De menina a mulher

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De

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Malvin e Z alc b e rg

De

mena mulher ina Cenas da elaboração da feminilidade no cinema e na psicanålise

Rio de Janeiro 2019


© 2019 desta edição, Edições de Janeiro © 2019 Malvine Zalcberg Editor José Luiz Alquéres Coordenação editorial Isildo de Paula Souza Produção executiva Carol Engel Copidesque Marta de Sá Revisão Patrícia Weiss Raul Flores Capa e Projeto gráfico Casa de Ideias Imagem da capa Shutterstock/Franzi CIP­‑BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ Z26d

Zalcberg, Malvine De menina a mulher : cenas da elaboração da feminilidade no cinema e na psicanálise / Malvine Zalcberg. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Edições de Janeiro, 2019.

ISBN 978-85-9473-032-9

1. Família - Aspectos psicológicos. 2. Feminilidade - Cinema. 3. Feminilidade - Psicanálise. I. Título. 19-55444 CDD: 159.93 CDU: 159.922-055.26

Leandra Felix da Cruz - Bibliotecária - CRB-7/6135

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19/2/1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da editora e do autor. Este livro foi revisado segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.

EDIÇÕES DE JANEIRO Rua da Glória, 344 sala 103 20241­‑180 – Rio de Janeiro­‑RJ Tel.: (21) 3988­‑0060 contato@edicoesdejaneiro.com.br www.edicoesdejaneiro.com.br


SUMÁRIO Introdução O mistério da feminilidade: uma cola poderosa unindo mãe e filha...............9

A formação da identidade feminina 1. O olhar da mãe dá corpo ao bebê Precisamos falar sobre o Kevin.........................................................................................15 2. “Mãe, você vê uma menina?” Sete dias com Marilyn.........................................................................................................19 3. Olhar evanescente, identidade flutuante No espelho  |  Não é um filme caseiro..........................................................................23 4. Uma ausência de definição tão feminina! As horas.....................................................................................................................................27 5. “Mãe, você vê uma linda menina?” O espelho tem duas faces..................................................................................................33 6. “O que sou sem o amor da minha mãe?” Sonata de outono.................................................................................................................38 7. Fica comigo A lição de piano  |  De salto alto.....................................................................................44 8. Amor usurpado Razão e sensibilidade  |  Enquanto o Sol não vem.................................................50 9. A necessária desilusão Coraline......................................................................................................................................55 10. Amor que baste Incompreendida....................................................................................................................60

A mãe e seu poder 11. Excesso de poder A maçã.......................................................................................................................................67 12. Abuso de apropriação Na ponta dos dedos  |  Hilary e Jackie.........................................................................70 13. Um amor ambivalente Cisne Negro..............................................................................................................................77 14. A mãe e sua devastação A professora de piano..........................................................................................................84 15. Rotas de colisão Melancolia................................................................................................................................88


16. “Me ame: me largue” Deixe-me viver.........................................................................................................................94 17. “É minha vida ou a sua que levo?” Belíssima.................................................................................................................................100

O pai (felizmente) aparece 18. Este “terceiro” que permite respirar Mommy..................................................................................................................................106 19. A palavra do pai Ele me nomeou Malala  |  Camille Claudel............................................................111 20. Fantasias incestuosas A caça......................................................................................................................................115 21. Quando o porto seguro vira prisão Sweetie  |  Aos nossos amores......................................................................................119 22. O olhar do pai Confiar.....................................................................................................................................126 23. Lidar com a falta de pai Tati, a garota.........................................................................................................................131 24. Fazer do pai ausente um pai operante Os descendentes  |  Um lugar qualquer...................................................................134 25. A proteção por outras instâncias interditoras Preciosa: uma história de esperança..........................................................................138

Estabelecendo distâncias 26. Abrir espaço Enrolados...............................................................................................................................145 27. Um “nós” amalgamado Coração selvagem | Brooklyn.....................................................................................152 28. Se diferenciar para “ser” Valente.....................................................................................................................................157 29. A formulação do desejo Uma garota encantada..................................................................................................162 30. Apropriar-se de seu destino A estranha passageira......................................................................................................166 31. Ainda mais coladas Grey gardens.........................................................................................................................170 32. De carona De bem com a vida  |  A intrometida........................................................................176 33. A mãe dentro de si Animais noturnos...............................................................................................................182 34. Separadas… mesmo? Livre...........................................................................................................................................188


35. Voltar para melhor avançar Marnie, confissões de uma ladra.................................................................................192 36. Reencontros Como nossos pais  |  Para sempre Alice...................................................................199

Mães e filhas, estas mulheres 37. Da mãe enquanto mulher A corte.....................................................................................................................................207 38. Da mãe enquanto mulher amada (ou não) A bondade das mulheres  |  Interiores  |  As pontes de Madison..................212 39. Recuperar uma imagem feminina Fatima.....................................................................................................................................219 40. Um “sem-fim” bem feminino De olhos bem fechados   |  Uma barragem contra o Pacífico.......................222 41. Criança: um objeto na fantasia materna Minha pequena princesa   |  A vida íntima de Pippa Lee..................................231 42. Uma feminilidade “incorporada” Mapas para as estrelas.....................................................................................................237 43. A mãe face à sexualidade da filha As virgens suicidas..............................................................................................................241 44. Quando os limites vêm a faltar Amy..........................................................................................................................................244

A dimensão do amor na vida da mulher 45. Diga-me como me amas e me dirás quem sou Monsieur & Madame Adelman  |  O desprezo  |  Fale com ela......................253 46. A devastação identificatória Blue Jasmine.........................................................................................................................259 47. A destituição amorosa Vila Amalia............................................................................................................................263 48. Quando o amor é tudo ou nada A bela Junie...........................................................................................................................268 49. Nos braços de uma mulher Cidade dos sonhos  |  Azul é a cor mais quente...................................................271

A mãe é uma filha como qualquer outra 50. A escolha da maternidade Foi apenas um sonho  |  A chave de Sarah  |  Philomena...............................277 51. Menos filha, mais mãe Um feliz evento....................................................................................................................281 52. O poder da mãe sobre a maternidade da filha Juno | 9 meses | Destinos ligados..........................................................................285


53. Netos reféns Garota má  |  Laços de ternura....................................................................................291 54. Libertar-se do peso da sua história Diário perdido......................................................................................................................297 55. Cordões perpetuados Volver  |  Álbum de família.............................................................................................302 56. Cordões salvadores Minha mãe  |  Aprendendo com a vovó  |  The Grandmother......................307 57. Quando mãe e filha tornam-se, verdadeiramente, avó e mãe Que horas ela volta?..........................................................................................................311

Cinderela e astronauta 58. Mulher: ser dois em um Não sei como ela consegue...........................................................................................317 59. Trabalhar ou não, eis uma questão Baby Boom Presente de grego......................................................................................322 60. Que o céu nos proteja das mães perfeitas! Pequenas grandes mentiras  |  Perfeita é a mãe!.................................................325

Conclusão Feminilidades.........................................................................................................................................333

Anexo.................................................................................................................................................................338


INTRODUÇÃO O mistério da feminilidade: uma cola poderosa unindo mãe e filha “De quem você gosta mais, do papai ou da mamãe?”, pergunta-se divertida e inadvertidamente às menininhas, sabendo-se que (quase) invariavelmente elas responderão “da mamãe” – e juntarão o gesto à palavra, jogando-se nos braços desta. O grande amor que uma menininha devota à sua mãe é, sem dúvida, genuíno, mas não desinteressado. A menina ama sua mãe porque precisa dela – como o menino – para crescer. A menina, no entanto, também ama sua mãe porque precisa dela – e, nisso, difere do menino – para conquistar sua identidade feminina. A feminilidade aparece para ela como se estivesse envolta em um mistério do qual a mãe, figura feminina por excelência, supostamente detém a chave. Todas as chaves. O amor é uma cola poderosa; a filha o utiliza para ficar juntinho à mãe, com o objetivo de não perder uma migalha, uma pista sequer sobre o que é ser mulher. A cola sempre pega melhor quando passada dos dois lados: para além da acolhida afetuosa dispensada à filha ao nascer, a mãe encanta-se com o amor meigo e cúmplice que a menininha lhe devota – satisfazendo-lhe tão docilmente os desejos – e por sua vez “gruda” nela também. Os momentos de grande proximidade vividos com a filha não deixam de remeter a mulher aos vivenciados quando, criança, esta amava e desejava ser amada pela mãe, movida por sua própria busca de resposta ao seu ser feminino. À expectativa de uma filha de encontrar respostas para o seu ser feminino junto à mãe contrapõe-se a esperança da mãe de responder a algumas de suas próprias indagações nesse âmbito por intermédio da filha.


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Contudo, o que uma filha espera receber da mãe para a edificação de sua feminilidade nem sempre é o que a mãe lhe oferece. Da mesma forma, o que uma filha provê para a consolidação da feminilidade da mãe nem sempre é o que a mãe almeja receber. Ambas se implicam, portanto, reciprocamente – e se constroem mutuamente – nos percursos da grande aventura de chegarem, uma e outra, ao seu destino de mulher. É assim que o mistério que cerca tudo o que tem a ver com o feminino ecoa no mais íntimo de cada uma, de geração em geração, ao modo das matrioscas1. As cultuadas matrioscas representam mães que dão à luz filhas que darão à luz outras filhas, e assim sucessivamente; simbolizam a fertilidade, a maternidade e o amor. Poderíamos, todavia, também interpretar isso como interdependência, pelo fato de tantos aspectos relativos ao entrelaçamento de suas respectivas construções femininas atravessarem este vínculo: uma menina será muito mais envolvida pela mãe em suas questões femininas na medida em que essa mãe não tiver resolvido essas mesmas questões com a própria mãe. Não encontrando resoluções satisfatórias num determinado nível geracional, essas questões irão repercutir no nível seguinte. Por todas essas razões, enquanto vivem os encantos e desencantos dessa relação, mães e filhas se perdem e se encontram, se frustram e se satisfazem, brigam e se reconciliam, se desesperam e se tranquilizam. Têm, sobretudo, dificuldade em se separar, em separar seus respectivos destinos de mulher. Quantas mães, se utilizando de chantagem, culpabilidade ou doce sedução, procuram perpetuar a relação idílica dos primeiros tempos – uma relação em que algum tipo de realização feminina se teria posto em jogo para elas – e, assim, mantêm as filhas “coladas” a elas, eternas meninas dependentes! Em nome do amor que as unem! 1

Também conhecidas como “bonecas russas”, é um brinquedo tradicional da Rússia que consiste

numa série de bonecas (entre seis ou sete) feitas geralmente de madeira, colocadas umas dentro das outras.


INTRODUÇÃO

Uma relação intensa demais entre filha e mãe pode dificultar a passagem da menina a mulher, implicando uma falha na conquista da feminilidade da filha. A mãe ausente demais pode lançá-la numa busca eterna – e nunca satisfeita – de amor. A mulher depende, assim, em grande parte, dos recursos psíquicos com os quais a mãe – a primeira – a dota, abrindo o caminho, em seguida, para outras aquisições formadoras de sua identidade feminina. Resta esperar que esta (a mãe) saiba como fazê-lo. Desde o início.

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A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE

feminina



1.

O olhar da mãe dá corpo ao bebê Precisamos falar sobre o Kevin No início da vida, o bebê é absolutamente dependente de outro ser; em geral, a mãe. O seio em sua boca – uma imagem tão pregnante de sua ligação com o corpo da mãe – o faz crer que ele é o seio ou que o seio é ele. Se não se pode dizer que o bebê vive uma indistinção de corpos é porque ele nem adquiriu uma imagem de seu próprio corpo ainda. Para ele, braços, pernas, cabeça e tronco não têm ligação entre si e não constituem essa unidade chamada “corpo”. Por isso, o bebê brinca com as mãozinhas como se elas fossem elementos externos a ele. O psicanalista Donald W. Winnicott cunhou a expressão corpo fragmentado para referir-se a essa vivência de disjunção do corpo que é normal no recém-nascido, mas só permanece na idade adulta em pessoas emocionalmente perturbadas. É preciso, pois, que o bebê supere essa primeira vivência de um corpo sem unidade e adquira a experiência de um corpo unificado em que as partes são experimentadas em conexão entre si, formando um todo. Essa passagem de corpo fragmentado para corpo unificado torna-se possível pelo fato de que o bebê vê seu corpo como uma coisa só refletido no olhar da mãe. É nos olhos da mãe que o bebê vê seu corpo como visto por ela: como um todo. Essa imagem assim constituída é a matriz do seu eu, a primeira forma assumida pelo seu eu. É como se o bebê pensasse: “tenho um corpo porque ele existe no olhar de minha mãe”. Pode acontecer de a mãe, tomada por alguma outra preocupação (luto na família, dificuldade de interação com o recém-nascido ou de adaptação à maternidade), olhar mas não ver seu


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bebê. Seu olhar pode ficar perdido no horizonte, não pousado nele, enquanto o bebê procura capturá-lo. Nesse caso, em vez de refletir, como um espelho, a imagem do bebê, o olhar materno só reproduz as próprias preocupações. Em razão de sua dependência, o bebê ficará muito atento aos seus estados de alma, seus pensamentos, seus interesses, às suas disposições, aos seus humores. Se o distanciamento materno for eventual, será tolerado pelo bebê; mas, se for constante, poderá ser causa de distúrbio na constituição do eu. É fundamental, portanto, a mãe estar atenta a seu bebê para vê-lo. Quando se trata de uma bebê (menina), ela tem mais um motivo para precisar ser vista, como será comentado adiante. Segundo Winnicott, além de o bebê sentir esta inquietação em relação à sensação de corpo fragmentado, ele também sente o desconforto de outro tipo de sensação: a de “estar caindo”. Por isso, além de ver o bebê, é importante a mãe segurá-lo com braços firmes e envolventes que lhe façam se sentir protegido. O olhar (que o vê) e os braços maternos (que o seguram) amenizam as primeiras angústias do bebê por constituírem provas do amor materno. O envolvimento da mãe – captado em todas as suas nuances pelo bebê, que só vive por e para isso – é a soma do aconchego, da percepção, da proteção e da alegria proporcionados por ela. No entanto, lembra o psicanalista Jacques Lacan, “existem pessoas que vivem sob o impacto de não terem sido desejadas. Mesmo quando aceitas mais tarde, nada há que possa impedi-las de viver para sempre sob a marca do desejo inexistente antes de certa data”. Mais do que qualquer outro, faz falta à criança o amor da mãe – e falhas no nível da interação amorosa inicial podem esvaziar de sentido as trocas afetivas com a mãe e, mais tarde, quaisquer outras. O romance Precisamos falar sobre o Kevin (We Need to Talk About Kevin, de 2003, da escritora Lionel Shriver), que teve uma versão cinematográfica (em 2011) dirigida por Lynne Ramsay, expõe, através das cartas de Eva (Tilda Swilton) ao ex-marido, Franklin (John C. Reilly), por quem diz continuar apaixonada, um mal-entendido


A formação da identidade feminina

frequente na história das famílias: ela engravidou sem realmente o querer. “Nós somos felizes (sem filhos), você não acha?”, ela dizia ao marido, que, por sua vez, desejava ardorosamente ter um filho. Enquanto Eva idealiza um homem que não existe em Franklin, este idealiza um filho que Kevin não é. Assim, nenhum dos pais, envolvidos com suas próprias fantasias, consegue efetivamente ver o filho e dar a este uma acolhida estruturante. Como ela escreve nas cartas que se tornaram o livro: “Os pequenos têm muita intuição, porque é mais ou menos tudo o que são. Eu tinha certeza que Kevin percebia um enrijecimento sintomático de meus braços quando eu o segurava... Nunca vi meu filho como um bebê. Para mim, ele era grande...”. O filme nos faz sentir a solidão trágica, o desejo de punição dessa mãe que se debate com a culpa por não ter amado o filho e por ter favorecido que ele se tornasse o assassino que mata sete de seus colegas e uma professora. A projeção da culpa materna pode ter suscitado um sentimento de culpa em Kevin – o sentimento dele de ser o autor da destruição do mundo. A sua busca de punição – e de atos criminosos que a justificassem – é consequência desse sentimento. É claro que nem todos os filhos “não vistos”, “mal acolhidos” ou “não amados” pela mãe tornam-se maus elementos! Muitos – a maioria! – encontram meios de contornar essa ausência, e das maneiras mais criativas. A cineasta Aline Issermann concedeu uma entrevista explicando como a atenção aos detalhes e a busca por um foco exigindo nitidez em todos os planos lhe vêm da infância, resultado de uma vida com uma família em que a violência podia irromper a qualquer momento: era necessário observar tudo, estar preparado para qualquer eventualidade. É principalmente o exercício da filmagem em si, no entanto, que guarda semelhança com seu modo de estar no mundo quando era pequena: “Quando criança, eu vivia fora do quadro familiar e, de certa forma, reencontrei essa posição, colocando um olho de vidro entre eu e o mundo”.

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c ompr es e ue x e mpl a re m

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