Da minha janela (Romance)

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Ficha Técnica © 2016 Graça Borges © 2016 Edições Salesianas Rua Dr. Alves da Veiga, 124 Apartado 5281 4022-001 Porto Tel: 225 365 750 Fax: 225 365 800 www.edisal.salesianos.pt edisal@edicoes.salesianos.pt Publicado em Novembro de 2016 Capa: Paulo Santos Paginação: Carlos Nunes Impressão e acabamentos: Printhaus ISBN: 978-989-8850-25-6 D.L.: 417804/16

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Prefácio ... a paixão é uma festa e um veneno, rosa e cicuta...

in A Terceira Rosa, Manuel Alegre

A força de um abraço envolvente e redentor atravessa recorrentemente as páginas desta narrativa sem deixar indiferente o leitor mais cerebral. Caminhemos então juntos, nesta que foi uma deliciosa tarefa apaixonante e arriscada – prefaciar este livro. Mas torna-se imperioso desmontar o título e a sua adequação. A Autora usa a alegoria da janela comum que dá para uma janela interior. De dentro para fora, vemos; de fora para dentro, espreitamos. Então venha connosco espraiando o seu olhar neste universo de espanto e de grandeza, apenas molestado pelo sofrimento. Diante de nós, apanhados que somos pelo rodopio do quotidiano, ergue-se um mundo de vida fabuloso, quase diria com contornos de utopia, seguramente ficcionado pelas mãos delicadas e exímias da narradora atenta aos comportamentos humanos que tão cuidadosamente descreve. Esclareça-se que a utopia cabe somente nos momentos em que as relações humanas se revestem de grande nobreza moral e se pautam por um painel (desejável, sem dúvida...) de valores humanos presentes nos espaços familiar, profissional e social. A Autora pretende levar a cabo a sua intencionalidade comunicativa que se traduz na crença no humano, salvaguardando obviamente as suas imperfeições. O mundo é como é, no entanto, pretende-se aqui que seja de entreajuda solidária e nobre. O alvo da sua observação prende-se com um painel onde se movimenta um núcleo familiar alargado aos amigos e às pessoas mais vulneráveis, tudo em nome do amor. Ficamos surpreendidos e esboçamos um sorriso de esperança, quando vemos a elevação e o respeito que coloca na perspicácia da sua observação e na forma como conduz alguns comportamentos. Vem a propósito elencar alguns: a abnegação que caracteriza a personagem Joana; a entrega ao outro, sem nada pedir (muito menos exigir) em troca, sem cobrar. Neste contexto, refira-se a paz no seio da família, uma paz seguramente construída com sacrifício 3

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e assente no amor. Neste recanto sagrado, o amor fala mais alto. Respondendo naturalmente às expectativas dos leitores menos desencantados e amantes da verdade, tantas vezes incómoda, a Autora deixa uma certeza: é que, no fim, tudo se compõe. O amor ergue-se como uma flor nascida da fenda mais desamparada de um chão sem terra feito de cascalho. A este propósito, ocorre-nos a aproximação gradual e estrategicamente gerida entre a Maria Lina e a Rosarinho. Um encontro que tardava, um desencontro renitente e sofrido por ser alheio à pertinência dos laços de afeto e das cumplicidades que acabam por se criar entre ambas. A mensagem é forte e a intensidade dramática impossível de ignorar. A verdade é que somos confrontados com a presença quase obsessiva da negatividade; da dor física e psicológica; do amor não correspondido; dos percalços de uma maternidade sublime; dos abandonos; do peso do passado; do dever imperativo; da doença; da morte e até de um caso de violação. Tudo se envolve num certo fatalismo só resgatado pela fé. Apesar disso, não deixa de gerar uma profunda turbulência interior magistralmente descrita pela Autora. Mas descansemos, descansemos, que logo o leitor se alivia, tudo se resolvendo em bem, com um bom abraço, na aceitação ou então na resignação obrigatória. E lá vem a leveza do amor, a exaltação de sentimentos nobres; a bondade; a urgência de uma esperança que tem altos e baixos, mas que persiste, ela que é redentora chegando até a ser inverosímil. De uma forma mais ou menos abrangente, somos tomados por uma onda de esperança nem sempre possível, quantas vezes morta. A este nível, a ação é intrincada e as personagens, dotadas de grande complexidade. É o caso da Rosarinho que destacamos por se tratar de uma figura muito bem construída que cresce ao longo da ação ganhando espaço e surpreendendo o leitor. A arquitetura do romance prima pela originalidade e obedece a um plano criteriosamente delineado, desde as primeiras páginas. Neste particular, vejam-se os textos poéticos que antecedem cada capítulo, conferindo-lhe maior solidez e coesão. A nosso ver, os referidos textos projetam alguma luz sobre os movimentos das personagens, sem nos ser revelado o desenrolar da história. A estrutura da obra ganha com a inserção destes excertos que nos deliciam e são um bálsamo. Potenciam algum conforto emo4

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cional, já que a crueza e o realismo descritivo de algumas situações nos deixam presos à dor que se segue. Registemos então alguns momentos que particularmente nos tocaram, enquanto leitores: ... os sorrisos pálidos... ... a nossa casa interior destruída... ... tinha guardado o meu corpo e o meu coração... para ele... ... olhos azuis, uma cor que tinha atravessado gerações até pintar o olhar da minha irmã... ... um sorriso do tamanho dos meus sonhos felizes... ... a luz vermelha do Sol envolveu-te num abraço... Não menos poético é o sonho humanitário contido na Associação Mãos Abertas aos sem-abrigo que poderá despertar o leitor para voos de amor ao próximo. E o passeio à chuva, no jardim? Alguma vez poderá o leitor esquecer esse cenário de frescura? No nosso ponto de vista, que será seguramente questionável, existem situações (raras) em que nos atrevemos a ver alguma inverosimilhança. Referimo-nos ao regresso da irmã Inês, ao reencontro com a família. Que a força avassaladora do sangue fale mais alto, é natural... Deixámos para o fim a cereja do bolo: uma grande história de amor. O lado sublime da personagem Maria Lina, que resiste a todas as inseguranças, a todas as vicissitudes por que passa. E não são poucas. A paixão pueril torna-se madura e obsessiva, paciente e sofrida – nunca desistente. A falta de correspondência amorosa traz a cedência abnegada em favor do outro lado da arena. O amor silenciado, que chora para dentro; que sabe esperar sem desesperar; que obedece a um lento processo de aproximação e que confia na lealdade entre mulheres. E porquê? – Porque acredita na recompensa final. Em suma: acreditar na felicidade no amor, é aceitar o caminho. Temos aqui uma bela lição de humildade e de perseverança. Por fim, uma reflexão: A leitura deste livro leva-nos à descoberta de um terreno macio e fecundo da criação literária que a Autora, Graça Borges, bem cultiva. Neste espaço surpreendente e aliciante que acabámos de percorrer, exorcizam-se dores; cala-se a revolta; exercita-se a paci5

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ência; restaura-se ou recupera-se a confiança; cultiva-se o altruísmo; desperta-se o sentido do outro; aceita-se a morte; aprendem-se as esperas; anseia-se pelas entregas; numa palavra: enaltece-se o Amor. A tudo isto assistimos, convidados que somos a um crescimento interior, superando assim o homem a sua humilde condição terrena. Maria Aida Araújo Duarte Setembro de 2016

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Para os meus pais, pelas janelas que abriram em mim. Para a Fátima e a Céu, as irmãs nunca abracei. Para o Paulo e a Isabel, os irmãos que caminham comigo. Para as minhas sobrinhas e afilhados, por me deixarem ser criança. Para os meus amigos, a quem ouso escrever palavras que narram quem sou.

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“Janelas do meu quarto, Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é (E se soubessem quem é, o que saberiam?)” in A Tabacaria, Álvaro de Campos

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I Da minha pequena janela redonda via o mar, do amanhecer ao pôr do sol. Via-o através dela, ou quando saía para o convés. Tudo era mar à minha volta, como sempre tinha sido ao longo da vida. Finalmente, tinha deixado a ilha natal e entrado naquela, flutuante. Mas o mar era de uma imensidão que eu não poderia imaginar. Possuía cores que eu não conhecia, que iam mudando de tom, de forma, de textura, de som, de aroma, com o passar dos dias. Quantos segredos se esconderiam na profundidade daquelas águas? Ficava ali a contemplar, em silêncio, aquela paisagem e a sonhar com sereias encantadas, com espécies de todos os reinos, que só eu conseguia ver, tocar. Aquele enjoo, aquela vertigem, aquela liberdade que nunca tinha sentido! O estar completamente à deriva no meio de oceano, deixava-me com um ar de contentamento por fora, mas com um arrepio por dentro. O comandante do navio sabia bem qual a rota a seguir, o destino aonde queria chegar. Eu não sabia nada. Era tudo novo para mim. Sentia-me o Vasco da Gama, o Fernão de Magalhães, o Cristóvão Colombo, o Manuel Pessanha… Aquela era a minha primeira grande aventura marítima! A emoção de sentir que estava perto, a ansiedade de ainda não ter chegado a terra firme. O desejo de ter alguém à minha espera no cais, para me dar um abraço. A certeza de estar sozinho no mundo. A vontade de recomeçar, ou melhor, de começar a viver e o receio de não saber como o fazer. Era final da tarde, quando avistei as primeiras gaivotas. Afinal, ali também existiam gaivotas! Fiquei reconfortado por encontrar algo que me era familiar, além do mar. E depois, lá ao fundo, começou a desenhar-se a costa, com contornos cada vez mais nítidos. Portugal, visto dali, pareceu-me mais pequeno do que aquele que conhecia através dos mapas.

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A janela estava aberta. Era uma noite de setembro. Os meus pais e a minha irmã estavam deitados. Tinha aberto a janela do meu quarto, para contemplar as estrelas, como fazia habitualmente. Mas naquela noite, algo de muito especial aconteceu. O Guilherme morava na casa em frente à minha. A janela do seu quarto também estava aberta, por isso, pude ver quando ele tirou a camisola e ficou em tronco nu, sentado em cima da cama. As luzes estavam apagadas, porém a claridade da televisão iluminava o seu corpo em tons de azul, vermelho, amarelo… Corria uma brisa suave, que fazia com que o cortinado branco o envolvesse num mistério e o descobrisse momentaneamente, para que eu o pudesse ver por inteiro. Não consigo descrever o que senti. As pernas tremeram, o coração disparou, a respiração tornou-se ofegante. Um calor percorreu todo o meu corpo, como se uma febre desconhecida, até então, me fizesse delirar. Quando me deitei, fiquei longas horas sem conseguir adormecer, tentando entender o que se estava a passar. Já tinha visto o Gui tantas vezes e nunca tinha reagido assim. Estaria doente? Seria grave? Naquela noite, não imaginava o quanto haveria de sofrer com uma doença, que tem por nome “enamoramento”. Algumas semanas depois daquela noite, compreendi que a minha vida tinha mudado completamente. O ano letivo tinha começado há poucos dias, vinha da escola a saltitar e cheguei a casa à hora do almoço. Fui à casa de banho e deparei-me com uma mancha vermelha de sangue nas minhas calças interiores azuis, aquelas que tinham um malmequer em relevo. Chamei a minha mãe e ela veio em meu auxílio. Ao ver o sucedido, disse-me: – Agora, já és uma mulher! – Uma mulher?! – perguntei-me, incrédula. Eu tinha apenas treze anos de idade, tinha passado a ser mulher somente por deitar sangue por baixo? Sentia-me esquisita, com hipersensibilidade no meu corpo, não podia tocar em nenhum membro, pois tudo doía. A minha mãe deu-me um dos seus pensos Serena, mas eu continuei a sentir-me bastante inquieta. Sentia-me incómoda com aquele enchumaço no meio das pernas. Tive dificuldade em sair à rua nessa tarde. Parecia que todos me observavam, como se na minha testa estivesse escrito 12

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que me tinha vindo o período. Desejei que o tempo voasse, que os meses passassem rápido, que os anos se sucedessem velozmente. Imaginei-me numa situação mais confortável, onde iria entender o que se estava a passar comigo, onde conseguiria aceitar como meu, aquele corpo sempre a mudar. Recordo-me que, a partir daquele dia, a minha mãe passou a fazer-me várias recomendações: “Vê lá como te sentas!”; “Essa blusa é muito decotada.”; “Tem muito juízo, cuidado com os rapazes!”. E tudo me parecia muito confuso, sem nenhum sentido. Por que é que já não podia sentar-me à vontade, como sempre tinha feito até ali? Nessa época da minha vida, ansiava contar ao Guilherme o que me estava a acontecer. Confiava nele, pois sempre tinha sido o meu confidente, o meu protetor. Mas isso fora no tempo em que ele era meu amigo. A nossa relação tinha esmorecido nos últimos anos. Os meus pais contam que a terceira palavra que aprendi a dizer, depois de “mamã” e “papá”, foi “Gui”, de Guilherme. As nossas famílias eram amigas e vizinhas. Passávamos os dias na casa uns dos outros. Quando nasci, o Gui tinha três anos e meio, ele foi a única criança a receber-me de braços abertos. A sua irmã Margarida tinha, naquele tempo, cinco anos de idade. Era da idade da minha, a Inês. A Inês reagiu muito mal à minha chegada. Fazia birras constantes, quando os nossos pais pegavam em mim. Tirava-me a chupeta, os bonecos que tinha na mão. Apertava-me muito, puxava pelos meus braços e pernas, na esperança de me desarticular, de me desmontar em pequenas peças, que caberiam mais facilmente no balde do lixo. Fazia de tudo para me pôr a chorar, pois queria fazer-me pagar pelo mal que lhe tinha feito, ao roubar o espaço, que antes era apenas seu, no coração dos nossos pais. Não me lembro disto, mas à medida que fui crescendo, fui tomando consciência da frieza com que a Inês me tratava. A Margarida era cordial comigo, mas como era amiga da minha irmã, nunca se aproximou muito de mim. O Gui, esse sim, gostava verdadeiramente de mim. Depois de eu ter nascido, deixou de pedir aos seus pais um mano e adotou-me. Fazia-me festas, palhaçadas para eu rir, beijava-me vezes sem

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conta. Quando entrou para o pré-escolar e a educadora perguntou-lhe quantos irmãos tinha, respondeu sem hesitar: – Tenho duas irmãs, a Margarida e a Maria. Devo ao Gui quase tudo que aprendi na infância. Os primeiros passos que dei, foram na sua direção. Fui enriquecendo o meu vocabulário com palavras que saíam da sua boca. Antes de eu entrar para a escola, já sabia todas as letras do abecedário e os números até cem. De cor sabia contar até cem, mas por escrito enchia cadernos quadriculados com uma infinidade de números. Em todos os anos que andei na escola, nunca escrevi tantos números (milhares), como os que colecionei naqueles cadernos. Sentava-me ao lado do Gui e, enquanto ele fazia os deveres da escola, eu fazia os meus números. Claro que volta e meia lá lhe perguntava: – E, agora, qual é o número que vem a seguir? Ele tinha uma enorme paciência comigo e ajudava-me. Foi ele que me ensinou a ver as horas num relógio com ponteiros. E ensinou-me coisas bem mais divertidas como assobiar, a fazer corridas de carrinhos, a jogar futebol… Só há uma coisa que nunca consegui aprender: jogar ao pião. Por mais que me explicasse, ficava sempre com a ráfia na mão e o pião caía, invariavelmente, no chão sem rodopiar. Também lhe ensinei algumas brincadeiras, com as bonecas, a saltar às cordas, ao elástico, ao quadrado… Éramos tão amigos, que criámos um código secreto entre nós. Quando por algum motivo não podíamos ir para a casa um do outro, comunicávamos durante o dia, através de dois pedaços de espelho. De manhã, o Sol batia na minha janela, por isso, se quisesse falar com o Gui, desviava com o meu pequeno espelho alguns raios solares, que incidiam sobre a janela do seu quarto. Durante a tarde, o processo invertia-se. À noite, os sinais de lanternas mantinham-nos em contacto. Das nossas janelas, entretínhamo-nos a contar as marcas dos automóveis que passavam na rua. Cada um escolhia a sua e ganhava aquele que contasse mais carros daquela marca. Quando chovia, transferíamos a brincadeira para as cores dos guarda-chuvas. Ele logo se antecipava a escolher a cor. – Eu fico com o preto! – Não sejas batoteiro, escolhe outra cor. – advertia-o. 14

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O Gui, fazendo-se de inocente, perguntava: – Por que motivo não posso ficar com o preto? – Assim, ganhas sempre tu! – É o que eu quero! – confessava, dando uma gargalhada. Acabava por ceder ao meu pedido e o jogo começava. À noite, eu gostava de ver passar o camião do lixo. Mal ouvia o seu barulho, largava o que estava a fazer e corria para a janela. Não sei explicar o que me atraía naquele camião, não era certamente o cheiro que dele emanava. Seriam as luzes amarelo-alaranjado a rodopiar, os fatos verdes dos lixeiros com bandas refletoras, os sacos que estes lançavam para a enorme “boca” que triturava tudo que lá caía. A alegria das crianças saltitando atrás do camião, ajudando os lixeiros, na tentativa de por uns breves instantes, aproveitando uma distração, poderem empoleirar-se nas traseiras e serem transportados por um ou dois metros. Quantas vezes tive vontade de fazer o mesmo, descer as escadas, correr para a rua e entrar naquela aventura! Contudo, nunca tive coragem para o fazer. Quando vim a ter coragem, confiança em mim mesma, já há muito deixara de ser criança, não dava para fazer aquele tipo de traquinices.

Quando fui para o primeiro ano no colégio, o Guilherme andava no quarto ano. Como tínhamos o mesmo horário íamos e vínhamos juntos. Naquele tempo, as crianças andavam sozinhas na rua! Num dia de dezembro, quando saímos das aulas à hora do almoço, começou a chover intensamente. Ainda disse ao Gui que me tinha esquecido do guarda-chuva, que ia à sala buscá-lo. Ele disse que não valia a pena, que o aguaceiro passaria rapidamente. Mas tal não aconteceu. Bastaram poucos minutos, para ficarmos encharcados da cabeça aos pés. Ao passarmos pelo jardim público, que ficava a meio do caminho entre o colégio onde andávamos e a nossa casa, o Guilherme insistiu para entrarmos. – Mas está a chover! – tentei demovê-lo. – Não faz mal, molhados já estamos nós!

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Entrámos no jardim e, pela primeira vez, ele estava ali inteirinho para nós, pois não se encontrava lá vivalma. Corremos à volta do lago, que ficava bem no centro do jardim, subimos e descemos vezes sem conta, as escadas que levavam até ao coreto, abraçámos as estátuas que estavam a fazer poses nos relvados, saltámos nas poças, rodopiamos de braços abertos e com o rosto virado para as nuvens escuras. A água fria a escorrer sobre os meus cabelos, sobre a minha pele quente. A atravessar o meu casaco, que pensava ser impermeável, a colar a camisola e as calças ao corpo, a entrar pelo cano alto das botas… A ser absorvida pelos meus poros, a saciar a minha sede. Foi uma sensação indescritível, senti-me livre como uma ave a esvoaçar no céu! Julgo que em toda a minha vida não voltei a ter uma sensação de liberdade tão intensa como aquela. Há coisas que só uma criança consegue sentir! Quando o meu corpo parou de rodopiar, a cabeça continuou a fazê-lo. – Estou tonta! – exclamei, tentando manter-me em pé. O Gui abraçou-me e pediu que eu fechasse os olhos, para que dentro de mim tudo voltasse ao seu lugar. Jamais esqueci aquele abraço molhado, o calor e a segurança que ele me deu. Chegámos a casa tardíssimo, molhados e sujos. – O que vos aconteceu? Por onde andaram? – inquiriu a minha mãe, ao abrir-nos a porta. – Estava a chover… – tentou explicar o Gui. – Isso, já notei. Mas onde estão os vossos guarda-chuvas? – Deixámos no colégio. – disse eu. – Pois, quando vimos que começou a chover, voltámos para trás, contudo a sala já estava fechada. Viemos então, a correr e caímos numa poça e, por isso, nos sujamos, não foi, Maria? Acenei que sim com a cabeça e essa foi a primeira vez que menti à minha mãe. Algumas vezes mais, voltaria a fazê-lo, por cumplicidade com o meu amigo. O Gui foi para casa dele e eu fui tomar um banho quente. Já andava com tosse e dores de garganta havia uns dias e aquela chuva veio piorar a situação. Quando fui para a mesa, não me apetecia comer. – Maria Lina, come! 16

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– Não consigo, dói-me a garganta… – Pois, andas à chuva e, depois, vens queixar-te. – Dói-me também a cabeça. – disse a medo. – Livra-te de ficares doente, tenho de ir trabalhar! No entanto, estava mesmo doente, a minha mãe já nada poderia fazer para o evitar. Foi buscar o termómetro e verificou que eu tinha 40º C de febre. Comecei a chorar: – Mãe, eu não vou morrer, pois não? – perguntei, apavorada. – Cala-te, rapariga, não me faças perder a paciência! Logo hoje, que o teu pai foi para fora. Nunca está em casa quando é preciso! A D. Juliana não pôde vir hoje, a tua irmã está no colégio, quem vai ficar contigo? Foi então, que se lembrou da Alda, a mãe do Gui, e resolveu pedir-lhe ajuda. Esta ofereceu-se logo para cuidar de mim, que não se preocupasse, que me levaria ao pediatra e eu podia ficar na sua casa até ao final da tarde. O meu amigo voltou para o colégio e eu fiquei aos cuidados da sua mãe. A Alda era uma mulher fora de série. A mãe dela pertencia a uma família abastada, que possuía várias propriedades de terrenos e de imóveis. A Alda era filha única e herdara, também, o negócio do seu pai, uma empresa têxtil, no Vale do Ave. Formara-se em Gestão, na Faculdade de Economia da Universidade do Porto, precisamente para um dia vir a administrar essa fábrica. Enquanto o seu pai ainda era vivo, chegou a trabalhar com ele. Quando ela casou com Júlio, seu colega de curso, este entrou nos negócios da empresa. Anos mais tarde, o Júlio convidou o seu grande amigo Gaspar, o meu pai, para ir trabalhar consigo. O meu pai era engenheiro químico. Devido à competência deste e à amizade que os unia, tornaram-se mais tarde sócios dessa empresa e das outras que viriam a surgir. Como não tinha, na altura, muito capital para investir, o meu pai tornou-se sócio minoritário. Quando a Margarida nasceu, a Alda tomou a decisão de deixar de trabalhar, pois queria (e podia) dedicar-se a tempo inteiro a cuidar da sua filha. Mais tarde, nasceu o Guilherme e manteve inabalável a sua vontade de permanecer bem próxima dos seus filhos.

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A Alda é uma daquelas mulheres que veio ao mundo para ser mãe. Dava gosto ver com que amor e carinho cuidava dos seus filhotes. Deixou pós-graduações por fazer, a realização profissional de lado, mas afirmava com graça: – Tenho aprendido imenso no meu doutoramento em maternidade! Lamentavelmente, a minha mãe era bem diferente dela. A prioridade da sua vida não era certamente eu. Se fosse, estaria comigo naquela tarde, em que precisei tanto dela. A Alda levou-me ao meu pediatra, que era o mesmo dos seus filhos. Este diagnosticou-me uma gripe e receitou-me medicação adequada. Passei o resto da tarde na cama do Gui. Quando este regressou das aulas, encontrou-me a chorar. – Desculpa, Maria, a culpa foi minha. Não devíamos ter andado à chuva. – Eu quero a minha mãe! – Ela está a trabalhar, logo vem buscar-te. – Não quero morrer longe dela… – Mas tu não vais morrer, ainda és criança! – E as crianças não morrem? – Não sei… Mas, tu vais ficar boa. Eu vou ficar aqui contigo, não tenhas medo. Sentou-se numa cadeira, a meu lado, e deu-me a mão. Era bom sentir que não estava sozinha, que tinha o Gui e a sua mãe a cuidar de mim. Todavia, a única pessoa que me poderia serenar, naquele momento, não estava ali. Todos nós chamamos pela mãe, quando receamos que o pior aconteça, não é verdade? Penso que inconscientemente recordamos que durante nove meses estivemos no local mais seguro do mundo, dentro do seu ventre. Porém, a minha mãe quase nunca me amparou nos momentos difíceis… Se apagasse o Gui da minha infância, pouco de bom teria para recordar! A minha irmã, à medida que ia crescendo, parecia que tinha mais ciúmes de mim. Se a nossa mãe me dava um vestido, tinha de lhe dar dois. Se me dava um lápis, tinha de lhe dar um estojo com canetas. A minha mãe satisfazia-lhe todos os desejos, como se a quisesse compensar da atenção que me tinha de dedicar. 18

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Quando a Inês fazia alguma asneira atirava, sempre que podia, as culpas para mim. Inicialmente, a minha mãe relevava, pois eu era pequenina. Mas, quando cresci um pouco, comecei a sofrer castigos injustos. Às vezes, era salva pela D. Juliana, a nossa empregada doméstica, que intercedia a meu favor. O meu pai era o único elemento do meu núcleo familiar que me dava carinho. Contudo, a fábrica roubava-lhe quase o tempo todo. Durante a semana, saía cedíssimo e regressava a casa frequentemente muito depois da hora de jantar, quando eu já estava deitada. Muitos fins de semana, passava-os fechado no laboratório da fábrica, tentando descobrir novos tons para tingir as peças de tecido ou a forma de os tornar mais macios e resistentes. Ia, também, com frequência para fora do país, em busca de formação e de soluções para os problemas que iam surgindo. No entanto, ao sábado, quando estava em casa, não abdicava de o passar com as filhas. – Meninas, vamos passear? – Sim! – respondia, a saltitar de felicidade. – Se a Lina vai, eu não vou. – resmungava a Inês. – Então, vamos só os dois. Saía de casa, de mão dada com o meu pai e sentia-me a pessoa mais importante do mundo. Íamos a um jardim, a um parque, ao cinema, comer um gelado ou beber um chocolate quente, dependendo da estação do ano… Íamos a todos aqueles locais aonde os pais costumam levar as suas crianças. Sentia-me tão especial, quando me via através do olhar do meu pai! A minha mãe quase nunca nos acompanhava, nestas saídas ao sábado. Justificava-se, dizendo que tinha de fazer compras, ou que tinha uns assuntos do banco para resolver. Para ela o trabalho vinha sempre em primeiro lugar. A Inês ficava com a Margarida, pois a D. Juliana não trabalhava ao fim de semana. O domingo, era um dia triste. O meu pai fechava-se no escritório a preparar relatórios para apresentar no dia seguinte. Ao meio da tarde, enfiava-se no sofá, em frente ao televisor, a ver programas desportivos na RTP 2. Mal ele se sentava, a minha mãe saía da sala de estar e ia para o quarto, para poder continuar a ver o “Passeio dos Alegres”, um programa apresentado pelo Júlio Isidro. A minha irmã entretinha-se a ler, devorava coleções de livros para adoles19

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centes. Só eu não tinha ocupação fixa, por isso, ia vagueando pela casa, de divisão em divisão, em busca de entretenimento e, principalmente, companhia. Batia à porta do escritório, com um jogo debaixo do braço, e pedia: – Ó pai, anda jogar comigo. – Agora não posso, não vês que estou ocupado? Ia ter com a Inês, mas esta despachava-me rapidamente. Abeirava-me da minha mãe, com o pretexto de ter fome. – Se tens fome vai buscar um iogurte ao frigorífico e sabes onde estão o pão e as bolachas. – dizia, sem se mover do lugar. Ao contrário da minha, a família do Gui ia passear quase todos os domingos. Por isso, nem com o meu amigo podia contar, para preencher aquelas longas horas de marasmo, que eram as tardes de domingo. A minha mãe ficava mais suscetível do que o costume, a minha irmã insuportável e o meu pai absorvido pelo trabalho ou completamente apático, como se a vida ficasse em pausa à espera da segunda-feira. Mas, quando o meu pai partia para alguma das suas viagens as coisas pioravam. Despedia-se, pegando em mim ao colo, dando-me um forte abraço. E corria, depois, para a janela para lhe dizer adeus. Enquanto acenava com a mão no ar, as lágrimas escorriam-me na face. “Não vás, fica comigo. Preciso tanto de ti! Quero sentar-me no teu colo e ouvir as histórias que tens para contar. Quero que me embales até eu adormecer.” – Estas eram frases mudas que eu dirigia ao meu pai, da minha janela. Mas ele não conseguia ouvir o meu coração aflito.

Tinha nove anos de idade, quando ouvi uma discussão entre os meus pais. Eles pensavam que eu e a Inês já estávamos a dormir, por isso, conversavam à vontade. Porém, levantei-me para ir à casa de banho e acabei por escutar palavras muito duras. – Já não aguento mais! Tenho de suportar sozinha, as discussões diárias das tuas filhas. – lamentou-se a minha mãe. – Quando estou aqui, não dou por nada. – Mas quando é que tu estás em casa? Diz lá! A fábrica está sempre à frente da família. 20

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– Sabes bem, o que me custa estar muitas vezes ausente. Mas, se tal acontece, é porque me preocupo com vocês. Quero dar-vos o melhor. – Até pode ser verdade. No entanto, quem vive em permanente tensão sou eu. Tu já paraste para perceber que as tuas filhas se detestam? Tenho de estar sempre a apartá-las, para evitar que as coisas piorem. Imaginas o desgaste que isso me provoca? O meu pai fez um olhar surpreendido e respondeu: – Bem, já reparei que a Inês e a Lina não são muito próximas, mas não sabia que o caso era tão grave. – É gravíssimo! – exclamou a minha mãe, erguendo a voz – Sabes, penso que foi um erro o nascimento da Maria Lina… Quando fiquei grávida e contámos à Inês que ia ter uma mana, lembras-te como ela reagiu? – Sim, disse que não queria mana nenhuma. Mas isso acontece com algumas crianças. É o choque inicial, depois acabam por aceitar. – O que tu não sabes é que durante a gravidez, todas as manhãs, quando ia acordar a Inês, a primeira coisa que ela me perguntava era: “A mana já morreu?”. E ao responder-lhe que não, que ela continuava a crescer dentro da minha barriga, a Inês amuava. – O quê?! Por que é que nunca me contaste nada? – Sei lá, preferi sofrer em silêncio. Ainda te sugeri que seria melhor abortar, que essa criança não vinha na melhor altura. Mas tu recusaste… – Claro que o tinha de fazer, não ia permitir que matassem a nossa filha. – Pois, mas pressentia que a Inês nunca a iria aceitar. Afinal, não me enganei. Éramos bem mais felizes antes de a Maria Lina surgir nas nossas vidas! Éramos uma família unida. A Inês era uma criança alegre e não dava problemas. Fui para o quarto sem ouvir a última frase do meu pai: – Não digas isso, mulher! Eu amo as nossas duas filhas e tu devias fazer o mesmo. Deitei-me sobre a cama e senti que esta se abriu em dois, caí no chão e este engoliu-me, mergulhando de cabeça no abismo. O abismo é como a noite escura, mas sem lua, nem estrelas para contar. Sem nenhum esteio onde nos possamos segurar. Em que as lágrimas são o único elo com a realidade. 21

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Que a minha irmã não gostava de mim, sempre o soube. Que a minha mãe não era muito carinhosa comigo, sentia-o. Contudo, ouvir da boca desta, que era melhor eu não ter nascido, destroçou completamente o meu coração e retirou a pouca confiança de base que eu ainda possuía. Por não ter escutado a última frase de meu pai, tinha algumas dúvidas do seu amor por mim. Levei toda a vida a tentar fechar a cratera que o impacto desta revelação provocou em mim. Na manhã seguinte, fui a casa do Gui. Ao ver os meus olhos inchados, perguntou: – O que tens, Maria? Fiquei em silêncio. Ele aproximou-se de mim e abraçou-me com tanto carinho, que as lágrimas sentiram-se seguras e puderam brotar. Por fim, abri a dor que guardava no peito: – Ninguém gosta de mim… Ele abraçou-me mais forte, dizendo: – Eu gosto, gosto muito de ti! – depois, olhando no fundo dos meus olhos, prosseguiu – Maria, eu vou gostar sempre de ti! Como foi bom ouvir aquelas palavras, sentir o bater do seu coração junto ao meu rosto! O Gui salvou-me de naufragar na minha dor. Todavia, cerca de seis meses depois, senti que a promessa que ele me tinha feito, se quebrou. O meu Gui passou a tratar-me como se fosse uma estranha.

Uma tarde, vinha eu das aulas e encontrei-o com os colegas na rua. Corri para ele: – Olá, Gui! – O que queres? – questionou, friamente. – Logo, vais a minha casa? – Não sei, não devo ter tempo para isso. Vou jogar futebol com os meus colegas. – Posso ir também? – Claro que não! Vai-te embora. Afastou-se com os colegas e estes riram-se de mim. Não entendi o que se estava a passar. Ele nunca me tinha tratado assim. No final da tarde, descobri que o caso era bem mais 22

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sério do que podia imaginar. Ele foi a minha casa, para esclarecer as coisas. – Afinal, pudeste vir! – disse-lhe, apesar de tudo, contente. – Vim cá, só para te dizer que não quero que me voltes a chamar Gui, muito menos à frente dos meus colegas. Por tua causa fui gozado. – Eu sempre te chamei assim. – Mas isso foi enquanto eu era criança. Não percebeste que cresci? O meu nome é GUILHERME! – gritou, antes de abandonar o meu quarto. Não conseguia compreender por que razão ele estava tão furioso. Se queria que lhe chamasse Guilherme, já podia ter dito. Demorei alguns meses, a descobrir que ele não tinha apenas mudado de nome, mudara de corpo e de identidade. E eu, simplesmente, fora excluída desse processo, pois ele recusava qualquer tipo de intimidade comigo. Deixou de me beijar, de me abraçar, algo que era tão natural entre nós. Não tinha paciência para conversar comigo, dizia que eu não podia entender os seus problemas. Perdeu o interesse pelas brincadeiras de outrora. Arrumei o espelho e a lanterna numa gaveta, não voltei a precisar deles. Ainda tentei comunicar com ele desta forma, algumas vezes. Mas da sua janela nem sinal. Quando o via a jogar futebol com os colegas, no colégio, insistia para que ele me deixasse participar. – Tu não sabes jogar. – respondia, determinado a afastar-me de junto de si. – Sei sim, foste tu que me ensinaste, não te lembras? Uma vez por outra, o Guilherme acabava por ceder. – Está bem, vai para a baliza. Mandava um estouro na bola, que eu quase entrava pela baliza e me esmagava contra as redes. Enquanto me levantava e me tentava repor do impacto e da dor, ele troçava: – Vês, não sabes defender nada. – Estúpido, aleijaste-me! Mandaste a bola com muita força. – O futebol não é para meninas, sai daqui! Ia para casa com os joelhos e as mãos esfoladas e com o coração a sangrar dentro do peito. Sentia-me tão sozinha nessa época, até o meu Gui, o meu grande amigo, me abandonara! 23

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Contudo, não desistia de estar próximo dele. Desenvolvi a arte da atenção. Centrava todos os meus sentidos nele, para encontrar uma frincha que me permitisse entrar no seu mundo. Assim, fui conhecendo, reaprendendo a cada passo, a sua música preferida, as marcas de roupa que gostava de vestir, os assuntos que o cativavam. Passei a ver na televisão vários programas de desporto, em particular o Domingo Desportivo. Decorei o nome dos jogadores do Futebol Clube do Porto e dos seus principais adversários, procurava manter-me atualizada quanto à classificação do campeonato nacional. Comprava, com a minha mesada, revistas de automóveis para lhe oferecer. Ligava a aparelhagem com as músicas de que ele gostava, sempre que este vinha a minha casa. E, por vezes, ele relaxava, sorria até. Conseguia pô-lo a falar descontraidamente. Julgo que se distraía e nem reparava que era comigo que estava a conversar, com uma miúda. Com uma miúda de dez… onze… doze… treze anos, que ia crescendo, sem ele dar por isso. Naquela tarde, porém, o Guilherme conseguiu ler a tristeza escrita no meu olhar. Tinha notado algo de diferente em mim, nos últimos meses. Deixara de correr atrás de si, isolava-me com frequência. Mas só naquele momento, tomou consciência de que se passava algo grave. Estava no seu quarto, sentada em frente ao televisor, muda e imóvel havia algumas horas. Não tirava os olhos do ecrã, nem nos intervalos do filme, que não estava a ver. O Guilherme fez algumas tentativas para falar comigo, propôs outras alternativas para ocuparmos aquela tarde de sábado. – Queres jogar xadrez? Queres ouvir música? Queres ver estas revistas de automóveis que comprei ontem? Queres ir dar uma volta? Queres lanchar? A todas essas perguntas dei a mesma resposta: – Não. Um “não” frio, distante, como se tivesse sido programado por um computador do futuro, para responder com este monossílabo a qualquer questão. Ficou, então, longos minutos a observar o meu pestanejar, o único movimento visível do meu organismo. E, em jatos intermitentes, a minha angústia chegou até ele. Por fim, perguntou: 24

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– O que tens? – Nada. A resposta mudara, sinal de que a porta se abrira, para que ele pudesse entrar. Levantou-se da cadeira e desligou a televisão. – Estava a ver. – Estavas mesmo? Desviei o olhar para o chão, não conseguia olhá-lo de frente. Ele sentou-se, ao meu lado, em cima da cama. – Maria, estás tão diferente, o que se passa contigo? – Nada, já te disse! – Porque não falas comigo? Estou preocupado. – Tu?! Há quanto tempo deixaste de te preocupar comigo? Ficou calado por uns breves instantes, como se as minhas palavras fizessem acordar o Gui que dormia em seu peito. – Tens razão. – acabou por admitir. – Se soubesses as saudades que tenho tido de ti, ao longo destes anos… - desabafei, com lágrimas grossas a cair dos olhos. – Mas estive sempre por perto. – Estavas perto de mim, mas deixaste de ser meu amigo. – Não sei explicar o que se passou. Simplesmente, cresci e precisava de conquistar o meu espaço. Desculpa, talvez tenha sido demasiado duro contigo, mas embora não pareça, continuo a gostar muito de ti. Era só isso que eu precisava de ouvir. O Guilherme ainda estava ao alcance das minhas mãos. Levantei-me, num impulso, e tive vontade de o abraçar. Estendi-lhe os braços, ele levantou-se e demos um abraço que derreteu completamente o meu coração. A emoção foi tão forte que, ainda hoje, não sei como consegui manter-me de pé! Apesar de tantos abraços dados na infância, senti que aquele era o primeiro, de uma nova fase das nossas vidas. Quando os nossos corpos se afastaram e os braços se desenlaçaram, sentei-me em cima da sua cama e expirei fundo. – Há uma coisa que te queria contar, mas tenho vergonha. Ele sentou-se junto a mim e disse: – Podes confiar em mim. – Já sou mulher… – sussurrei. – És mulher?! – questionou, incrédulo. 25

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Levantei-me e mantive-me de costas voltadas para ele, pois não queria que visse quão corada ficara. – Mulher, como? – insistiu. Nem podia imaginar o que lhe passou pela cabeça, era demasiado inocente para isso. – Há quatro meses, que sou menstruada. – Ah! É isso. – respirou de alívio. Aproximou-se de mim, tocou-me no ombro. Virei-me para ele. – Parabéns! – Deves estar a brincar comigo. – disse, dando um passo para atrás.– Conto-te que me veio o período e tu dás-me os parabéns? – Sim, isso é bom, não é? – Bom?! Só dizes isso porque não és tu que passas por este incómodo, pelas dores, sei lá. Sinto-me tão esquisita... – Ó Maria, é natural estares confusa, é tudo novo para ti. São muitas mudanças ao mesmo tempo. Quando foi comigo, também não foi fácil lidar com aquelas coisas que me foram acontecendo. – Que coisas?! – questionei, curiosa. – Deixa lá, um dia explico-te. Mas tu estás a crescer, por isso, o teu corpo está a mudar. Tens falado com a tua mãe sobre este assunto? – Ela explicou-me o básico, como colocar um penso higiénico e pouco mais. Tenho vergonha de falar com ela, destas coisas. – Então, fala com a tua irmã. – Se lhe expusesse as minhas dúvidas, certamente se riria de mim, tu não a conheces? – Mas seria bom falares com uma mulher mais velha, irias sentir-te melhor. Espera lá, vou chamar a Margarida e ela fala contigo. Ainda tentei recusar a sua proposta, porém ele não me deu tempo, saiu rapidamente do quarto e voltou poucos minutos depois, com a sua irmã. – Fiquem à vontade, vou até à sala, para vocês poderem ter uma conversa de mulheres. Se existisse um buraco no chão, era aí que eu me enfiava. Não me sentia minimamente à vontade para falar com ela sobre um assunto tão íntimo. Contudo, só custaram a sair as primeiras palavras, depois a conversa fluiu naturalmente. Ela explicou-me 26

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a razão de ser daquelas mudanças, ensinou-me pequenos truques para me sentir mais cómoda. A Margarida nem sabe o bem que me fez! Esse tema, viria a aprender nas aulas de Biologia do 9º ano, mas as dúvidas surgiram uns anos antes. A Inês poderia ter-me ajudado nessa e noutras fases da minha vida. Ter uma irmã mais velha seria vantajoso, se ela partilhasse comigo as suas descobertas e experiências. Mas nunca pude contar com isso.

A Inês tornara-se uma mulher muito bonita. Recordo perfeitamente a festa dos seus dezoito anos de idade. Os meus pais alugaram uma quinta. Não faltaram convidados: os corpos gerentes das fábricas têxteis (que eram na altura quatro), alguns colegas da agência bancária que a minha mãe geria, o Júlio e a Alda não poderiam faltar, bem como os seus filhos e estavam também os amigos da Inês. Quando digo amigos, refiro-me mesmo ao género masculino, pois a única amiga que lhe conheci foi a Margarida. Nesse dia, ela parecia uma princesa, daquelas que fazem sonhar as crianças, roem de inveja qualquer mulher e despertam o desejo dos homens. O vestido azul, do tom dos seus olhos. As sandálias de tacão alto, nas quais ela se equilibrava com uma perícia invejável. A sua pele de menina. O cabelo louro, liso e comprido, até ao meio das costas, tão sedoso e brilhante. Os seios a espreitarem no decote, eram momentaneamente encobertos pelo movimento dos cabelos. A cintura fina, a anca bem esculpida, as pernas macias, pareciam ter sido acabadas de depilar. A minha irmã possuía uma inteligência brilhante e uma grande perspicácia. Adorava fazer jogos de sedução, que desempenhavam um papel crucial na sua relação com o sexo masculino. Mas quando as coisas não corriam como desejava, usava a arma secreta, o seu sorriso. Tinha um sorriso incrível, que era acompanhado por umas covinhas nas faces, o que lhe dava um ar angelical. Nenhum rapaz resistia ao seu charme, por esse motivo namorados não lhe faltavam. Trocava de namorado como se trocasse de anel ou de brincos. Partia muitos corações! 27

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