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Corrado Augias Mauro Pesce
DIÁLOGO SOBRE JESUS Quem foi o homem que mudou o mundo?
Tradução Andrea Ciacchi
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Prefácio
MUITAS PERGUNTAS, ALGUMAS RESPOSTAS
“E vós, quem dizeis que eu sou?”
Marcos 8,29 “É possível que Jesus tenha sido um enigma até para si mesmo.”
Harold Bloom
É possível saber quem foi o homem que, há cerca de 2.000 anos, percorreu a região de Israel, falou às multidões, curou os enfermos, transmitiu uma mensagem nunca antes concebida e acabou torturado num patíbulo infame? O homem, no seu aspecto físico de carne, sangue, músculos, e o seu olhar, a palavra, o gesto bendizente ou, às vezes, violento, antes que a liturgia, a doutrina, o mito transformassem a sua memória num culto, o culto numa fé, a fé numa grande religião da humanidade. É possível até certo ponto. Nunca saberemos com certeza qual era a sua aparência, o som da sua voz ou o brilho do seu olhar; mas podemos tentar vislumbrar o homem na sua historicidade, naquelas terras e naquela época. Podemos aproximar-nos da sua figura grandiosa e buscar conhecê-lo assim como ele era, antes que desaparecesse atrás da espessa cortina da teologia. O diálogo que compõe este livro surgiu da necessidade e da possibilidade de saber quem foi Jesus, ou Yehoshua ben Yoseph, em hebraico. Quero agradecer ao professor Mauro Pesce, biblista renomado, professor titular da cátedra de História do Cristianismo na
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Diálogo sobre Jesus
Universidade de Bolonha — a quem se deve o recente e bem-sucedido volume Le parole dimenticate di Gesù (A palavra esquecida de Jesus) —, por ter aceitado o convite para discutir com um leigo como eu essa matéria que ele conhece tão bem. Quando começamos a preparar o nosso diálogo, o professor esclareceu, nestes termos, a sua posição: “Estou convencido de que a pesquisa historiográfica não prejudica a fé, tampouco obriga à crença. É claro que, às vezes, ela pode levar a questionar alguns aspectos da imagem confessional de Jesus, mas isso leva a uma reformulação da fé, e não à sua negação. Por outro lado, algumas afirmações grosseiramente antieclesiásticas também sofrem os efeitos dos questionamentos da pesquisa. Nesse caso, porém, temos as condições para uma atitude laica mais madura, e não a obrigação de abraçar a fé.” Fiz perguntas que, justamente por ser leigo, considerava fundamentais: o que representou a presença de Jesus na Palestina daquela época? Ele era apenas um entre as centenas de pregadores andarilhos, possuídos por Deus, que percorriam aqueles vilarejos? Foi ele mesmo ou Paulo de Tarso quem fundou o cristianismo? Por que não restou quase nenhum vestígio daquela multidão de “profetas”? Quem se lembra, hoje, de Judas, o Galileu, ou de Teudas, o Egípcio? E por que foi justamente ele quem conseguiu introduzir entre os homens categorias de pensamento e sentimentos que até aquele momento estavam guardados entre as emoções privadas? Houve também perguntas aparentemente mais banais, as perguntas que nos fazemos sobre qualquer personagem histórico: onde nasceu? Filho de quem? Quando? Por estarmos no ano 2006* da era cristã (5766 da era hebraica), deveríamos pensar que ele tenha nascido num hipotético ano zero. Mas não é assim. Jesus nasceu por volta dos últimos anos do reinado de Herodes, que morreu no 750º ano ab urbe condita,** ou seja, circa 4 a.C. Hoje, portanto, teríamos de estar, no mínimo, em 2010, se contássemos realmente a partir do seu * Ano de publicação da edição em italiano. (N.T.) ** Expressão latina que significa “desde a fundação da cidade” (no caso, a cidade de Roma). (N.T.)
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nascimento; outras encruzilhadas históricas, seria complicado resumi-las, levariam essa data ainda mais para trás. E mais: ele nasceu realmente no dia 25 de dezembro? Isso também é pouco provável. Mais ou menos nesse dia, ocorre o solstício de inverno, depois do qual os dias começam a ficar mais longos; a Terra retoma, por assim dizer, a sua direção rumo à primavera. O dia 25 de dezembro, consequentemente, é uma data tão carregada de significados astronômicos e simbólicos que se dizia que outro Deus também nascera nesse dia: o misterioso Mitra, divindade benévola que teve muitos seguidores em Roma. O mitraísmo foi uma religião que concorreu por muito tempo com o cristianismo. Mitra também se tornou homem para salvar a humanidade. Uma das lendas conta que ele veio ao mundo encarnado no ventre de uma virgem e que teria abandonado esta terra, para voltar ao céu, com 33 anos de idade. E ainda: onde nasceu Jesus? Em Belém? Talvez nem isso saibamos ao certo. Pelo contrário, sabemos, com base somente numa avaliação histórica, que a hipótese do nascimento em Belém não é convincente. Somente Mateus (2,1-6) diz explicitamente por que aquele vilarejo minúsculo teria sido escolhido. Num dos livros da Bíblia está de fato escrito (Mq 5,1): “Mas tu, Belém-Efrata, tão pequena entre os clãs de Judá, é de ti que sairá para mim aquele que é chamado a governar Israel.” Dessa perspectiva, até o nascimento em Belém se torna um dado mais teológico do que biográfico. Jesus tinha de nascer nesse pequenino povoado porque as Sagradas Escrituras haviam profetizado que ali nasceria o futuro rei de Israel. Nascido de uma virgem? Como explicar, fora do âmbito de uma observância dogmática, tamanho absurdo? A despeito do fato de que, em vários trechos, os Evangelhos falam dos irmãos e das irmãs de Jesus? Em muitas outras ocasiões, a Bíblia hebraica (o Antigo Testamento, na expressão cristã) foi utilizada para dar legitimidade a Jesus. Toda a tradição cristã tenta vislumbrar nela as antecipações ou as explicações da sua vida breve e trágica, reduzindo, assim, a poderosa (até mesmo do ponto de vista literário) tradição hebraica a quase somente um signo precursor da novidade representada pelo cristianismo.
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Finalmente, esta pesquisa possui também motivações mais contingentes, surgidas a partir da curiosidade de se compreenderem as razões do sucesso de livros e filmes sobre Jesus, o porquê da persistência de lendas nebulosas como a do Santo Graal, sobre a qual o escritor norte-americano Dan Brown baseou o seu O Código Da Vinci. Como explicar a venda de dezenas de milhões de exemplares de um modesto thriller ? Personagens recortados como figurinhas de papelão, um texto sem vigor, metáforas sem vivacidade. Onde está o segredo desse sucesso sem precedentes? O seu autor teve apenas a astúcia, ou a sorte, de encontrar um tesouro, talvez até mesmo sem tê-lo procurado. Esse tesouro era a curiosidade — talvez pudéssemos dizer a ansiedade, espalhada pelo mundo — de saber quem realmente foi Yehoshua ben Yoseph. É possível que as coisas tenham de fato ocorrido como narra a Vulgata das Igrejas cristãs? Ou uma parte da história foi suprimida porque era difícil demais fazer com que ela correspondesse ao quadro delineado pela doutrina? E ainda: o que realmente sabem os cristãos sobre tudo isso? Quantos deles têm consciência de que Jesus, chamado o Cristo, ou seja, o Ungido, o Consagrado, era, em primeiro lugar, um profeta judeu, filho daquela fé, obediente à Torá até nos mínimos detalhes do vestuário e da alimentação, mas, ao mesmo tempo, profundamente inovador, consciente de possuir uma natureza extraordinária, ansioso por saber de Deus o que devia fazer com essa natureza? O encontro entre a minha curiosidade (mas também poderia defini-la como ansiedade) e a ciência do professor Pesce resultou neste livro. Saiba o leitor que estas páginas, seja como for que ele as avalie, foram pensadas e escritas de boa-fé.
Corrado Augias Junho de 2006
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