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O MESMO HOMEM GEORGE ORWELL E V E LY N W A U G H NO AMOR E NA GUERRA
Tradução Pedro Jorgensen
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UMA NOITE LÍMPIDA DE JUNHO DE 1930, EM PLENO AUGE
de uma magnífica temporada londrina, o duque e a duquesa de Marlborough ofereciam um jantar em sua esplêndida mansão. Nas festas dos anfitriões mais jovens, as melodias cadenciadas de Gershwin chegavam às ruas calçadas de pedra para chamar os retardatários. Nesta, não. Não se ouviam saxofones na festa dos Marlborough. Aqui a atração eram os convidados, uma sólida mescla de vetustez com notabilidade. Do outro lado da rua, uma pequena multidão de supostos afortunados observava a chegada dos grã-finos. Um dos que tiveram a grande porta aberta à sua passagem foi um famoso escritor de apenas 26 anos de idade. Apesar da pouca estatura, ele atravessou o hall de entrada com o porte de um membro da Guarda Real. Era rijo, forte e vistoso, com um charme que emanava de suas feições finas e de seu magnetismo pessoal. Todos os homens presentes vestiam white tie, mas se toleravam toques pessoais. O jovem e elegante escritor fazia por merecer os olhares de aprovação que o acompanhavam.
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Evelyn Waugh publicara dois romances cômicos de sucesso. O segundo, Vile Bodies, era o assunto do momento nos bairros da cidade onde viviam as pessoas reunidas na casa dos Marlborough. Waugh mantinha um diário dedicado em sua maior parte ao registro detalhado dessa sorte de eventos. Por isso sabemos hoje o que ocorreu naquela noite. No jantar, ele se sentou ao lado de Edith Sitwell, também escritora, não tão em voga na época, mas dona de um pedigree indiscutivelmente aristocrático. A certa altura da festa, Sitwell foi efusivamente abordada pela soprano australiana Nellie Melba, que lhe disse: “Eu li os seus livros, senhorita Sitwell.” “Não seja por isso, dame Melba [sic],1 eu já a ouvi cantar”, respondeu Sitwell, ela própria uma futura dama. Assim era a festa. Todo o seu esplendor foi parar no diário de Waugh: “Estavam presentes dois embaixadores e cerca de quarenta aristocratas de meia-idade com suas esposas. A duquesa toda coberta de diamantes magníficos. O duque com a Ordem da Jarreteira, um enorme turbante de seda na cabeça e uma venda nos olhos, de onde saltava seu narizinho adunco. Quando eu saí, a duquesa disse: ‘Ah, igualzinho ao Marlborough. Que espírito tão mundano! Ele não perde uma festa a que tenha sido convidado por escrito’”. Ela estava certa. O jovem escritor foi, de fato, a outra festa, que também acabou em seu diário. Outros, talvez, teriam tomado os comentários da duquesa como pouco lisonjeiros, mas nosso diarista os guardou com Dama. Título honorífico dado a um membro feminino da Ordem do Império Britânico (Webster’s). (N. T.)
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todo apreço: afinal, eles o colocavam em pé de igualdade com um duque. Para Evelyn Waugh, o favorito das anfitriãs que importavam, aquela fora uma noite típica de uma semana típica. No dia seguinte, ele registrou: “Almocei no Ritz. Encontrei Noel Coward.” Todas as páginas do diário eram repletas de nomes e lugares reluzentes — lady Cunard, Randolph Churchill (que “atirou um coquetel na cara da Wanda”), Nancy Mitford, Cecil Beaton, Diana Guinness, lorde Birkenhead, lady Ponsonby, Sophie Tucker (!), lorde David Cecil, Harold Nicholson e assim por diante. Um piquenique: “Diana Cavendish, os três garotos Cecil e as duas crianças Omrsby-Gore.” “No chá estavam lady Oxford, lady Clifford, lady Russell, John Buchan e o primeiro-ministro.” O diário de Waugh era ao mesmo tempo uma crônica e um placar. Um rol de objetivos atingidos. Por meio desses registros, ele mostrava à posteridade e a si mesmo que havia se tornado exatamente a pessoa que queria ser. Não fora fácil juntar-se aos deuses. A sua nova vida não refletia as suas origens. Ele se alçara pelas asas da vontade.
de junho de 1930, enquanto Waugh entretinha a duquesa, um jovem de mesma idade, mas de aparência muito diferente, trabalhava recluso num cômodo pequeno e pobre de uma casa do bairro operário de Leeds, cidade industrial do norte da Inglaterra. Eric Blair era o hóspede importuno de seu cunhado, que, por sua vez, via o seu inquilino como um fracassado — sem dinheiro, sem emprego e sem futuro. Essa opinião era compartilhada por quase todos os que o conheciam: um grupo relativamente pequeno, mas que incluía NAQUELA MESMA NOITE AMENA
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vários especialistas em insucesso, por experiência própria. Blair se parecia com, e até fedia como um mendigo, porque era, de fato, um mendigo. Fazia questão, porém, de dizer que não era, que apenas optara por viver entre mendigos para se livrar dos preconceitos de classe contra a pobreza e a imundície. Ele disse: “Depois de dividir a cama com um mendigo e tomar chá na mesma lata de cheirar rapé, você sabe que já passou pelo pior, e o pior já não o aterroriza.” Para se libertar do preconceito de classe, Blair se vestia em andrajos e passava dias, às vezes semanas, vagando pelos bairros pobres de Londres e de cidades do interior do país. Depois, retornava à modesta casa de seus pais ou ao apartamento de um amigo. Ele não tinha casa. Era por isso que estava com o cunhado, em Leeds. Também porque não podia ficar o tempo todo na rua. Precisava de paz e silêncio, porque estava escrevendo um livro. Era um livro sobre restaurantes franceses, mas não um guia turístico. A bem da verdade, seu livro faria os leitores terem vontade de comer em casa. Era a história de suas agruras nas cozinhas imundas dos restaurantes de Paris, onde passara os dois anos precedentes lavando a louça dos clientes ricos sentados do outro lado da porta de vaivém. Não era o mesmo que mendigar para aprender a tolerância. Era trabalho pesado, em meio a sujeira, restos de comida e barulho, para ganhar apenas o suficiente para se manter vivo. O livro de Blair seriam as memórias furibundas de um homem doente e faminto que vivia das sobras dos ricos. Ele queria escrever sobre a vida dos mais pobres. Em Leeds, depois de jantar com a irmã e o cunhado, ele subia para o seu quartinho e escrevia a noite inteira. (O batuque
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da máquina de escrever devia enlouquecer o cunhado.) Trabalhava sem parar, em busca das palavras certas. Seu progresso era lento e penoso. Blair se considerava um escritor mesmo não tendo com o que prová-lo. Tinha a mesma idade de Waugh, mas ainda não publicara um livro sequer. Experimentara a ficção e escrevera alguns artigos, quase todos recusados. Um dos poucos que logrou publicar, numa pequena revista londrina, mais ou menos na época do jantar dos Marlborough, era uma crítica do livro de Edith Sitwell sobre Alexander Pope. Ele elogiava a obra, mas, anos mais tarde, ainda tentava encontrar uma forma de conhecer a célebre comensal de Waugh, sua autora. O severo datilógrafo do sótão em busca do seu público leitor e o festejado escritor aos risos com os senhores da nação não podiam ser mais diferentes. Waugh era peremptório, engraçado e elegante; Blair, emotivo, calado e malvestido. Cada qual reclamara seu lugar num extremo da hierarquia social e já se sentia à vontade no papel. Um era a encarnação do privilégio, o outro, o seu famélico antagonista. Até em altura eles contrastavam: Blair tinha 1,88m, Waugh cerca de 1,65m. Suas vidas seriam sempre completamente diferentes, ambas, porém, dedicadas a escrever. E embora tenham escrito para públicos diferentes, em vozes diferentes, eles nos deixaram uma visão comum não apenas de sua própria época, mas também da nossa. Os ensaios e alguns dos romances de George Orwell, assim como a obra ficcional de Waugh, são hoje considerados obrasprimas. Hoje, é fácil ver esses dois autores como gigantes literários de seu tempo: uma época que ambos detestavam profundamente — o século XX, do prefácio da Primeira Guerra
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Mundial ao posfácio da Segunda — tanto quanto aquilo que, eles sabiam, viria em seguida. Ambos viam na vida moderna um inimigo terrível — aversão que não se resumia ao totalitarismo, mas abarcava tudo o que o futuro prometia, mesmo que o totalitarismo fosse derrotado. Eles viam o fim do senso comum e do objetivo comum. Viam a futilidade da vida sem raízes e sem fé. Viam o vazio de uma existência cujo único propósito era o consumo de bens materiais. Nas obras-primas de suas vidas, escritas para nos alertar para o que estava por vir, eles acabaram se tornando, por incrível que pareça e sob vários aspectos, o mesmo homem. Esta é a nossa história — que começa com as histórias deles.
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