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Do Autor:
O Cordeiro
Um Trabalho Sujo
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CHRIS TOPHER MOORE
UM TRABALHO SUJO
Tradução Carlos Irineu
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Ç COMO EU NÃO PUDE PARAR PARA A MORTE, ELA GENTILMENTE PAROU PARA MIM
Charlie Asher caminhava sobre a terra da mesma forma que uma formiga caminha sobre a superfície da água, como se o mais leve passo em falso pudesse fazê-lo atravessar a superfície e ser sugado para as profundezas. Abençoado com a imaginação do Macho Beta, tinha passado grande parte da vida olhando de viés para o futuro, a fim de descobrir de que maneiras o mundo estava conspirando para matá-lo — a ele, sua mulher, Rachel, e, agora, a recém-nascida Sophie. Porém, apesar de todo o seu cuidado, da sua paranoia, da sua incessante inquietação, desde o momento em que Rachel urinara e uma listra azul surgira na tira do teste de gravidez, até o momento em que a levaram de cadeira de rodas para o parto, no hospital Saint Francis Memorial, a Morte, sorrateiramente, fez-se presente. — Ela não está respirando — disse Charlie. — Ela está respirando normalmente — tranquilizou Rachel, afagando as costas do bebê. — Quer segurá-la?
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Charlie já havia segurado a pequena Sophie por alguns segundos, um pouco mais cedo naquele mesmo dia, e a havia entregado rapidamente a uma enfermeira, insistindo para que alguém mais qualificado do que ele fizesse a contagem dos dedos das mãos e dos pés. Ele contara duas vezes, e o resultado dava sempre vinte e um. — Eles agem como se o básico já fosse suficiente. Como se, caso a criança tenha, no mínimo, dez dedos nas mãos e dez nos pés, tudo esteja bem. E se houver coisas a mais? Hein? Dedos extras? E se a criança tiver um rabo? Charlie jurava ter visto um rabo na ultrassonografia de seis meses. Cordão umbilical uma ova! Tinha guardado uma cópia impressa. — Ela não tem rabo, Sr. Asher — assegurou a enfermeira. — E são dez mais dez, todos nós verificamos. Talvez o senhor devesse ir para casa e descansar um pouco. — Vou continuar a amá-la, mesmo com um dedo extra na mão. — Ela é completamente normal. — Ou no pé. — Realmente sabemos do que estamos falando, Sr. Asher. É uma menina linda e saudável. — Ou um rabo. A enfermeira suspirou. Era baixinha, corpulenta e tinha uma cobra tatuada no alto da panturrilha direita que aparecia através da meiacalça branca do uniforme. Ela passava quatro horas massageando bebês prematuros, com as mãos enfiadas nas aberturas de uma incubadora, como se estivesse manipulando uma faísca radioativa lá dentro. Falava com eles, brincava, dizia o quanto eram especiais, e sentia seus coraçõezinhos palpitando no tórax menor que um par de meias enrolado. Chorava pela condição de cada um deles e acreditava que suas lágrimas e seu toque passavam um pouco de sua própria vida para dentro daqueles corpos minúsculos, o que achava ótimo porque tinha energia de sobra. Havia vinte anos que era enfermeira neonatal e, durante todo esse tempo, nunca levantara a voz para um papai de primeira viagem.
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— Não há rabo algum, seu idiota! Veja! — Ela levantou o cobertor e lhe apontou os fundilhos da pequena Sophie, como se ela fosse descarregar uma fuzilaria de cocô de fabricação militar que aquele Macho Beta ingênuo nunca tinha visto. Charlie deu um salto para trás — era um trintão magro e ágil — e, tão logo percebeu que a bebê não estava carregada, endireitou as lapelas de sua jaqueta de lã com um gesto de genuína indignação. — Você pode muito bem ter removido o rabo dela na sala de parto, e nunca iríamos saber. Ele não tinha como saber. Haviam lhe pedido para deixar a sala de parto, primeiro o obstetra, depois Rachel. (“Ele ou eu”, dissera ela. “Um de nós tem que sair.”) No quarto de Rachel, Charlie disse: — Se tiraram o rabo dela, quero guardá-lo. Ela vai querer vê-lo quando for mais velha. — Sophie, seu papai não é maluco de verdade. É só porque não dorme há dois dias. — Ela está olhando para mim — disse Charlie. — Está olhando para mim como se eu tivesse apostado todo o dinheiro de seus estudos em corridas de cavalo e agora ela precisasse rodar bolsinha para financiar seu MBA. Rachel segurou a mão do marido. — Querido, acho que os olhos dela ainda nem conseguem focar, e, além disso, é um pouco nova para se preocupar em rodar bolsinha para conseguir um MFA. — MBA — corrigiu Charlie. — Começam muito cedo hoje em dia. Até eu descobrir como se chega no hipódromo, ela já vai ter idade suficiente. Meu Deus, seus pais vão me odiar. — Que novidade... — Eles vão ter novas razões. Agora transformei a neta deles numa shiksa. — Ela não é uma shiksa, Charlie. Já conversamos sobre isso. É minha filha e, portanto, é tão judia quanto eu.
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Charlie se ajoelhou perto da cama e segurou uma das minúsculas mãos de Sophie entre os dedos. — Papai lamenta ter feito de você uma shiksa. Ele baixou a cabeça, enterrando o rosto na quina da cama onde estava a bebê, ao lado da mãe. Rachel contornou seu couro cabeludo com a unha, fazendo um U ao redor de sua testa estreita. — Você precisa ir para casa e dormir um pouco. Charlie resmungou algo entre os cobertores. Quando olhou para a frente, havia lágrimas em seus olhos. — Ela parece quente. — Ela está quente. É normal. Mamíferos são assim, sabia? Vem junto com a amamentação. Por que você está chorando? — Vocês duas são tão bonitas. Começou a ajeitar o cabelo preto de Rachel sobre o travesseiro, levando à testa de Sophie uma longa madeixa, que começou a pentear como se fosse um aplique para bebês. — Não vai ter problema se não crescer cabelo nela. Tinha aquela cantora irlandesa meio raivosa que raspava o cabelo e era atraente. Se tivéssemos o rabo dela, poderíamos usá-lo para fazer um implante de raízes. — Charlie! Vá para casa! — Seus pais vão me culpar. A neta shiksa e careca deles rodando bolsinha e se formando em Administração de Empresas... vai ser tudo culpa minha. Rachel agarrou a campainha sobre o cobertor e a segurou como se ela estivesse conectada a uma bomba. — Charlie, se você não for para casa dormir um pouco neste minuto, juro que vou chamar a enfermeira e mandar ela expulsar você daqui. Rachel soou dura, mas estava sorrindo. Charlie gostava de admirar aquele sorriso, sempre gostara; dava impressão de aprovação e permissão ao mesmo tempo. Permissão para ser Charlie Asher.
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— Está bem, eu vou. — Esticou o braço para tocar a testa dela. — Você está com febre? Parece cansada. — Acabei de dar à luz, seu bobalhão! — Só estou preocupado com você. Ele não era um bobalhão. Ela o estava culpando pelo rabo de Sophie, por isso é que havia dito bobalhão e não idiota, como qualquer outra pessoa diria. — Querido, vá. Agora. Para eu poder descansar um pouco. Charlie afofou os travesseiros, checou o jarro de água, ajeitou os cobertores, beijou a testa de Rachel, beijou a cabeça da bebê, afagou-a, depois começou a arrumar o arranjo de flores que sua mãe tinha enviado, trazendo os grandes lírios para a frente, destacando-os... — Charlie! — Já estou indo. Nossa! — Deu uma conferida no quarto pela última vez e depois se dirigiu para a porta. — Você quer que eu traga algo de casa? — Vou ficar bem. O kit que você embrulhou tem de tudo, acho eu. Na verdade, é provável que eu nem precise do extintor de incêndio. — É melhor ter e não precisar do que precisar e... — Vá! Eu vou descansar um pouco, mais tarde o médico vem ver Sophie e nós vamos levá-la para casa pela manhã. — Parece muito cedo. — É o normal. — Quer que eu traga mais gás para o fogareiro? — Vamos tentar economizar. — Mas... Rachel segurou a campainha, como se, caso suas exigências não fossem atendidas, as consequências pudessem ser graves. — Te amo — disse ela. — Eu também — respondeu Charlie. — Vocês duas. — Tchau, papai! — disse Rachel, segurando a mãozinha de Sophie como uma marionete e fazendo um gesto de aceno.
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Charlie sentiu um nó subir pela garganta. Ninguém jamais o chamara de papai antes, nem mesmo uma boneca. (Ele havia perguntado a Rachel certa vez, durante o sexo, “Quem é seu paizão?”, e ela respondera “Saul Goldstein”, deixando-o broxa por uma semana e trazendo à tona diversas questões sobre as quais ele realmente não queria nem pensar.) Retirou-se do quarto, fechando a porta ao sair, e desceu para o saguão, passando pelo balcão de onde a enfermeira neonatal com a tatuagem de cobra lhe lançou um meio-sorriso. O carro de Charlie era uma minivan de seis anos que ele havia herdado do pai, juntamente com o brechó e o prédio onde a loja funcionava. A minivan sempre tinha um certo cheiro de poeira, naftalina e odores corporais, apesar da verdadeira floresta de árvores de Natal aromatizantes que Charlie havia pendurado em cada gancho, maçaneta e protuberância. Ele abriu a porta do carro, e o odor do indesejado — as mercadorias de um dono de brechó — tomou conta dele. Antes mesmo de colocar a chave na ignição, avistou o CD de Sarah McLachlan sobre o banco do carona. Rachel sentiria falta daquilo. Era o CD favorito dela, que estava se recuperando sem ele, coisa que Charlie não podia aceitar. Pegou o CD, trancou a van e voltou para o quarto de Rachel. Para seu alívio, a enfermeira tinha deixado o balcão, de modo que não precisou suportar seu olhar glacial de acusação, ou o que ele supunha ser seu olhar glacial de acusação. Ele havia preparado mentalmente um pequeno discurso sobre como ser um bom marido e um bom pai incluía se antecipar aos desejos e necessidades de sua mulher, e como isso incluía, no caso, prover músicas — bem, ele podia usar o discurso na saída, caso ela lhe lançasse o tal olhar glacial. Abriu a porta do quarto de Rachel lentamente para não assustá-la, antevendo seu sorriso carinhoso de desaprovação, mas, em vez disso,
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ela parecia estar adormecida e havia um homem negro muito alto, trajando verde-menta, parado próximo à sua cama. — O que você está fazendo aqui? O homem de verde-menta se virou, assustado. — Você consegue me ver? — Ele apontou para a gravata marromchocolate que usava, e Charlie se lembrou, apenas por um segundo, daquelas pastilhas de menta que se colocam sobre os travesseiros nos melhores hotéis. — Claro que sim. O que você está fazendo aqui? Charlie se aproximou do pé da cama de Rachel, colocando-se entre o estranho e sua família. A pequena Sophie parecia fascinada com o homem negro e alto. — Isso não é bom — respondeu Mint Green. — Você está no quarto errado — disse Charlie. — Saia daqui. — Charlie se posicionou atrás do homem e tocou a mão de Rachel. — Isso não é nada bom. — Minha esposa está tentando dormir, e o senhor está no quarto errado. Agora vá, por favor, antes que... — Ela não está dormindo — disse Mint Green. Sua voz era suave, com um sotaque vagamente sulista. — Lamento. Charlie virou-se para olhar Rachel, esperando ver o seu sorriso, ouvi-la pedir que ele se acalmasse, mas seus olhos estavam fechados e sua cabeça, fora do travesseiro. — Querida? — Charlie largou o CD que estava segurando e a sacudiu com suavidade. — Querida? A pequena Sophie começou a chorar. Charlie encostou a mão na testa de Rachel, pegou-a pelos ombros e sacudiu-a. — Querida, acorde. Rachel? — Ele pôs o ouvido sobre seu coração e não escutou nada. — Enfermeira! Charlie subiu na cama para agarrar a campainha que havia escorregado da mão de Rachel e estava sobre o cobertor.
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— Enfermeira! — Ele apertou o botão e virou-se para olhar para o homem de verde-menta. — O que aconteceu… Ele tinha desaparecido. Charlie correu para o saguão, mas não havia ninguém lá. — Enfermeira! Vinte segundos depois, a enfermeira com tatuagem de cobra chegou, seguida, trinta segundos mais tarde, por uma equipe de ressuscitação com desfibriladores. Não havia nada que eles pudessem fazer.