FERNANDO FERREIRA MARTINS A matéria deste livro insere-se no âmbito da História da Educação, em Portugal, mais propriamente na área da Formação de Adultos, ao incidir em aspetos diretamente relacionados com a assistência e formação de rapazes desvalidos da sociedade, a quem Pe. Américo procurou dar um futuro.
Fernando Ferreira Martins, nasceu em Viseu (1954) e concluiu o Curso Complementar do Liceu em Lamego (1973). Frequentou o curso de Psicologia Aplicada (ISPA em Lisboa) (1974/75). Licenciou-se em História, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1981). Concluiu a profissionalização, como docente, na E.S.E. de Setúbal (1986-1988). Foi professor do 2º Ciclo do Ensino Básico e do Ensino Recorrente de Adultos (1981-2013). Concluiu o Mestrado em Educação, Especialização em Educação de Adultos, pela Universidade do Minho (2001). Monitorizou ações de formação, no âmbito da Formação Contínua de Professores e Auxiliares de Ação Educativa, assim como no Ensino Técnico-Profissional e na Educação e Formação de Adultos.
DA CRIANÇA AO ADULTO EM PROJETO
Sobre o autor:
OBRA DA RUA
A primeira parte pretende dar a conhecer, no âmbito da Educação de Adultos, determinados períodos da vida do Pe. Américo, que fizeram dele um padre diferente. A segunda parte refere-se à “Obra da Rua” através de dois momentos: num primeiro momento, focalizando os condicionalismos que permitiram ao seu Fundador iniciá-la e desenvolvê-la na sociedade nas décadas de 1930/40/50. Num segundo momento, dando a conhecer os fatores estruturantes que lhe garantem a sobrevivência e a continuidade, com particular destaque à vertente educativa. O livro termina com os testemunhos de oito Antigos Gaiatos do tempo de Pe. Américo, que nos revelam as representações que têm do Fundador, do Modelo Educativo da Casa do Gaiato, e de como os saberes de referência adquiridos na Casa os beneficiou e influenciou ao longo das suas vidas.
FERNANDO FERREIRA MARTINS
OBRA DA RUA
Da Criança ao Adulto Em Projeto
Rua Dr. Alves da Veiga, 124 Apartado 5281 | 4022-001 Porto Tel.: 22 53 657 50 Fax: 22 53 658 00 edisal@edicoes.salesianos.pt www.edisal.salesianos.pt
ObraDaRua-CapaFINAL.indd 1
15-11-2016 14:35:30
Fernando Ferreira Martins
OBRA DA RUA
Da crianรงa ao adulto em projeto
Obra da Rua - Joรฃo cliente.indd 1
11/15/2016 12:31:39 PM
Ficha Técnica © 2016 Fernando Ferreira Martins © 2016 Edições Salesianas Rua Dr. Alves da Veiga, 124 Apartado 5281 4022-001 Porto Tel: 225 365 750 Fax: 225 365 800 www.edisal.salesianos.pt edisal@edicoes.salesianos.pt Publicado em Dezembro 2016 Capa/Paginação: Edições Salesianas Impressão: PrintHaus ISBN: 978-972-690-976-7 D.L.: 415846/16
Obra da Rua - João cliente.indd 2
11/15/2016 12:31:39 PM
Introdução O presente livro tem como principal objetivo estudar a “Obra da Rua”, ao tempo do Pe. Américo, numa vertente menos conhecida, que é a Educação de Adultos. Pelo modo como prestava assistência e educação a crianças privadas de meio educativo, pelo modo como as reabilitou, educou e as acompanha ao longo da vida, desde o início, levantaram-se-nos algumas questões que confluíam no mesmo sentido: Para conhecer uma Obra desta natureza era essencial conhecer o Homem que a fundou. Esta questão epistemológica iria determinar a estruturação do livro em duas partes: O Homem; A Obra. A primeira centra-se em determinados momentos da vida de Pe. Américo até chegar a padre; a segunda, na vida do sacerdote que evolui em paralelo com a Obra que vai construindo. Em relação ao Homem, vários estudiosos, a começar pelo Pe. Elias, têm vindo a escrever sobre a vida desta personalidade tão marcante na sociedade portuguesa do século XX, como foi o Pe. Américo. Tarefa difícil, porque sempre incompleta, como o próprio afirmava: “O melhor da vida do Santo nunca aparece na vida que os autores escrevem. O melhor fica dentro deles.” (Américo
1956, p. 202)
Na parte final da sua vida, intentou escrever um livro de memórias, “De como eu subi ao altar”, porém algo o impedia: “Afinal de contas parece que não sai o livro De como eu subi
3
Obra da Rua - João cliente.indd 3
11/15/2016 12:31:39 PM
ao altar”1. (…) “É o eu. Sinto dificuldade. Encalho. Emperro. Isto não vai para a frente. (...).” (O Gaiato, Ano IX, nº 222, 30/8/52, p. 4.)
À ausência do seu testemunho acrescem outras dificuldades, sempre condicionadas por novos elementos que vão surgindo, a que se juntam, inevitavelmente, os condicionalismos próprios da pessoa que escreve (sua experiência, cultura). Por isso, dada a personalidade em causa e os vários condicionalismos em questão, para o nosso estudo interessou-nos, apenas, conhecer determinadas vertentes da sua vida, tendo, para o efeito, a rubrica “Facetas de uma Vida” do jornal “O Gaiato”, fornecido algumas respostas pela via da correspondência trocada com familiares e amigos. Aí se revelam factos de vida, pensamentos e vivências por que passou Américo (desde a infância, adolescência, vida em Moçambique, Convento e Seminário), que nos ajudaram a perceber melhor, por um lado, a sua ação pastoral, diferente da maioria dos padres da época, e por outro, a Obra em que, mais tarde, se viria a notabilizar. São documentos úteis pela autenticiadade e confidencialidade que encerram, embora o seu autor, Pe. Carlos Galamba, informe “Estas cartas serão dadas, portanto, menos por inteiro. Iremos a elas e retalharemos os tais instantâneos.” (Ibidem, Ano XVIII, nº 451, 24/6/61, p. 1 – “Facetas de uma Vida”)
Ao darmos exposição a estes extratos, esperamos que estes extratos “falando por si” ajudem a minorar a parcialidade de quem escreve e a respeitar a liberdade de interpretação do leitor.
1 No Verão de 1952, durante a viagem que fez a bordo do navio “Quanza” a Angola, em 1952.
4
Obra da Rua - João cliente.indd 4
11/15/2016 12:31:40 PM
Assim, na infância e adolescência, procurámos compreender a dinâmica familiar que condicionou (e/ou influenciou) o futuro do jovem Américo. Nessa abordagem intuímos a importância da educação prestada pelos seus progenitores, em particular o Pai, que nos aparece como modelo e desígnio pedagógico. Na fase adulta, procurámos conhecer diferentes aspetos da sua vida por terras africanas, designadamente, as influências que recebeu da cultura inglesa, aspetos da sua vida profissional, assim como as fases do processo de maturação mental que o haveria de levar ao Convento. Nesta última questão (a do “Chamamento”), os excertos das cartas publicadas entre Américo e um grande amigo seu, Simão Correia das Neves, afiguram-se interessantes,2 não só por revelarem episódios relacionados com a luta interior por que o nosso autor passou antes da sua súbita mudança de vida, mas também por evidenciarem aspetos da sua natureza, personalidade e caráter e que nos ajudaram a perceber melhor a conceção que tinha da vida e do mundo. Neste âmbito, interessou-nos conhecer como Américo se auto-analisa e, nesse sentido, a sua biografia é um marco importante em termos de Educação de Adultos. Passando à segunda parte, “A Obra”, procurámos encontrar respostas a duas questões que se nos afiguravam igualmente importantes. Em primeiro lugar, perceber com que racionalidades Pe. Américo contou no início e no desenvolvimento da Obra, pelo “Enquanto se não encontra nos velhos arquivos de Família – mais documentos que nos alumiem como relâmpagos, que vão gravando em nossa memória o rosto total e verdadeiro de Pai Américo (…)” por Pe. Carlos Galamba (O Gaiato, nº 500, 11/5/63, p. 4. – “Facetas de uma Vida”) 2
5
Obra da Rua - João cliente.indd 5
11/15/2016 12:31:40 PM
modo como a conseguiu passar para a sociedade e como a expandiu durante a difícil conjuntura que se vivia na época. Em segundo lugar, conhecer quais os fatores estruturantes que garantem a materialidade da Obra, designadamente: – A questão do Orçamento; – A função do jornal “O Gaiato”; – A função dos Registos de Entrada na “Aldeia dos Rapazes” em Paço de Sousa (Penafiel), manuscritos pelo Fundador. A este último fator, (Registos de Entrada) dedicaremos particular atenção, por apelarem à Instituição um Modelo Educativo específico de assistência e educação adequado a rapazes marginalizados pela sociedade. Este estudo termina com o tipo de relacionamento que se estabelece entre os antigos gaiatos e a “Obra da Rua”, tendo por base os depoimentos de oito antigos gaiatos do tempo do Pe. Américo,3 sobre: – Os seus antecedentes de vida (pessoais e familiares); – A forma como os fatores educativos de referência da Instituição contribuíram para a sua autonomia; – O rumo que deram às suas vidas (família que constituíram, empregos que tiveram, formas de socialização a que pertencem, etc.). Consideramos este último ítem também importante em termos de Educação de Adultos, porquanto os referidos antigos gaiatos, além de testemunharem a eficácia do Modelo Educativo empregue na Casa do Gaiato (desde o percurso formativo, até onde a vida os levou), revelam-nos as representações que 3
Em entrevistas realizadas no verão do ano 2000
6
Obra da Rua - João cliente.indd 6
11/15/2016 12:31:40 PM
guardam do Fundador e da Instituição e ainda a forma como cada um, a seu modo, retribui o tipo de educação que recebeu.
– Aos Padres da Rua, Pe. Carlos Galamba e Pe. Júlio Pereira, pela atenção e disponibilidade que nos prestaram no acesso à coleção de jornais “O Gaiato” e ao Arquivo dos Registos de Entrada da “Aldeia dos Rapazes” de Paço de Sousa; – Aos oito antigos gaiatos, que se disponibilizaram a falar sobre o Pe. Américo, sobre a educação que receberam e o destino que deram às suas vidas; O autor agradece
7
Obra da Rua - João cliente.indd 7
11/15/2016 12:31:40 PM
Dedico este livro à minha Esposa e aos meus Filhos, pela compreensão e tempo que me dispensaram à sua elaboração.
8
Obra da Rua - João cliente.indd 8
11/15/2016 12:31:40 PM
Enquadramento teórico à ação caritativa, assistencial e educativa de Pe. Américo Pe Américo foi um homem pragmático nas suas ações ao longo da vida, antes e durante o sacerdócio. Na principal fase da sua vida, enquanto sacerdote, foi educador social e educador de rapazes de rua, tendo contribuído com as suas ações caritativas, assistenciais e educativas, para mudar o modelo de assistência em Portugal no século XX. Foi também um homem reflexivo, fundamentando a sua ação nos ensinamentos do Evangelho, intervindo em diversas situações de desequilíbrio social durante os difíceis tempos das décadas de 1930, 40 e 50, altura em que o Estado não conseguia dar resposta satisfatória a questões fraturantes da sociedade portuguesa, designadamente: o pé-descalço das ruas, a filiação ilegítima, o problema habitacional e os cuidados paliativos a doentes sem o mínimo de condições. Enquanto Padre da Rua, fez da sua missão um autêntico apostolado, dando a conhecer a verdadeira imagem dos garotos da rua, as suas condições de vida, as causas que os levavam às situações de abandono e exclusão social a que eram votados, mas, sobretudo, criando-lhes condições para os assistir e, mais tarde, os reabilitar e formar para a vida. Nessa missão contou com condições favoráveis, designadamente a doutrina social da Igreja (Encíclicas Papais e Concordata assinada entre o Estado Português e a Santa Sé), que lhe permitiram responder com êxito às solicitações e carências dos seres que se lhe deparavam, desprovidos dos mais elementares direitos e condições de vida. Começou a sua ação social como “recoveiro de pobres” na “baixa” Coimbrã, denunciando as situações-limite da pobreza 9
Obra da Rua - João cliente.indd 9
11/15/2016 12:31:40 PM
e das causas que geravam desigualdade. No contacto com pequenos grupos de vadios e pré-delinquentes, teve a perceção de como sobreviviam, assim como os seus familiares (quando os tinham). Entre 1935 e 1939, nos meses de férias de julho a setembro, iniciou o seu projeto educativo com as Colónias de Férias no Campo com garotos pobres e abandonados, perto de Coimbra. Porém, sendo estas de curta duração, procurou dar uma família aos que por variadas razões não a possuíam ou nunca a tiveram tendo, para o efeito, pensado num ambiente comunitário organizado, de modo a responder às suas necessidades, de forma continuada. Fundada a “Obra da Rua”, esta rapidamente passou a ser “uma palavra nova” para crianças abandonadas e marginalizadas, tomando a forma de pequenas comunidades sócio-educativas de índole familiar (Casas do Gaiato), longe dos principais centros urbanos, onde estas crianças se podiam reabilitar física e moralmente. Constituindo-se como autênticas “escolas de vida e para a vida”, estas pequenas comunidades aplicavam um Modelo Educativo inovador para a época, com o objetivo de “reconverter”, formar e dar um futuro a crianças que, à partida, não tinham quaisquer expectativas de vida. A organização tem apenas três níveis hierárquicos, resumindo-se ao Padre da Rua, restante pessoal docente (Governanta/senhoras em regime de voluntariado, Obreiros) e os gaiatos.
10
Obra da Rua - João cliente.indd 10
11/15/2016 12:31:40 PM
O Padre da Rua, de forma “apagada”, tem a tarefa de orientar e zelar por toda a Casa,4 exercendo-se o poder interno pela subordinação dos gaiatos a pequenos chefes e estes ao Chefe-Maioral (eleito pelos chefes de grupo) que, em última instância, responde perante o Padre da Rua. Ao visitante menos avisado, a Casa assemelha-se a uma “Desorganização Organizada”, como alguém a caraterizou. Porém, ali há uma organização pré-definida, em que os trabalhos se realizam em pequenos grupos, em relativa liberdade, sob o comando de pequenos chefes. A Casa do Gaiato está permanentemente aberta ao exterior (Casa da Porta Aberta), criando entre os membros da “Família de Dentro” (Padres da Rua, obreiros e gaiatos) e a “Família de Fora” (antigos gaiatos, amigos e simpatizantes) uma cultura muito peculiar. P. Américo muniu a Obra de um jornal, “O Gaiato”, para que continuasse a manter viva a motivação e cumplicidade das pessoas que o lêem (amigos e simpatizantes da Obra da Rua), na medida em que são elas que a alimentam. Cada Casa do Gaiato basta-se a si própria, sem prejudicar a unidade da Obra, vivendo das suas produções agro-pecuárias, oficinais e tipográficas e, sobretudo, das receitas dos donativos dos simpatizantes e das assinaturas do jornal “O Gaiato”, que em vida de Pe. Américo chegou a ultrapassar os 50.000 assinantes. Estes meios, para além de satisfazerem as necessidades internas, destinam-se, igualmente, a apoiar os Lares, pequenos projetos de apoio às famílias pobres, gaiatos em vias No caso da “Aldeia dos Rapazes” em Paço de Sousa, o atual Diretor, Pe. Júlio, acumula as funções de Assistente Principal da Casa com a Direção da “Obra da Rua”. 4
11
Obra da Rua - João cliente.indd 11
11/15/2016 12:31:40 PM
de entrar na vida ativa, ex-gaiatos necessitados e ainda as Casas do Gaiato de Angola e de Moçambique. Finalmente, o Fundador legou aos seus sucessores, sob a forma testamentária, um conjunto de diretrizes, na suposição de que a Obra, após a sua morte, deveria sobreviver e até crescer, continuando a ser útil aos seus principais beneficiários, os gaiatos.
12
Obra da Rua - João cliente.indd 12
11/15/2016 12:31:40 PM
CAPÍTULO I O HOMEM
Obra da Rua - João cliente.indd 13
11/15/2016 12:31:40 PM
1. Do nascimento à partida para África 1.1 Enquadramento familiar, vivências e primeiros estudos Américo Monteiro de Aguiar é o Fundador da “Obra da Rua“ mais conhecido por Pe. Américo ou “Pai Américo”, como é tratado pelos Padres da Rua, pelos gaiatos e antigos gaiatos. Nasceu na Casa do Bairro no dia 23 de outubro de 1887, no Lugar do Bairro, Freguesia de Galegos, Concelho de Penafiel, filho de Ramiro Monteiro de Aguiar e de Teresa Ferreira Rodrigues, sendo o mais novo de oito filhos. Foi batizado com o nome de Américo, no dia 4 de novembro de 1887 na igreja paroquial de S. Salvador de Galegos – Penafiel, pelo padre António da Rocha Reis. Pela Casa do Bairro passaram sucessivas gerações e várias figuras ilustres, cuja árvore genealógica remonta à segunda metade do século XVI. Dela constam oito eclesiásticos, um capitão, um engenheiro e um médico. Desta lista de eclesiásticos fazem parte os irmãos Padre José Monteiro de Aguiar, missionário na Índia Inglesa e estudioso de Arqueologia, sendo finalmente pároco da freguesia de S. Miguel de Paredes (Penafiel) e o Padre Américo Monteiro de Aguiar, presbítero e fundador da “Obra da Rua” (Ferreira 2007, p. 15).
1.2 As primeiras vivências Sendo o último filho da família Aguiar, o irmão Pe. José Monteiro de Aguiar descreve do seguinte modo o vínculo que unia mãe/filho: Passou a infância no regaço afectuoso da Mãe que, por ser o último filho de um bando de oito, e ser ele dotado de um espírito terno e caseiro, lhe dedicava sempre um carinho 14
Obra da Rua - João cliente.indd 14
11/15/2016 12:31:40 PM
especial, mesmo depois de o ver colocado em África. Ele não sabia viver sem a Mãe, nem a Mãe sem ele. Completavam a vida um do outro. (O Gaiato, Ano XIII, nº 326, 1/9/56 p. 2 “Facetas de uma Vida”)
A irmã, Dª Maria Monteiro de Aguiar, (em nota coligida por seu neto José Guilherme Allen Brandão Borges) conta um episódio em que está bem patente a vinculação mãe-filho: O menino foi crescendo. Sofreu as crises e doenças comuns nas crianças de tenra idade. Mas a certa altura, ainda muito pequenino, surgiu um caso sério que alarmou toda a família. O médico chamado diagnosticou uma pneumonia e não ocultou que a vida da criança corria perigo. Corria o tempo muito frio. Tinha nevado, coisa de que há muito tempo não havia lembrança. A mãe, aflita com a ideia de perder o seu filho, resolve então metê-lo consigo na cama, resguardando-o contra o frio ambiente, acalentando-o com o calor do seu próprio corpo. Assim o teve três dias e três noites, velando incessantemente pela sua cura. Quando o médico voltou ficou surpreendido ao verificar que o pequenino doente tinha melhorado consideravelmente e havia boa esperança de o salvar... (Ibidem, Ano XIV, nº 341,
30/3/1057 – “Facetas de uma vida” – Transcrito por Dr. Adelino Soares.)
A mesma irmã, noutra passagem, referindo-se à cumplicidade que havia entre ambos dizia o seguinte, agora pela pena do Rev.mo Dr. Avelino Soares: ...Américo andava muito por casa dos pobres e sofria de os ver em apuros. Observava tudo e vinha contar à mãe... E começava a sua ronda ao bragal, ao armário do pão e à salgadeira. A mãe observava-o de longe e advertia: - Deixa estar o que está!
15
Obra da Rua - João cliente.indd 15
11/15/2016 12:31:40 PM
Mas desviava-se e no seu íntimo ficava contente e dava graças a Deus por ter um filho assim ... (Ibidem, Ano XIV, nº 341, 30/3/57, p. 4 “Facetas de uma Vida”)
O pequeno Américo começava a ter os primeiros contactos com pobres. Segundo o irmão Pe. José, aprendeu rapidamente a doutrina, mostrando grande predisposição para aplicar no dia-a-dia os ensinamentos cristãos: (...) Aprendeu a doutrina cristã rapidamente que lhe foi ensinada por Rosa do Bento e recebeu a primeira comunhão na terra natal,5 procurando sempre em tudo conformar as suas acções com a doutrina que aprendeu. Os irmãos chamavam-lhe o “beato.” (Ibidem, Ano XIII, nº 326, 1/9/56, p. 1 “Facetas de uma Vida”)
Muitos anos mais tarde, Américo, quando já a professar no convento (Tuy), faz o relato dos dias felizes vividos na casa paterna: (…) O cantador! Que lindo, como gosto deste nome! A gente da minha terra não lhe sabia outro. Quem vem lá? O cantador! Como se chama? O cantador. Que faz ele? É cantador; e a sua fama corria aquela nesga de terra, que se estende desde a Maia a Amarante, nas asas da alegria popular. Todos iam ouvi-lo, comentando, delirantes, as loas do cantador (...) Nunca me lembro de ter faltado o cantador em nossa casa, no dia da arranca do linho e ceifa do centeio. Para estas festas vinha também a cantadeira de Canelas, que chegava de véspera, a convite de minha Mãezinha (...) (Oliveira 1972, pp. 33) No verso da carta de 12/4/97 que o pequeno Américo escreve ao irmão Pe. José, em Cochim, a mãe escreve: “o teu afilhado pede que o abençoes, vai comungar pela primeira vez”. O Gaiato, Ano, XX, nº 505, p. 2. – “Facetas de uma Vida” 5
16
Obra da Rua - João cliente.indd 16
11/15/2016 12:31:40 PM
1.3 Os primeiros estudos O Pe. José, no que respeita à instrução primária, afirmava: Quando atingiu a idade escolar, foi aprender as primeiras letras e instrução primária com o mestre régio da freguesia, Joaquim da Silva Pinto, em Pereiras, onde então funcionava a escola, manifestando inteligência e vontade de saber. ( O Gaiato, nº 326, 1/9/56, p. 1 “Facetas de uma Vida” )
O seu ex-companheiro de escola (Rev.mo Dr. Avelino Soares) recorda-nos esse ambiente físico e pedagógico em que decorreu a aprendizagem das primeiras letras: Seja-me permitido evocar os nossos tempos na Escola Régia de Galegos que frequentámos ambos e ao mesmo tempo. Há mais de meio século de distância as recordações chegam-me esbatidas e confusas. Valeu-me ainda assim, andar pelos sítios, sob sugestão do cenário quase intacto, as mil coisas imponderáveis que entram e ficam na estruturação do nosso modo de ser. Lá está ainda tudo efectivamente: a dependência de uma casa modesta para servir de escola, as duas janelas sobre o caminho onde nos debruçávamos à espera do Mestre, os recantos e brenhas onde jogávamos às escondidas e, com relevante poder evocativo, o cruzeiro, o venerando cruzeiro do adro paroquial (...) Era o nosso professor o Senhor Pinto, um homem alto e entroncado, de barba toda, muito bom e muito nosso amigo. Queríamos-lhe muito apesar de certo apetrecho didáctico de que não prescindia na altura conveniente... (Ibidem, Ano XIV, nº 342, 13/4/57, p. 1 “Facetas de uma Vida” )
O mesmo autor recorda algumas facetas do seu caráter de menino: O Américo era por família e índole, um menino de carácter: de boas maneiras, trajando bem, alegre sem estúrdia, afável e acolhedor para todos. Filho de gente de meios e muito consi17
Obra da Rua - João cliente.indd 17
11/15/2016 12:31:40 PM
derado na terra, não tirava daí partido para se impôr. Era como nós e nós apreciávamos aquela simplicidade sem basófia. O que ele era, e nisso punha alguma vaidade, era um exímio jogador de pião. Lançava-o com gana, fazia-o zunir e adormecia-o em rodopio veloz na palma da mão. Eu insistia mais pelo jogo do botão. Era mais emocionante. Ganhava-se e perdia-se. E com ele era delicioso, porque nunca nos levava à ruína. Quando nos via desolados de perder, jogava mal de propósito, para nos deixar ganhar o nosso pecúlio de botões – espécie monetária das nossas transacções – estivesse refeito. Belos tempos! O Pe. Américo recordava-os com saudade. Estou a ouvi-lo dizer-me como para cimentar a nossa recíproca confiança: - O... olha (sic) que nós jogávamos ambos o pião...6 E outras vezes, muitas, formulava um desejo: Porque não reúnes em tua casa os nossos antigos companheiros de escola? Ainda há muitos vivos. E começava a citar nomes: Fulano (era magistrado), sicrano (era mendigo). E outras assim à mistura. Bom e querido Pe. Américo, partiste antes que chegasse a fazer-te a vontade. (Ibidem, Ano XIV, nº 342, 13/4/57, p. 1 “Facetas de uma Vida”)
Sendo a vida do homem, em grande parte, condicionada pelo sonho da criança, este pressuposto iria aplicar-se à personalidade de Américo.
1.4 Do Colégio de Nª Srª do Carmo (Penafiel) ao Colégio de Stª Quitéria (Felgueiras) Voltando ao percurso escolar do jovem Américo, o mesmo companheiro de escola (Rev.mo Dr. Avelino Soares) escrevia: 6 Em carta ao primo Gabriel, Ab. O. S. B., mais tarde Abade do Mosteiro de Singeverga, o Pe. José Monteiro de Aguiar refere o seguinte pormenor: “Caro primo (...) Seu avô era gago, seu tio Dr. Pe. Bernardo gago era, o irmão da minha mãe gaguejava, seus primos Pe. Américo e Pe. Zé também gaguejam, mas procuram disfarçar essa nobilíssima virtude ancestral, falando devagar (…)” “O Gaiato Ano XIV, nº 39, 2/3/57, p. l “Facetas de uma Vida”
18
Obra da Rua - João cliente.indd 18
11/15/2016 12:31:40 PM
Aí por 1898, o Américo desapareceu do nosso convívio na escola oficial de Galegos. O pai, talvez para mais rápido aproveitamento, visto ter de seguir estudos, tinha-o matriculado com o irmão António no Colégio de Nª Sra do Carmo em Penafiel. Eram externos e receberam hospedagem, na casa da família Henriques, contígua ao colégio, gente séria e bem conceituada. A família do Bairro era muito conhecida e estimada em Penafiel. Os dois rapazes encontravam-se, pois, entre gente acolhedora e amiga. Mas tal ambiente não era em tudo vantajoso para eles. (Ibidem, Ano XIV, nº 343, 27/4/57, p. 1 “Facetas de uma Vida”)
O Pai, sendo uma pessoa conhecida na região, acompanhava de forma assídua, mas discreta, os estudos dos dois filhos mais novos: (...) É que o Snr. Ramiro Monteiro de Aguiar não tirava o sentido dos filhos e, quando os afazeres lho permitiam ou a isso o obrigavam, montava a cavalo e numa galopada de meia hora estava na cidade. Outra meia hora lhe chegava para se pôr ao corrente de tudo (...) Se ainda dava uma saltada ao colégio, era só para dizer ao Pe Eduardo: Não mos poupe. Chegue-lhes, que eles são malandros. (Ibidem, “Facetas de uma Vida”)
O Dr. Leonardo Coimbra, filósofo, escritor, professor, deputado e ministro na 1ª República, seu colega no mesmo colégio, refere-se à metodologia usada neste estabelecimento de ensino nestes termos: E o Colégio? Um casarão enorme que ainda assim vive na minha imaginação e que no entanto, verifiquei outro dia ser uma bem pequena casa. Aí, a incerteza dos nossos sentidos, como tudo é sonho! Era em Penafiel. Que melhor sítio para uma cadeia? Um alto, em roda verdes planícies, regatos cristalinos, plátanos, freixos, 19
Obra da Rua - João cliente.indd 19
11/15/2016 12:31:40 PM
acácias, austrálias, e ao longe, em frente de mim, na sala do estudo, uma linha de horizonte de pinheiros em filas”(...) “O meu colégio era dos velhos moldes; a disciplina era brutal e assustadora, muitas palmatoadas reais, muitas em ameaça, e longas horas de silencioso estudo na sala da minha janela. Oh, secretos mistérios de pedagogia! Se consultam a minha proficiência pedagógica dir-lhes hei (sic) que a do meu colégio era péssima. Reconheço, todavia, que ela me fez sonhador. Sim, foi no colégio que aprendi a cismar.7
O Dr. Avelino Soares confirmava o referido autoritarismo: Dirigia o Colégio, Monsenhor José Minhoz, figura muito distinta mas austero e disciplinador, nada para brincadeiras. Tinha como seu braço direito, e robusto que ele era, o Pe. Eduardo Nogueira que em severidade lhe não ficava a dever nada. Cá pela região, e até ao longe dizia-se: Se quer que o seu filho endireite, meta-o no Colégio do Carmo (...) Não haja dúvida, o pobre Américo com os seus onze anos irrequietos e travessos, estava em boas mãos. (O Gaiato, Ano XIV, nº 343, 27/4/57, p. 1 “Facetas de uma Vida” – Por Dr. Avelino Soares.)
A severidade do colégio era reforçada pela postura do Pai. A propósito desta atitude o Pe. Carlos Galamba, sucessor de Pe. Américo, revelou-nos: O nosso Pai nunca se riu para nós – ouvi uma vez a Pai Américo, conversando com seu irmão Joaquim.
Por essa altura, o Pai tinha já em mente um rumo de vida para os dos dois filhos mais novos, como refere na carta de 2/9/1897 ao Pe. José Monteiro de Aguiar: Leonardo Coimbra (1916) “A Alegria, a Dor e a Graça”, Edição da “Renascença Portuguesa” pp. 110-111, citado por Gabriel de Sousa, Padre Américo, Penafiel; Boletim Municipal de Cultura nº3, 2A. série-1982. 7
20
Obra da Rua - João cliente.indd 20
11/15/2016 12:31:40 PM
Do António, se eu puder pecuniàriamente, quero fazer alguma coisa pelas lettras (sic), ou a música mesmo, porque parece que ele revela habilidade. O Américo vai para o commércio (sic), mas se não for de todo refractário às letras desejo habilitá-lo com o curso commercial. Vamos a ver o que sairá. (Ibidem, Ano XIX, nº 476, 9/6/62 p. 1 “Facetas de uma Vida”)
Em 5 de maio de 1898, nova carta seguia para Cochim onde, a par da notícia da partida do irmão Jaime para Lourenço Marques, faz referência aos dois irmãos mais novos: O António não tem desmerecido do conceito que eu delle (sic) fazia: os professores estimam-o, amão-o até, e elle (sic), por sua parte, dedica-se com tal ardor ao estudo que nem um minuto perde em brinquedos (...) O Américo não é destituído, mas... a folgareta tem taes encantos!... tu bem sabes. (Ibidem, “Facetas de uma Vida”)
O Pai, intuindo as diferentes caraterísticas dos dois filhos, pressente, neste último, capacidades que poderia revelar sem uma longa formação académica, ao invés do António, conforme podemos ler na passagem de nova carta ao Pe. José, de 7/3/89: António e Américo estudam regularmente. O Américo, se continuar assim, há-de aprender o inglez, francez e allemão e depois...rua! (Ibidem, Ano XX, nº 505, 20/7/63, p. 2. “Facetas de uma Vida”)
Em 8 de agosto de 1899, Américo faz o exame de instrução primária (2º grau), com 11 anos, em Penafiel. Em outubro é admitido no Colégio de Stª Quitéria, em Felgueiras, dirigido pelos Padres Lazaristas, onde se ministrava um curso de comércio. O ambiente em torno do colégio de Sta
21
Obra da Rua - João cliente.indd 21
11/15/2016 12:31:40 PM
Quitéria era bem diferente do de Penafiel, segundo o relato do Dr. Avelino Soares: Este colégio situava-se distante da vila, no planalto do “Monte da Santa” como na região chamavam ao local. Era um edifício grande e airoso, com um longuíssimo friso de janelas viradas ao sol, recreios enormes sem paredes nem balizas, horizonte aberto em todas as direcções num deslumbramento de luz e de cor. O Américo, que amava a natureza e a amplidão, devia sentir-se bem ali. Todos que por lá passávamos nos sentíamos bem. Havia beleza nas coisas e as pessoas eram bondosas e amigas. Na minha longa carreira escolar passei por dois colégios, dois seminários e duas universidades. De nenhures me ficou recordação tão saudosa e perdurável como dali (...) Do teor e sentido da sua vida em Santa Quitéria, pouco foi possível averiguar. Os seus contemporâneos que tiveram a gentileza de nos escrever, recordam-no bem, mas apenas podem dizer que era um aluno afável e bondoso, alegre e traquinas como os mais, se bem que por vezes concentrado e taciturno. (Ibidem, Ano XIV, nº 343, 27/4/57, p. 1 “Facetas de uma Vida”)
Na carta de 7/1/91 ao Pe. José, o Pai Ramiro tem um plano de vida para o filho mais novo, em quem já vê “um adulto em projeto”: Hontem de tarde caiu um grande nevão que deixou toda a terra coberta de gelo. Américo e António continuam no collégio, o primeiro com francez, ingez e allemão e outro, com o curso do liceu. O António com o exame de 2.” Anno que fez em Agosto, obteve nas nove disciplinas, cinco valores (que é o máximo de valores) em sete dellas, e 4 sufficientes e 1 medíocre nas duas restantes. E o Américo, que não fez exame de portuguez e francez porque, por evitar despesa, eu não deixei, ainda traz melhores notas d’estudo (sic), que mesmo o António. Daqui a dois 22
Obra da Rua - João cliente.indd 22
11/15/2016 12:31:40 PM
annos, se Deus quiser, irá elle ver terras africanas. (Ibidem, Ano XX, nº 505, 20/7/63, p. 2 “Facetas de uma Vida”)
O pragmatismo do Pai ia no sentido de muni-lo de conhecimentos básicos de Inglês e Alemão para que o irmão Jaime, em Moçambique, o iniciasse na área comercial. Estava-se num período em que grande parte do comércio ali praticado era dominado por grandes Companhias inglesas.
1.5 O desígnio pedagógico do Pai: Vimos que o jovem Américo era dotado de grande sensibilidade, revelando já algumas atitudes altruístas para com os vizinhos mais necessitados. Aprendera rapidamente a doutrina cristã, agindo em conformidade com os seus preceitos, pelo que os irmãos o alcunhavam de “beato”: As suas brincadeiras preferidas eram aquelas que versavam assuntos religiosos. Uma missa em igreja improvisada com ramalhos, umas tábuas a servir de altar e ele, com uma opa branca era o padre. Outras vezes eram procissões religiosas, com verdadeiros andores em miniatura, que ele fazia em sociedade com outros rapazes do lugar. Figurava sempre de padre nestas brincadeiras. A imagem que frequentemente ia no andor, ainda hoje existe na “Casa do Bairro”. É um velho marfim que representa Santa Eufrásia. (Ibidem, Ano XIII, nº 328, 29/12/56 p. 1 “Facetas de uma Vida “ – Por Joaquim Monteiro de Aguiar.)
Tendo já um filho padre, a Mãe alimentava a ideia de que o filho mais novo prosseguisse o mesmo rumo de vida: Pensou-se em dar-lhe uma carreira eclesiástica e ele mesmo mostrou firmes desejos de a seguir. Pedia à Mãe para ser padre e esta escutava-o com vivo entusiasmo. (Ibidem, Ano
23
Obra da Rua - João cliente.indd 23
11/15/2016 12:31:40 PM
XIII nº 326, 1/9/56, p. 2 “Facetas de uma Vida” – Por Pe. José Monteiro de Aguiar.)
Mas o Pai não partilhava da sua intenção, desejando dar àquele filho um futuro diferente: – Então não o vês um rapaz amigo da pândega, tocador de viola, dançador e cantador como nenhum outro? Pode lá ser padre?! Não tem vocação. Olha Teresinha, conheço todos os nossos filhos por dentro e por fora. O Américo é o único que não conheço. Ou há-de ser uma coisa muito grande ou então há-de dar-nos muitos desgostos... (Ibidem, Ano XIII, nº 328 p. 3 “Facetas de uma Vida” – Por Joaquim Monteiro de Aguiar)
A vida normalizada da clausura do Seminário não corresponderia, a seu ver, às caraterísticas expansivas do filho. O futuro de Américo irá, a partir de agora, originar no seio da família alguma conflitualidade, com opiniões, ora convergentes, ora dissidentes, por parte do Pai, da Mãe e dos filhos mais velhos. O projeto do Pai para o Américo, contrastava com o da Mãe e o dos filhos, Pe. José e Jaime. Assim, logo que este terminou os estudos no colégio de Felgueiras, três hipóteses se colocaram à família Aguiar, especialmente durante o verão do ano de 1902: – Entrar para o Seminário, opção partilhada pela Mãe, com a conivência de Américo, numa idade ainda imatura para tomar opções desta natureza; – Preparar-se para seguir um curso superior, de Medicina ou Direito, de que era partidário o irmão Pe. José (em Cochim); ou um curso superior de Contabilidade e Comércio, de que era partidário o irmão Jaime (em Lourenço Marques);
24
Obra da Rua - João cliente.indd 24
11/15/2016 12:31:40 PM
– Trabalhar no Comércio era a opção do Pai, pelo que pretendia muni-lo de conhecimentos essenciais de línguas (Inglês e Alemão) e Contabilidade. Documentemos estas diferentes opções de vida: Duas cartas da Mãe ao filho Pe José, em Cochim, escritas num estilo oralizante, são bem reveladoras do interesse da Mãe em demover a intenção do marido, em particular, na carta de 5/5/1902, quando refere: (...) O Jaime escreveu dezendo que quer mandar algum dinheiro para a edocação dos rapazes com isto paresse que não quer que o Américo ba para o comércio pois é mesmo o que eu e tu dezejamos paresse-me munto seguro tu escrever lhe e fallar-lhe a tal respeito dezendo que ajudas e o rapas que debe ser bão estudante pesso te que me des andamento a este em barasso em que eu me bejo com este rapaz elle tem munta bontade de ser padre bamos a ber se agora o podemos apanhar escreva ao Jaime e une te a elle dis lhe as calidades do rapas que os professores gostão munto delle a ber se a cruz bai ao Calvario (...) conbina com elle porque voltando para o Colejo é nessesario que entre no fim de Setembro por isso é nessesario não descordar é todo o tempo persizo. (Ibidem, Ano XIX, nº 477, 23/6/62, p. 3 – “Facetas de uma Vida”)
A Mãe pretendia fazer do Américo padre. Para isso, procura mobilizar a vontade dos irmãos mais velhos. O colégio a que a Mãe se refere é o das Missões de Cernache do Bonjardim (carta de 1/8/1902): Agora o que me aflije é a iducação do Américo que tantas vezes fallamos. Dis teu pai que já é velho para entrar no collegio. Eu digo: – os irmans pagam e querem. Que tens tu com isso? – querendo ir para Sarnaiche bai; para outra banda não tem geito por ter 13 annos. Eu não queria que o rapaz fosse para o Brasil. O António ficou bem no emzame. Se bisses a conbersa que lhe fas a noute munto alegre... 25
Obra da Rua - João cliente.indd 25
11/15/2016 12:31:40 PM
Para o Américo munto má cara... – Não sei o modo de vida que ei-de dar aquele rapas. Eu logo respondo: – Já sabes qual deve ser: Como manda o padre e o Jaime... Para onde elle deve hir é para Sarnaiche. – torna elle... Estou munto apaixonada por tudo isto. Dis o Américo: – Ora meu Pai não sei qual a rezão porque embirra comigo. Eu quando estudei também fiz emzame. Não sei porque me abandona. Foi elle que me tirou de lá sem rezão. Estudei quanto pude. Sabes o que me lembra? Mando-te o nome do director do Collegio e tu daí entende-te com elle. Mesmo elle te fará a mezada mais baicha. Eles trazem muntos só ameia mezada. Paresseme isto o milhor de tudo. Não tira que convines com o Jaime acerca deste asunto. Como já aqui estão os 4 sentos, manda sempre dizer que é para a iducasão dos rapazes é uma pena que aquela entelegencia não se cultive... (Ibidem, Ano XIX, nº 478, 7/7/62, p. 2. – “Facetas de uma Vida”)
Às razões da Mãe contrapunha-se a racionalidade do Pai. Revela contentamento para com o António por não “ver” para ele outra saída senão a dos livros; revela dúvida sobre Américo, por algo que não conseguia definir. Tendo em conta a idade (14 anos) e as suas caraterísticas pessoais , vai propôr-lhe um rumo, esperando que a experiência pelo trabalho o ajude a revelar-se. Este despique na família em torno do futuro de Américo tê-lo-á, por certo, impressionado numa altura em que a questão da identidade pessoal atravessava o seu período mais crítico: a adolescência. Perante os apelos insistentes da Mãe, Américo estava ainda longe de entender a perspetiva de vida proposta pelo Pai. Entretanto, o filho Jaime, em carta enviada do Chinde (Moçambique), em 20/6/1902, vem ao encontro do desígnio do Pai, aconselhando-o a deixar o Américo tirar um curso prático de Administração e Comércio, a fim de poder usufruir de um bom emprego numa Companhia Inglesa, em Moçambique:
26
Obra da Rua - João cliente.indd 26
11/15/2016 12:31:40 PM
Tenho passado o meu tempo a ilustrar-me, porque vim para África sabendo ler, escrever e habilitado a não passar de negociante de tasca (...) É por causa de isto que eu quero o Américo com um curso no estrangeiro. Quando sahisse para a prática já não lhe custava tanto subir. Eu tive que estudar na África, e se não perdi o tempo, pelo menos podia tê-lo aproveitado. (Ibidem, Ano XIX, nº 477, 23/6/62, p. 3 – “Facetas de uma Vida”)
Jaime Monteiro de Aguiar chegara a empregado superior da Companhia da Zambézia. Relativamente à segunda hipótese: prepará-lo para prosseguir estudos, o Pe. José na carta enviada ao Pai, de Cochim, em 2/6/1902, referia: (...) De novo lhe fallo no Américo. Se o pae vê que é mais útil e honrosa para a nossa família dar-lhe uma carreira literária, mande-o para qualquer Collegio que eu pagarei. Os estudos estão difíceis e caros, porem elle, com estudo pode vencer a dificuldade, e nós venceremos com esforço a careza. Não me parecia mal ter um médico ou advogado na família. Se lhe quer dar um curso regular de commercio(sic), eu ajudo, e pode mandá-lo para o Collegio. Enfim, o pae sabe o que mais nos convém. Um arrojo, embora frustrado, nunca ficou mal a ninguém. Em conversas que tive consigo, sobre elle, Américo, não cheguei a adivinhar, e ainda hoje duvido do ânimo com que me fallava. Parecia-me ou que o pae via muito, escolhendo a carreira commercial, ou que temia offender a bolsa dos irmãos para lhe dar mais alta collocação. Se falava, movido por esta ultima supposição que faço, dispa tal temor, que elle há-de chegar. Pergunte-lhe a sério o que quer seguir e deixe-o. (Ibidem, Ano XIX, nº 479, 21/7/62, p. 4. – “Facetas de uma Vida” (carta citada de 2/6/1902, do Pe. José de Aguiar)
27
Obra da Rua - João cliente.indd 27
11/15/2016 12:31:40 PM
Entre a carta da Mãe de 5/5/1902 e esta, medeia cerca de um mês, onde Pe. José revela ambiguidade: a hipótese de Américo se licenciar, ou a possibilidade de seguir a carreira comercial. Na expressão “o pae via muito, escolhendo a carreira comercial” ele pressente o desígnio do Pai, recomendando, no entanto, que seja o irmão a escolher. Mas é na carta enviada ao Pe José, em 6/8/1902 que o Pai nos revela, de forma explícita, a sua posição face ao futuro do filho mais novo: Eis o que penso àcerca do Américo: Não o acho com feitio para padre; outra carreira pelas letras é tarde para a seguir, pois só aos 28 anos de idade a teria concluído, não perdendo ano algum, o que não é de esperar. E aqui tens um homem trabalhando meia vida e gastando dinheiro, que no quarto de vida que lhe resta apto ou válido para o trabalho, não o chega a ganhar. Ora, o rapaz tem energias e faculdades de trabalho, isto é, aptidões variadas, e no comércio, se tiver juizo, aos 23 anos de idade pode ter, quando menos, meia subsistência ganha honradamente e sem sacrifício da bolsa dos irmãos. Bem basta sacrifício pelo António, que se não for pelo caminho das lettras, todos os outros lhe são desconhecidos e para elle intransitáveis. Mas não quero contrariar a tua vontade, só exponho a minha opinião, e se queres que elle estude, estuda; assim como entendo que se quer ser padre entre no colégio de Cernache, o que eu entendo poder conseguir pelos meus amigos. (Ibidem, Ano XIX, nº 478, 7/7/62, pp. 2-3 “Facetas de uma Vida”)
Ramiro Monteiro de Aguiar era um lavrador-proprietário, homem alfabetizado, muito respeitado e com bons relacionamentos na região.8 Fora “Regedor” da Junta de Freguesia de 8 Na citada carta ao Pe. José refere ter amigos que colocariam Américo no Seminário de Cernache. O Pe. Carlos Galamba, falou-nos de
28
Obra da Rua - João cliente.indd 28
11/15/2016 12:31:40 PM
Galegos, substituindo o Pe. António da Rocha Reis, a partir de 26 de abril de 1901.9 A racionalidade com que o Pai gere a economia familiar e o futuro dos filhos mais novos está bem clara na carta supra‑ ‑mencionada: – Ao António, teoricamente mais frágil, pretende dar-lhe uma escolarização alargada, entendida como finitude, dado que “todos os outros caminhos lhe são desconhecidos e para elle intransitáveis”; – Ao Américo, não o achando com feitio para padre, equaciona a relação estudo/tempo produtivo e, intuindo nele capacidades e habilidades, pretende dar-lhe uma formação prática, de curta duração, para se poder defender na vida; – Aos irmãos mais velhos, porque “Os estudos estão difíceis e caros” não os quer sobrecarregar. Já bastava o gasto com a educação do António. Além disso, o irmão Jaime poderia ajudá-lo na atividade comercial. Porém, para que não se gerasse um conflito na harmonia familiar, mostra-se recetivo a outras soluções. Mas a proposta do Pai foi a que vingou e Américo acabaria por perceber ao longo dos anos a sua verdadeira intenção: (…) A contradição que nos parece mais fundamental, no plano da formação da personalidade infantil, reside na existência necessária do seu modelo. Os fenómenos da imitação e da identificação mostram que a criança só forjará, outros relacionamentos na região: povo, funcionários e proprietários, designadamente os donos da maior quinta do concelho de Penafiel, a Quinta da Aveleda. 9 Livro de Atas da Junta de Freguesia de Galegos (1900-1910). Até esta altura, os párocos eram também os presidentes das “Paróquias”
29
Obra da Rua - João cliente.indd 29
11/15/2016 12:31:40 PM
gradualmente, uma personalidade autónoma se se apoiar, à partida, sobre um modelo que geralmente a sua constelação familiar e o seu contexto educativo lhe darão. E é, inevitavelmente, a partir deste modelo que se funda a contradição: a criança está como que condenada à imitação de um modelo para chegar a uma existência autónoma, portanto livre da necessidade da imitação. A criança quer «fazer como os grandes» desejando distinguir-se deles. (Hannoun, p. 45)
De agosto até outubro de 1902, altura em que Américo já estava empregado no Porto, não há cartas publicadas. A mais próxima é da Mãe ao Pe. José, de 12 de novembro de 1902, onde mostra pesar por não ver o filho no Seminário: Dia de todos os santos fui ao Porto visetar o Américo. La o encontrei munto magro e falta de cor. Os patrões munto agradável não dão queicha de nada. Que come munto bem e que todos são munto amigos dele. Mas quando vê passar os rapazes para a aula que sente uma saudade de não estudar. Mas agora esquessemonos disso bamos a ver se elle milhora. Sabes o que foi mau quando mandaste o dinheiro ao Pai não lhe dares logo o distino para pagar o collegio ao Americo que teu Pai esta munto contente mas eu tenho munto desgosto de o ver num modo de vida que elle não gosta. (...) Escrevi-te dia 1 de agosto inda não tive resposta nem do Jaime. Estou por isso desconfiada. Deus queira que me engane. Pessote que logo esta recebas me respondas para meu descanso. (O gaiato, Ano XIX, nº 479, 21/7/62, p. 4. “Facetas de uma Vida”)
As notas de Maria Monteiro de Aguiar (recolhidas pelo neto José Guilherme Brandão Borges) revelam que o Pai providenciou junto de um seu grande amigo do Porto, dono de uma loja de ferragens, o emprego e a hospedagem em sua casa, sob instruções rigorosas:
30
Obra da Rua - João cliente.indd 30
11/15/2016 12:31:40 PM
O pai do Américo, vendo no seu filho um rapaz traquina, embora esperto, resolveu tirá-lo do colégio e metê-lo a trabalhar numa casa de ferragens na Rua Mouzinho da Silveira. O Snr. Monteiro era muito amigo do futuro patrão de seu filho e fez-lhe ver que a amizade existente entre os dois pedia que se cumprisse o seguinte: --No filho devia ver, não o filho do amigo, mas sim um estranho; e quanto aos vencimentos, nada. Só de comer, dormir, disciplina apertada e deixá-lo ir às aulas de inglês, à noite; mas, o Sr. Elísio que visse bem as horas de saída e as horas de entrada! Com esta recomendação o Américo seguiu para o emprego. Tinha nessa altura 15 anos. (Ibidem, Ano XIV, nº 344, 11/5/57 p. 1 “Facetas de uma Vida”)
Esta postura do Pai nunca foi contestada por Américo. O Pai Ramiro era determinado nas ordens que dava, agora ainda mais cauteloso por ver o filho viver em meio aberto, onde tudo lhe era desconhecido. Américo, aos poucos, começa a perceber o sentido da liberdade que faz apelo à responsabilidade, por isso, deseja corresponder ao sentido pragmático do Pai: Estou muito bem, os patrões são muito meus amigos. Passo muito bem. Não estou arrependido pela escolha que fiz, e mesmo quando o pai me falou, já tinha a casa arranjada e tudo pronto. (Ibidem, Ano XIII, “nº 326, 1/9/56, p. 2 “Facetas de uma Vida”)
Porém a Mãe, quase um ano depois, continuava inconformada com o trabalho do filho mais novo. Na carta que escreveu ao Pe. José em 28 de junho de 1903, terminado o ano escolar, ensaia um derradeiro esforço no sentido de o matricular no Seminário, ao mesmo tempo que mostra estranheza pelo silêncio do filho mais velho: Hoje, 28 de junho de 1903, Padre José estou admirada do teu silensio. Faz um anno in agosto que eu te escrevi uma carta 31
Obra da Rua - João cliente.indd 31
11/15/2016 12:31:40 PM
inda não tive resposta. Não sei qual é a rezão porque não escreves. Beijo numa carta do Pai em que dizes que o dinheiro das missas deve ser só para pagar o collegio. Então nesse caso porque foi o Américo bender ferros? Com o teu ausilio podião andar ambos a dar um modo de vida de letras ao Americo da maneira como elle é fino e aprende (...) O Jaime a tempos mandou 4 sentos para a iducação dos irmãos mais novos. Pareseme que o rapas devia continuar nus estudos. Tu depois ades-te arrepender. Ficavas com um irmão Padre à tua ordem, mas enfim fazei como emtenderdes. (Ibidem, Ano XIX, nº 479, 21/7/62, p. 4 “Facetas de uma Vida”)
Não compreende a incoerência do Pe. José enviar dinheiro para pagar o colégio e o Américo andar a trabalhar. Por outro lado, o irmão Jaime mandara dinheiro para a educação dos irmãos mais novos... Uma passagem curiosa da sua carta referenciada de 1 de agosto de 1902 ao Pe José, esclarece: Dou-te parte que o Jaime mandou 4 sentos e junto uma carta para mim em que dazia eu retirasse o que quizesse para uma criada voua e o resto para a iducasão do Antonio e Americo. Teu Pai foi dia 29 do passado ao Porto buscar o dinheiro e ontem dia 31 disseme que ia levar o dinheiro a caicha. Eu disse que sim munto contente e disse-lhe que dava mais sem melreis que tinha para juntar mas que queria o decomento para a minha mão. Elle ficou munto bravo dizendo que era munto capas de tomar conta do dinheiro dos filhos, e eu com cordo. Mas paresceme que eu o guardaria milhor. (Ibidem, Ano XIX, nº 478, 7/7/62, p. 2 “Facetas de uma Vida”)
Sentindo gorados os seus esforços em relação ao ingresso no Seminário, a Mãe acaba por se decidir por um emprego junto do irmão Jaime, em Moçambique: Um dia, sua mãe teve de se deslocar ao Porto e encontrou o seu querido Américo na rua a carregar uma caixa de 32
Obra da Rua - João cliente.indd 32
11/15/2016 12:31:40 PM
pregos. O seu coração apertou-se de tristeza. O seu querido filho pelas ruas da cidade, com uma caixa de pregos às costas como um carrejão!? Não podia ser.Com esta mágoa regressou a casa e, mal chegada, foi ter com o pai e tanto lhe ralhou e tais argumentos empregou em defesa do seu Américo, que ficou logo resolvido que ele seguisse o mais breve possível para África. (Ibidem, “Facetas de uma Vida”)
Estava consumado o projeto do Pai. O desfecho deste jogo de intenções acabaria por se concretizar com a vinda de férias do filho Jaime a Portugal. A carta que este escreve ao irmão Pe. José datada de 4/12/1903, revela-nos que durante a estadia na casa paterna algo se confimara em relação ao Américo: O Américo entra para o anno no Instituto Comercial afim de fazer o curso superior do comércio que leva 3 annos e, dali fica habilitado a ir para África ou para onde mais convier, e com estes conhecimentos pode ser um grande homem, em qualquer parte. Este curso dá-lhe direito a ser cônsul da Nação em qualquer outra... Siente do que dizes a respeito do teu desejo de concorrer para as despesas dos dois irmãos... a minha magra bolsa está à disposição do Pae, e isto reunido ao teu concurso pode muito bem chegar para a despeza. (Ibidem, Ano XIX, nº 480, 4/8/62, p. 1 “Facetas de uma Vida”)
Acabadas as férias, Jaime regressa a Moçambique e, em 4/6/1904, dá conta ao irmão Pe. José dos seus planos para o Américo: (...) O Américo, como sabes, tem 17 anos de vida e 2 de prática no comércio, e como a carreira d’ ele tem de ser cá por fora, era bom que elle ahisse agora de Portugal, depois de mais aperfeiçoado na língua inglesa e contabilidade comercial. O rapaz tenciona e quer vir para África, o que não será mau, mas eu lembro-me perguntar-te se o Américo não poderia encontrar futuro ahi (sic)na Índia Inglesa, sabendo inglês e contabilidade comercial, no comércio, é claro. 33
Obra da Rua - João cliente.indd 33
11/15/2016 12:31:40 PM
O maior centro da nossa África é Lourenço Marques, mas não é terra senão para aprender, e não para fazer o futuro de alguém. A fama de Lourenço Marques é realmente o grande comércio de trânsito para a África do Sul, feito por grandes capitalistas ingleses, e os portugueses só podem gozar um emprego que lhes dê para comer, e nunca com o seu trabalho independente conquistar a subsistência do futuro. Enfim, dize-me o que pensas sobre este assumpto, e se realmente há possibilidades de colocar ahi o Américo em boa situação. É necessário que elle parta para ahi, logo que tenha obtido alguns conhecimentos do Instituto Comercial onde vai ser matriculado. (Ibidem, “Facetas de uma Vida”)
O destino de Américo continuava ainda incerto: Moçambique ou Índia Inglesa. Porém, duas realidades se desenhavam no horizonte: a atividade comercial fora do País e o contacto com a cultura inglesa. Américo acabaria por conhecer terras africanas, porém, continuando o Pai Ramiro a acompanhar o trajeto de vida do filho mais novo e este a retribuir-lhe, conforme se pode ver na carta do Pai, de 31/10/1915, em resposta a uma outra de Américo, de 7/9/1915: (…) Agradeço-te a mezada que me pões à minha disposição. Porque esse acto representa um sacrifício e grande, exprimindo para mim os generosos sentimentos que teu coração abriga e o amor filial que me dedicas. É ele o mais subido galardão conferido por um filho ao orgulho paterno, não como gratificação que aos filhos haja prestado, mas sim como reconhecimento dos bons desejos que guiaram minhas intenções. (Ibidem, Ano XIX nº 489, 8/12/1962 p. 4 “Facetas de uma Vida”)
Este pequeno extrato, clarifica o amor filial que Américo dedica ao seu progenitor, assim como o “reconhecimento dos bons desejos que guiaram as intenções” do Pai. Américo ficou fortemente influenciado pela figura paterna e pelo tipo de 34
Obra da Rua - João cliente.indd 34
11/15/2016 12:31:40 PM
educação que recebera. Anos mais tarde, um seu condiscípulo do Seminário de Coimbra relata um episódio que alude à educação que recebera: (...)Tinha tido uma educação inteiramente livre que mal se coadunava com certos princípios da disciplina do Seminário. O que para outros era fácil, porque o faziam desde crianças, a ele tocava-o na sensibilidade e sofria! Uma vez, o Prefeito Padre Augusto da Silva Campos Neves deu uma certa ordem. Ao Américo custou-lhe tanto, que cobrira a cabeça e o rosto com a capa e foi assim cumprir. Não consegui averiguar do que se tratava. Compreende-se melhor, assim, os princípios que adoptou para base da educação da pequenada nas suas Aldeias. (Ibidem, Ano XVI, nº 391, 7/3/59, p. 1 “Facetas de uma Vida”)
Em suma: Pelo exposto, consideramos que embora havendo um vínculo forte na relação Mãe/Filho e tenha herdado da Mãe a sensibilidade no apoio aos necessitados, é o desígnio pedagógico do Pai que irá determinar o futuro de Américo, ao propôr-lhe uma direção na vida mais adequada às suas caraterísticas, tendo em conta o contexto familiar. Em cada um dos filhos mais novos vê um adulto em projeto, diferente: No António, não vê outro caminho, senão o das letras. No Américo intui algo distinto: (…) Olha Teresinha, conheço todos os nossos filhos por dentro e por fora. O Américo é o único que não conheço. Ou há-de ser uma coisa muito grande ou então há-de dar-nos muitos desgostos... (Ibidem, Ano XIV, nº 328, 29/12/56, p. 3 “Facetas de uma Vida” – Por Joaquim Monteiro de Aguiar)
Não querendo condicioná-lo a um processo formativo demasiado longo, mune-o com um curso prático direcionado a
35
Obra da Rua - João cliente.indd 35
11/15/2016 12:31:40 PM
uma profissão, acreditando que a vida lhe abra novos caminhos e novas oportunidades. Américo irá ser influenciado ao longo de sua vida pelo pedagogia do Pai. Ao longo deste estudo iremos percebendo que a confiança que ele tem de si próprio resultava, em grande parte, na confiança que o Pai depositou nele. Deixando-o conhecer o mundo para se poder revelar, como nos afirmou o Pe. Carlos Galamba, sucessor de Pe. Américo na Direção da Obra da Rua: O Pai de Pe. Américo, ao recusar a ida deste para o Seminário, foi um vaso de eleição reservado por Deus para que, na hora própria, o filho se revelasse em toda a plenitude.
Idêntico projeto ao do Pai irá, mais tarde, adotá-lo para com os seus gaiatos. Confiando nas possibilidades dos rapazes da rua, abrir-lhes-á um caminho, esperando que eles se possam revelar.
2. Da vida profissional em Moçambique à entrada no convento 2.1 O contacto com a cultura inglesa Américo não chegou a terminar o curso comercial, embarcando no dia 19 de novembro de 1906 no vapor “Prinz Regent”, rumo a Moçambique, mais propriamente ao Chinde, ao encontro do irmão Jaime. O Chinde era, à época, um porto do rio Zambeze, ponto terminal do comércio que vinha do Transval e da Rodésia, sendo da responsabilidade de grandes Companhias estrangeiras, principalmente inglesas.
36
Obra da Rua - João cliente.indd 36
11/15/2016 12:31:40 PM
Bibliografia Arquivo da Casa do Gaiato de Paço de Sousa Coleção do jornal “O Gaiato”. Livros de Registos de Entrada dos Rapazes na “Aldeia dos Rapazes” de Paço de Sousa (396 Registos de Entrada manuscritos por Pe. Américo).
Pe. Américo Doutrina II (1977) Paço de Sousa: Ed. Casa do Gaiato. Do fundamento da Obra da Rua e do teor dos seus obreiros (1950) Paço de Sousa: Ed. Casa do Gaiato. Isto é a Casa do Gaiato (1985) 3ª edição; II. (1971) 2a ed. Paço de Sousa: Ed. Casa do Gaiato. Notas da Quinzena (1986) Paço de Sousa: Ed. Casa do Gaiato. Obra da Rua (1983) 3ª ed.(atualizada). Paço de Sousa: Ed. Casa do Gaiato. Pão dos Pobres (1942) II. Paço de Sousa: Ed. Casa do Gaiato. Porta Aberta (1952) Paço de Sousa: Ed. Casa do gaiato.
Outros Autores: Duarte, M. P. M. P. (1985) Somos a porta aberta: pedagogia do padre américo: métodos e vida (compil.). Paço de Sousa: Ed. Casa do Gaiato. Elias Pe. (1958) O Pai Américo era assim. Coimbra: Gráfica de Coimbra, Ferreira, J. F. C. (2007) Padre Américo, Vida e Obra. Penafiel: Ed. Câmara Municipal de Penafiel. Hannoun, H. (s/d) Os Conflitos da Educação. Lisboa: Ed. Sociocultur – Divulgação Cultural Lda. Loureiro, J. E. (1978) L’Obre da Rua et l’éducation des enfants privés de milieu éducatif. Lisboa: INIC.
402
Obra da Rua - João cliente.indd 402
11/15/2016 12:31:52 PM
Loureiro, J. E. (1996) Um grande Educador português do século XX. O padre Américo e a sua obra pedagógica. Paço de Sousa : Ed.Casa do Gaiato. Mendes, M. (1995) Esboço de Cronologia da Vida do Padre Américo. Paço de Sousa: Ed. Casa do Gaiato, Mónica, M. F. (1978) Educação e Sociedade no Portugal de Salazar. Lisboa: Ed. Presença. Martins, E. C. (1995) A Problemática Sócio-Educativa da Protecção e da Reeducação dos Menores Delinquentes e Inadaptados entre 1871 e 1962. Lisboa: U.C.P. Padre Américo - Páginas escolhidas e documentário fotográfico. (compil.) (1974) Porto: Ed. Inova, (Ofício de Viver 5). Padre Américo - Páginas escolhidas e documentário fotográfico. (compil.) (2008), (Reedição), Porto: Ed. Modo de Ler. Rollo, N. (1958) Padre Américo “Altruísta”. Coimbra: Editora Lda., Coimbra.
Artigos: Coimbra. L. (1916) A Alegria, a Dor e a Graça. Ed. Renascença Portuguesa. Citação: Gabriel Sousa (1982) Pe. Américo. Penafiel: Boletim Municipal de Cultura, nº 3, II série. Cruz M. B. (1997) As Negociações da Concordata e do Acordo Missionário de 1940. Revista Análise Social, vol. XXXII (143-144), (4º-5º). Oliveira Z. (1972) O Cantador. Penafiel: Boletim Municipal de Cultura, nº 1. Rocha M. (1972) Memorial de dois Eclesiásticos. Penafiel: Boletim Municipal de Cultura, nº 21. Sousa G. (1982) Pe. Américo. Penafiel: Boletim Municipal de Cultura, nº 3, 2A.
403
Obra da Rua - João cliente.indd 403
11/15/2016 12:31:52 PM
Índice Introdução........................................................................................3 CAPÍTULO I: O HOMEM.............................................................13 1. Do nascimento à partida para África ................................................. 14 2. Da vida profissional em Moçambique à entrada no convento............. 36 3. Da formação no Convento Franciscano de Sto António de Vilariño da Ramalhosa –Tuy, à ordenação no Seminário de Coimbra................... 98
CAPÍTULO II: A OBRA...............................................................125 1. Fatores que levaram à materialização da ideia.................................. 126 2. Nascimento e desenvolvimento da “Obra da Rua”........................... 144 3. Os fatores estruturantes da “Obra da Rua”...................................... 179 3.1 A questão do orçamento............................................................ 179 3.2 O jornal “O Gaiato” e a sua função........................................... 219 3.3 A função dos Registos de Entrada na “Aldeia dos Rapazes”, manuscritos pelo Fundador........................................................ 235 4. De como antigos gaiatos do tempo de Pe. Américo testemunham a educação que tiveram....................................................................... 336
ANEXO A....................................................................................364 ANEXO B.....................................................................................395 Bibliografia...................................................................................402
404
Obra da Rua - João cliente.indd 404
11/15/2016 12:31:52 PM
FERNANDO FERREIRA MARTINS A matéria deste livro insere-se no âmbito da História da Educação, em Portugal, mais propriamente na área da Formação de Adultos, ao incidir em aspetos diretamente relacionados com a assistência e formação de rapazes desvalidos da sociedade, a quem Pe. Américo procurou dar um futuro.
Fernando Ferreira Martins, nasceu em Viseu (1954) e concluiu o Curso Complementar do Liceu em Lamego (1973). Frequentou o curso de Psicologia Aplicada (ISPA em Lisboa) (1974/75). Licenciou-se em História, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1981). Concluiu a profissionalização, como docente, na E.S.E. de Setúbal (1986-1988). Foi professor do 2º Ciclo do Ensino Básico e do Ensino Recorrente de Adultos (1981-2013). Concluiu o Mestrado em Educação, Especialização em Educação de Adultos, pela Universidade do Minho (2001). Monitorizou ações de formação, no âmbito da Formação Contínua de Professores e Auxiliares de Ação Educativa, assim como no Ensino Técnico-Profissional e na Educação e Formação de Adultos.
DA CRIANÇA AO ADULTO EM PROJETO
Sobre o autor:
OBRA DA RUA
A primeira parte pretende dar a conhecer, no âmbito da Educação de Adultos, determinados períodos da vida do Pe. Américo, que fizeram dele um padre diferente. A segunda parte refere-se à “Obra da Rua” através de dois momentos: num primeiro momento, focalizando os condicionalismos que permitiram ao seu Fundador iniciá-la e desenvolvê-la na sociedade nas décadas de 1930/40/50. Num segundo momento, dando a conhecer os fatores estruturantes que lhe garantem a sobrevivência e a continuidade, com particular destaque à vertente educativa. O livro termina com os testemunhos de oito Antigos Gaiatos do tempo de Pe. Américo, que nos revelam as representações que têm do Fundador, do Modelo Educativo da Casa do Gaiato, e de como os saberes de referência adquiridos na Casa os beneficiou e influenciou ao longo das suas vidas.
FERNANDO FERREIRA MARTINS
OBRA DA RUA
Da Criança ao Adulto Em Projeto
Rua Dr. Alves da Veiga, 124 Apartado 5281 | 4022-001 Porto Tel.: 22 53 657 50 Fax: 22 53 658 00 edisal@edicoes.salesianos.pt www.edisal.salesianos.pt
ObraDaRua-CapaFINAL.indd 1
15-11-2016 14:35:30