos na via do respeito crescente pelo indivíduo. Estamos ainda longe da linha de chegada, mas hoje ninguém — nem a Organização das Nações Unidas (ONU), nem o Banco Mundial, nem as mais respeitáveis organizações não governamentais (ONGs) — nega que os direitos humanos na China estão no caminho certo. O Ocidente, ao contrário, parece estar se movendo na direção contrária, por um caminho pavimentado de hipocrisia. Somos os incorruptíveis paladinos da justiça internacional, mesmo quando exportamos nossas ideias na barriga dos B-52 e fazemos acordos todos os dias com o crime organizado. Como explicar a intervenção armada no Iraque baseada em informações falsas? E que dizer do uso da tortura, das “rendições extraordinárias” aprovadas pelo governo Bush e empregadas também pelos ingleses e do campo de detenção de Guantânamo — instituições em patente contradição com a Declaração dos Direitos do Homem e a Convenção de Genebra? Lamentavelmente, são inúmeros, quase cotidianos, os exemplos de violação dos direitos humanos por parte do Ocidente. O mesmo se pode dizer da corrupção e da fraude, encontradas em toda a parte: o caso Madoff, em Wall Street; o pagamento, pela Agência Central
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de Inteligência (CIA), ao irmão de Karzai para manter contato com os senhores da guerra no Afeganistão; o envolvimento da Blackstone, empresa norte-americana de contratação de mercenários, com negócios escusos no Iraque; os escândalos diários do governo Berlusconi; a apropriação de dinheiro público por membros do Parlamento britânico; a ligação de Sarkozy com doações dos herdeiros da L’Oréal. Como idosos acometidos de demência senil, estamos andando para trás e perdendo no caminho a memória dos nossos entes queridos — os valores conquistados em séculos de lutas sociais. A China, ao contrário, caminha para diante, melhorando a cada dia. Todavia, de acordo com os nossos critérios, tais conquistas nada significam porque a China não é democrática. Aqui, chegamos ao cerne do problema: essa apreciação da falta de liberdade política da população chinesa é, uma vez mais, fruto de um equívoco conceitual. Para os chineses que ocuparam a praça Tiananmen em 1989, sob o pôster gigante de Mao, democracia era sinônimo de igualdade econômica, logo, de iguais oportunidades de crescimento, algo que foi conquistado por um amplo segmento da população chinesa nos últimos vinte anos. Ao contrário do que ocorria com seus camaradas soviéticos, para os chineses “democracia” não era uma palavra nova, tampouco um conceito político “importado”, como “eleições”. Mao usou, em seus discursos, a palavra democracia centenas de milhares de vezes para explicar que o governo existe para promover os interesses do povo, em declarada oposição a “outros” líderes que o oprimem, como era o caso dos colonizadores ocidentais antes da Revolução Chinesa de 1949. A ideia de que o Estado “serve ao povo” está até hoje profundamente enraizada na sociedade chinesa. Será que podemos dizer o mesmo das nossas próprias democracias, abaladas quase diariamente por escândalos políticos? Há também outro elemento crítico: para os chineses, a origem da democracia é revolucionária, não eleitoral. Zhou Youguang, que aos 18
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103 anos de idade é testemunha de um considerável lapso da turbulenta história da China, lembra-nos que Zhou Enlai sempre afirmou o caráter democrático do Partido Comunista Chinês (PCC, também conhecido como Partido Comunista da China).2 Não há nada mais democrático, no imaginário coletivo dos chineses, do que uma revolução que derruba os maus governantes. E os critérios pelos quais eles avaliam a negligência dos governos são quase todos econômicos. Há 5 mil anos, dinastia após dinastia, a China tem vivido de acordo com esses princípios. Hoje, como há vinte anos, a democracia é assunto da competência do partido: não existe fora dele e, em hipótese alguma, em oposição a ele. Em seu livro Out of Mao’s Shadow,3 que reexamina os acontecimentos da praça Tiananmen em 1989, o advogado Pu Ziquiang, um dos participantes dos protestos, descreve as motivações dos estudantes da seguinte maneira: “Nós queríamos ajudar o governo e o partido a corrigir os erros que haviam cometido.” Não se tratava de derrubá-los nem de substituí-los por outro sistema político. Os estudantes e trabalhadores chineses pediam uma abertura do sistema capaz de proporcionar a melhora dos padrões de vida no país. “Democracia” era apenas o nome dessa liberalização, um instrumento para assegurar as oportunidades que pertenciam, por direito, à população chinesa. Teria o significado da queda do Muro de Berlim e dos acontecimentos de Tiananmen se perdido por completo na tradução política? Nada poderia ser mais fácil. Na verdade, soviéticos e chineses sabiam pouco ou nada sobre a nossa forma de governo. O Ocidente, por sua vez, ignorava por completo as diferentes interpretações do comunismo. Para nós, a democracia é um animal político que se alimenta de mudanças regulares de governo; se tivéssemos de escolher um termo para defini-la, ele seria “sufrágio universal”. Os chineses, por sua vez, escolheriam “capitalismo”. Convém, aqui, dar um passo atrás e lembrar que, na cultura política ocidental, economia e bem-estar não têm qualquer relação com
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o sistema de governo. A antiga democracia ateniense, nascida em uma sociedade em que os escravos comandavam a economia, pertencia aos homens livres, que a construíram sobre a base da livre discussão de valores políticos e filosóficos — longe, muito longe das demandas do comércio e da agricultura. Quando a expansão econômica se tornou uma necessidade e foi preciso justificar a agressão militar, os atenienses recorreram à ideologia. Por isso, apresentaram a colonização da Magna Graecia como a exportação do modelo ateniense de liberdade e justiça, expressão da sua generosidade. Trata-se de um movimento retórico até hoje utilizado pelas democracias modernas: a invasão do Iraque teria sido uma generosa dádiva da democracia ocidental, embrulhada em papel de presente militar. Prosperidade e democracia são coisas tão desconexas em nosso mundo que, num sistema abalado por crises devastadoras, ninguém sonha em derrubar a classe dominante e nem sequer admite que ela é parte do problema. Todo mundo sabe que os padrões de vida ocidentais se deterioraram nos últimos vinte anos, mas, em vez de nos dirigirmos aos governos com reivindicações políticas concretas, nós esperamos que eles melhorem na arte da persuasão. Na Europa como nos Estados Unidos, foi o livre-comércio que trouxe a riqueza, não os governos representativos. Os fundadores dos Estados Unidos da América eram devotados livre-cambistas que pregavam a liberdade de mercado e a não ingerência do Estado no comércio. Na Europa, a associação entre prosperidade e democracia foi forjada após a Segunda Guerra Mundial, quando da reconstrução do continente, sobre a base do modelo democrático, com recursos do Plano Marshall — o coquetel que impulsionou o seu milagre econômico. Aqui também o livre-comércio e a reconstrução criaram a prosperidade, ainda que a versão da Guerra Fria desenvolvida pela propaganda ocidental nos tenha feito acreditar que foi a democracia que gerou o crescimento econômico. 20
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Palavras como “democracia” e “prosperidade” perdem seus significados na tradução política entre os extremos opostos do mundo: no Ocidente, “democracia” é sinônimo de boa governança, mesmo quando a história sugere o contrário; no Oriente, democracia e prosperidade vêm a ser dois aspectos de um mesmo fenômeno. Casais felizes e infelizes
Na aldeia global, o casamento da democracia com a prosperidade é, pois, uma união infeliz. Eis aqui o principal limite daquela que Churchill chamava de “a pior forma de governo, à exceção de todas as que já foram testadas”. Essa máxima, que pode ter sido verdadeira numa Europa oprimida por regimes ditatoriais e dilacerada pela Segunda Guerra Mundial e depois pela Guerra Fria, soa totalmente fora de lugar no contexto da economia globalizada e da ascensão da China. Num sistema em que a elite financeira decide o destino do mundo e divide entre si — auxiliada pelos políticos — a maior parte da riqueza produzida, o que significa “democracia”? As causas da corrupção desenfreada na Europa e dos escândalos que envolvem os nossos políticos podem ser resumidas no anacronismo da nossa atual forma de governo. Nos últimos vinte anos, a democracia não conseguiu evoluir; ao contrário, manteve aquela segura distância da economia, tão cara aos atenienses, que Platão critica severamente em A república. Desde a queda do Muro de Berlim, a teoria neoliberal, cujo mantra é que o mercado regula a economia melhor do que os governos, manteve separadas a política e a economia. Não admira que a globalização tenha se mostrado uma proposta vencedora para a China, país em que o governo ainda dirige a transformação econômica, e uma proposta perdedora para nós, do Ocidente, onde a direção da economia é delegada ao mercado, uma costumeira fonte de corrupção. A última crise do capitalismo global parece nos dizer que, ao menos nessa fase
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de sua evolução, a presença de um Estado forte é necessária. A experiência chinesa demonstra que a economia funciona melhor quando o governo permanece nas mãos daqueles que representam, no grau mais elevado possível, os interesses do povo, não os da elite. A palavra “comunista” não é sinônimo de politburo, mas de presença vigilante do Estado na economia como avalista dos interesses da população. Para nós um absurdo, o par capitalismo-comunismo, ou capicomunismo, é, para os chineses, um fato da vida; um casal feliz, abençoado por Karl Marx. Por quê? Porque os líderes chineses leram O capital, de Marx, e entenderam que ele é uma análise do capitalismo, não uma proposta para a sua destruição. Marx não escreveu que era necessário derrubar o sistema de produção para substituí-lo por outro; não exortou as pessoas a incendiar as fábricas e retornar à economia agrícola; não falou de protecionismo nem do fim do comércio internacional. Antes, descreveu a substituição da liderança do capitalismo pela ditadura do proletariado como a evolução natural desse sistema até o seu ponto mais elevado: a sociedade sem classes. E é nessa direção que hoje se move a sociedade chinesa. Em 1989, Deng Xiaoping tinha consciência de que as verdadeiras motivações por trás dos protestos da praça Tiananmen podiam ser provenientes da confusão da população a respeito do verdadeiro significado do capitalismo e da democracia. Sua resposta foi, portanto, abrir economicamente o país, disseminar a motivação do lucro e incentivar a produção. “Enriqueçam” foi o novo mantra que ecoou por toda a China, ainda abalada pela sangrenta repressão. Como veremos, camponeses que mal conseguiam sobreviver obtiveram o direito de se deslocar e de vender a sua produção; outros habitantes do campo puderam se tornar trabalhadores migrantes e ganhar, em poucos anos, o suficiente para voltar para casa e começar negócios próprios. Essas revolucionárias mudanças políticas e sociais começaram a se desenhar ainda no fim da década de 1970, poucos anos após a morte de Mao. O ano de 1989 foi 22
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uma pausa, que durou até 1992, quando Deng venceu a batalha dentro do partido e a experiência decolou outra vez, ganhando grande impulso num curto lapso de tempo e produzindo êxitos. A história nos ensina que o capitalismo evolui naturalmente para a globalização, porque o motor do crescimento é a exploração progressiva de novos recursos. A democracia também tende para a globalização. Todavia, os inúmeros desastres econômicos dos últimos séculos estão aí para nos lembrar que o binômio capitalismo-democracia não é funcional nesse estágio da globalização; o capicomunismo pode estar mais bem-equipado para explorar as fases ascendentes e descendentes da economia globalizada. Por trás da crise do crédito e da recessão assoma, pois, uma profunda revolução que vem despedaçando as suposições do passado, dentre elas a proeminência social, econômica e política da democracia ocidental como forma ideal de governo; uma sublevação histórica que, acima de tudo, redefine o conceito de modernidade. Teria Karl Marx vencido a Guerra Fria? Certo é que, para entender as mudanças em curso, faz-se necessário reinterpretar a teoria marxista no contexto de Pequim. Até aqui, o modelo chinês parece ser uma lente adequada à análise da decadência da sociedade ocidental e do declínio do nosso capitalismo. Uma lente capaz de nos ajudar a corrigir os erros dos últimos vinte anos.
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PRÓLOGO
DEPRESSÕES EM CURSO
O espectro da depressão ronda o planeta — mas não em todos os lugares. De Pequim à Cidade do Cabo, de Singapura ao Rio de Janeiro, não é o mundo inteiro que vive à base de Prozac. No Oriente e abaixo do equador, as pessoas estão mais felizes ou, pelo menos, mais satisfeitas: gastam menos, poupam e curtem a vida. Os depressivos vivem no Ocidente. Aqui, a incerteza do amanhã atormenta e corrói as democracias capitalistas e a crise econômica transforma continentes inteiros em sanatórios de ansiosos. Os afetados por essa psicose são, em primeiro lugar, os que têm entre 18 e 35 anos de idade, cujas perspectivas de futuro parecem anuviadas por um conjunto de realidades desestimulantes. Já na China, as pessoas estão vivendo com taxas bem mais altas de desenvolvimento e também de felicidade. Por que razão o Oriente e o Ocidente reagem de maneira diferente aos problemas da globalização? Na raiz dessa disparidade psicológica e econômica estão a influência do passado e as expectativas em relação ao futuro. Nós, ocidentais, somos demasiadamente oprimidos e facilmente debilitados por lembranças, aturdidos por sonhos, a ponto de nos tornarmos incapazes de viver o presente. De acordo com os psiquiatras, a nossa solução preferida para escapar da vida cotidiana é o consumo — comprar como terapia. 25
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Quem vive no sul global não tem necessidade desse recurso para viver o dia a dia; ao contrário, vive de acordo com o lema carpe diem. Suas palavras mágicas são “hoje” e “agora”. São menos ricos e mais felizes do que nós, e não é só: suas economias nacionais estão crescendo, enquanto as nossas não dão sinal de parar de encolher. Recessão e depressão andam de mãos dadas. E, não demora, cairão juntas no abismo. O que as estatísticas dizem é bastante claro: o número de suicídios vem crescendo novamente nos países ocidentais, o primeiro aumento desde o começo da década de 1980 — a última recessão. E, no entanto, pouco bastaria para nos tranquilizarmos: um ponto de referência estável, uma ponta de esperança, um simples fato — o fim da crise, por exemplo. Psique e mercado, globalização e ansiedade parecem estar conectados. Teóricos da psicanálise como Zygmunt Bauman descrevem a completa ausência de pontos de referência estáveis em que o indivíduo globalizado é obrigado a viver como “modernidade líquida”, um limbo cujo horizonte é a pura sobrevivência e que pressupõe nos adaptarmos às práticas do grupo e desaparecer no meio da multidão. Não admira que tenhamos medo de enfrentar a realidade do dia a dia. Não por acaso, a “modernidade líquida” é também um dos aspectos centrais do consumismo: subproduto do mercado de massa, terreno fértil para as campanhas de propaganda com que as multinacionais nos bombardeiam sem parar. As mais bem-sucedidas são as que promovem a perfeita união da psique com a economia. Elas apertam os botões certos: aqueles que controlam o comportamento da massa, que nos fazem esticar automaticamente o braço para pegar determinado produto na prateleira do supermercado, não o que está ao seu lado. Muitos psicanalistas identificam o consumismo como a causa primária da enfermidade que assola as regiões mais ricas do planeta: o indivíduo se debate para lidar com o consumo diário, essa fonte inexaurível de estresse. É o cão tentando morder o próprio rabo: nós consumimos 26
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para fugir ao estresse da realidade cotidiana e o consumo é a fonte de um estresse permanente. Ficamos aprisionados num círculo vicioso. A solução? Prozac. Desde 1988, ano em que a Eli Lilly lançou o Prozac, mais de 40 milhões de pessoas o utilizaram como antidepressivo. Resultados? Parcos. Um estudo de 2008 publicado no Journal of the Public Library of Science pelo professor Irving Kirsch, do Departamento de Psicologia da Universidade de Hull, junto com outros psicólogos norte-americanos e canadenses, descobriu que os pacientes que tomam Prozac não são mais felizes do que os que recebem placebo.1 E onde falha o Prozac falham também o Paxil e o Zoloft. A causa da enfermidade que aflige o Ocidente não é do tipo que pode ser combatida com antidepressivos — é o nosso estilo de vida. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), desde o começo da década de 1990, o número de depressivos vem aumentando precisamente nos lugares em que o endividamento assumiu proporções bíblicas — os países ricos — e em geral na proporção direta do aumento médio das dívidas pessoais. A depressão e a inadimplência proliferam, portanto, onde reina a democracia — a começar pelos Estados Unidos, o país mais rico e democrático do mundo, de onde transbordam para as bolsas de valores da aldeia global —, enquanto perguntamos obsessivamente aos economistas quando e como o PIB e o emprego começarão a crescer outra vez. Contudo, nem a psicologia nem a economia são ciências exatas: elas carecem de instrumentos para nos dar qualquer tipo de certeza. Ao cair nessa crise, aprendemos da pior maneira que o consumo desenfreado não é o motor do crescimento, mas a causa da recessão, levando os indivíduos — e com eles os bancos — a se endividarem para viver acima de seus meios. Em outras palavras, vivemos uma miragem que confunde linhas de crédito com riqueza. O mantra que nos “loucos anos 1990” ecoou em todas as escolas de negócios dos Estados Unidos
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— “Eu valho tanto quanto eu puder tomar emprestado” — tornou-se o hino da globalização. O código de conduta a que acabamos nos adaptando é absurdo, por falsificar as avaliações de riscos financeiros. Apesar disso, nossos governos nos exortam a usar nossos cartões de crédito com a mesma despreocupação de antes da crise. O gasto do consumidor é o sangue da nossa economia; sem ele, jamais voltaremos aos trilhos — é o conteúdo da mensagem. Será possível que aqueles que deveriam estar nos ajudando a subir a encosta são, na verdade, os que nos puxam o tempo todo para o fundo do abismo? Um paradoxo da economia contemporânea? Parece que sim. Há, no entanto, uma significativa diferença entre a economia e a psicologia. Enquanto esta busca prevenir e tratar distúrbios psíquicos identificando suas causas, aquela parece incapaz de impedir os desastres financeiros que se sucedem, com frequência cada vez maior, nos últimos vinte anos. Na verdade, a globalização parece andar de mãos dadas com a crise financeira. Por quê? O estudo da mente humana, ao contrário da economia, segue o ritmo de sua época, razão pela qual incorporou uma forte carga de modernidade. Nos últimos cinquenta anos, a psicanálise criticou duramente a teoria clássica freudiana. Salvo os personagens de Woody Allen, ninguém se deita mais no sofá para falar de seus traumas e fantasias sexuais infantis. A psicologia de hoje recorre a uma ampla gama de abordagens que combinam Prozac com psicoterapia clássica, mas também com ioga e, se necessário, até com video games. Ao passo que os psicanalistas — sobretudo graças à contribuição de Carl Gustav Jung — lograram escapar da gaiola da teoria freudiana do inconsciente, os economistas ainda estão algemados a Adam Smith, o pai da economia clássica, ainda que o modelo por ele descrito se baseie numa realidade que já não existe. Hoje, poucos acreditam que os comportamentos egoístas da multidão produzem a riqueza das nações. É difícil encontrar um nexo entre os bônus de bilhões de dólares da 28
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alta finança e o crescimento do PIB; mas o oposto é verdade. E, no entanto, de 1989 até o início da crise, todas as democracias ocidentais, assim como uma grande quantidade de novos regimes democráticos, aplicaram — adotaram in totum — a ideologia do mercado. Nenhum deles lançou qualquer dúvida sobre os poderes extraordinários da “mão invisível”, mesmo quando ela criava profundas disparidades de renda, injustiças sociais, abusos e até fraudes colossais. A maioria dos políticos de hoje nos incentiva a gastar o dinheiro que não temos porque nenhum deles sabe invocar uma alternativa ao obsoleto modelo consumista para mover a economia. Desde a queda do Muro de Berlim, a economia tornou-se monotemática; ela continua prisioneira do neoliberalismo, mesmo quando o Ocidente se defronta com a maior revolução econômica desde os tempos de Adam Smith: o processo de globalização. Em vez de dar à economia capitalista mais flexibilidade e capacidade de enfrentar as demandas de um presente em constante mudança, a desregulação financeira a tornou mais suscetível a abusos. Durante vinte anos, ninguém se preocupou em estudar, ou criar, um novo modelo, nem sequer em criticar o modelo atual. Como foi possível a euforia da vitória sobre o comunismo cegar o Ocidente a ponto de convencer-nos de que o nosso problemático sistema econômico era perfeito? Uma vez o neoliberalismo vitorioso na Guerra Fria, todos imaginaram que tal “solução” era válida para sempre. Na verdade, foi nesse exato momento que, para usar os termos de Fukuyama, a disciplina econômica atingiu o fim da linha e os abusos se multiplicaram.2 Hoje nos vemos, pois, empacados numa teoria econômica nascida da Revolução Industrial e prisioneiros de um sonho, de uma armadilha do inconsciente, da repressão psicológica. A economia ocidental, tanto quanto a sua psique, estão presas, como num torno, entre nossas expectativas de futuro e nossos dogmas do passado. Durante vinte anos a política deflacionista do Banco Central norte-americano atuou como
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um Prozac financeiro, permitindo ao Ocidente ignorar a crise econômica pela supressão de seus sintomas. A recessão e a depressão foram mantidas sob controle por meio de antidepressivos, que agem sobre os sintomas sem, no entanto, tratar e eliminar suas causas. Hoje, eles deixaram de funcionar. Mas qual é a alternativa? Será que já existiu um Jung da economia capaz de derrubar os dogmas do liberalismo clássico de Adam Smith e libertar a disciplina da sua gaiola? Sim, já existiu, e seu nome era Karl Marx. Assim como a teoria de Jung, o marxismo nasceu da observação empírica. Seu objeto de estudo é o sistema de produção, o comportamento da força de trabalho e a concentração do capital nas mãos das elites, uma deterioração que ameaça a sociedade civil. Marx, como Jung, distanciou-se da interpretação dominante da sua época; a formulação de sua abordagem crítica é tão similar à do psiquiatra suíço que podemos, na verdade, chamá-lo de “Jung da economia”. Suas análises, totalmente contra a corrente, constituem um modo diferente de interpretar a economia, rompendo com os métodos tradicionais; ao mesmo tempo, porém, elas discutem as perspectivas de desenvolvimento do capitalismo, não a sua destruição. A modernidade da psicanálise deriva precisamente da dicotomia entre seus dois fundadores, Freud e Jung, uma tensão que não diminuiu com o passar do tempo. Na economia, por outro lado, essa dialética passou por uma mudança histórica. Marx, como Smith, é um de seus fundadores, mas a teoria marxista, tida como uma alternativa radical, não uma crítica construtiva ao modelo capitalista liberal, cessou de influenciar o pensamento econômico ocidental. Por essa razão, o mundo de hoje não tem mais à disposição um economista como John Maynard Keynes, cujo pensamento se formou no interior de uma dialética vibrante e construtiva. O diálogo com os marxistas de Cambridge foram fundamentais para a formulação da sua obra-prima Teoria geral do emprego, do juro e da moeda. Os Acordos 30
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de Bretton Woods e o sistema econômico e financeiro que serviram de marco para o milagre econômico do pós-guerra devem, portanto, tanto a Marx e sua crítica do capitalismo quanto à “mão invisível” de Adam Smith. Depois da queda do Muro de Berlim, no entanto, Marx foi varrido junto com o regime soviético e o socialismo real, e seus livros, condenados a juntar poeira nas bibliotecas. A relação dinâmica que existia entre o liberalismo clássico e o marxismo se deteriorou e, com ela, a modernidade da economia. Isso explica por que a economia ocidental tornou-se monotemática, celebradora de um único modelo. No Oriente, porém, isso não acontece. Depois de 1989, o marxismo continuou a ser estudado somente na China, junto com todas as outras teorias econômicas. Esse trabalho levou à criação de um modelo novo e moderno, marcado por um severo pragmatismo. Tal como a psicanálise, o capitalismo “Made in China” se aproveita de tudo o que funciona (da empresa privada ao controle de capitais) e é, portanto, mais flexível e atualizado do que a sua versão ocidental. O modelo chinês é capaz de adaptar a economia a mudanças súbitas e decisivas, como o processo de globalização, e essa flexibilidade ajudou o país a se tornar a superpotência da aldeia global e a redefinir os parâmetros da modernidade. Como pode ter acontecido que, do monte de entulho teórico do capitalismo ocidental, nasceu o milagre chinês? No âmago dessa história está a ascensão prodigiosa de um país que nós, por pura ignorância ou obsolescência ideológica, continuamos a não compreender e que nos assusta pelo mero fato de ser diferente. Ao mesmo tempo, este livro alerta para o colapso previsível e igualmente prodigioso do nosso sistema se insistirmos em celebrar um modelo econômico e político exaurido. Remédios existem, potencialmente eficazes, contra a depressão econômica e psicológica que aflige o Ocidente. Quer o chamemos capitalismo chinês ou medicina chinesa, tudo de que precisamos é vontade para adaptá-lo à fisiologia das nossas democracias.
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