Voar na fantasia - 47 contos

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Margarida Cordo Aires Gameiro

47 contos que aliam a realidade à fantasia.

Margarida Cordo Aires Gameiro

Escritos em contextos diversos, as narrativas estão organizadas em diferentes temáticas: • Contos de vida

É Psicóloga Clínica e da Saúde, Terapeuta Familiar e Psicoterapeuta. Para além da atividade clínica, tem um percurso ligado ao exercício de docência, à comunicação social e à escrita, não apenas científica, mas também literária, contando com 9 livros publicados. Tem realizado centenas de conferências e intervenções em Portugal e fora do país. É, entre outros, sócia fundadora da Sociedade Portuguesa de Psicoterapias Breves. Dirige, atualmente a CONFORSAUMEN, Serviços de Saúde, desde a sua saída, a seu pedido, do Instituto S. João De Deus – Casa de Saúde do Telhal, onde exerceu várias funções, como membro da direção, coordenadora dos serviços de reabilitação, etc. A consciência de que a vida é uma missão que deve ser procurada, encontrada e cumprida por todos nós, é a pauta que sempre a faz prosseguir, pelo que, em tempo de pandemia, criou um pequeno canal no YouTube – Conversas Informais.

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AIRES GAMEIRO

• Contos de tempo • Contos de gratidão • Contos de além • Contos de partilha • Contos surpreendentes • Contos de Natal Através da fantasia, os autores desafiam o leitor a ler ou a reler as suas vivências de forma crítica e desafiante. As histórias aparentemente simples, ajudam quem as lê a perceber que a vida é única, cheia de momentos irrepetíveis e que são os afetos e as amizades que construímos que nos edificam e nos alimentam.

Voar na fantasia

Maria Margarida Gonzalez Cordo Tavares

É autor de dezenas de livros, didáticos, técnicos, religiosos e de viagens; é Irmão de S. João de Deus, sacerdote, psicólogo, doutorado em Teologia Pastoral da Saúde, Professor universitário, Membro honorário da Academia Portuguesa de História, membro de diversos centros de investigação. Foi Diretor da revista Hospitalidade e autor de numerosos artigos científicos, diretor de Casas de Saúde Mental do Instituto S. João de Deus, conferencista e formador em Portugal e em dezenas de países estrangeiros nos cinco continentes.

Rua Duque de Palmela, 11 4000-373 Porto Tel.: 22 53 657 50 editora@edicoes.salesianos.pt www.edisal.salesianos.pt

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Margarida Cordo Aires Gameiro

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Ficha Técnica: Voar na fantasia © Margarida Cordo © Aires Gameiro © 2021 Edições Salesianas Rua Duque de Palmela, 11 4000-373 Porto | Tel: 225 365 750 www.edisal.salesianos.pt editora@edicoes.salesianos.pt Capa: João Cerqueira Imagem de capa: Dremstime.com Paginação: João Cerqueira Publicado em Setembro 2021 ISBN: 978-989-8982-75-9 Depósito Legal.: 489324/21 Impressão e acabamento: Tadinense Artes Gráficas Reservados todos os direitos. Nos termos do Código do Direito de Autor, é e­ xpressamente proibida a reprodução total ou parcial desta obra por qualquer meio, incluindo a fotocópia e o tratamento informático, sem a autorização ­expressa dos titulares dos direitos.

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Dedico estes contos a ti, Fernando, meu maior crítico e meu incondicional pilar. Sem o teu suporte e compreensão não conseguiria, decerto, fazer o que sempre faço. Por amor, ajudas-me todos os dias a acreditar neste caminho da vida, de constante superação e de procura continuada da melhor versão de mim.

Margarida Cordo

Dedico este livro a todos os meus caros sobrinhos até à terceira geração. Espero que gostem de ler algumas destas histórias de fantasia. E escrevam as suas.

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Índice

PÓRTICO.......................................................................................... 7 CONTOS DE VIDA ............................................................................ 9 O telefone tocou.................................................................................... 10 O banco do jardim. Assento com alma em tempo de pandemia............. 13 O Conto do Bisavô Júlio 100 anos Depois do Covid-19........................ 16 Mundo, lugar de transição..................................................................... 21 Guias do mestre x.................................................................................. 25 A comida e eu........................................................................................ 28 É uma aflição terrível. Por um dia!........................................................ 30 Mundo novo, o antigo manicómio........................................................ 32 O túnel em funil e um relâmpago.......................................................... 34 Mosca, realidade ou ficção.................................................................... 38

CONTOS DE TEMPO .......................................................................43 Entre fixos e móveis............................................................................... 44 O homem do contador.......................................................................... 47 A família tempo..................................................................................... 51 A “história” do extra-terrestre senhor anacrónico................................. 56 Nascer para quê?................................................................................... 59 Contas do tempo de 2018...................................................................... 62 Diógenes, o acumulador........................................................................ 65 A estranha placa deslizante da viagem infinda do ano novo.................. 69 Dentro e fora ou rabo virado para a lua................................................ 72

CONTOS DE GRATIDÃO...................................................................77 A inteligência do silêncio....................................................................... 78 Carta de Luana a Auriol........................................................................ 81 O valor da autoestima e o poder da diferença Ou o lugar da amizade.......................................................................... 83 O avô, a avó e o príncipe....................................................................... 87

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Os sonhos do João. Carta ao seu diretor de turma e do seu diretor de turma....................................................................... 90 De Fátima a Timor: Rosário de nós da corda........................................ 94 Estou feita!............................................................................................ 97 Carta de amor..................................................................................... 101

CONTOS DE ALÉM........................................................................103 O tesouro do monte escarlate.............................................................. 104 O abade e o ermitão............................................................................ 108 A timidez e a exuberância ou a descrição............................................. 111 Conto das raízes.................................................................................. 113 O omnipotente ou o perverso narcisista............................................... 115 Conversa de grãos …........................................................................... 118

CONTOS DE PARTILHA.................................................................121 A alegria e a tristeza............................................................................ 122 O artista, o realista e o louco............................................................... 125 O menino e o Pedrito........................................................................... 128 O espelho e eu..................................................................................... 133 O menino de Madrid e o lixo do planeta............................................. 136 O silêncio e o ruído............................................................................. 139

CONTOS SURPREENDENTES ......................................................143 A menina e as tartarugas..................................................................... 144 Está aberto o tribunal da crise............................................................. 146 Escândalo da vida do rei David nos links de um pirata da net............. 148 As calças do frade defunto................................................................... 150 O conto da levada............................................................................... 153 No país dos anões mergulhadores........................................................ 158

CONTOS DE NATAL......................................................................165 O rapaz dezoitene em delírio............................................................... 166 Reinaldo, Belchior e Lavrador............................................................. 168 Conto natalício da estrela dos três reis................................................. 170

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Voar na fantasia

PÓRTICO

Livro de muito contar e fantasiar de Margarida Cordo e de Aires Gameiro. Algumas histórias breves são de inspirar como quem respira fundo e se extasia em noite estrelada. Ao lado, encontram-se parábolas e cenários de mais longa contemplação. Esta, mais adiante, digere-se lentamente como história de sustento a fazer pensar que foi um desenho feito de traços, sombras e luzes captadas em grutas profundas das almas por exploradores dados às psiques. Os leitores poderão descobrir algum brilho e imaginar a beleza que reflete esta ou aquela; ou em manhã de noite mal dormida ter a surpresa de uma lhe ­parecer pérola a desprender-se de um pesadelo e a iluminar a noite. Neste jardim e pomar de fantasias da vida, os leitores podem colher frutos de sabores distintos entre si. Têm em comum terem crescido de jogos de imaginação ocasionais que estimulam, desafiam, fazem perguntas e convidam a outros jogos de imaginação e fantasia. Haverá leitores que podem passar por pequenos ensaios a desformatar as rotinas mentais e a preguiça de outro pensar. A temática relaciona-se com o ser humano, a vida, a realidade dos nossos dias, o tempo finito e a eternidade, o saber de causas importantes. Escritos em contextos diversos, estes contos resultam de uma observação atenta, em confronto com as vagas/modas da indiferença, falta de solidariedade, ausência dos valores essenciais. E em que falta uma janela para a outra realidade diferente criada pela fantasia dentro da caverna de Platão.

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Pela ficção, este livro faz propostas invulgares e sugestões para compreensão do outro, o respeito pela dignidade, o questionamento pessoal. E a sonhar, a sonhar até as crianças podem fantasiar anões nadadores e, com algumas historietas e ficções, voar até para lá das estrelas. Não faltarão leitores, pequenos e grandes, que vão fazer leituras agradáveis como jogos de imaginação e prazer. Resta dizer que a escolha destas histórias e contos está em consonância com a vontade dos autores, dentro de tantos outros e significativos trechos, livros e artigos que têm produzido, numa dedicação permanente que nunca nos cansaremos de enaltecer. Quase apostaríamos que alguns leitores, grandes e pequenos, vão sentir-se desafiados a escrever os seus próprios contos e a fantasiar coisas bonitas muito acima de um mundo de sujidades do nosso planeta. Vera Luza

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CONTOS DE VIDA

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O TELEFONE TOCOU

Era uma vez… …Uma urgência de psiquiatria. A noite estava calma e a interna de serviço julgava poder descansar um pouco no recôndito da mistura de pensamentos, sentimentos e emoções que aquele trabalho sempre lhe oferecia. Interiormente deambulava pelas relações, as que tinha na vida real e as que estabelecia por momentos ou emprestava aos que cruzavam a necessidade de si, mesmo sem disso saberem. Estas eram horas de grande incógnita, já que o cheiro do imprevisível nunca era muito convidativo nem ela verdadeiramente o apreciava. O telefone tocou e lá teve de ir pelo corredor entre a apreensão que a sua juventude impunha e a coragem de quem quer ser missionária em terra própria. Da última vez que vivera situação semelhante, as coisas não haviam corrido muito bem ou, pelo menos, não haviam corrido como queria e tinha-se posto em causa, mesmo sabendo que dera o melhor de si e usara os critérios cientificamente estabelecidos. Ia, ainda que de forma inconfessada, com medo. Com imenso medo, mas também sabia que o lugar que este ocupa em circunstância semelhante é um obstáculo a quase tudo o que faz falta – discernimento, empatia, serenidade, capacidade de decisão imediata,… A conversa começou, após ter entrado no gabinete, e quem tinha diante de si ofereceu-lhe terror nos olhos; mágoa profunda de horas passadas de noite a deambular por ruas des10

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Contos de vida

conhecidas, qual descampado avassalador, que só podia prenunciar morte. Afinal parece que era isso que lhe estava a ser pedido – ou me convence a viver ou mato-me. O discurso não lhe parecia chantagista nem manipulador. Era antes uma sombra de um saudoso passado e uma solidão aterradora que provinha de um silêncio ensurdecedor que estupidamente, ou não, impunha a si mesmo.. Aquele homem não era andrajoso ou sem abrigo, mas tinha por capa a solidão e, por dentro, já não conseguia vestir-se de nada. A interna muniu-se de tudo o que possuía para salvar. Queria aliviar ou minorar o monstro daquele sofrimento. Era genuína a sua compaixão. O poder de persuasão que lhe era tão peculiar, tecnicamente suportado na ciência e na fé, permitiu-lhe tocar aquele coração adoecido de vazio. Mas o que significaria isso a médio prazo? Não podia ligar-se demais nem de menos. Numa urgência era apenas instrumento do instante. Ainda assim pensava como seria possível deixá-lo ir ou fazê-lo ficar. Estava ali, simplesmente, sem saber para onde partir nem quase porque viera. Talvez procurasse plateia para o seu ultimo suspiro. Até vinha preparado para o dar, mas não dissera nada. Era o dentro e o fora daquele homem que estava ali disponível para ser trabalhado, tocado, sentido de forma que só o transcendente explica, mas o real tem meios para conceder. E, depois, a interna da especialidade de psiquiatria iria para casa quando chegasse a sua hora e também não teria ninguém com quem pudesse partilhar o que vivera. Ou melhor, ter até tinha, mas não iria entender nada do que a sua cabeça e o seu

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coração haviam experimentado naquela noite de inverno interior que alguém lhe dera a oportunidade de tentar aconchegar. Sem mais, apetece dizer que esta é uma das histórias que se poderia chamar solidão, mas, na verdade, preferi chamar-lhe – O Telefone Tocou.1 M.C.

Esta história foi publicada em formato de crónica numa revista trimestral há cerca de 8 anos 1

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CONTOS DE TEMPO

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ENTRE FIXOS E MÓVEIS

Passava das 8h da noite e eu permanecia instalado naquela mesa do canto ao lado da escada que separava os dois andares da casa de família. Terminava um dia em que não me havia mexido nem feito qualquer ruído. Estava relativamente habituado a que não me dessem importância, exceto quando cumpria alguma função comunicacional. Havia os que me utilizavam para dar recados rápidos, mas também aqueles que se agarravam a mim para passarem horas a falar, sobretudo da vida dos outros. Esta era a minha forma de vida, sempre rotineira, mas muito importante. Por mim passavam informações de todo o tipo e transmitiam-se mensagens que podiam fazer a diferença. Um dia percebi que podia não ficar agarrado àquela mesa. Cortaram-me os fios e já passeava pela casa toda nas mãos de alguém. Assim, já não havia quem tivesse de correr para mim com o risco de não chegar a tempo. Consegui adaptar-me à nova modalidade de ser. Entretanto fui ficando mais pequeno, mais bem feito e mais leve. Passaram décadas e cada vez era menos utilizado. Os meus concorrentes iniciais eram enormes, pesados e tinham muito pouca autonomia. Ainda assim comecei a ficar inseguro. Percebi que havia objetos que podiam permitir que as pessoas comunicassem entre si sem precisarem de estar em casa. Até podiam estar nos seus carros. Fiquei aflito. Percebi que, em pouco tempo, deixaria de ter utilidade; percebi que seria esquecido e que deixariam de saber 44

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Contos de tempo

como me utilizar; percebi que as pessoas mudariam por completo as suas vidas sem mim e com os meus substitutos; percebi que ninguém mais (seria uma questão de tempo) recordaria os algarismos que me diziam respeito e que também deixaria de ser necessário consultar as listas telefónicas. Percebi, na verdade, imensas coisas, mas não tive imaginação suficiente para perspetivar o verdadeiro cenário da minha inutilidade; o verdadeiro cenário da inutilidade das enciclopédias; o verdadeiro cenário dos recados que deixaram de se deixar e das pessoas com as quais deixou de se fazer conversa de circunstância, mas que, ainda assim, mostrava educação e alguma ternura até. Os meus substitutos passaram a ser tão importantes como a chave de uma casa ou de um carro. Os seus utilizadores ignoraram-me completamente e até se sentiam mal se não os tinham consigo. Eu deixei mesmo de contar para quase o que quer que fosse. De protagonista relevante passei a figurante no palco da vida. Apenas figurante e só em alguns cenários. De repente comparei-me com os homens. Parecia que o meu caminho estava parecido com o que muitos deles percorriam. Pensei também que podia ser útil perceber qual seria a reflexão de um meu substituto. Eis que o substituto comentou – chamo-me telemóvel ou smartphone, como alguns dizem. Sou muito poderoso. Falo de todos com todos; tenho dentro outras múltiplas formas de comunicação através da escrita, da voz ou das imagens. Também consigo responder às perguntas que me fazem sobre qualquer assunto. Acompanho as vidas de todos e cruzo-as com tanta facilidade que já ninguém consegue existir sem me ter por muito perto. Sirvo de máquina fotográfica e de filmar; sou uma 45

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excelente calculadora, agenda, bloco de notas. Jornal, rádio, televisão, computador, cinema, rede social, GPS … Já percebi porque sofrem sem mim. SOU O MAIOR… Narcísico? Não. Nem se atrevam a chamar-me uma coisa dessas. Eu sou mesmo tudo. Às vezes ignoro o poder que tenho, para não me convencer que sou a GRANDE invenção da humanidade. Quando se encontraram, o fixo e o móvel, precisaram de algum tempo para perceberem que um resultava da evolução do outro. Como o homem e o macaco, o móvel desdenhava do fixo, mas queria parecer discreto e gostava que não se notasse muito este seu desdém. O fixo, pelo contrário, tinha vergonha de si mesmo e da sua inutilidade. Sentia-se impotente e sem sentido de vida. Chegava a ter vontade de desaparecer. Tudo isto é uma questão de memória. Sem percursor não há herdeiro. Precisamos de valorizar a sabedoria dos anciãos para não vulgarizarmos o conhecimento dos mais jovens. É uma questão intergeracional. Uma questão de respeito de uns pelos outros e de todos por si mesmos. Não podemos desvalorizar o que encheu o passado e o tornou mais suportável, mais fácil, mais evoluído, para o tempo em que foi presente; não podemos fazer dos antigos, velhos e dos novos, deuses; não podemos consentir que o progresso se torne uma ameaça permanente a quem o criou; não podemos permitir que o amanhã seja uma sombra do ontem e o oculte como se este, na realidade, não tivesse existido. M. C.

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CONTOS DE GRATIDÃO

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A INTELIGÊNCIA DO SILÊNCIO

Procuraram terapia. Eram um casal, aparentemente motivado pelo amor e pela força da família; pelas festas da vida e pelos desafios a superar; pela ternura e pelas discussões prováveis, devidas a muito diferentes formas de sentir os dias e de perspetivar os outros. Tinham projetos, sonhos e desejos, assim o destino não se encarregasse de lhes interromper as expectativas. A partir de certo tempo, começaram a surgir desentendimentos frequentes. A barreira de fortaleza que os definira estava agora abalada e o quotidiano acabara por se tornar turbulento. Inicialmente ele tinha dificuldade em entender a intensidade dela. Ela via como improvável a aparência serena que ele evidenciava. Chegava a irritar-se com tanta tranquilidade, às vezes displicência na postura, mas que era claramente um disfarce. Ela falava sobre tudo com a liberdade de quem tem o direito de a usar. Ele assistia, umas vezes sorridente, outras sem expressão, outras, ainda, de uma forma passivo-agressiva que, a partir de certo tempo, ela começou a identificar. E, então, tudo mudou. Foi o momento de ela tomar novas decisões de ser. Já não valia a pena investir, opinar, sugerir o que quer que fosse. Ele fazia tudo como entendia, desvalorizando até à exaustão qualquer iniciativa que ela pudesse tomar. Queixava-se da sua desordem, do seu caos interior. Considerava que ela se gastava com pessoas de fora, como dizia, a fazer tudo o que elas entendiam. Enfim, ele passou a ocupar o ambiente, impondo as suas ideias como se de dogmas se tratassem. 78

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Contos de gratidão

E, ela calou-se. Em casa passou a ser silenciosa e discreta, como se preferisse fazer de conta que não pensava, que não via a inversão de tudo aquilo que antes a fizera sonhar bem grande – ter uma família unida. Aparentemente era agora impossível comunicarem, mas nem sempre o verbo empresta às relações o que elas precisam para renascer. A impotência perante o silêncio do outro, desperta os que, a ele, não estavam habituados. Por isso, o marido, muito frustrado, tentava, por todos os meios e de todas as formas, romper a presença ausente de sua mulher. Ela, mais do que nunca, estava determinada a manter uma conduta que quase não sabia usar, mas que era a alternativa possível até começar a entender o que devia fazer. Depois dos 50 todos começam a envelhecer. Isso sabia-o bem, mas tinha também claro que a sua forma nova, silenciosa, de estar não era uma questão de velhice, mas uma tentativa de fazer do lugar do casal um laboratório de novos ensaios disto que se chama estar em relação. O marido, entretanto incomodado e dissonante pela falta de feedback, de participação ativa, de envolvimento nas decisões, após ter tentado desqualificar a nova conduta da qual nada entendia, decidiu aceitar a ajuda que ela, havia muito, tinha proposto. Deste modo entraram num gabinete de alguém que os colocou frente a frente em contexto próprio; que valorizou a importância da boa comunicação e não da verborreia intensa, mas apenas vazia, de quem pratica sistematicamente grande ruído; que os fez reajustar as interações rumo a um rearranjo relacional saudável e renascido.

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Muito se diz dos benefícios do silêncio, mas muito pouco se entende sobre a boa comunicação, na qual existe lugar para tudo e também para a ocasional ausência de palavras, desde que esta não perdure sem se fazer entender. Um silêncio intencional, inteligente e esclarecido, pode despertar aquele que o ouve para a urgência de se fazer ouvir. O silêncio não pode confundir-se com o ato de desistir; O silêncio não representa a ausência de comunicação; O silêncio não significa uma vida que não quer ser vivida nem um caminho que não quer ser percorrido. O silêncio pode ser uma página aberta para se escrever um novo capítulo do livro da vida de cada um de nós. Mas, como alguém disse, se o que não se partilha não existe, então o silêncio, para ser tão virtuoso, impõe duas condições – tem de se deixar interromper e não pode ocupar os momentos em que as palavras são verdadeiramente insubstituíveis. O silêncio inteligente, naturalmente, perspicaz e atento, é coisa típica de quem não se faz aparecer, mas emerge com ­tranquilidade somente porque É. M. C.

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CONTOS DE ALÉM

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O TESOURO DO MONTE ESCARLATE

Eram um pequeno grupo de amigos. Curiosos e divertidos apreciavam mutuamente aventuras não excessivamente radicais, mas que tivessem envolvida uma tónica de descoberta de algo desconhecido. Numa de suas múltiplas conversas um deles comentou que tinha lido que, numa montanha algo longínqua, mas ­acessível, existia, provavelmente enterrado há milhares de anos, um tesouro. Todos se riram, achando que já não teriam idade para embarcar em quimeras de adolescentes, que só os adolescentes têm o direito de perseguir. Ainda assim, outro disse – Parece-me estranho que estejamos a desistir de sonhar só porque somos mais velhos. Não será que vale a pena organizarmo-nos e ir atrás do tesouro? Não sei se o encontraremos, mas já pensaram bem o que é que o define? Talvez o possamos descobrir, até melhor que os mais novos, porque o concebemos de outra maneira. Temos outras ambições, outros desejos, outras inquietações, outros murmúrios internos que nos transformam a filtro com que olhamos para isto que se chama viver. A decisão envolvia uma certa logística e os habituais organizadores começaram a movimentar-se para tornar possível o desenrolar desta expedição. Conciliaram datas, conceberam as necessidades e tudo o que seria imprescindível transportar e, finalmente, uns meses depois, partiram para a viagem. Descansaram no primeiro dia num alojamento local a cerca de 12 Km do sopé daquele monte. Alugaram uma pick-up onde todos cabiam e também os seus pertences. No dia seguinte, 104

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Contos do além

bem cedo chegaram ao sítio onde deixaram o carro estacionado. Sabiam que, provavelmente, iriam passar uma noite lá no alto. Queriam ver o pôr e o nascer do sol. Queriam fotografar, filmar, enfim conhecer os vários tons que, decerto, a terra iria assumir em diferentes horas do dia. A subida não seria fácil. Tal como a previam, dariam uns quantos passos para cima e poderiam ter de recuar. O solo era arenoso e, portanto, tendia a fazer com que os pés se afundassem um pouco nele. Alguns do grupo iam um pouco apreensivos, paradoxalmente estimulados e ameaçados pela adrenalina que este desconhecido os fazia produzir. Começou a subida. As pequenas mochilas, criteriosamente arrumadas com tudo o que provavelmente faria falta, tinham um peso tolerável, mais para uns do que para outros. O calçado era próprio e, por isso, não atrapalhava. Pequenas plantas serviam de suporte às mãos que, com luvas, se agarravam a elas para não recuarem e continuarem a ganhar terreno na escalada. Entre a curiosidade e o desejo de alcançar o topo do monte, não deixavam que a motivação baixasse e os vergasse ao esforço que, apesar de ainda não fazer calor, já era muito relevante. Alguém propôs que, se encontrassem um pequeno local relativamente aprazível e plano, descansassem um momento. Assim fizeram poucos metros acima. Nesta paragem, um deles disse – Será que devemos começar a estar atentos a possíveis esconderijos? Será que podemos estar já a passar pelo sítio do tesouro e, como todos os que já tentaram, também nós o deixamos cá ficar? Receio bem que isso possa acontecer.

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Todos concordaram e decidiram rapidamente subir um pouco mais dispersos e mais atentos, cada um ao trilho que ia percorrendo, ou criando, para conseguir trepar. Ao fim de cerca de uma hora começaram a alcançar o cimo e, alguns minutos mais tarde, já o grupo inteiro se encontrava a desfrutar daquela magnifica paisagem que mais fazia lembrar o, aparentemente, inalcançável paraíso. Foram organizando os seus pertences. Montaram pequenas tendas para os arrumarem e para a noite que passariam naquele local. Depois de tudo pronto, começaram a explorar recantos e mais recantos. Sentaram-se por fim para saborearem os primeiros petiscos e bebidas que traziam. O dia foi passando e, quando o sol começou a pôr-se, a terra mudou de cor. Ficou encarnada como nenhum tecido ou nenhuma objetiva consegue captar. De um dos lados, lá bem no fundo, estava o mar azul como o límpido céu que os cobria. Se se calassem, apenas podiam ouvir o barulho das ondas, os pássaros exóticos nos mais variados chilreios e o restolhar das plantas relativamente escassas que por ali se encontravam. Até que um deles se lembrou da razão que ali os conduzira – encontrar o tesouro do Monte Escarlate – e, até agora, nem vislumbre dele. Alguém então se levantou, caminhando pela areia suave daquele relevo que mais parecia uma duna gigante. Deambulou um pouco à volta de todos e disse – vamos recordar o dia que passámos, o que vimos, o que estamos a ver, o pôr do sol, a noite que agora começa, a paz e a tranquilidade inigualáveis, o nascer do sol que se avizinha; a nossa amizade aqui desfru-

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Contos do além

tada, as nossas ideias partilhadas e inspiradas em tudo o que sentimos e podemos assimilar… Todos concordaram – tinham acabado de o encontrar. Este era, realmente, o verdadeiro Tesouro do Monte Escarlate. Na verdade, o homem é um imbatível artífice. Cabe-lhe descobrir que os maiores tesouros da vida estão na capacidade que tem de ativar os seus cinco sentidos e de os pôr ao serviço da paz em prol do pedaço de humanidade que lhe compete i­ nfluenciar. M. C.

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CONTOS DE PARTILHA

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A ALEGRIA E A TRISTEZA

Podiam ser amigas, mas não eram. Sabiam da existência uma da outra e pertenciam até ao mesmo domínio – A Ilha dos Sentimentos -, esse lugar onde habitavam tantos outros de que o homem precisa para se encontrar e saber genuinamente quem é. Consideravam-se, contudo, tão contraditórias que nem se permitiam perder tempo em bons debates das razões de cada uma. Ignoravam quanto mutuamente se necessitavam e até que não poderiam existir isoladamente. Preciso de ti era algo que não integrava o seu léxico. Este é, aliás, um dos défices da humanidade – não saber a quem se juntar, quem lhe faz falta, quem completa o sentido da sua missão. Existir para quê? Isto ninguém pergunta. Viver para se prestigiar, para mandar, para possuir. Isso sim. É popular e frequente. Parece que até, maioritariamente, se ignora a primeira vocação do ser humano – a solidariedade. De facto só nos tornamos Pessoas porque amamos e somos solidários; só amadurecemos e nos tornamos viáveis porque alguém cuida de nós; só chegamos a ter condições para pensar em profundidade porque pais e mães decidem construir a maior obra do planeta – o Ser Humano. Apesar de tudo isto, um dia decidiram interagir. A Alegria comentou: - Estou na moda e isso consola-me todos os dias. Apareço nas redes sociais. Sou pretexto de comentários sucessivos e tenho o meu ego cheio.

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Contos de partilha

- Eu não – disse a Tristeza – invisto muito, mas estou absolutamente ultrapassada. Não apareço em lado algum. Pelo contrário. Até me esquecem. Sou lúcida a ponto de perceber que me associam massivamente a uma doença mental grave e incapacitante à qual chamam depressão e que está a extravasar e a derrubar a humanidade. - Mas, sendo isso tudo e fazendo tanto mal, porque prossegues assim? – Perguntou a Alegria. - Porque não me controlo – retorquiu a Tristeza –, sou uma espécie de líquido que extravasa e ocupa todos os lugares deixados por ocupar; porque tu (Alegria), em alguns casos és estéril, falsa, pontual e existes simplesmente para disfarçar a minha existência nas pessoas; porque tenho raiva de ti e, se me demitir de ser, não conseguirei contracenar com esse papel teatral que não te cansas de desempenhar; porque, se calhar, faço muito mais falta do que julgam. - Então estás a dizer que quem nunca sentiu tristeza, nunca me reconhecerá - Retorquiu a Alegria. - Sim. Sem mim tu não serias quase nada. Apenas um estado mais, sem contrastes nem evidenciações; sem mim, que tanto incomodo, não te conseguirias definir; sem mim, não tirarias nem tirariam partido da tua existência. - Sei que a tua beleza – continuou a Tristeza -, está no silêncio que nem sempre consegues fazer e muito menos respeitar. Sei que te tecem os maiores elogios como se fosses uma panaceia para todos os males do mundo. Sei que te distancias de mim com o terror que te contamine como se de um vírus me tratasse. Sei que quase sobro dos corações dos homens bons, mas que não devia haver lugar para mim. A Alegria começava a ficar cansada de tantas divagações e quase acusações que a Tristeza lhe fazia. Por isso decidiu inter123

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Voar na fantasia

romper-lhe o raciocínio e mostrar que, afinal não é fútil, que sabe refletir e que sabe onde é o seu verdeiro lugar. Disse então: - Creio que corremos o risco de nos interpretarmos mutuamente muito mal. Ambas somos necessárias ao ser humano e a muitos outros animais. Uns sentem-nos e dizem-nos. Outros são apenas capazes de nos evidenciar através de manifestações mais ou menos primárias. Só tenho nome porque tu existes. Só tens nome porque eu também tenho lugar. Eu sou, digamos, mais saudável do que tu. Tu és mais insana do que eu. Ainda assim devemos dar uma à outra o espaço que nos é devido para que os caminhos percorridos pelos que nos sentem sejam proporcionados aos distintos modos e eventos a que possam estar sujeitos. Decidiram tolerar-se, encontrar um ponto de equilíbrio entre ambas. Concluíram que só assim seriam legitimadas e poderiam traduzir-se em todos os idiomas, fossem os dos distintos países ou os dos mais variados corações viventes. M. C.

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CONTOS SURPREENDENTES Aires Gameiro

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Voar na fantasia

A MENINA E AS TARTARUGAS

Estão ali uns pequenos que vêm devolver as tartarugas. Vêm quê? Devolver as tartarugas, repetiu o porteiro. Mas quais tartarugas? Meteram-se aí de dia, esgueiraram-se até ao lago do jardim sem ninguém ver e levaram duas tartarugas de lá… E agora estão aí para as devolver. Bem… foram os pais que ainda educam que os obrigaram a vir, agora já de noite, para as devolverem…sem serem vistos dos colegas, pensei e disse. Não. Eles dizem que foi um amigo que os convenceu a virem cá devolvê-las. Veja se cá pode vir receber as tartarugas, insistiram da porta. Lá desci. Três crianças, ela a maior, dez ou doze anos ou talvez menos, que agora esta miudagem cresce depressa de mais e tornam-se quase todos pesados e gordos. Um dos rapazes, talvez oito anos, e o mais pequeno, uns seis, se tanto. Ela, agarrada à sua tartaruga, chorava como uma perdida, e o de oito, com a sua nem por isso. Ao ver o choro dela fiquei contente com a pedagogia do amigo que os tinha convencido a vir devolver as tartarugas e a remediar a má ação. Vocês fizeram uma má ação quando vieram tirar as tartarugas, mas agora estão fazer uma boa ação, comecei eu com a minha lógica psico-moral que me parecia certíssima, tal como já tinha pensado sobre os pais que ainda educam. Ela até chorava de arrependida!

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Contos surpreendentes

Lá fomos até ao lago para entregar as tartarugas à sua casa e banho. Pelo caminho a menina lá ia a choramingar e eu já a entender menos o que é que se estava a passar. Já à beira do lago lá tentei repetir as minhas palavras de estímulo e consolação: tinham feito uma má ação, mas agora e tal, etc. Ela cada vez chorava mais. Sentou-se no bordo do lago apertando a concha da sua tartarugazinha na mão e chorava como uma perdida. O rapaz mais expedito foi o primeiro a entregar a seu tesouro à água, embora de forma muito hesitante e como que esperando um sinal da menina para começar. Esta resistia e perguntava se não podiam ficar ao menos com uma. E eu a repetir que… etc. e tal…uma boa ação. Ainda balbuciei a hipótese de haver nas lojas de aquários tartarugas à venda. Sim, mas são caras, reagiu a menina. Pedem 130 ou 140 euros. Desanimei. E ela a tentar reduzir a mágoa do luto de perda da sua tartaruga, a quem se tinha mesmo afeiçoado: Quem é o dono disto, ele não nos poderia dar uma? Bem isto aqui …Tentei apelar ao seu sentimento… há aqui um lar de idosos que vêm passear para este jardim e gostam de ver as tartarugas. Se vocês ficassem com elas eles que são muito ficariam sem as poder ver. E vocês têm lago? Um de nós têm um pequeno aquário. E lá se decidiu a ir deixando deslizar a tartaruga para a água, muito a custo, como quem estava a perder uma parte de si mesma. E ainda perguntou: e nós podemos cá vir vê-las? Podem. Mas têm que pedir licença para cá entrar. Lá se consolou um pouco. Naquela noite a menina sonhou com tartarugas… que tivera consigo umas horas. No dia seguinte bateu ao portão com os dois amigos para visitar a sua tartarugazinha. Há razões do coração que a razão dos adultos não entende.

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CONTOS DE NATAL Aires Gameiro

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Voar na fantasia

O RAPAZ DEZOITENE EM DELÍRIO

O rapaz “dezoitene”, cheio de raiva, repetia para si mesmo: não aguento mais. O pai está sempre a chatear, não me deixa fazer nada; não sou criança, já tenho mais de quinze anos. Não aguento mais. Sempre contra mim. Se a mãe estivesse em casa, estava do meu lado. Não fico mais em casa. Saiu zangado. Vagueou pelo descampado e pela floresta. Estava tão fora de si que só queria esquecer o pai e o nome dele. E juntando a voz ao pensamento, gritava para as aves do arvoredo: acabou-se, não tenho pai, não o quero mais. Enfureceu-se em delírio e confusão. Repetia coisas desconexas. Não acertava no que dizia. Varreu-se a lembrança do pai e da família. Um nevoeiro de confusão. Embrenhou-se nas veredas do matagal, perdido de caminhos e de razão. Era, não sabia o quê, órfão de pai e de razão, perdido na noite. Em casa, pai e mãe, cheios de cuidados, nem dormiam. E passa um dia e passam dois. Ao terceiro dia, pela manhã o pai vai à polícia e desabafa. Por essa altura já o filho iria a dezenas de quilómetros. Caíra exausto de sede e fome; não dava acordo da hora. Onde estava? Quem era? Cambaleou uns passos, avistou casas, via pessoas. O delírio teimava que o procuravam para o matar. Tentou fugir sem saber para onde. Viu um menino e convenceu-se que ele era aquele menino e aquele menino era ele; ou quem seria? E ele mesmo, quem era? Ah, se de alguém ouvisse o seu nome! E o nome do menino! Seria um alívio. Apenas ouvia dentro do seu cérebro sons de ameaças. Cresciam o receio e a angústia. Só o menino não lhe metia medo. Era especial. Mas logo desapareceu. Sentia-se tão fraco que caiu desmaiado. Olha, come, parecia ouvir voz de 166

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Contos de Natal

criança. O menino oferecia pão e bebida. Sonharia? Começou a comer. O menino sorria para ele sem nada dizer. Quem serei eu? Como vim para aqui? Donde vim? Quem será este menino? Olhou, o menino tinha desaparecido. Aproximava-se agora um homem, guiado pelo menino. Estremeceu. Que viriam fazer? Matá-lo? Ouviu uma voz: filho, tu és meu filho, João. Como vieste aqui parar? E correu para ele e abraçou-o. O rapaz desperta do sonho delirante: João? É meu pai! E o resto foi dito por ambos com lágrimas de alegria. E o pai, suavemente: filho, vem para casa, a mãe está à tua espera para a festa do Natal. Em casa abriu os braços e as lágrimas da mãe e do filho misturam-se; o seu irmão, Tiago, chegava da igreja onde os escuteiros tinham terminado o presépio, pondo nele o Menino Jesus; e dizia que o Padre Júlio ia celebrar a Missa do Galo à meia-noite. Ao verem-se, foi um abraço apertado, logo repetido com beijos das duas irmãs. A família despertou do pesadelo. Era o Natal do Menino.

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Margarida Cordo Aires Gameiro

47 contos que aliam a realidade à fantasia.

Margarida Cordo Aires Gameiro

Escritos em contextos diversos, as narrativas estão organizadas em diferentes temáticas: • Contos de vida

É Psicóloga Clínica e da Saúde, Terapeuta Familiar e Psicoterapeuta. Para além da atividade clínica, tem um percurso ligado ao exercício de docência, à comunicação social e à escrita, não apenas científica, mas também literária, contando com 9 livros publicados. Tem realizado centenas de conferências e intervenções em Portugal e fora do país. É, entre outros, sócia fundadora da Sociedade Portuguesa de Psicoterapias Breves. Dirige, atualmente a CONFORSAUMEN, Serviços de Saúde, desde a sua saída, a seu pedido, do Instituto S. João De Deus – Casa de Saúde do Telhal, onde exerceu várias funções, como membro da direção, coordenadora dos serviços de reabilitação, etc. A consciência de que a vida é uma missão que deve ser procurada, encontrada e cumprida por todos nós, é a pauta que sempre a faz prosseguir, pelo que, em tempo de pandemia, criou um pequeno canal no YouTube – Conversas Informais.

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AIRES GAMEIRO

• Contos de tempo • Contos de gratidão • Contos de além • Contos de partilha • Contos surpreendentes • Contos de Natal Através da fantasia, os autores desafiam o leitor a ler ou a reler as suas vivências de forma crítica e desafiante. As histórias aparentemente simples, ajudam quem as lê a perceber que a vida é única, cheia de momentos irrepetíveis e que são os afetos e as amizades que construímos que nos edificam e nos alimentam.

Voar na fantasia

Maria Margarida Gonzalez Cordo Tavares

É autor de dezenas de livros, didáticos, técnicos, religiosos e de viagens; é Irmão de S. João de Deus, sacerdote, psicólogo, doutorado em Teologia Pastoral da Saúde, Professor universitário, Membro honorário da Academia Portuguesa de História, membro de diversos centros de investigação. Foi Diretor da revista Hospitalidade e autor de numerosos artigos científicos, diretor de Casas de Saúde Mental do Instituto S. João de Deus, conferencista e formador em Portugal e em dezenas de países estrangeiros nos cinco continentes.

Rua Duque de Palmela, 11 4000-373 Porto Tel.: 22 53 657 50 editora@edicoes.salesianos.pt www.edisal.salesianos.pt

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Margarida Cordo Aires Gameiro

47 contos que aliam a realidade à fantasia.

Margarida Cordo Aires Gameiro

Escritos em contextos diversos, as narrativas estão organizadas em diferentes temáticas: • Contos de vida

É Psicóloga Clínica e da Saúde, Terapeuta Familiar e Psicoterapeuta. Para além da atividade clínica, tem um percurso ligado ao exercício de docência, à comunicação social e à escrita, não apenas científica, mas também literária, contando com 9 livros publicados. Tem realizado centenas de conferências e intervenções em Portugal e fora do país. É, entre outros, sócia fundadora da Sociedade Portuguesa de Psicoterapias Breves. Dirige, atualmente a CONFORSAUMEN, Serviços de Saúde, desde a sua saída, a seu pedido, do Instituto S. João De Deus – Casa de Saúde do Telhal, onde exerceu várias funções, como membro da direção, coordenadora dos serviços de reabilitação, etc. A consciência de que a vida é uma missão que deve ser procurada, encontrada e cumprida por todos nós, é a pauta que sempre a faz prosseguir, pelo que, em tempo de pandemia, criou um pequeno canal no YouTube – Conversas Informais.

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• Contos de tempo • Contos de gratidão • Contos de além • Contos de partilha • Contos surpreendentes • Contos de Natal Através da fantasia, os autores desafiam o leitor a ler ou a reler as suas vivências de forma crítica e desafiante. As histórias aparentemente simples, ajudam quem as lê a perceber que a vida é única, cheia de momentos irrepetíveis e que são os afetos e as amizades que construímos que nos edificam e nos alimentam.

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Maria Margarida Gonzalez Cordo Tavares

É autor de dezenas de livros, didáticos, técnicos, religiosos e de viagens; é Irmão de S. João de Deus, sacerdote, psicólogo, doutorado em Teologia Pastoral da Saúde, Professor universitário, Membro honorário da Academia Portuguesa de História, membro de diversos centros de investigação. Foi Diretor da revista Hospitalidade e autor de numerosos artigos científicos, diretor de Casas de Saúde Mental do Instituto S. João de Deus, conferencista e formador em Portugal e em dezenas de países estrangeiros nos cinco continentes.

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47 contos que aliam a realidade à fantasia.

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Escritos em contextos diversos, as narrativas estão organizadas em diferentes temáticas: • Contos de vida

É Psicóloga Clínica e da Saúde, Terapeuta Familiar e Psicoterapeuta. Para além da atividade clínica, tem um percurso ligado ao exercício de docência, à comunicação social e à escrita, não apenas científica, mas também literária, contando com 9 livros publicados. Tem realizado centenas de conferências e intervenções em Portugal e fora do país. É, entre outros, sócia fundadora da Sociedade Portuguesa de Psicoterapias Breves. Dirige, atualmente a CONFORSAUMEN, Serviços de Saúde, desde a sua saída, a seu pedido, do Instituto S. João De Deus – Casa de Saúde do Telhal, onde exerceu várias funções, como membro da direção, coordenadora dos serviços de reabilitação, etc. A consciência de que a vida é uma missão que deve ser procurada, encontrada e cumprida por todos nós, é a pauta que sempre a faz prosseguir, pelo que, em tempo de pandemia, criou um pequeno canal no YouTube – Conversas Informais.

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• Contos de tempo • Contos de gratidão • Contos de além • Contos de partilha • Contos surpreendentes • Contos de Natal Através da fantasia, os autores desafiam o leitor a ler ou a reler as suas vivências de forma crítica e desafiante. As histórias aparentemente simples, ajudam quem as lê a perceber que a vida é única, cheia de momentos irrepetíveis e que são os afetos e as amizades que construímos que nos edificam e nos alimentam.

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Maria Margarida Gonzalez Cordo Tavares

É autor de dezenas de livros, didáticos, técnicos, religiosos e de viagens; é Irmão de S. João de Deus, sacerdote, psicólogo, doutorado em Teologia Pastoral da Saúde, Professor universitário, Membro honorário da Academia Portuguesa de História, membro de diversos centros de investigação. Foi Diretor da revista Hospitalidade e autor de numerosos artigos científicos, diretor de Casas de Saúde Mental do Instituto S. João de Deus, conferencista e formador em Portugal e em dezenas de países estrangeiros nos cinco continentes.

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