Pelo Mundo Todo - Primeiro Capítulo

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Três Verões

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Pelo Mundo Todo Tradução Jorge Ritter

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I Um pedaço de torta*

* No original, “A Piece of Cake” tem duplo sentido, uma vez que também expressa algo fácil ou agradável, uma barbada. (N. T.)

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UM

O

TELEFONEMA VEIO NO DIA 29 DE FEVEREIRO:

o dia a cada quatro anos em que, de acordo com costumes antigos, as mulheres podem escolher seus parceiros abertamente. Greenie conferia seus e-mails no trabalho naquela manhã quando uma caixinha rosa apareceu subitamente na tela: Carpe diem, senhoras! A rainha Margaret da Escócia decretara, em 1288, uma lei determinando que, se um homem recusasse o pedido de casamento de uma mulher nesse dia, estaria intimado a pagar uma multa: qualquer coisa, de um beijo a uma quantia em dinheiro que comprasse um vestido de seda ou um par de luvas elegantes. Se eu já não fosse comprometida, pensou Greenie, aceitaria de bom grado uma rejeição em troca de um belo vestido de seda. Ah, o conforto discreto e luxuoso de um vestido de seda. Ah, o clima perfeito para usá-lo! No entanto, estava chovendo granizo de novo. Greenie tinha a sensação de que vinha chovendo granizo havia uma semana. As calçadas da rua Bank, suficientemente traiçoeiras na sua antiguidade inclinada, exibiam agora uma camada de gelo, de modo que levar George para a escola se tornara uma labuta maternal de censuras e súplicas: — Anda, coração. Por favor, anda. O que foi que eu disse? Eu não disse ANDA? Como a maioria dos garotos de quatro anos, George deixava sua casa como uma pedrinha lançada por um estilingue, escorando-se em carros estacionados, muros de arenito, cercas de proteção de árvores (pelo visto, não apenas contra cachorros urinando) e pedestres irritadiços pela falta de café ou pelo excesso de tensão do dia de trabalho. Greenie estava começando a se livrar das consequências adversas do que chamava de ressaca DN: DN significando Dia dos Namorados,

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ocasião que a enchia da inspiração necessária à medida que janeiro se aproximava do fim, mas a levava, em seu rastro — se os negócios estivessem indo bem —, a jurar que nunca, nunca mais prepararia qualquer coisa na forma de coração ou anjo, ou colocaria uma gota que fosse de corante carmim em uma tigela de glacê amanteigado. Como que para confirmar seu desencanto fugaz com tudo que dissesse respeito ao amor romântico, ela e Alan haviam tido mais uma das discussões infrutíferas e amargas que pareciam nunca conseguir evitar — e as quais, no seu apartamento pequeno, ela temia que acordassem e assustassem George. Essa a deixara acordada até as duas da manhã. Greenie nem se dera ao trabalho de ir para a cama, já que terça-feira era um dos dias em que ela se levantava antes do amanhecer para preparar brioches, broinhas, rocamboles de canela e — somente às terças — bolo de café regado a cardamomo, laranja e gengibre: um doce dissimuladamente picante que deixava sua cozinha cheirando a um restaurante hindu sofisticado, uma mudança breve e revigorante dos vestígios de manteiga, baunilha e açúcar, que combinavam tão bem (a fragrância, para Greenie, da vida rotineira). Morta de cansaço às dez da manhã, havia esquecido o recado que ouvira na noite anterior: — Greenie, querida, acredito que amanhã você irá receber o telefonema de um VIP; não vou dizer quem é e não vou dizer o motivo, mas quero que fique registrado que fui eu quem disse a ele o gênio que você é. Se bem que agora estou me dando conta de que ele pode dar um sumiço em você! Que tolo, onde eu estava com a cabeça! Então me ligue, você tem que prometer que vai me ligar assim que ouvir notícias dele. Tchauuu! O Walter de sempre: irritante, carinhoso, generoso, coquete. “Vê I Pê”, entoara com afetação, como se ela estivesse prestes a receber um telefonema do Papa. Mais provável que fosse de algum plantador de maçãs do norte do estado que provara sua torta e estava procurando receitas para incluir em um daqueles livros de receita de caridade encadernados e que rapidamente encontravam seu caminho nas tendinhas montadas num fundo de quintal e nos sebos. Ou talvez isto: o diretor de cheesecake da Junior’s havia provado o dela — e queria lhe oferecer um emprego com um

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salário melhor, mas terrivelmente monótono, em alguma enorme e deprimente cozinha industrial no Brooklyn. O que era um VIP no mundinho de Walter? Walter era o proprietário e anfitrião festeiro (não o chef; ele não lavaria um pé de alface ainda que fosse para salvar sua vida) de uma taverna americana retrô que servia, com orgulho excessivo, refeições do topo da cadeia alimentar, repletas de colesterol. Com um nome apropriado, embora pouco modesto, o Walter’s Place parecia uma sala de estar transformada em pub. No primeiro andar de uma casa de tijolinhos, na mesma rua do apartamento de Greenie, comportava duas lareiras, toalhas de mesa de xadrez azul, um sofá de veludo elegantemente surrado e (que a Vigilância Sanitária se danasse) um buldogue chamado The Bruce. (Como Robert the Bruce, o rei da Escócia?, perguntara-se Greenie, mas nunca chegara a confirmá-lo; mais provável que o nome do cachorro fosse uma homenagem a alguma jovem estrela pornô, objeto do desejo divertidamente fútil de Walter. Ele nunca falara abertamente a respeito desses desejos, mas fizera alusões.) Greenie não era fanática pelos pratos da era Eisenhower com os quais Walter saciava seus clientes — um prazer que ela considerava reservado às sobremesas —, mas ficara contente quando ganhara essa conta. Com o correr dos anos, passara a ver Walter mais como um aliado do que propriamente um cliente. Com exceção da torta de coco (recheada com coalhada de limão meyer e confeitada com açúcar mascavo), a maioria das sobremesas que fazia para Walter não era das suas melhores ou mais originais, mas exemplares do seu gênero: sobremesas de cidadãos consistentes e parrudos, pudim de arroz, broas e noodles — doces que os puritanos ingleses e outros imigrantes modestos que haviam construído penosamente seus cânones teriam trocado sem pestanejar pela musse de laranja, o sorvete de pera ou os éclairs de chocolate branco de Greenie. Walter também encomendara um cheesecake com calda de morango, uma torta de maçã em fôrma funda e um bolo de camadas que solicitara a Greenie para criar exclusivamente para ele. — Todos esperam um desses, sabe, aquela coisa tipo morte-por-chocolate num cardápio como o meu, mas eu quero mesmo é um massacre de

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chocolate, uma execução por chocolate, um pelotão de fuzilamento de chocolate! Então, naquela mesma noite, depois de colocar George na cama, Greenie voltara para a cozinha onde ganhava a vida, em um porão a duas quadras de sua casa, e ficara acordada até o amanhecer, para dar à luz um bolo de quatro camadas tão denso e encorpado que o próprio Walter, que conseguiria levantar um pônei Shetland, não ousaria tentar erguer com apenas uma das mãos. Era o tipo de sobremesa que, por princípio, horrorizava Greenie, mas também corporificava uma espécie de prosperidade superior, um prazer transgressor que ostentava o potencial da manteiga, essa substância proteica tão maravilhosa e essencial para um chef confeiteiro quanto o fogo havia sido para o homem primitivo. Walter batizara a torta de Apocalypse Now; Greenie tivera de segurar a língua para não dizer nada. Por si só, a criação duplicara a quantidade de chocolate que ela encomendava mensalmente do fornecedor. Após uma semana no cardápio, Walter apostara um jantar com lagosta que, antes do fim do ano, a Gourmet pediria a receita, colocando os dois em um mapa culinário de maior visibilidade. Se isso viesse a acontecer, Greenie se entregaria às extravagâncias de uma fama fugaz, mas, no momento, os negócios seguiam tão tranquilamente quanto ela podia desejar. Tinha uma assistente dedicada e um aprendiz que fazia as compras, a limpeza e as entregas, e era pontual. A quantidade de trabalho que compartilhavam lhe parecia correta; Greenie não tinha como atender o pedido de nem mais um éclair sem ter de aumentar o negócio a um ponto de que temia começar a perder o controle. Alan dizia que o que Greenie realmente temia era crescer de verdade, assumindo a ambição de sua vida inteira e moldando-a em um Negócio com N maiúsculo. Greenie ressentia-se da condescendência dele; se um negócio com N maiúsculo era a meta que uma pessoa deveria ter ao se tornar adulta, o que ele estava fazendo como psicoterapeuta, atendendo no quarto dos fundos que deveria ser de George, obrigado a dormir em um vão na sala de estar onde deveria estar a mesa de jantar? O que trazia à tona o tema George: Alan estaria insatisfeito porque o trabalho de Greenie, em sua escala atual, permitia que ela passasse mais tempo com o filho do que um Negócio com N maiúsculo possibilitaria?

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— Delegar — dissera Alan. — Isso se chama delegar. Era o tipo de desentendimento que vinha ocorrendo muito seguidamente entre eles, e, se Greenie culpava Alan por iniciar essas discussões, culpava a si mesma por entrar na rinha. Teimosamente se recusava a recuar pelo bem de uma harmonia doméstica maior ou para abordar o dilema subjacente. O dilema evidente, até aí a questão era clara. Durante o ano anterior inteiro, enquanto Greenie começava a dispensar clientes, Alan os estava perdendo. Suas horas de trabalho haviam se reduzido à metade, e as horas extras que isso lhe possibilitava conviver com George não pareciam consolá-lo. Alan, a dois anos dos quarenta, havia alcançado o que Greenie concebera intimamente como o estágio na vida que remetia àquela música de Peggy Lee: “Is That All There Is?” Isso é tudo? Greenie não sabia o que fazer a respeito. Teria atacado o problema de frente se a vítima fosse uma de suas melhores amigas, mas Alan era um homem, cronicamente ressentido de orientação. Quando ele estava com amigos, sua natureza argumentativa era seu ponto forte, um jeito de desafiar o mundo e suas complacências, mas, na intimidade — sozinho com Greenie —, caía na defensiva e em um niilismo noturno. Ela sabia disso antes de eles se casarem, mas presumira que esse aspecto da sua psique se extinguiria sob a exposição solar do afeto do dia a dia, como um conhaque flambando em uma caçarola. No ano seguinte, completariam dez anos de casados, e isso não ocorrera. Nos primeiros anos juntos, ela adorava a vigília que compartilhavam até tarde da noite. Depois do sexo, Alan não desabava num sono pesado, da forma a que a maioria dos homens diz não conseguir resistir. Assim como Greenie, ele ficava acordado por uma meia hora ou mais. Falavam sobre seus dias, seus sonhos (sonhos que tinham dormindo ou acordados), suas noções sobre o destino da humanidade. Sobre as questões mundanas, a voz da dúvida era a de Alan — lamentando ou esbravejando que o genocídio não teria nunca um fim, que os presidentes nunca seriam éticos, as crianças seriam sempre raptadas por homens que nunca seriam pegos —, ele era invariavelmente veemente, e, naquela época, Greenie via uma

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esperança em sua veemência. Alan amava Greenie expressiva e eloquentemente, de um jeito que ela achava nunca ter sido amada antes. Quando já estavam dormindo — ou não — juntos quase todas as noites durante um mês, ela perguntou: — Por que você acha que somos assim? Por que não vamos simplesmente dormir como o restante das pessoas exaustas à nossa volta? Estavam deitados na cama de Alan, na escuridão nunca absoluta de uma noite da cidade. — Sou eu, eu penso demais. Isso não é bom — dissera ele. — Por quê? Por que não é bom? — Cansa a alma. É como trincar os dentes espirituais — respondera. — Sonhar é a alternativa saudável. Mesmo os pesadelos, vez ou outra. Às vezes, um pesadelo é como um vento forte a varrer a casa. Greenie tinha observado, desde o início, que a primeira coisa que Alan fazia todas as manhãs, muitas vezes antes de sair da cama, era escrever seus sonhos em uma caderneta de couro do tamanho de uma carteira. — E eu? — perguntara ela. — Eu penso demais? — Você não. — Ele puxara-a para mais perto. — Com você, só posso imaginar que alguma parte da sua alma desperta simplesmente não consegue suportar ver mais um dia magnífico na vida de Greenie Duquette chegar ao fim. — Isso é muito poético — dissera Greenie —, mas é uma tolice. — Quando estou com você — dissera ele —, adoro não dormir. — Ele a beijou e voltou a beijar, e então caíram no sono. No dia seguinte, ao telefone com a mãe, ela dissera que havia conhecido um homem incrível e que estava apaixonada. Sua mãe brincara que aquela não era a primeira vez, e Greenie dissera que sim, era verdade, mas tinha um palpite de que seria a última. De maneira coerente com todas as evoluções e revoluções da vida conjugal, seus devaneios insones da madrugada chegaram a um fim quando tiveram George. Naqueles meses iniciais, mortos de sono, seus seres pensantes afundavam no esquecimento assim que se deitavam. Mas Alan ainda tinha um sono tão leve que era quase sempre o primeiro a se levantar e a confortar George quando ele chorava. Assim que Greenie recobrava

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a consciência, lá estava o bebê nos braços do pai, sendo acalmado até que ela estivesse pronta para amamentá-lo. A única reclamação de Alan era que acordar tantas vezes e tão urgentemente tornava difícil para ele se lembrar dos sonhos. Junto com tantos outros hábitos antes tão bem-estabelecidos, a caderneta fora deixada de lado. Agora, Greenie se perguntava se Alan precisava mais daquilo do que ela podia compreender. Greenie não conseguia precisar o momento específico em que a visão de mundo pragmática mas apaixonada de Alan teria pendido para um pessimismo empedernido, e lembrou-se de que ele ainda era um pai amoroso e paciente — mas, e se o pessimismo fosse genético? Seria possível que ele estivesse latente em George? Enquanto os pães e as tortas que ela havia preparado esfriavam nos aparadores, Greenie enchia a pia maior com todas as fôrmas de bolo, batedeiras, tigelas e colheres para misturas. Sherwin chegava mais tarde para lavar a louça, mas era Greenie quem limpava as bancadas, várias vezes por dia. Ela havia tornado o lugar — o velho compartimento da caldeira no porão de um prédio misto de apartamentos de aluguel barato — seu reino particular. À sua volta, as paredes e os armários eram brancos, as bancadas revestidas de um aço liso e anônimo, mas o piso de linóleo que Alan a havia ajudado a colocar era de um vermelho de gladíolo. As únicas janelas existentes ficavam junto ao teto, no nível da calçada: amplas, embora estreitas como as aberturas em uma casamata. Às vezes, organizando as contas ou estudando receitas, Greenie sentava-se num banco junto ao balcão de ripas e observava os tornozelos passando por aquelas janelas. De vez em quando, um cachorro colocava o focinho entre as grades contra o vidro e abanava o rabo. Greenie sorria e acenava antes que o cachorro fosse puxado para retomar seu caminho. Ela passou a reconhecer os habitués do bairro: o velho labrador preto com a focinheira opressiva, os buldogues gêmeos com seu rímel de Tammy Faye, o setter irlandês que deixava marcas nas janelas com sua língua obstinada. Às vezes, aquelas caras de cachorro eram as únicas que ela via por horas. Mesmo crianças começando a andar eram visíveis somente até as bainhas de seus shorts ou casacos. Walter era o único que se curvava, batia na

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vidraça e lhe sorria abertamente de cabeça para baixo, The Bruce sempre ao seu lado. Greenie sabia que a primavera havia chegado quando o verde se insinuava em sua linha de visão, à medida que os pequenos espaços de terra em volta das árvores na frente do prédio se enchiam de ervas daninhas ou das tentativas florais de inquilinos desejando em vão jardins que fossem só seus. (Os cachorros não ajudavam muito nesse sentido.) Logo abaixo das janelas, Greenie havia pendurado suas tigelas de cobre e aço inoxidável em pares. Era uma piadinha que ainda a divertia: exibidas desse jeito, pareciam armaduras oponentes, os bustos guerreiros das amazonas, de Atena, Brunilda e Joana d’Arc. Contem comigo!, dizia Greenie a si mesma ao mesmo tempo que inspecionava seu batalhão privado. Carpe diem, senhoras! Greenie se dirigia a elas enquanto cantava, o que gostava de fazer quando trabalhava sozinha. Um toca-fitas ao lado das colheres de pau lhe proporcionava o apoio seguro de Dinah Washington, Nina Simone, Billie e Aretha, apesar de que, ultimamente, Greenie dera para comprar trilhas sonoras de musicais antigos, de maneira que podia instigar seu exército feminino com canções como “My Boy Bill”, “Gee, Officer Krupke!” e “I’m Gonna Wash That Man Right Outa My Hair”. Quando o telefone tocou, ela estava colocando o laço na última caixa de pãezinhos doces para Sherwin entregar em um café no East Village. Cantava, junto com a madre superiora de Julie Andrews, “Climb Ev’ry Mountain”, indiferente às notas que não conseguia alcançar, quando lançou um olhar para a frente o tempo suficiente apenas para observar um par de galochas de um colegial passar de oeste para leste. — Alô, Feliz Dia Bissexto! — atendeu. Greenie desconcertou-se com o modo como a pessoa que telefonara se dirigira a ela — pois Charlotte Greenaway Duquette tinha uma variedade de nomes, cada um deles identificando a pessoa que o usava como pertencente a um período em particular do seu passado. Para os parentes e amigos de seus pais, ela seria sempre Charlotte, sem abreviações. Para os colegas de escola e outras pessoas que a haviam conhecido na cidade onde crescera, ela era Shar; para uma determinada panelinha

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com a qual havia andado no ensino médio, Charlie. Na faculdade, sua primeira colega de quarto passara a chamá-la de Duke. Apreciando o tom durão e feminista do nome — ele a fazia sentir-se como se tivesse colocado um piercing no umbigo, sem precisar passar por tais extremos físicos —, ela permitiu que ele a acompanhasse até o curso de culinária e, então, a Nova York. Passados alguns meses depois de ter se mudado para a cidade, conheceu Alan, que não gostou do apelido e lhe confidenciou isso no segundo encontro. — É masculino demais, e você não tem nada de masculino — dissera Alan, acariciando atrevidamente seu cabelo longo e desgovernado enquanto caminhavam pela rua. — Dá para ver que você é uma mulher forte, mas é simpática demais para o tipo de nome que um boxeador ou um cafetão escolheria. Por um tempo, ele insistira em chamá-la de Charlotte. Uma noite, quando Alan sussurrou seu nome, ela disse que lamentava, mas sentia como se estivesse fazendo amor com um parente. — É mais ou menos como se você usasse a loção pós-barba do meu pai — dissera ela —, apesar de ele não usar nenhuma. Mais tarde, quando estavam deitados, ele murmurou o nome inteiro dela em voz alta várias vezes, como que procurando em cada espaço das suas vogais. — Bem, Srta. Charlotte Greenaway Duquette — concluíra —, eu mesmo terei de inventar um nome. — Foi então que, com uma emoção íntima, ela virara Greenie; olhando para trás, foi o momento em que se tornara sua noiva. Quando chegou a hora de batizar seu negócio (seu negócio com um n minúsculo), Greenie sentiu-se tentada a usar o nome novo, mas ele ainda soava algo íntimo, como um charme de sedução que ela precisava ter cuidado em não sair espalhando por aí. Com mais cautela que sentimento, Greenie decidiu por Confeitaria da Srta. Duquette. Inaugurou-a durante a febre por tudo que fosse creole, zydeco e Margaret Mitchell: para os nova-iorquinos frios como aço, praticamente qualquer coisa com jeito

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sulista tinha a atração saudosista dos vestidos de baile rendados, e Greenie gostava de pensar que seu sobrenome era associado ao oleandro rosa, às varandas agradáveis e aos anjos ubíquos de Nova Orleans (apesar de ela não ter nada a reivindicar quanto a isso, tendo sido criada a oeste de Boston). Nas caixas verde-claras, nas quais embalava seus doces, o nome ocupava de um canto a outro, num floreio de letras lilases seguidas de glicínias. As pessoas que ligavam para ela a negócio quase sempre chamavam pela Srta. Duquette ou “a gerente”, ou, se a propaganda boca a boca a tivesse indicado, Greenie. Dessa vez, ela atendera o telefone para ouvir: — Charlotte Duquette? — seu nome pronunciado por uma jovem que soava tão sulista quanto Greenie não o era. — Sim — respondeu Greenie, e esperou para ouvir qual seria a ligação daquela mulher com seus pais. Nem mesmo os quatro bancos que emitiam seus cartões de crédito a conheciam como Charlotte. — Charlotte Duquette — repetiu a mulher —, você poderia aguardar um instante o governador do Novo México? Seguiu-se uma série de chiados de conexões, abrindo caminho para uma voz masculina animada: — Garota, desculpe minha informalidade aqui, mas você faz uma torta de coco dos céus. Sem conseguir se segurar, Greenie caiu na gargalhada. — Ah, e vejo que você tem o riso frouxo. Gosto disso numa pessoa, gosto mesmo. — O governador riu um pouco, ele mesmo dotado de um riso frouxo. — Bem, aqui quem fala é Ray McCrae, e não tem problema se você não conseguir se lembrar de onde ouviu esse nome, sendo dessas regiões mais sofisticadas e distantes, mas, como seu amigo Walter deve ter-lhe contado, eu tenho uma proposta, Srta. Duquette, baseada apenas naquele nocaute provocado pela torta que provei ontem. Não, não provei, Srta. Duquette, isso não seria correto. Pouco preciso. Comi. Não, desapareci com uma fatia gigante e raspei o prato com meu garfo até limpá-lo. Então, pedi uma segunda para levar e a devorei inteira no carro. Comi até os farelos do assento. — Obrigada. Me sinto lisonjeada.

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