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Da Autora: A Virgem Azul Moça com Brinco de Pérola Anjos Caídos A Dama e o Unicórnio Viva Chama Seres Incríveis
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Tracy Chevalier
S ERES I NCRÍVEIS
Tradução BEATRIZ HORTA
Rio de Janeiro | 2014
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Diferente de todas as pedras da praia
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empre me impressionei com raios. Apenas uma vez, por um motivo real. Eu nem deveria me lembrar disso, pois era pouco mais que um bebê. Mas me lembro. Estava num campo, onde cavalos e cavaleiros faziam apresentações. Então, caiu uma tempestade, e uma mulher (que não era a minha mãe) me pegou e me levou para baixo de uma árvore. Enquanto ela me segurava com força, olhei para cima e vi folhas negras contra o céu branco. Fez-se então um barulho, como se todas as árvores estivessem caindo ao meu redor, e também um clarão, um enorme clarão, como se eu estivesse encarando o sol. Um chiado me atravessou. Parecia que eu havia encostado em carvão quente; senti cheiro de carne chamuscada e dor, mas não era doloroso. Como se eu fosse uma meia virada ao avesso. Pessoas começaram a me sacudir e a me chamar, mas eu não conseguia emitir nenhum som. Fui levada para algum lugar, depois senti uma espécie de calor me envolver, não o de um cobertor, mas um calor úmido. Era água, e água eu conhecia: nossa casa ficava perto do mar, dava para ver das janelas. Então, abri os olhos, e a impressão que tenho é a de que não os fechei mais.
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Tr a c y C h e v a l i e r O raio matou a mulher que me segurava e duas meninas que estavam ao lado dela, mas eu me salvei. Dizem que eu era uma criança calada e enfermiça antes da tempestade, mas que depois fiquei alegre e agitada. Não sei se é verdade, mas a lembrança daquele raio ainda me percorre como um calafrio. Raios marcam momentos importantes da minha vida: ter visto a primeira caveira de crocodilo que Joe encontrou, e depois eu mesma encontrar seu esqueleto; ter descoberto meus outros monstros na praia; ter conhecido o coronel Birch. Às vezes, ouço um raio cair e fico pensando por que cai. Outras vezes, não entendo, mas aceito o que ele me diz, pois o raio sou eu. Entrou em mim quando eu era bebê e nunca mais saiu. Sinto o eco do raio toda vez que encontro um fóssil, um pequeno solavanco que me diz: “Sim, Mary Anning, você é diferente de todas as pedras da praia.” Por isso sou uma caçadora de fósseis: para sentir, todos os dias, o choque do raio e essa diferença.
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Uma atividade suja e misteriosa, pouco adequada a uma dama
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ary Anning comanda com o olhar. Isso ficou evidente na primeira vez em que nos encontramos, quando ela não era mais que uma menina. Seus olhos são do marrom de um botão, e brilham, e ela tem a mania dos caçadores de fósseis: está sempre procurando alguma coisa, mesmo na rua ou numa casa, onde não há nenhuma possibilidade de encontrar algo que possa interessar. Isso lhe dá uma aparência vigorosa, mesmo quando parada. Minhas irmãs me disseram que eu também examino tudo, em vez de ficar com os olhos estáticos, mas não dizem isso como um elogio, como eu me refiro a Mary. Há muito tempo percebi que as pessoas costumam comandar com um determinado traço físico, seja do rosto ou do corpo. Meu irmão, John, por exemplo, comanda com as sobrancelhas. Não somente porque elas formam tufos proeminentes sobre os olhos, mas por serem a parte do seu rosto que mais se movimenta, indicando o rumo de seus pensamentos à medida que a testa enruga e alisa. Ele é o segundo dos cinco Philpot, e o único homem, o que o tornou responsável por quatro irmãs, depois que nossos pais morreram.
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Tr a c y C h e v a l i e r Tais circunstâncias levariam qualquer um a mover as sobrancelhas, mesmo sendo ele sério desde menino. Minha irmã caçula, Margaret, comanda com as mãos. Apesar de baixinha, seus dedos são proporcionalmente longos e elegantes, e ela toca piano melhor que o restante de nós. Costuma agitar as mãos quando dança e, ao dormir, joga os braços para cima da cabeça, mesmo se faz frio no quarto. Frances foi a única das irmãs Philpot a se casar e comanda com o peito, o que eu suponho que explique o casamento. Nós, as Philpot, não somos conhecidas pela beleza. Somos ossudas, de traços fortes. Além do mais, só havia dinheiro na família para casar com tranquilidade uma única filha, e Frances venceu a corrida, saindo da praça Red Lion para se tornar esposa de um comerciante em Essex. Minha maior admiração sempre foi por aqueles que comandam com os olhos, como Mary Anning, porque parecem mais cônscios do mundo e de seus processos. Por isso me dou melhor com a minha irmã mais velha, Louise. Ela tem olhos castanhos como todos os Philpot e fala pouco, mas, quando olha para nós, logo sabemos. Eu sempre quis comandar com os olhos também, mas não tive essa sorte. Tenho o queixo saliente e, quando ranjo os dentes (com mais frequência do que deveria, pois o mundo me frustra), ele fica tenso e agudo como uma lâmina de machado. Uma vez, num baile, ouvi um pretendente em potencial dizer que não ousava me convidar para dançar por medo de se cortar no meu rosto. Nunca consegui me recuperar dessa observação. Isso explica por que sou solteirona e por que danço tão raramente. Gostaria muito de transferir meu traço de comando do queixo para os olhos, mas reparei que as pessoas não mudam isso, da mesma forma que não mudam de personalidade.
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S e r e s I n c r í v e i s • 15 Assim, fiquei com o meu queixo rígido que afasta as pessoas, petrificada como os fósseis que coleciono. Ou, pelo menos, é o que acho. Conheci Mary Anning em Lyme Regis, onde morou a vida inteira. Não era, certamente, o lugar onde eu esperava morar. Claro que Londres consistia especificamente na praça Red Lion, onde fomos criados. Ouvia falar de Lyme como se ouve falar de um balneário que está na moda, mas nunca estivéramos lá. No verão, costumávamos ir a cidades do condado de Sussex, como Brighton ou Hastings. Em vida, nossa mãe instava para que respirássemos ar fresco e tomássemos banho de mar, pois seguia as recomendações do doutor Richard Russell, autor de uma tese sobre os benefícios da água do mar, no banho ou ingerida. Eu me recusava a beber água salgada, mas, às vezes, nadava no mar. E me sentia em casa na praia, embora nunca pensasse que isso se tornaria uma verdade literal. Seja como for, dois anos após a morte de nossos pais, meu irmão anunciou, durante o jantar, seu noivado com a filha de um dos advogados amigos de nosso finado pai. Beijamos John e lhe demos os parabéns; depois, Margaret tocou ao piano uma valsa comemorativa. Mas, na cama, naquela noite, chorei, e minhas irmãs também, pois sabíamos que nossas vidas em Londres haviam se acabado. Depois que John se casasse, não haveria lugar nem dinheiro para todos nós morarmos na praça Red Lion. A nova sra. Philpot ia querer, claro, ser a dona da casa e enchê-la de filhos. Três irmãs era demais, sobretudo por ser pouco provável que nos casássemos. Louise e eu sabíamos que íamos ficar solteironas. Como tínhamos pouco dinheiro, nossas aparências e personalidades destinaram-se a conquistar maridos, mas elas eram irregulares demais para nos ajudar. Embora tivesse olhos que realçavam
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Tr a c y C h e v a l i e r e iluminavam seu rosto, Louise era muito alta, mais do que a maioria dos homens poderia aceitar, e tinha mãos e pés grandes. Era também tão calada que os pretendentes se irritavam, pensando que ela os julgava. Provavelmente julgava mesmo. Quanto a mim, era pequena, ossuda e simples, não conseguia flertar, mas procurava conversar sobre assuntos sérios, o que também afastava os homens. Dessa forma, restava-nos ser transferidas como ovelhas pastoreadas de um campo ceifado para outro. E John seria o nosso pastor. Na manhã seguinte, ele colocou sobre a mesa do café um livro emprestado de um amigo. — Achei que, nas férias de verão, vocês gostariam de ir para um lugar novo, em vez de visitar os tios em Brighton outra vez — sugeriu. — Se quiserem, podem fazer uma pequena excursão pelo litoral sul. Como a guerra com a França não permite que se viaje ao continente, estão surgindo muitas hospedarias na costa. Talvez existam lugares que vocês gostem mais até do que Brighton. Como Eastbourne ou Worthing. Ou mais longe, em Lymington, ou no litoral de Dorset: Weymouth ou Lyme Regis. John ia nomeando aqueles lugares como se recordasse mentalmente uma lista, colocando um pequeno sinal a lápis ao lado de cada um. Era assim que trabalhava sua organizada cabeça de advogado. Claro que ele havia pensado conclusivamente para onde queria que fôssemos, embora nos pastoreasse para lá com toda a gentileza. — Deem uma olhada para ver de onde gostam mais. — Dando um tapinha no livro, não disse mais nada, mas sabíamos que não estávamos procurando apenas um local de férias, e sim uma nova casa, onde pudéssemos viver de forma mais nobremente rebaixada que como londrinas pobres.
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S e r e s I n c r í v e i s • 17 Quando ele foi para o escritório, peguei o livro. — Guia de todas as estações termais e de balneários para 1804 — li alto para Louise e Margaret. Folheando-o, encontrei verbetes, em ordem alfabética, sobre as cidades inglesas. Bath, que estava na moda, tinha o verbete maior, claro: 49 páginas, além de um mapa grande e de uma vista panorâmica desdobrável da cidade, com suas casas de fachadas idênticas incrustadas nas colinas ao redor. Nossa querida Brigthon merecera 23 páginas e um texto cheio de exaltação. Olhei as cidades que nosso irmão mencionara, algumas das quais pouco mais do que elogiadas vilas de pescadores, merecedoras de apenas duas páginas de platitudes indiferentes. John fizera um sinal ao lado de cada uma. Imaginei que havia lido todos os verbetes e escolhido os mais adequados. Ele concluíra sua pesquisa. — O que Brighton tem de errado? — perguntou Margaret. Naquele momento, eu estava lendo sobre Lyme Regis, e fiz uma careta. — Eis a resposta para a sua pergunta. Veja o que John marcou — disse a ela, entregando-lhe o guia. — “Lyme é frequentada, sobretudo, por pessoas da classe média — leu Margaret alto. — “… em busca não tanto da saúde perdida, mas da cura para suas fortunas periclitantes, ou da recuperação de suas combalidas finanças.” — Deixou o livro cair no colo. — Portanto, Brighton é muito cara para as irmãs Philpot, certo? — Você poderia ficar aqui com John e a esposa — sugeri, num rompante de generosidade. — Imagino que eles possam sustentar uma de nós. Não podemos ser todas banidas para o litoral. — Bobagem, Elizabeth, não vamos nos separar — garantiu Margaret, com uma lealdade que me fez abraçá-la.
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Tr a c y C h e v a l i e r * * * Naquele verão, percorremos o litoral, como John havia sugerido, acompanhadas por ele, nossos tios, nossa futura cunhada e a mãe dela. Os companheiros de viagem faziam comentários como: “Que jardins maravilhosos! Invejo quem vive aqui o ano inteiro e pode percorrê-los quando queira”, ou: “Essa biblioteca itinerante tem um acervo tão bom que se diria estar em Londres”, ou ainda, “Como o clima aqui é suave e agradável, não? Quem dera, respirar esse ar todos os dias”. Era intolerável que os outros considerassem nosso futuro de forma tão banal, principalmente nossa cunhada, que ia se apossar da casa dos Philpot e não tinha que pensar em morar em Worthing ou Hastings. Seus comentários tornaram-se tão irritantes que Louise começou a esquivar-se dos passeios em grupo, e eu a fazer observações cada vez mais impertinentes. Somente Margaret apreciou a novidade dos lugares, ainda que apenas para achar graça na lama de Lymington ou da rusticidade do teatro de Eastbourne. O lugar de que mais gostou foi Weymouth; a paixão do rei George pela cidade tornou-a mais popular que as outras, de modo que vários coches faziam diariamente o trajeto de Londres a Bath, e o lugar era muito frequentado por gente da moda. Quanto a mim, fiquei indisposta durante quase toda a excursão. Saber que talvez fôssemos obrigadas a nos mudarmos para um lugar tinha a capacidade de aniquilá-lo como local de férias. Era difícil considerar um balneário como alguma coisa não inferior a Londres. Até Brighton e Hastings, que antes eu teria adorado conhecer, me pareceram sem graça e sem atrativos.
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S e r e s I n c r í v e i s • 19 Quando chegamos a Lyme Regis, nosso grupo estava resumido a Louise, Margaret e eu: John tivera de voltar para o escritório levando a noiva e a sogra, e nosso tio sofrera um ataque de gota que o remeteu, claudicando, com a esposa, de volta a Brighton. Fomos a Lyme acompanhadas pelos Durham, uma família que conhecemos em Weymouth, viajou conosco no coche e nos ajudou a nos instalarmos na Broad Street, a rua principal da cidade. De todos os cantos em que estivemos naquele verão, achei Lyme o mais atraente. Estávamos em setembro, mês adorável em qualquer lugar. Com sua temperatura suave e sua luz dourada, ele amenizava até o mais tenebroso balneário. Fomos brindados com o bom tempo e estávamos livres das expectativas de nossa família. Finalmente eu poderia formar minha própria opinião sobre o lugar onde deveríamos viver. Lyme Regis é uma cidade que se adequou à sua geografia em lugar de forçar a região a adequar-se a ela. As colinas que levam ao município são tão íngremes que os coches não conseguem descê-las: os passageiros desembarcam em Queen’s Arms, em Charmouth, ou na encruzilhada de Uplyme, e são levados até lá embaixo em carroças. A via estreita conduz à praia e, então, subitamente, dá as costas para o mar e sobe a colina novamente como se quisesse apenas olhar as ondas antes de desaparecer. A baixada, onde o riacho Lym desemboca no mar, forma a praça no centro da cidade. Ali se situa a principal hospedaria, The Three Cups, em frente à alfândega e ao Salão de Festas, que, embora simples, exibe três grandes candelabros e uma linda varanda envidraçada abrindo para a praia. As casas se espalham a partir do Centro, à beira-mar ou rio acima, e as lojas e as barracas do mercado Shambles sobem a Broad Street. Não é uma cidade projetada, como Bath,
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Tr a c y C h e v a l i e r Cheltenham ou Brighton, pois serpenteia para lá e para cá como se tentasse em vão fugir das colinas e do mar. Lyme, porém, não é exclusivamente isso. É como se nela houvesse duas aldeias vizinhas ligadas por uma pequena praia onde, enfileiradas à espera do fluxo de visitantes, ficam as cabines de banho, puxadas a cavalo. A oeste da praia, a outra Lyme não rejeita o mar; abraça-o. É dominada pelo Cobb, um comprido muro de pedra cinzenta que dobra como um dedo até alcançar a água e que protege a praia, formando um tranquilo porto para os barcos de pesca e os navios mercantes que vêm de toda parte. O Cobb atinge vários metros de altura e é largo o bastante para três pessoas andarem por ele de braços dados, o que muitos visitantes fazem, pois ele oferece uma vista ótima da cidade e do marcante contorno da orla mais além das colinas ondulantes e dos rochedos verdes, cinzentos e marrons. Bath e Brighton são bonitas a despeito de seus arredores; suas construções iguais de pedra lisa criam um artifício que agrada à vista. Lyme é linda, graças aos arredores e apesar de suas casas inexpressivas. Gostei dela assim que a vi. Minhas irmãs também gostaram de Lyme, por diferentes razões. Margaret, por um motivo simples: ela era a bela dos bailes de Lyme. Aos dezoito anos, estava no frescor da vida, além de ser animada e bonita como uma Philpot jamais fora. Possuía encantadores cachos negros e braços longos que adorava erguer para que as pessoas pudessem admirar suas linhas graciosas. O rosto era um pouco comprido, a boca um pouco fina e os tendões do pescoço um pouco proeminentes, mas isso, aos dezoito anos, não tinha importância. Teria mais tarde. Pelo menos, não tinha meu queixo quadrado e saliente, nem a altura inconveniente de Margaret. Naquele verão,
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S e r e s I n c r í v e i s • 21 poucas moças podiam rivalizar com ela, e os cavalheiros dispensaram-lhe mais atenção do que os de Weymouth ou Brighton, onde a quantidade de concorrentes era maior. Margaret estava feliz de passar de um baile a outro, preenchendo os intervalos com jogos de carta e chás no Salão de Festas, banhos de mar e passeios para cima e para baixo pelo Cobb com suas novas amigas. Louise não se interessava por festas ou baralho, mas logo descobriu um lugar perto dos rochedos, a oeste da cidade, que possuía uma flora surpreendente e caminhos selvagens, escondidos, formados por pedras caídas cobertas de hera e limo. Isso agradou tanto ao seu interesse pela botânica quanto à sua natureza reservada. Quanto a mim, achei uma ocupação em Lyme, certa manhã, numa caminhada pela praia Monmouth, a oeste do Cobb. Tínhamos acompanhado os Durham, nossos amigos de Weymouth, à procura de um certo penhasco, numa praia chamada Cemitério das Cobras, que só podia ser visto na maré baixa. Ficava mais longe do que pensamos e era difícil andar com sapatos finos na praia rochosa. Eu precisava olhar para baixo para não tropeçar nas pedras. Quando pisei entre duas delas, percebi um seixo estranho, decorado com listras. Inclinei-me e peguei-o — a primeira de milhares de vezes que faria isso na minha vida. Tinha uma forma espiralada, com sulcos a intervalos regulares em redor da espinha e parecia uma cobra enrolada, com a ponta da cauda no centro. Sua forma perfeita era tão agradável de ver que quis guardá-la, embora sem ter ideia do que fosse. Apenas sabia que não era um seixo. Mostrei-o para Louise e Margaret, e depois aos Durham. — Ah, é uma cobra-de-pedra — declarou o sr. Durham.
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Tr a c y C h e v a l i e r Quase atirei-a fora, embora a lógica me dissesse que aquela cobra não podia estar viva. Mas também não podia ser apenas uma pedra. Então, compreendi: — É um... fóssil, não é? — Usei a palavra sem muita segurança, pois não estava certa de que os Durham a conhecessem. Claro que eu tinha lido sobre fósseis e visto alguns numa vitrine do Museu Britânico, mas não sabia que podiam ser encontrados com tal facilidade numa praia. — Suponho que sim — disse o sr. Durham. — As pessoas costumam encontrar essas coisas aqui na região. Alguns moradores as vendem como curiosidades. Por isso são chamadas de curios. — Onde está a cabeça? — perguntou Margaret. — Parece que foi cortada. — Pode ter caído — sugeriu a srta. Durham. — Onde a encontrou, srta. Philpot? Indiquei o lugar, e todos nós procuramos, mas não havia nenhuma cabeça de cobra na areia. Logo os outros perderam o interesse e continuaram a caminhada. Procurei mais um pouco, depois segui o grupo, abrindo a mão de vez em quando para olhar aquele que era o primeiro espécime do que, depois, eu aprenderia chamar-se amonite. Era estranho ficar segurando o corpo de um ser, fosse ele o que fosse. Apertar sua forma sólida era tão confortador como apoiar-se em uma bengala ou no corrimão de uma escada. No final da praia Monmouth, pouco antes do Seven Rocks Point, onde se perdia a praia de vista, achamos o Cemitério das Cobras. Era um penhasco liso de calcário, com impressões em espiral, linhas brancas contra a pedra cinza, mostrando centenas de criaturas como aquela que eu estava
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S e r e s I n c r í v e i s • 23 segurando, só que enormes, cada uma do tamanho de um prato. Uma visão tão estranha e desoladora que todos nós nos calamos. — Devem ser jiboias, não? São imensas! — disse Margaret. — Mas na Inglaterra não há jiboias. Como vieram parar aqui? — observou a srta. Durham. — Talvez tenham vivido aqui há algumas centenas de anos — ponderou a sra. Durham. — Ou até mil, cinco mil anos atrás — avaliou o sr. Durham. — Podem ser antigas assim. Talvez as jiboias tenham migrado depois para outras regiões. Para mim, não pareciam cobras nem qualquer outro animal que eu conhecesse. Andei sobre a rocha, pisando com cuidado para não machucar aquelas criaturas, ainda que estivessem mortas havia muito tempo e não fossem exatamente corpos, mas desenhos na pedra. Era difícil imaginar que um dia tinham sido vivas. Pareciam eternas, como se desde sempre existissem ali na pedra. Se morássemos em Lyme, eu viria olhar aquilo quando bem entendesse, pensei. E encontraria pequenas cobras-depedra e outros fósseis na praia. Era alguma coisa. Para mim, era o bastante.
Nosso irmão adorou a escolha. Além de Lyme ser um lugar barato, quando era rapaz, William Pitt, o Jovem, estivera lá para recobrar a saúde, e John achou reconfortante que um exPrimeiro-Ministro britânico apreciasse muito a cidade para onde ele estava banindo as irmãs. Mudamos na primavera seguinte, John nos arrumou um chalé bem acima das lojas e da praia, no alto da Silver Street, nome que a Broad Street
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Tr a c y C h e v a l i e r passa a ter, mais para o alto da colina, dirigindo-se para fora da cidade. Logo depois, John e sua recém-esposa venderam nossa casa na praça Red Lion e, com ajuda financeira da família dela, compraram outra nova, na Montague Street, próxima do antigo endereço e também do Museu Britânico. Não queríamos que nossa escolha nos afastasse do passado, mas foi o que aconteceu. Em Lyme, tínhamos somente o presente e o futuro. No começo, o Chalé Morley foi um choque, com seus cômodos pequenos, tetos baixos e pisos desnivelados, tão diferentes da casa em Londres onde crescêramos. Era de pedra, com telhado de ardósia, possuindo, no térreo, sala de visitas, sala de jantar e cozinha; no andar de cima, dois quartos e uma água-furtada, nos fundos, para Bessy, a nossa criada. Louise e eu ficamos no mesmo quarto e demos o outro para Margaret, pois ela reclamava quando líamos até tarde: Louise, seus livros de botânica; eu, minhas obras de história natural. Não havia espaço no chalé para o piano de mamãe, o sofá, nem a mesa de jantar de mogno. Tivemos de deixar tudo isso em Londres, comprar móveis menores e mais simples na vizinha Axminster, e um minúsculo piano, em Exeter. A redução física de espaço e mobília refletia nosso próprio encolhimento, de uma família rica com vários criados e muitas visitas, para um modesto lar com uma criada para cozinhar e limpar, numa cidade com muito menos famílias com as quais pudéssemos nos relacionar. Porém, logo nos acostumamos à nova casa. Na verdade, em pouco tempo nossa antiga moradia em Londres pareceu grande demais. Seus cômodos com pés direitos altos e janelas imensas eram difíceis de aquecer e maiores do que realmente o necessário; quando nós mesmos não somos grandes, a grandeur soa falsa. O Chalé Morley, entretanto, era uma casa feminina, do tamanho da personalidade e das expectativas de
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S e r e s I n c r í v e i s • 25 uma dama. Claro, nunca tivemos um homem morando lá; portanto, é fácil pensar assim, mas acho que um homem da nossa posição social se sentiria desconfortável. Isso acontecia com John sempre que nos visitava; vivia batendo a cabeça nas vigas do teto, tropeçando na soleira desigual das portas, abaixando a cabeça para olhar pelas janelas, hesitando nas escadas íngremes. Somente a lareira na cozinha era maior que a de Bloomsbury. Também nos acostumamos ao círculo social mais restrito de Lyme. É um lugar solitário, e a cidade mais próxima, Exeter, fica trinta quilômetros a oeste. Assim, ao mesmo tempo em que seus habitantes se adaptam às expectativas sociais da época, eles são singulares e imprevisíveis. Podem ter mente estreita, mas são tolerantes. Por essa razão, não é de surpreender que na cidade existissem diversos ramos de Dissidentes. Claro que a igreja mais importante, a de São Miguel, pertence ainda à igreja anglicana, mas há também outras a serviço dos que questionam a doutrina tradicional: metodistas, batistas, quakers, congregacionistas. Fiz alguns novos amigos em Lyme, mas o que me impressionava era mais o espírito obstinado da cidade como um todo do que especificamente as pessoas. Isto é, até que conheci Mary Anning. Durante anos, a cidade considerou as moças Philpot como transplantes londrinos a serem vistos com certa desconfiança e um pouco de indulgência. Não éramos ricas (cento e cinquenta libras por ano não permitem muito luxo a três solteironas), mas, sem dúvida, tínhamos uma situação melhor do que de muita gente, e o fato de sermos londrinas bem-educadas, filhas de advogado, nos conferia certo respeito. Que nenhuma das três tivesse marido era, com certeza, motivo de riso para muitos, mas, ao menos, riam pelas costas e não na nossa cara.