Terror - Prólogo

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Do autor: Série OS DESAFIOS DE HAMILTON Madame Terror Terror g g g

Série AS CRUZADAS Livro 1 – A Caminho de Jerusalém Livro 2 – O Cavaleiro Templário Livro 3 – O Novo Reino Livro Final – O Legado de Arn


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Os desafios de hamilton

JAN GUILLOU

TERROR Tradução do original sueco JAIME BERNARDES

Rio de Janeiro | 2013


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Prólogo

Ele amava cavalos, mas não foi por isso que morreu. Todos na sua família amavam cavalos, a maioria com certa sinceridade, alguns apenas por se tratar de uma necessidade social. Gostar de cavalgadas rápidas pelo deserto era quase uma imposição nacional. Da mesma forma que, embora num plano inferior e mais infantil, era obrigatório elogiar a torta de maçã da mamãe em sua outra pátria. Caso tivesse ficado mais atento ao que se passava no mundo um mês antes, seria muito provável que ainda estivesse vivo. Não lhe faltavam recursos. Como príncipe da Arábia Saudita, recebia uma pensão de 100 milhões de dólares por ano sem trabalhar, e somente com a compra de cavalos de corrida nos últimos anos — sempre cavalos de trote atrelado, uma perversidade ocidental — ganhara mais 127 milhões. No entanto, um mês atrás, em abril de 2002, apesar dos fracassos anteriores, ele ficara entusiasmado com a ideia de ganhar o Kentucky Derby, a corrida de cavalos que ele e muitos outros consideravam a mais importante do mundo. Já nutrira grandes esperanças de ganhar no ano anterior com seu Point Given, de 3 anos de idade, que vencera praticamente todas as corridas até a famosa decisão. Ao sofrer a grande desilusão de vê-lo chegar apenas em quinto lugar, foram necessários meses para sair da depressão.


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Porém, grandes esperanças renasceram. Ele estava em casa, em Riad, e assistia na televisão a uma cena do dia anterior do Derby de Illinois, em que um cavalo desconhecido, de nome War Emblem, chegara em primeiro lugar, seis corpos à frente do segundo colocado. O Derby de Illinois era, comparativamente, uma corrida sem importância, mas todo mundo podia ver que War Emblem tinha capacidade para vencer também no Kentucky. Portanto, era hora de agir. Em casos normais, o dono de um cavalo como aquele não estaria disposto a vendê-lo, não se importaria com quanto dinheiro lhe fosse oferecido. Também estaria sonhando em vencer o Kentucky Derby. Já devia ser muito rico, e, por isso, dinheiro não era problema. Qualquer pessoa que lhe telefonasse para tentar comprar o War Emblem estaria arriscada a escutar uma grande risada do outro lado da linha. Mas Sua Alteza Real, o príncipe Ahmed bin Salman bin Abdul Aziz, não era uma pessoa qualquer. O negócio não levou mais do que cinco minutos para ser concluído por telefone. E, quando o vendedor, surpreso e em estado de choque, desligou, logo lamentou não ter pedido o dobro do preço, já uma verdadeira fortuna. Em 7 de maio de 2002 fazia um tempo maravilhoso sobre o Hipódromo Churchill Downs, em Louisville, Kentucky, anunciando o verão que chegava. Seria, como sempre, uma festa grandiosa, perante um público de 145 mil espectadores, todos muito bem-vestidos, vindos de todos os lugares do mundo. Mas, em maio de 2002, nada ainda era normal nos Estados Unidos. O 11 de Setembro acontecera apenas oito meses antes. Ainda assim, uma hora antes de a corrida começar, deu-se início às cerimônias tradicionais. Os fuzileiros navais tocaram suas cornetas. Os bombeiros da terceira companhia, vindos da East Twenty-Ninth Street, entraram pelo círculo dos vencedores, marchando a um ritmo extralento, todos em uniforme de gala e exibindo medalhas. Doze dos seus colegas


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haviam morrido para salvar vidas americanas no ataque terrorista ao World Trade Center. Os bombeiros foram aplaudidos. Houve um minuto de silêncio. O público ficou quieto e respeitoso. Para o príncipe Ahmed, o tempo escorria lentamente. A largada foi às 18h04. Nas apostas, o War Emblem dava vinte para um. O príncipe Ahmed, por princípio, não apostou mais de 1 milhão de dólares no próprio cavalo. O jóquei Victor Espinoza nunca tinha visto o cavalo War Emblem e recebera instruções surpreendentes do treinador. Em resumo, devia se manter na briga, mas só avançar para a ponta no último minuto. — Ele me disse isso pelo menos umas cem vezes, até que, finalmente, respondi ok. War Emblem liderou a corrida de ponta a ponta e venceu com nada menos do que quatro corpos de vantagem. Alguns espectadores torceram o nariz quando o príncipe Ahmed abriu caminho em direção ao círculo dos vencedores, mas isso não pareceu incomodá-lo nem um pouco, já que aquele era um dos dias mais felizes da sua vida. — Aqui sou respeitado por todos — disse ele. — Todos aqui contribuem para o meu bom humor, de uma forma que quase me constrange. O público americano me trata muito melhor do que o público saudita. E acrescentou: — Esta é uma vitória decisiva na minha vida. Para mim é uma honra enorme ser o primeiro árabe a vencer o Kentucky Derby. Não se podia dizer que fosse um vencedor querido. Em sua euforia, porém, jamais poderia sentir essa contrariedade. O conhecido colunista Jimmy Breslin, entretanto, não deixou de tomar nota da situação ao escrever no Newsday: “O príncipe Ahmed bin Salman, da Arábia Saudita, acenava segurando a taça da vitória, certamente satisfeito com os muitos milhões


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que ganhou. E tudo isso bem perto dos bombeiros da terceira companhia [...] e eu tive logo a ideia de perguntar se ele teria algo a dizer, se lamentava ou se havia alguma coisa que pudesse fazer em relação ao que Osama bin Laden e outros dos seus compatriotas causaram em Nova York. Mas o homem não reagiu, não disse nada.” Duas semanas mais tarde, War Emblem venceu a segunda corrida mais importante dos Estados Unidos, o Preakness Stakes, em Baltimore. Então surgiu uma fantástica possibilidade. Desde 1977, quando Seattle Slew concretizou a façanha, nenhum animal vencera as três maiores corridas dos Estados Unidos no mesmo ano: o Kentucky Derby, o Preakness Stakes e o Belmont Stakes. O príncipe Ahmed, é claro, respondeu a uma quantidade enorme de perguntas dos jornalistas a respeito dessa possibilidade única e explicou que, se ganhasse a tríplice coroa, isso significaria tanto quanto um casamento feliz para seu filho e sua filha. Seria a realização de um sonho quase impossível. Mas, quando a corrida decisiva ocorreu, em 8 de junho, o príncipe Ahmed não estava presente em Belmont Stakes. Seu treinador, Bob Baffert, declarou que “problemas familiares” haviam impedido a vinda de Sua Alteza Real. War Emblem largou mal e não conseguiu nada além do oitavo lugar. Depois disso, não se ouviu falar mais do príncipe Ahmed. Seis semanas depois, em 22 de julho, saiu a notícia de que ele morrera. Segundo informações da Arábia Saudita, o 43.º sobrinho do rei Fahd teria falecido, durante a noite, de ataque cardíaco. Um pouco mais tarde, a versão de sua morte foi modificada. Teria sido consequência de uma trombose. ggggg


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Era uma composição estranha. Desde o início isso ficara claro, mas, em meio a tudo, era também a única coisa que estava clara. Um pelotão das forças de segurança do Paquistão, com suas boinas vermelhas, incluía quatro homens anônimos das Forças Especiais dos Estados Unidos, de uniformes paquistaneses, e outros tantos das equipes Swat do FBI, vindos de Peshawar, também estranhamente anônimos, a despeito das letras FBI em branco, apostas de forma indiscreta sobre os coletes. Só podia ser um tipo de missão: capturar algum facínora, e, quando a missão fosse cumprida, o prisioneiro acabaria nas mãos dos americanos, não nas dos paquistaneses. Mas nada se disse sobre onde e quando a missão seria realizada, o que, aliás, não era de se estranhar, visto que as forças de segurança do Paquistão eram tão suspeitas que não era possível diferenciá-las do inimigo. As experiências a esse respeito eram tão claras quanto sombrias. As unidades americanas, por motivos burocráticos ou políticos inexplicáveis, não podiam atuar no Paquistão, a não ser disfarçadas como soldados paquistaneses. Mas, se o Exército local soubesse com antecedência onde e contra quem seria realizada a ação, era garantido que o pássaro já teria voado há muito na hora do bote. Al Mansur, capitão das Forças Especiais dos Estados Unidos, não se preocupava nem um pouco por não fazer a menor ideia da finalidade da operação. Ou o homem seria encontrado rapidamente e logo capturado vivo, desde que não cometesse suicídio, ou se trataria de alarme falso. Poderia, ainda, ser mais um pássaro voando. Tudo podia acontecer. Eles subiram a bordo de quatro helicópteros numa base perto de Rawalpindi, e os pilotos, então, informaram que seguiriam para Sargodha, na província do Punjabi, num voo de mais ou menos uma hora e meia. E foi tudo o que ficaram sabendo. Nem os pilotos sabiam o que os esperaria em seguida.


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Al Mansur tentou se sentar ao lado do piloto. Gostava de voar baixo sobre a bela paisagem primaveril, fantasiar e pensar em outra coisa além do trabalho. Era 28 de março de 2002, e Al realmente tinha muita coisa em que pensar, ou, melhor dizendo, a planejar. Para um americano, o nome Al Mansur não representava nada em especial, mas, pronunciado em árabe, era passível de provocar risadinhas ou gerar piadas. Al Mansur foi o lendário califa das Mil e uma noites e de outras histórias de Bagdá durante o primeiro grande período florescente da cultura árabe. No passado, Al nunca pensara muito em sua dupla identidade, se considerava um americano que também falava árabe. Era apenas uma faceta a mais em sua vida, uma vantagem social na escola e na universidade, até que, possivelmente por uma questão infantil de autoafirmação, procurou as Forças Especiais, os “boinas-verdes”, onde seu incomum conhecimento do idioma árabe foi reconhecido como um mérito extraordinário. Na verdade, a aparência árabe foi o que mais pesou a seu favor, considerada um grande trunfo. O avô por parte de pai abandonara a Arábia Saudita em 1932, exatamente no ano em que o país se definiu como Arábia Saudita e justamente por isso. A família era muçulmana, da seita shiah* e de Najd, como então era chamada a região ao sul do Iraque e do Kuwait, próxima ao Golfo Pérsico. Foi então que o clã beduíno wahhabita** Saud assassinou e saqueou pelo caminho até chegar a Meca e a Medina, lugares sagrados que eles também pilharam e arrasaram, decapitando

* A palavra “shiah” significa “seguidores, membros de um partido”. Alá menciona no Alcorão que alguns de Seus servos honrados eram Shi’ah de outros de Seus servos honrados.

** O wahhabismo é um movimento religioso do islã criado na Arábia Central em meados do século XVIII, originalmente por Muhammad ibn Abd-al-Wahhâb. (Todas as notas são do tradutor.)


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quem encontravam pela frente. Muitos muçulmanos dali tiveram de fugir. Os que ficaram passaram a ser considerados “seres não humanos”. O clã Saud proclamou-se dono da região e fundou o próprio “reino”. A cada julgamento era obrigação dos sauditas mandar matar esses “seres não humanos” diante de Deus, especialmente se fossem judeus, cristãos ou shiahs. Como Abdullah ibn Anaza ibn Mansur, seu avô, era um dos poucos habitantes de Najd dotados de educação e recursos econômicos, ele se tornou refugiado político antes de essa expressão fazer parte da linguagem cotidiana. De qualquer maneira, não existia problema algum em ser árabe na década de 1930. Antes era até elegante e romântico. Eles eram considerados “os nobres selvagens que vinham do deserto”, como foi o caso de Rodolfo Valentino,* transformado num símbolo sexual da época. Na verdade, o avô Abdullah detestava todos os beduínos. Ele os considerava parasitas sanguinários que não gostavam de trabalhar, desde que sua verdadeira profissão de pilhar e matar os vizinhos não fosse considerada trabalho. Mas com o tempo o avô acabou por ser chamado, respeitosamente, de “xeque” ou “beduíno” por seus novos vizinhos num lugar nada surpreendente: Portland, Maine, nos Estados Unidos. Afinal, Abdullah fora dono de uma das maiores empresas de pesca de lagosta e camarão no Golfo Pérsico e com espantosa rapidez estabelecera-se como empresário na mesma atividade nas águas frias do Atlântico Norte. Seus seis filhos receberam uma boa educação americana. Os três rapazes concluíram a universidade. As três filhas casaram bem. Tudo graças ao avô Ab, como ele acabou por ser tratado. Na grande e barulhenta família do vovô Ab, todos falavam os dois idiomas pelo fato de a avó materna, chamada Taifa, nunca ter ido além do inglês rudimentar. Na geração seguinte, nem todos seguiram * Ator italiano da virada do século XIX para o XX considerado o primeiro símbolo sexual do cinema e protótipo do “amante latino” fabricado por Hollywood.


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essa norma, mas o pai de Al, Hamid, ao contrário dos irmãos, casou com uma árabe, uma palestina vinda de Al-Khalil, na Cisjordânia. Al e seus cinco irmãos e irmãs foram, portanto, o último braço da família Mansur a falar ambos os idiomas. Todos levavam uma vida sem problemas, quase bucólica. A terceira geração da família Mansur era tão americana quanto todas as outras famílias americanas; porém, por continuar a cultivar o idioma de seus ancestrais, era quase motivo de inveja numa nação formada praticamente por imigrantes. Quem não gostaria de dominar o idioma de suas origens, quer fosse russo, polonês, alemão, italiano, sueco ou espanhol? Entretanto, após o 11 de Setembro, tudo mudou. Ao contrário do que aconteceu com os idiomas de todos os imigrantes de outras origens, o árabe foi estigmatizado, quase uma demonstração de antiamericanismo ou, pior ainda, de hostilidade. Se tentasse entrar para as Forças Especiais àquela altura, não seria aceito, com uma discreta menção a razões médicas. Era uma conclusão amarga e, possivelmente, injusta, mas era assim que a situação se apresentava. Al começou a se perguntar se era um árabe que falava um inglês perfeito ou um americano que falava fluentemente o árabe, coisa que antes do 11 de Setembro parecia uma questão idiota, sem sentido. Agora, apresentava-se como um problema que o consumia pouco a pouco, todos os dias. A última vez que a família se reuniu foi no aniversário de 60 anos da mamãe Leyla, e todos os irmãos e irmãs disseram estar passando pelas mesmas atribulações. O escritório de advocacia de Omar começava a perder clientes. Wal, o principal dono da firma dedicada à pesca de lagosta, sofria diante de sucessivas greves e estranhas cartas dirigidas a seus clientes. Susana, que era dentista, recebia um bombardeio tenaz de mensagens racistas e processos indenizatórios. Abraham estava sendo pressionado a vender sua participação numa empreiteira,


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“visto que, na situação atual, isso seria o melhor para a empresa”, e o marido de Nadia queria o divórcio, embora por motivos absolutamente comuns, como era fácil perceber. Não foi uma festa familiar normal, alegre, de conversas triviais. O único fato que trouxe alguma alegria foi saber que o irmão mais novo, Al, passaria a visitá-los com mais frequência — não como civil, mas de uniforme e de boina verde.

Lá embaixo via-se a paisagem primaveril paquistanesa, sempre verde. A curva de um rio onde mulheres vestidas de cores fortes lavavam roupa, um rebanho de vacas rodeadas de crianças munidas de longas varas, uma aldeia de casas espremidas, tetos de argila seca pelo sol, uma escola, sim, devia ser uma escola. Ele ainda teve tempo de ver longas filas de garotos vestidos de branco e agachados. Não porque, à velocidade que iam, pudesse ver que eram garotos, mas porque conhecia e detestava o que vira. A posição corporal das crianças explicava tudo. Era uma madrasa, exercício em que os garotos, alinhados lateralmente, dobravam o corpo para frente e para trás, atividade feita durante alguns anos, ao mesmo tempo que repetiam o Alcorão até a loucura, chegando a decorá-lo, o que representava a aprovação final da sua educação no plano puramente intelectual. Terminavam o curso sem sequer saber contar. Depois, seguia-se uma instrução de caráter prático e militar que os conduziria para o paraíso. Os números eram fáceis de lembrar. Em 1950, existiam duzentas escolas voltadas para o treinamento de extremistas religiosos em todo o Paquistão. Hoje, após algumas décadas de pesados investimentos por parte da Arábia Saudita, esse número subira para vinte mil. O sistema escolar normal no Paquistão quase esteve a ponto de acabar por falta de alunos do sexo masculino. E, evidentemente, por causa do crescente preconceito de que as meninas não precisavam ser alfabetizadas.


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Tudo isso era financiado pelo regime que o vovô Ab odiava de tal maneira que resolveu se mudar para o outro lado do mundo, um regime que Al também odiava como se esse sentimento fosse hereditário. Mas também não era por falta de motivos recentes e racionais. Apenas duas semanas antes, ocorrera um forte incêndio num internato saudita para meninas. Quando os bombeiros paquistaneses chegaram — quase todos voluntários —, a polícia religiosa já estava lá com seus chicotes e porretes, caçando todas as garotas vestidas de forma irregular e obrigando-as a voltar para as chamas. Nos casos em que as jovens conseguiram se salvar do incêndio, era porque tinham o rosto e o corpo escondidos por tecido preto. Houve conflito entre os bombeiros e a polícia religiosa, o que proporcionou a salvação de muitas jovens com vestimentas impróprias e queimaduras de primeiro grau. Contudo, o número de mortes em consequência das chicotadas e porretadas da moral niilista da polícia religiosa jamais foi anunciado. Em contrapartida, cerca de dez bombeiros foram acusados de conduta imoral, condenados a cem chibatadas em público e expulsos da corporação, com retenção dos salários. Al Mansur, capitão das Forças Especiais, continuava voando para o Sul de helicóptero, a baixa altitude e a 350 km/h, com o alvo ainda desconhecido. Até então, nada de novo, tudo rotina, tendo em vista que o trabalho a realizar possivelmente seria o de costume. Podia ser, do mesmo modo, alguma missão no Iraque ou no Afeganistão, caso lá embaixo não se vissem apenas paisagens verdejantes. De novo, apenas a questão permanente que se transformara numa espécie de pensamento obrigatório: seria ele um americano que falava perfeitamente o árabe ou um árabe com inglês fluente? ggggg


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Sua missão era uma operação rotineira. Assim que o helicóptero aterrissou, perto de Sargodha, um grupo de quatro homens das Forças Especiais já estava no local, sob o comando do chefe de operações da região, o coronel Triantafellu, embora na companhia de dois outros coronéis paquistaneses usados como disfarce. Foi incompreensível a simplicidade com que Triantafellu montou toda a operação sem vazamentos. O alvo encontrava-se no segundo andar de um prédio de dois andares nos arredores de Faisalabad e era de alto escalão na hierarquia da al-Qaeda. Considerava-se que fosse muito próximo de Osama bin Laden, funcionando quase como uma espécie de chefe de operações militares. Segundo informações recolhidas, foi desempenhando essa função que ele organizou o ataque terrorista contra o navio USS Cole, em 12 de outubro de 2000. Quando o cruzador estava prestes a ancorar no porto de Áden, no Iêmen, foi atacado por um pequeno barco motorizado. O ataque suicida resultou na morte de dezessete americanos. Por isso, os Estados Unidos tinham um acerto de contas especial a fazer com esse homem, não esquecendo, ainda, a hipótese de ele conhecer o possível paradeiro de Osama bin Laden. Foi para prender o sr. Osama que os Estados Unidos entraram em guerra com o Afeganistão. Era vital, portanto, apanhar esse bandido vivo. A invasão do prédio seria realizada pelos oito homens das Forças Especiais, sob o comando de Al Mansur. As forças de segurança do Paquistão ficariam na retaguarda, a uma distância mínima de dois quarteirões. Os agentes civis não participariam da invasão em si. Era apenas uma questão de segurança e nada tinha a ver com prestígio. Bem, é claro que tinha, pensou Al Mansur, enquanto ouvia, com expressão imutável, as explicações do coronel. Os “agentes civis” não eram outros senão membros da Swat aliados ao FBI, e não pareciam muito satisfeitos. De fato, seu chefe tentou fazer algumas objeções.


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Mas o coronel Triantafellu nem sequer quis ouvi-las, acrescentando que o alvo deveria ser preso e, em segurança, entregue ao FBI. Era o que já fora decidido pelos superiores. A operação era vista como de extrema importância e, por isso, seria realizada tendo em consideração, principalmente, a competência e a segurança. Em última instância, se necessário, seria levado em conta o louvável orgulho de qualquer organização americana. As fotos do alvo com sua aparência atual foram distribuídas apenas aos oito membros das Forças Especiais. O nome estava atrás das fotos, mas não devia ser revelado a ninguém — e a ordem fora repetida à exaustão: a absolutamente ninguém — antes de a operação terminar. O restante do dia foi dedicado ao transporte em caminhões do Exército paquistanês, totalmente cobertos, para a área do alvo onde já se encontravam uma van paquistanesa e um automóvel sucateado de placa civil, para não levantar suspeitas de que Al e seus sete homens se aproximariam do prédio. Assim que as forças paquistanesas se espalharam pelos quarteirões mais próximos do alvo e Al e seus homens estudaram os mapas da área e as plantas do prédio onde se daria a invasão, não restava nada a fazer, senão esperar pelo crepúsculo e a hora das orações. E foi exatamente quando os homens começaram a gritar dos minaretes mais próximos, conclamando os fiéis para as orações vespertinas, que os dois carros de placas frias avançaram em direção ao portão da casa, com os invasores agora disfarçados com vestimentas afegãs. Ao chegar, saíram dos carros e ficaram olhando em volta como se decidissem que caminho seguir. Depois, dirigiram-se ao guarda do portão, que começara a desenrolar seu tapete para orar. Mataram-no e subiram em silêncio para o segundo andar. Tudo aconteceu conforme o planejado. Entre os dez homens que estavam no apartamento, o alvo foi logo identificado, um tal de


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Abu Zubaydah. Algemaram-no e eliminaram todos os outros. Infelizmente, o sr. Abu Zubaydah também fora atingido duas vezes durante o curto embate no interior do apartamento. Ninguém sabia como isso fora possível. Al Mansur resolveu interromper a retirada para prestar os primeiros socorros e, ao mesmo tempo, usou o rádio para pedir reforços e uma ambulância. Houve uma longa discussão sobre o acontecido, mas tudo acabou bem. O terrorista estava fora de perigo. Meia hora mais tarde, todos os americanos se encontravam em segurança dentro dos helicópteros, voando em direção ao Norte e a Rawalpindi. Os homens do FBI receberam o terrorista, felizes como crianças na noite de Natal. Para o capitão Al Mansur, a operação estava terminada, um tipo de missão considerada de rotina. Normalmente não fazia ideia a respeito das razões que motivavam a prisão desse ou daquele elemento, nem por que era preciso apanhá-los vivos. Sabia que uma boa quantidade de operações semelhantes o esperava. E a sorte de Abu Zubaydah não lhe interessava mais. Dois dias depois, porém, aquela operação que parecera corriqueira transformara-se no acontecimento mais estranho nos oito longos anos de Al Mansur nas Forças Especiais. Chamado com urgência ao quartel-general, perto de Peshawar, viajando num helicóptero Black Hawk colocado especialmente à sua disposição, dois minutos depois de aterrissar na base já se encontrava diante do coronel Triantafellu, em seu gabinete mobiliado de modo a lembrar Esparta. Mas os dois não estavam sozinhos. No gabinete estavam também dois elementos do FBI e um homem que se apresentou murmurando o nome “Gus”, que poderia ser qualquer outro. Cheirava a CIA até de longe. Al Mansur fez as saudações de praxe, que foram correspondidas e seguidas de um convite para que se sentasse, convite dirigido também


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aos outros presentes, inclusive ao tal “Gus”. Após as apresentações feitas pelo coronel Triantafellu, houve um momento de estranho silêncio no gabinete. — Muito bem, capitão — disse finalmente o coronel —, nós nos conhecemos o suficiente para você saber que eu gosto de ir direto ao assunto, não é verdade? — Sim, senhor. Sem dúvida, senhor — respondeu Al Mansur de forma mecânica. — Well, vou lhe fazer uma única pergunta, que poderá parecer estranha. O que espero é que a resposta seja absolutamente verdadeira. E, se a resposta for negativa, nada de mais, nada de que você precise sentir vergonha. Mas, nesse caso, os nossos caminhos prosseguirão em separado. Compreendeu? — Sim, senhor. — Muito bem. Vamos então à pergunta, que é muito simples: até que ponto vai o seu conhecimento do idioma árabe? — Sou bilíngue, senhor. Os meus avós falavam árabe, e toda a família sempre falou árabe em casa. — Ótimo. Que espécie de língua árabe você fala? — Os parentes do meu pai vieram do Leste da Arábia Saudita. Minha mãe é palestina. A diferença entre os dois idiomas não é muito grande, mas eu falo mais como o meu pai. — Ótimo, capitão. Nesse caso, vou fazer mais algumas perguntas. O capitão poderia passar por saudita, nascido na Arábia Saudita, entre os sauditas? — Sem dúvida, senhor. — É o que consta no seu histórico. Mas as pessoas sempre tendem a exagerar quanto aos idiomas falados. Minha esposa afirmava saber falar fluentemente o francês, mas, quando chegamos a Paris, na nossa viagem de núpcias, era como se falasse grego. O capitão certamente entende o que quero dizer.


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— Com certeza, senhor. Meu francês também se mostrou completamente inútil quando estive lá. Mas, com todo o respeito, esse não é o caso do meu árabe. Falo o idioma como qualquer saudita bemeducado, se é que posso ser mais preciso. O coronel mostrou-se satisfeito com as respostas e fez um gesto divertido na direção de “Gus”. — E que espécie de árabe você acha que eu falo? — perguntou em árabe o homem da CIA, perfeitamente compreensível. — E prefiro que me responda também em árabe, capitão. — O senhor fala árabe como um americano originário de algum lugar do Sul, eu diria, talvez do Texas. Desculpe, o senhor fala bem, mas com sotaque americano, a que eu chamaria de dixie. — Muito bem, capitão — continuou o homem da CIA, em árabe. — E, esquecendo que venho do Texas, o que é tão verdadeiro quanto embaraçoso quando você consegue descobrir com tanta facilidade, me diga: onde acha que aprendi o meu árabe? — É difícil dizer, senhor. Mas eu diria que foi durante um longo período de serviço em Beirute. Posso estar errado, mas há um sotaque palestino-libanês em tudo o que diz, e alguma coisa também que me faz pensar na Síria. No entanto, devo acrescentar, claro, que o senhor fala um excelente árabe, considerando, especialmente, ter vindo do Texas. O homem da CIA ficou olhando para ele, pensativo, balançando a cabeça e, de repente, soltou uma gargalhada. Por sua vez, todos os outros no gabinete ficaram com cara de idiotas. — Muito bem, coronel Triantafellu — disse ele. — Este aqui é o nosso homem! Nunca vi coisa igual. Com uma túnica e uma toalha na cabeça do capitão Mansur, vocês verão um saudita legítimo na sua frente. Só lhe faltam um olhar mortiço, uma barriga protuberante e uma musculatura flácida. O ambiente tenso no gabinete mudou rapidamente, e os dois homens do FBI exprimiram seus sentimentos elevando os polegares.


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Al Mansur compreendeu então que lhe estavam preparando alguma missão secreta em território saudita, totalmente em desacordo com os regulamentos. Logo soube que a coisa era mais complicada do que parecia, não somente quanto à natureza da missão, mas também em termos de legalidade. — Tenho ainda uma última pergunta antes de começarmos a negociar — retomou o coronel, parecendo muito satisfeito. — O que é necessário para que o capitão possa se passar por agente da polícia secreta e interrogador numa prisão da Arábia Saudita? Al Mansur precisou se concentrar. — O senhor quer dizer além do uniforme correto e seus complementos? — retrucou ele para ganhar tempo. Possivelmente essa era a pergunta mais estranha que havia recebido em toda a sua vida. — O uniforme já está pronto! — O coronel sorriu. — E além disso? — Algumas gravações com rotinas sauditas de interrogatório. Frases especiais, modus operandi, palavrões normalmente usados nessas situações e assim por diante... — respondeu ele, dando ideia do básico necessário. — Isso também já foi requerido, capitão. Portanto, já podemos começar a agir! A operação estava conectada com o alvo que eles haviam capturado em Punjabi, nos arredores de Faisalabad, onde nunca se poderia pensar em encontrar qualquer chefe da al-Qaeda. No entanto, encontram um, Abu Zubaydah. Uma vez que o terrorista continuava na cama do hospital, era um pouco difícil, no momento, torturá-lo com o intuito de obter informações que pudessem servir para instruir Al Mansur e prepará-lo para a operação em vista. No primeiro interrogatório com Abu Zubaydah, realizado pelo FBI, não se conseguiu nada de importante. O homem teve até


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o desplante de citar a democracia americana e os direitos humanos assim que se sentiu mais pressionado. Além disso, estava ferido e no soro. Como todos os sauditas, era ainda extremamente arrogante e tinha a infeliz tendência a começar a predicar sobre Deus e política. Apesar dos ferimentos, estava de bom humor e chegou a fazer piada a respeito do que aconteceria se sofresse aqueles poucos métodos de tortura permitidos aos americanos, como afundar sua cabeça num balde cheio d’água. Das duas, uma: ou seria blefe, ou eles, sem querer, conseguiriam afogá-lo. Em qualquer caso, ele não diria nada que não pudesse ser revelado. E, se morresse, seria considerado mártir e receberia a compensação correta de Deus. Enfim, havia apenas uma única maneira de resolver o problema de um terrorista que não tinha medo da tortura americana: era preciso fazer o homem falar. Abu Zubaydah era o homem mais importante na hierarquia da al-Qaeda a cair nas mãos dos americanos, e havia a possibilidade de obter novas pistas do terrorista mais procurado do mundo, o próprio Osama bin Laden. Sem dúvida, Abu Zubaydah representava uma mina de ouro de informações em potencial. A questão era apenas saber como fazê-lo abrir o bico. Em primeiro lugar, era preciso levá-lo para dar uma voltinha de carro, expressão que, na realidade, significava dar uma volta de avião. Claro que ele seria dopado para não saber o quanto voara, e muito menos para onde. E, então, acordariam o arrogante poço de merda num verdadeiro centro saudita de tortura. Para isso, já estavam construindo uma réplica na base americana. Os estimados aliados sauditas na guerra contra o terrorismo se mostraram muito prestativos, arranjando não somente as fotos, como também fornecendo operários paquistaneses. Não era o ideal, mas o que tinham à disposição. Como se sabia, nenhum saudita executava trabalhos manuais de natureza pesada, digamos assim.


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