AMERICANOS
John Charles Chasteen
AMERICANOS Ideias e batalhas nos movimentos de independência dos países da América Latina
Tradução de Ann Perpétuo
Rio de Janeiro 2018
© 2018 desta edição, Edições de Janeiro © 2008 by Oxford University Press, Inc. Editores José Luiz Alquéres Dênis Rubra Assistente editorial Rava Vieira Copidesque Elisabeth Lissovsky Revisão Carolina Leal Edição e revisão final Isildo de Paula Souza Projeto gráfico e capa Estúdio Insólito CIP-BR ASIL. CATAL O G AÇÃO NA P UB L I CAÇ ÃO SIN DICATO NACI O NAL D O S ED I TO R ES D E LI V R O S , R J C436a Chasteen, John Charles Americanos: ideias e batalhas nos movimentos de independência dos países da América Latina / John Charles Chasteen; tradução Ann Perpétuo. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Edições de Janeiro, 2018. 256 p. Tradução de: Americanos: Latin America’s struggle for independence Inclui bibliografia e índice ISBN 978-85-9473-002-2 1. América Latina - História - Movimentos de autonomia e independência. 2. América Latina - História - Guerras de Independência, 1806-1830. 3. Revoluções - América Latina. 4. Nacionalismo. I. Perpétuo, Ann. II. Título. 18-48691 CDD:980 CDU: 94(8) Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da editora. Este livro foi revisado segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.
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apoio:
Para a AmĂŠrica
SUMÁRIO
Principais personagens
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Galeria dos principais personagens
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Cronologia
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Prefácio: Por que Americanos?
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1. A descoberta da América, 1799-1805
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2. Pilares da Coroa, 1806-1810
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3. Guerras não muito civis, 1810-1812
89
4. Uma causa perdida? 1812-1815
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5. A conquista da independência, 1816-1824
151
6. A construção de nações tem início, 1825-1840
189
Epílogo: o legado perdura
213
Glossário
221
Fontes e leituras
223
Referências
233
Índice remissivo
243
Mapas podem ser encontrados nas páginas 24, 93, 94, 138, 139, 191
PRINCIPAIS PERSONAGENS
Agustín de Iturbide, 1783* oficial americano proclamado Agustín I do México
Alexander von Humboldt, 1769 cientista prussiano e explorador
Andrés Bello, 1781 homem de letras nascido em Caracas, residente londrino de longa data
Andrés Quintana Roo, 1787 intelectual patriota da Nova Espanha
Antonio de Larrazábal, 1769 líder guatemalteco nas cortes de Cádis
Antonio José de Sucre, 1795 braço direito de Bolívar na década de 1820
Antonio López de Santa Anna, 1794 jovem caudilho, ajudou a derrubar Agustín I
Antonio Nariño, 1765 conspirador, à época, líder patriota de Nova Granada
Bernardino Rivadavia, 1780 presidente liberal da Buenos Aires independente
Bernardo Monteagudo, 1785 intelectual de Chuquisaca, colaborador de San Martín
Bernardo O’Higgins, 1778 libertador do Chile, colaborador de San Martín
Carlos IV, 1748 rei da Espanha, abdicou em favor do filho, Fernando VII
Carlos de Alvear, 1789 aristocrata de Buenos Aires
Carlos Montúfar, 1780 companheiro de Humboldt, filho de Juan Pío
Carlota Joaquina, 1775 irmã de Fernando VII, casada com dom João VI de Portugal
Duque de Wellington, 1769 ferrenho oponente britânico de Napoleão na Espanha
Félix María Calleja, 1753 opositor implacável de Hidalgo e Morelos, e, por fim, vice-rei
Fernando VII, 1784 rei da Espanha, “o Desejado”, durante seu cativeiro
Francisco de Miranda, 1750 precursor da causa da América
Francisco de Paula Santander, 1792 adversário de Bolívar em Nova Granada
* Ano de nascimento.
PRINCIPAIS PERSONAGENS
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Gaspar Rodríguez de Francia, 1766 ditador que tornou o Paraguai independente
Home Popham, 1762 almirante britânico que atacou Buenos Aires em 1806
Ignacio Allende, 1769 comandante adjunto de Hidalgo
Ignacio López Rayón, 1773 organizador da junta de Zitácuaro
Javiera Carrera, 1771 oriunda de uma influente família patriota chilena
dom João VI, 1769 príncipe regente, posteriormente rei de Portugal; fugiu para o Rio de Janeiro
José Antonio Páez, 1790
Juan Domingo Monteverde, 1772 general espanhol que derrotou Miranda
Juan José Castelli, 1764 revolucionário de Buenos Aires, derrotado no Alto Peru
Juan Martínez de Rozas, 1759 líder patriota chileno, protetor de Bernardo O’Higgins
Juan Pío Montúfar, 1759 chefe da junta de Quito de 1809
Juana Azurduy, 1781 líder de guerrilhas patrióticas no Alto Peru
Leona Vicario, 1789 organizadora na clandestinidade patriota da Cidade do México
Lucas Alamán, 1792
aliado llanero (pastores venezuelanos estadista e historiador mexicano, ou colombianos) e Bolívar e, adversário incansável de Guerrero Manuel Ascencio Padilla, 1775 posteriormente, seu rival José Artigas, 1764 líder patriota do Alto Peru líder federalista que desafiou Manuel Belgrano, 1770 revolucionário de Buenos Aires, Buenos Aires José Bonifácio de Andrada, 1763 derrotado no Alto Peru um dos próceres da independência Manuel Carlos Piar, 1774 general executado por Bolívar do Brasil; irmão de Antônio Carlos Manuel Godoy, 1767 e Martim Francisco José de San Martín, 1778 ministro e amante da rainha libertador da Argentina espanhola
José María Morelos, 1765 segundo principal líder da rebelião na Nova Espanha
José Miguel Carrera, 1785 irmão de Javiera, rival de Bernardo O’Higgins
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AMERICANOS
Manuela Sáenz, 1797 patriota de Quito, colaboradora de Bolívar
Mariano Moreno, 1778 secretário da primeira junta de Buenos Aires
Mariquita Sánchez, 1786 revolucionária de Buenos Aires (mais tarde Madame Mendeville)
Mateo Pumacahua, 1740 líder indígena da rebelião de 1814 de Cusco
Miguel Hidalgo, 1753
Simón Bolívar, 1783 libertador de cinco países
Simón Rodríguez (também conhecido como Samuel Robinson), 1771 educador revolucionário
Thomas Alexander Cochrane, 1775 almirante da Marinha chilena e depois brasileira
padre radical que iniciou rebelião na Tomás Boves, 1782 Nova Espanha Pablo Morillo, 1778 líder espanhol dos lanceiros llaneros, general espanhol que liderou a derrotou Bolívar Vicente Guerrero, 1783 reconquista de Nova Granada dom Pedro I, 1798 terceiro líder mais importante da filho de dom João VI e Carlota rebelião na Nova Espanha Joaquina, declarou a Independência William Beresford, 1768 oficial britânico que lutou em do Brasil Santiago Mariño, 1788 Buenos Aires e Portugal o “Libertador do Leste” da Venezuela
Servando Teresa de Mier, 1765 padre intelectual dissidente da Nova Espanha
PRINCIPAIS PERSONAGENS
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GALERIA DOS PRINCIPAIS PERSONAGENS
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Bo lívar
GALERIA DOS PRINCIPAIS PERSONAGENS
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AMERICANOS
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hum b o ldt
la rr azá bal
lóp e z r
napo leão
LOUVE RTU R E
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me j í a
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moreno
páez
na r iño
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GALERIA DOS PRINCIPAIS PERSONAGENS
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AMERICANOS
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s antand e r
s u cr e
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CRONOLOGIA
1799 › Humboldt começa a viajar pela América 1806 › Invasões de renegados em Buenos Aires e Coro 1807 › As tropas de Napoleão adentram a península Ibérica › A Corte portuguesa foge de Lisboa para o Brasil 1808 › A Coroa espanhola cai nas mãos de Napoleão › Início da crise da monarquia espanhola; juntas são formadas na Espanha › Cabildo abierto na Cidade do México, Iturrigaray é deposto 1809 › A Junta Central coordena resistência espanhola a Napoleão › Napoleão completa conquista da Espanha, com exceção de Cádis › Quem deveria governar a América? O debate se espalha › Pequenas rebeliões nos Andes: Chuquisaca, La Paz, Quito 1810 › Cortes e regência são estabelecidas em Cádis › Juntas são formadas em Caracas, Buenos Aires, Bogotá e Santiago › Primeiro exército é enviado por Buenos Aires ao Alto Peru › A legião de Hidalgo faz uma varredura pela Nova Espanha 1811 › Miranda declara uma república independente na Venezuela › Início de guerra civil na Venezuela, em Nova Granada e no Chile › Hidalgo é capturado e executado; Morelos assume o controle › Exército de Buenos Aires é derrotado no Paraguai e Alto Peru › Peru torna-se base para a reconquista espanhola dos Andes › Exércitos britânicos e portugueses retomam Portugal de Napoleão 1812 › Controle de Napoleão sobre a Espanha diminui › As cortes de Cádis promulgam uma Constituição liberal › Cai a Primeira República da Venezuela › Morelos sobrevive a Cuautla e toma Oaxaca 1813 › Bolívar declara “Guerra até a Morte” › Buenos Aires é novamente derrotada no Alto Peru › Morelos perde força sitiando Acapulco 1814 › Fernando VII reempossado, anula Constituição de 1812 e dissolve cortes › Forças espanholas do Peru reconquistam o Chile › Derrotado por Boves, Bolívar vai para o exílio
CRONOLOGIA
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1815 › Importantes forças da Reconquista chegam da Espanha pós-napoleônica › Confederação de Artigas unida contra Buenos Aires › Reino Unido de dom João VI iguala o Brasil a Portugal › Morelos é preso e executado 1816 › A reconquista espanhola é finalizada, exceto o Rio da Prata 1817 › San Martín atravessa os Andes de Mendoza ao Chile › Começa na Venezuela o retorno de Bolívar › Rebelião em Pernambuco revela “contágio liberal” no Brasil 1818 › Guerrero renova o espírito da rebelião na Nova Espanha › San Martín prepara seu ataque a Lima 1819 › Bolívar vence na ponte Boyacá e controla Nova Granada 1820 › Revoluções constitucionalistas na Espanha e em Portugal › Importante expedição da Reconquista espanhola é abortada › Começa a invasão de San Martín por mar, do Peru 1821 › Cortes de Lisboa forçam o retorno de dom João VI a Portugal › Iturbide e Guerrero unem forças sob o Plano de Iguala, e entram na Cidade do México › América Central adere ao Plano de Iguala e declara independência › Bolívar vence em Carabobo, San Martín não faz progressos no Peru 1822 › Príncipe dom Pedro declara Independência do Brasil; é coroado imperador › Iturbide aclamado imperador Agustín I do México independente › Bolívar e San Martín se encontram em Guayaquil 1823 › Contrarrevoluções absolutistas tomam Portugal e Espanha › Agustín I é derrubado, México se torna uma república › Tem início campanha peruana de Bolívar 1824 › Dom Pedro I consolida o poder no Império brasileiro › Batalha de Ayacucho, derrota final da Espanha na América
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AMERICANOS
PREFÁCIO: POR QUE AMERICANOS? Viva o Povo Soberano! Nossa hora, chegou, enfim... “Canción americana”, 1797
Por que AMERICANOS? Americanos são, afinal, simplesmente o povo da América. América é a mesma palavra em espanhol ou português e inglês, pode-se dizer. E, no entanto, não é. Para os latino-americanos, América nem sempre foi sinônimo de Estados Unidos, tampouco são americanos apenas os nascidos nos Estados Unidos, e esta diferença torna-se importante na história aqui contada. Assim, neste livro, América será usada para indicar aquilo que hoje chamamos de América Latina, incluindo todas as terras colonizadas pela Espanha e por Portugal. Os americanos destas páginas falam espanhol ou português, e não inglês. América e americanos foram termos fundamentais nas lutas de independência da América Latina. Até 1807-1808, quando as invasões napoleônicas de Portugal e Espanha desencadearam uma crise na América, americano era um termo para indicar, em geral, somente brancos. Mas, quando a poeira assentou, em 1825, anos de derramamento de sangue tinham transformado o significado de americano, ampliando o termo para incluir pessoas de origem indígena, africana e mista, a grande maioria da população. A transformação ocorrera à medida que generais patriotas, poetas e oradores descreviam sua luta como “a causa da América”, convidando todos os americanos a ela se unirem. A letra da La Canción americana, de 1797, hino de uma conspiração revolucionária na Venezuela, exemplifica o novo significado: “Nossa pátria nos chama, americanos,/ Juntos destruiremos o tirano.”1 A linguagem patriota da América só excepcionalmente utilizava os termos de identidade – mexicano, venezuelano, colombiano, chileno, brasileiro, guatemalteco, peruano etc. – associados às nações latino-americanas da atualidade. Do México moderno à Argentina e ao Chile, os patriotas da luta da América Latina 1 C. C. Travieso, 1964, pp. 36-37.
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pela independência construíram uma divisão binária, separando todos os americanos de um lado, dos europeos (espanhóis nascidos na Europa), do outro. À primeira vista, isto pode parecer uma banalidade. Afinal, existia uma separação mais óbvia que a criada pelo oceano Atlântico? Os Estados Unidos já não tinham estabelecido uma identidade americana análoga? A evolução semântica da palavra americano, por sua vez, assinala um momento decisivo na história mundial, algo tão relevante quanto o que ocorrera nas colônias inglesas da América décadas antes. As mais óbvias diferenciações sociais na América colonial não faziam nenhum tipo de divisão entre americanos e europeos. A colonização da América criara sociedades profundamente hierarquizadas e organizadas por um sistema de castas. Indígenas, pessoas de origem africana e várias castas de raças mistas diferiam muito mais da classe dominante branca americana que os americanos dos europeos. Em suma, no processo que estamos prestes a traçar detalhadamente, a esmagadora liderança branca patriótica abraçou o significado novo, mais abrangente, de americano, pois isso maximizava sua chance de vitória contra a terra natal. Se cada um nascido na América – todos da população profundamente diversificada que emergira da mistura de indivíduos destes três continentes – fosse um americano, e se todos estavam do mesmo lado, a diminuta minoria de espanhóis nascidos na Europa (menos de 1% da população) não tinha a menor chance de manter o domínio colonial. Para definir o leque de castas da América, enquanto o povo americano conhecia a verdade na terra, ele também criava uma nova verdade, uma abstração visionária, porém potente. Esta abstração era o Povo Soberano, que merecia nada menos que um governo "do povo, pelo povo e para o povo". E, ao contrário do que aconteceu com a independência dos Estados Unidos na década de 1780, o Povo Soberano da América que surgiu nos anos 1820 incluiu a maioria não branca. A criação quase simultânea de uma dúzia de nações independentes na América foi, portanto, mais determinante que a independência dos Estados Unidos. Ambas sinalizaram importantes direções futuras da descolonização mundial. A independência dos Estados Unidos certamente modelou a criação de uma nova república no que fora uma colônia europeia, e isso inspirou vários patriotas americanos influentes. Mas um episódio não constitui uma tendência, e pessoas de ascendência não europeia eram significativamente excluídas do modelo republicano dos Estados Unidos. A criação dos Estados Unidos da América incorporou reivindicações básicas de autodeterminação somente para pessoas de origem europeia pura. Em contraste,
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a produção em série de aspirantes a Estados-nações na América constituiu, na geração seguinte, de fato, uma tendência e, nitidamente, estabeleceu um modelo para uma futura descolonização. Os americanos seguiram o exemplo dos Estados Unidos, incorporando a soberania popular em uma Constituição escrita e produzida por uma assembleia constituinte nacionalmente eleita. Mas o novo modelo partiu do exemplo dos Estados Unidos ao incluir formalmente como cidadãos, naquele processo, grandes populações de origem indígena, africana e mista. (O Haiti, devemos reconhecer, foi realmente pioneiro desta inovação, porém não encetou nenhuma tendência, sendo um exemplo muito mais temido que imitado por dirigentes políticos na América.) A versão americana era, no melhor dos casos, imperfeita. A cidadania para todos persistiu mais como uma teoria que uma realidade durante muitas décadas. Entretanto, a independência da América significou que o hemisfério ocidental pertencia às repúblicas. Assim declarava a Doutrina Monroe dos Estados Unidos em 1823, e, ao longo do século XIX, americanos transformaram essa visão em realidade. Quando, por fim, as colônias europeias na África e na Ásia renderam-se após a Segunda Guerra Mundial, a bem-sucedida descolonização da América Latina já era um fato estabelecido da história global, ainda que conflituoso. O sucesso americano garantiu o apoio do modelo constitucional e republicano nas novas nações africanas e asiáticas que proliferaram na segunda metade do século XX. A difusão generalizada do modelo tinha, obviamente, seus limites. Contudo, ele constituía um verdadeiro triunfo global das ideias que a atual linguagem dos Estados Unidos, frequentemente, denomina de valores políticos “ocidentais”, ideias que o restante do mundo tende a chamar de liberalismo. A palavra liberal foi cunhada na Espanha, durante o combate contra Napoleão, para descrever patriotas espanhóis cuja bandeira era a liberdade. Os liberais eram, de acordo com eles próprios, inimigos da servidão. Eles defendiam um governo constitucional, com a garantia de liberdades civis e um mercado livre tanto de bens quanto de ideias, que jamais deveriam ser totalmente dominados por nenhum grupo, interesse, opinião ou verdade oficial. O ponto de partida do seu pensamento político – provocado, como veremos, pelo espantoso declínio da Coroa espanhola – era a soberania popular. Para teorizar sobre soberania popular, tornava-se necessário definir o Povo Soberano, o que significava definir a nação. E as novas nações da América foram definidas desde o princípio para incluir pessoas de origem indígena, africana e mista. Este processo de autodefinição nacional envolveu um pouco de
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negação tática e enganosa, mas foi, mesmo assim, uma contribuição ainda mais significativa dos americanos para a história mundial que a disseminação do republicanismo liberal. A relevante obra de Benedict Anderson Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo enfatiza o papel dos pioneiros crioulos neste processo global – uma referência às mesmas pessoas que eu chamo (e que se chamam) de americanos. Anderson dá pouca importância às guerras de independência enquanto experiência de formação na América, mas ajudou uma geração de estudiosos a compreender a independência latino-americana como um momento fundamental do desenvolvimento global do nacionalismo. Americanos não é o termo mais rotineiramente utilizado nas histórias de independência dos países latino-americanos escritas em inglês. Estas denominam, alternativamente, as pessoas brancas nascidas na América como crioulos – uma tradução da palavra espanhola criollo (daí, os pioneiros crioulos de Anderson do nacionalismo global). Americanos é um termo melhor por elucidar a extensão crucial da definição de Povo Soberano de brancos para qualquer pessoa nascida na América. Historiadores da América Latina divergem consideravelmente quanto ao significado de 1808-1825. A história da pátria de cada país forneceu narrativas míticas de atos fundadores e heróis exemplares, narrativas do tipo que configuram identidades nacionais em todo o mundo. Artigas, Andrada, Belgrano, Bolívar, Guerrero, Hidalgo, Miranda, Morelos, O’Higgins, Páez, dom Pedro I, San Martín, Sucre e Santander – uma mostra de líderes americanos – são protagonistas da história pátria. Eles dão nomes a cidades, parques, estados e avenidas; nomes, sem dúvida, a serem conhecidos por qualquer pessoa que aspire entender a independência da América. Na imaginação patriótica, entretanto, estes heróis são também grandes homens ou mulheres cujas elevadas inteligência, virtude e valentia são tidas como modelos de inspiração e imitação. Esse não foi o enfoque aqui adotado. Para mim, esses heróis são inspiradores por serem imperfeitos, e não o contrário. A historiografia atual sobre a América Latina investiga, sobretudo, que impacto teve a independência nas hierarquias coloniais, em especial na relação entre a minoria branca governante e a maioria subjugada de origem africana e indígena. Porque as hierarquias coloniais erodiram de forma lenta na América independente, os historiadores acadêmicos tendem a enfatizar os lamentáveis resultados da independência. Afinal, repúblicas deveriam ser sociedades nas quais o Povo Soberano fosse composto por cidadãos iguais. Escravidão e traba-
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lho forçado eram fundamentalmente incompatíveis com o republicanismo, embora esta incompatibilidade pudesse ser manobrada diplomaticamente durante décadas, como nos Estados Unidos. Os principais movimentos patrióticos se comprometeram retoricamente em pôr fim à estratificação de castas tão predominante na América. Mas compromissos retóricos nem sempre se sustentam, e, após a independência, os ideais republicanos foram testados ao extremo. Estas batalhas pela independência produziram nações unificadas onde o Estado de direito infalivelmente prevalecia, onde todos gozavam de cidadania plena, onde governos republicanos representavam interesses gerais, mas somente em tese. Aliás, valores políticos ocidentais têm um histórico conturbado na América Latina (como no restante do mundo, inclusive na Europa) por conflitarem com valores e hábitos profundamente sólidos que os precederam. Na verdade, valores políticos ocidentais têm sido tanto vigorosamente defendidos quanto obstinadamente rejeitados na América. Ao demandar seu direito à autodeterminação, os americanos definiram o rumo da história mundial há duzentos anos, porém, suas propostas para uma efetiva cidadania foram, em geral, derrotadas antes do século XX. É melhor, no entanto, deixar esta parte da história para o epílogo. Este livro difere das narrativas diretas patrióticas e acadêmicas sobre os movimentos de independência dos países da América Latina. O propósito aqui é tecer, em uma narrativa unificada, os nomes patrióticos, para, através de uma análise equilibrada dos acontecimentos, conhecer toda a região colonizada por Portugal e Espanha. A América portuguesa (Brasil) exerce um papel distinto que aquele da América espanhola, onde o processo de independência foi mais complexo, em virtude de suas características geográficas e da diversidade de sua população. Contudo, as mesmas forças estavam em ação por toda parte na América. Vamos começar pelo seguinte ponto irônico e pouco frequente. Americanos eram, em geral, leais ao seu rei e não tão entusiasmados em abraçar ideias revolucionárias que emanavam dos Estados Unidos e da França, quando, em 1799, um dos mais notáveis viajantes da história desembarcou em suas praias. Este viajante, um prussiano chamado Alexander von Humboldt, um estrangeiro de curiosidade insaciável, pode ser nosso guia no apagar da América colonial.
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1. A DESCOBERTA DA AMÉRICA {1799-1805}
Em 1799, relatos de viagem eram a fonte básica de informação sobre a América para leitores na Europa e nos embrionários Estados Unidos. Naquele ano, Alexander von Humboldt, certamente o viajante mais influente a visitar a América, começou sua famosa viagem por territórios que permaneciam pouco conhecidos pelo restante do mundo. Humboldt nunca usou o nome América Latina, pois ele ainda não existia e, na verdade, não viria a existir durante todo o período coberto por este livro. Alguns anos após a visita de Humboldt, a América deu à luz a várias novas nações em um dolorido parto. Nada disso era, no entanto, evidente em 1799.
Humboldt e Bonpland descobrem a América Alexander von Humboldt – aspirante a explorador, cientista multitalentoso, um rapaz que gostava de rapazes – tinha 29 anos de idade quando pisou no Novo Mundo pela primeira vez, em julho de 1799. Impossível não amar o jovem Humboldt: o estranho menino que gostava demasiado de insetos para tornar-se um burocrata, como desejava sua mãe; o jovem de vinte anos que foi a Paris para o delirante primeiro aniversário da Revolução Francesa e trabalhou por alguns dias como voluntário, ajudando a construir o Templo da Razão da cidade para a celebração. Imagine-o como o dedicado estudante pós-graduado de geologia e botânica que ansiava, acima de tudo, explorar o mundo para além da Europa. Considere ele o presunçoso berlinense cujo excelente espanhol convenceu o rei da Espanha a autorizar sua entrada na América numa época em que poucos estrangeiros tinham permissão para visitá-la. Ou, talvez, você escolha não gostar de Humboldt, que, afinal, exalava privilégios. Ele era o tipo de rapaz cuja família tinha um castelo, o tipo com re-
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cursos para bancar sua própria expedição científica de cinco anos. Este jovem e esguio alemão, cujos princípios democráticos não foram suficientes para banir seu ar de superioridade, era petulantemente bonito. E Humboldt era definitivamente um sabe-tudo. Ele representa tanto o lado brilhante quanto o obscuro da revitalização intelectual e científica europeia conhecida como Iluminismo. A alegria pura e natural em compreender o universo pulsava de maneira palpável no jovem Humboldt. Darwin declarou que a Narrativa pessoal de Humboldt (o diário da viagem que o levou à Venezuela e a Cuba, aos Andes e ao México) foi sua grande inspiração. Humboldt, entretanto, também exemplificava o pendor do Iluminismo para o conhecimento. “Descobrir” o mundo significava acessá-lo. A classificação, uma das paixões intelectuais do Iluminismo, também compartilhada por Humboldt, era uma tecnologia de controle. Humboldt foi, não por acaso, um dos homens mais famosos da Eu-
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ropa durante a grande era da colonização global europeia. Humboldt obteve permissão de Carlos IV para viajar coletando espécimes de plantas, animais e minerais, e medir ventos e correntes, altitudes e latitudes. Ele pesquisaria todos os elementos de história natural, nome dado ao estudo integrado do planeta em transformação, em especial à relação interativa entre os organismos vivos e seu ambiente. Porque um cientista francês que visitara a América do Sul em 1735 ouvira boatos de um canal que ligava os sistemas dos rios Amazonas e Orinoco, Humboldt navegou por mais de 1,6 km pela floresta em busca desta conexão. E, repetidas vezes, satisfez seu desejo de subir em qualquer vulcão que encontrasse, entrando em sua cratera a fim de investigar – em primeira mão –, cinzas sufocantes, cascatas de lavas e nuvens invisíveis de gases venenosos. Humboldt e seu colega Aimé Bonpland rumavam originalmente para Cuba. Mas um surto de febre tifoide irrompeu a bordo do seu navio no litoral da Venezuela, e Humboldt e Bonpland decidiram desembarcar na primeira oportunidade. Esta oportunidade foi um porto caribenho antigo e meio esquecido chamado Cumaná, o mais antigo povoado espanhol no continente sul-americano – à época, parcialmente em ruínas devido a um recente terremoto. O governador espanhol de Cumaná era, felizmente, um intelectual francófilo que saudou com entusiasmo Humboldt e Bonpland e parecia disposto a facilitar suas explorações de todas as maneiras. A terra ao redor de Cumaná era vibrante, tipicamente tropical, “poderosa, exuberante, serena”, escreveu Humboldt a seu irmão em uma carta arrebatadoramente feliz.1 A vida a bordo do navio fora agradável, relatou, e ele passara muito do seu tempo fazendo anotações e leituras astronômicas e também coletando amostras de água marinha para análise. Sem fazer menção à febre tifoide na sua viagem por temer alarmar seu irmão, o extasiado jovem adulto de 29 anos delirava, ao contrário, com onças, papagaios, macacos, tatus, pássaros e peixes de cores espetaculares, coqueiros, e “índios semisselvagens, uma raça bela e interessante”.2 O clima naquele paraíso tropical também lhe parecia aprazível. Colocar os pés nos trópicos arrebatou Humboldt e Bonpland a tal ponto de não serem capazes de ter uma conversa coerente durante vários dias, tão rápido uma maravilha suplantava a anterior. A Venezuela era abundante de espécies desconhecidas à ciência ocidental. E, por apenas algumas moedas, era possível alugar uma casa 1 A. von Humboldt, 1980, p. 16. 2 Ibid., p. 14.
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