As novas bem-aventuranças em família

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ALDO MARIA VALLI

As novas

Bem-aventuranças em família



ALDO MARIA VALLI

As novas

Bem-aventuranças em família


© Aldo Maria Valli Título original: Le Nuove Beatitudini in Famiglia © 2016 Editrice ELLEDICI © 2018 Edições Salesianas Rua Duque de Palmela, 11 4000-373 PORTO Tel.: 225 365 750 edisal@edicoes.salesianos.pt Publicado em Dezembro de 2018 Tradução: Sílvio Faria Paginação: Paulo Santos Impressão: PrintGroup ISBN: 978-989-8850-62-1 DL: 436187/18


A VIRTUDE ANTES DA LEI À primeira vista, as Bem-aventuranças (Mateus 5, 3-12) parecem meros prémios de consolação. Com todos os verbos no futuro (os que choram serão consolados, os mansos herdarão a terra, os que têm fome e sede de justiça serão saciados, os misericordiosos alcançarão misericórdia, os puros de coração verão a Deus, os que promovem a paz serão chamados filhos de Deus) é como se Jesus dissesse: tenham lá calma, porque só no outro mundo as coisas funcionarão da maneira correcta. É verdade que Jesus usa por duas vezes o verbo no presente. Mas fá-lo apenas no início e no fim (no caso dos pobres em espírito e dos perseguidos por causa da justiça), só para dizer que desses é o reino dos céus, o que reforça a impressão inicial. As Bem-aventuranças não dizem para «ter calma, já que não há nada a fazer, o mundo será sempre o mesmo». Pedem, pelo contrário, aos homens e mulheres de boa vontade, que se empenhem em construir uma sociedade melhor.

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As palavras de Jesus pronunciadas sobre o monte diante do lago de Tiberíades são «o texto mais importante da história humana» (G. Cesbron)

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À multidão que O escuta, Jesus faz uma promessa: todos vós, que aqui sofreis e esperais apenas derrotas, não deveis desesperar, porque no outro mundo encontrareis satisfação. E ela será plena e total, porque «bem-aventurado» quer dizer feliz no sentido de satisfeito, de plenamente satisfeito. A confirmação vem das últimas palavras: «Alegrai-vos e exultai, porque é grande nos Céus a vossa recompensa». Está bem… mas… e neste mundo? Jesus, como sempre, é realista. Sabe que o mal e o pecado, sobre esta terra, estão presentes e impõem frequentemente uma dura lei. Jesus não está a desenhar um panorama ideal. Ele retrata a realidade assim como é. Uma realidade na qual as pessoas mansas são frequentemente marginalizadas e tomadas por estúpidas, os misericordiosos olhados com um certo desprezo, os puros de coração considerados como pobres iludidos, etc. Jesus é realista mas é também honesto. À multidão que O escuta, e que é em grande parte composta exactamente por gente pobre, marginalizada, olhada com desprezo pelos ricos e considerada iludida pelos poderosos, diz como estão as coisas. Mas, ao mesmo tempo, Ele desafia a perseverar nesta estrada das bem-aventuranças, que para a mentalidade dominante é pura loucura.


De facto, só caminhando nesta estrada se entrará no único reino que conta, o reino de Deus ou dos céus. Mas atenção: é mesmo assim, perseverando sobre esta estrada, que um pouco do reino dos céus pode ser construído já aqui em baixo, nesta terra. Jesus não diz: “desiste, porque aqui não há nada a fazer”. Nada disso! Diz o contrário: “vós que sofreis, sereis recompensados em grande”. E assim desafia a continuar na estrada do bem. Jesus não fala como um ideólogo, que promete o paraíso na terra. Realista e honesto, Ele separa os dois planos: o da terra, caracterizado pela imperfeição, e o do céu, casa da autêntica bem-aventurança. Mas, ao mesmo tempo, mete-os em relação: tu, sim, tu mesmo que te sentes entristecido e vencido, fica a saber que se queres conquistar o paraíso, deves começar a construí-lo já aqui, sobre a terra, sem esperar impossíveis utopias, mas já agora, nas condições actuais. O texto das Bem-aventuranças, tal como o encontramos no Evangelho de Mateus, é muito belo do ponto de vista literário. Talvez belo demais. Porque pode ser lido como poesia. E, portanto, como qualquer coisa que, tudo somado, não tem muito a que ver com a nossa vida. Mas, pelo contrário, é ali que está todo o realismo da esperança cristã.

O contexto principal em que aprendemos a viver as qualidades humanas e religiosas é a família. Pequenos e grandes, juntos, podem construir um pedaço do Reino dos Céus.

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O escritor Gilbert Cesbron considerava que as Bem-aventuranças eram «o texto mais importante da história humana», uma palavra dirigida a todos, não apenas aos crentes, e «a única luz que brilha ainda nas trevas da violência, do medo, da solidão em que o orgulho e o egoísmo lançaram o Ocidente». Com exagero ou não, há nesta frase qualquer coisa de verdadeiro. As Bem-aventuranças recordam-nos também que a virtude vem antes da lei e que não há lei que se mantenha se o homem abandona o caminho das virtudes individuais e sociais. Um dos lugares, para mim o principal, onde aprendemos a viver a virtude é a família. Portanto, as Bem-aventuranças têm muito a que ver com a vida familiar. Parece estranho, porque hoje estamos habituados a pensar a família como um lugar cheio de problemas e de conflitos. Mas não é assim e vamos vê-lo. Antes de avançar, quero esclarecer o sentido de «bem-aventurado», uma palavra que se usa talvez com demasiada descontracção. Dizemos «bem-aventurado» e pensamos em «feliz», ou «muito feliz». Mas essa tradução fica curta. O estado de bem-aventurança corresponde, é verdade, a uma felicidade plena, total. Mas é, sobretudo, uma felicidade eterna, irreversível. É uma felicidade que ninguém poderá mais retirar. De facto, o contrário de bem-aventurado não é infeliz, mas maldito, ou seja condenado à maldição eterna; à eterna infelicidade.

«Bem-aventurados», ou seja «felizes»: não é uma meta do outro mundo apenas. Mas uma estupenda realidade que pode ser antecipada já no lado de cá.

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A condição de bem-aventurado tem, portanto, que ver com a eternidade. Mas isto não significa que não diga respeito também à nossa vida terrena. Antes, tem muitíssimo que ver com a nossa vida terrena, porque a bem-aventurança eterna conquista-se precisamente aqui, sobre a terra. É aqui que se joga a questão da bem-aventurança; e a família é um terreno de jogo particularmente favorável. Não o único, certamente, mas seguramente um dos mais importantes. Porque na família confrontamo-nos em cada dia com o que mais conta para cada pessoa: a questão da verdade (que coisa é verdade e que coisa não o é), a questão moral (que é que é bem e o que não o é), a questão da justiça (o que é justo e o que não o é), a questão da liberdade (como e porquê escolher o bem e o mal na relação com o outro). Procurarei pensar as Bem-aventuranças do ponto de vista da minha experiência familiar. E para fazer isto vou procurar o confronto com alguns mitos, ou dogmas, típicos da nossa mentalidade atual.

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1 BEM-AVENTURADOS OS POBRES EM ESPÍRITO PORQUE DELES É O REINO DOS CÉUS

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A primeira bem-aventurança levanta, antes de tudo, uma questão de vocabulário. Em Lucas encontramos «bem-aventurados os pobres»; em Mateus temos «bem-aventurados os pobres em espírito». A versão que nos interessa mais é a de Mateus. Parece que o autor/tradutor grego acrescentou «em espírito» para tornar mais claro as palavras aramaicas de Jesus. Os pobres de que Jesus fala não são principalmente os que não têm meios: são, sobretudo, aqueles que se confiam totalmente a Deus, aqueles que não estão cheios de si mesmos, mas se deixam preencher por Deus. Atenção: não são pobres de espírito, mas em espírito, ou seja necessitados interiormente. Pobre em espírito é o humilde, mas, mais ainda, é aquele que sabe que não se basta a si mesmo e, por isso, olha para fora de si. É alguém que não tem medo de pedir, levado pela necessidade, como o mendicante. O pobre em espírito é alguém que tem necessidade de Deus e dos outros. Não vive fechado em si mas depende de alguém. É alguém que reconhece o próprio limite, a própria debilidade e é capaz de confiar. Deste ponto de vista, para mim a família, a partir


do momento em que me tornei marido e pai, foi e é uma escola de pobreza em espírito. Nós vivemos mergulhados numa mentalidade dominada pelo mito da autonomia, que se traduz na procura da chamada auto-realização. O objetivo número um é maximizar o prazer e lucro individual para “realizar-se”. No trabalho, na relação de casal, até mesmo no tempo livre, quem não se “realiza” é um perdedor e quem não soma sucessos é um fracassado. O instrumento através do qual “nos realizamos”é o tempo. Há uma amiga da minha mulher – e não por acaso esta amiga é solteira – que, incomodada pela forma como a minha cara-metade se consome na sua vida de esposa e de mãe, cada vez que a vê dirige-lhe a mesma recomendação: «Arranja tempo para ti!». Eis o imperativo da nossa época. Arranjar tempo para si seria a solução para a auto-realização. Não se concebe a ideia que possa haver satisfação, alegria e plena felicidade não em guardar o próprio tempo, mas no dedicar tempo a Deus e àqueles que Deus colocou ao nosso lado. Quando Serena, a minha esposa, ouve o convite da sua amiga, olha-me e diz: «Mas eu não quero guardar o meu tempo! Eu quero estar contigo!». Parece-me que nesta simples afirmação está todo o segredo da pobreza em espírito dentro da família. É uma mudança clara de perspectiva: no centro não está mais o eu, com as suas exigências e caprichos, mas está o eu em relação a um tu e a um nós. Mas qualquer um poderá dizer: «está bem, são belas palavras, mas é uma maçada não ter tempo livre para si mesmo, não poder fazer aquilo que se quer, estar sempre limitados.» Claro, quem raciocina assim não é pobre em espírito. Ainda que se case e se tenha filhos, quem raciocina assim, vive no mito da autonomia através da auto-realização. E deste modo, temo, condena-se à insatisfação. É importante sublinhar que o pobre em espírito não é só pobre, mas sabe que o é. Sabe ser necessitado. Esta consciência é decisiva, porque é daqui que brota um profundo sentimento de gratidão. Regresso com o pensamento a Serena, que, tantas vezes, ainda 9


Os “pais perfeitos” estão naturalmente “descentrados” para os próprios filhos, aos quais dedicam todo o tempo possível como expressão do seu amor e como ocasião para educá-los a uma vida de “alta qualidade”.

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quando não o espero, me diz: «Obrigado». Agradece-me porque estou, porque existo. Não é um hábito. Naquele «obrigado» há muita bem-aventurança. Eu, que não sou tão emotivo como ela, não o digo, mas sinto muitas vezes o mesmo. «Obrigado» é precisamente a palavra que surge no coração quando tu, pobre em espírito, te dás conta que tens tudo graças ao bom Deus e às pessoas que o Pai colocou ao teu lado. O pobre em espírito é como uma criança: não por acaso Jesus disse que o reino dos céus é dos pobres em espírito e que para obtê-lo é preciso tornar-se crianças. Mas um estado de dependência é compatível com a felicidade, ou com a bem-aventurança? Certamente que o é. Depende, desculpai o jogo de palavras, de como se vive a dependência. Se a vivemos como coerção e como obrigação, quer dizer que não se é pobre em espírito. Se, pelo contrário, se confia, tal como faz a criança pequena, então descobre-se que nesta dependência, nesta pobreza, há uma forte carga libertadora: eu não sou mais escravo de mim mesmo, dos meus caprichos, dos meus propósitos de auto -realização. Confiando em Deus, abandono-me nos seus braços, cheio de gratidão.


Serena e eu temos experimentado esta condição muito frequentemente durante a nossa aventura juntos. Tudo começou quando, ainda namorados, um médico nos explicou que ela não poderia ter filhos. Aquele dia poderia ter sido o fim de tudo, porque nós nos imaginávamos casados e pais de uma prole numerosa. Mas nós simplesmente não acreditámos no médico. Confiámos em Deus, abandonámo-nos nos seus braços. E Deus recompensou-nos. Não é fácil hoje fazer compreender que da dependência para com Deus e para com aqueles que Deus colocou ao meu lado possa brotar a maior das felicidades. Uma vez, ao saber que tenho seis filhos e que os tive da minha única mulher, um colega de trabalho olhou-me incrédulo e depois disse-me: «Mas, desculpa, tu és um jornalista, já o és desde há tanto tempo, és um tipo relativamente famoso. Como é possível que tu acredites em certas coisas?». Queria dizer: como é possível que um “tipo esperto”, possa acreditar em coisas claramente absurdas como a fidelidade conjugal, a indissolubilidade do vínculo, a vida oferecida a outra pessoas, o tempo roubado ao trabalho e à carreira para dedicá-lo aos filhos, para estar com eles, para ajudá-los a crescer? Aquele meu colega, evidentemente, raciocina a partir da mentalidade dominante, toda impregnada do mito da auto-afirmação. Quem não é pobre em espírito faz muitas coisas e talvez tenha muitas histórias sentimentais, tantas vezes sobrepostas e entrelaçadas entre si. Mas não sei se viverá contente. Eu, de qualquer modo, não mudaria de atitude. Enquanto o rico em espírito passa de uma aventura para a outra e, dominado por um consumismo que nunca alcança a satisfação, procura acumular experiências, o pobre em espírito admira-se e alegra-se com tudo, não dá nunca nada por garantido e por tudo agradece. O rico em espírito pensa que sabe tudo e é sempre reivindicativo. O pobre em espírito tem confiança na vida e está aberto às suas surpresas. O rico em espírito pensa em como assegurar-se contra os riscos e quer programar tudo, porque é vitima da ilusão de poder ter tudo sob controlo. O pobre em espírito deixa-se guiar e sente-se bem com o facto de deixar que Deus desenhe percursos

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Índice A VIRTUDE ANTES DA LEI.............................................................................................................................................................3 1. BEM-AVENTURADOS OS POBRES EM ESPÍRITO PORQUE DELES É O REINO DOS CÉUS .......................................8 2. BEM-AVENTURADOS OS QUE CHORAM PORQUE SERÃO CONSOLADOS ........................................................................13 3. BEM-AVENTURADOS OS MANSOS PORQUE HERDARÃO A TERRA .........................................................................................17 4. BEM-AVENTURADOS OS QUE TÊM FOME E SEDE DE JUSTIÇA PORQUE SERÃO SACIADOS ........................21 5. BEM-AVENTURADOS OS MISERICORDIOSOS PORQUE ALCANÇARÃO MISERICÓRIDA ................................ 25 6. BEM-AVENTURADOS OS PUROS DE CORAÇÃO PORQUE VERÃO A DEUS ......................................................................30 7. BEM-AVENTURADOS OS QUE CONSTROEM A PAZ PORQUE SERÃO CHAMADOS FILHOS DE DEUS .................................................................................................................................................................. 35 8. BEM-AVENTURADOS OS QUE SOFREM PERSEGUIÇÃO POR CAUSA DA JUSTIÇA PORQUE DELES É O REINO DOS CÉUS ......................................................................................................... 39



Um livro que sugere uma leitura original das bem-aventuranças. Esta passagem proclamada por Jesus (Mt 5, 3-12) apresenta o realismo da esperança cristã. A partir da beleza do texto, o autor relaciona o sentido de cada frase com a vivência familiar. Desmistificando alguns dogmas e mitos da pós-modernidade, o escritor consegue encher de alento as possibilidades que a família apresenta, deitando por terra as frases feitas de que hoje ela é apenas palco de fracassos e conflitos.

Aqueles que vivem as Bem-aventuranças encontram facilmente incompreensões e, por vezes, perseguições num mundo que se inspira num outro “evangelho” que não o de Cristo. Sabem, no entanto, que só assim é possível melhorar a vida na família e na sociedade.

Aldo Maria Valli é um jornalista italiano, especialista em assuntos religiosos. É, desde 2007, comentador no canal de televisão TG1 de todas as grandes celebrações do Papa e eventos do Vaticano. Acompanhou o Papa João Paulo II em cerca de quarenta viagens internacionais. Colabora com diversas publicações e é autor de livros na área da Religião, família e comunicação. Mantém um blog em nome próprio acessível no endereço: http://www.aldomariavalli.it/

Rua Duque de Palmela, 11 4000-373 Porto Tel.: 22 53 657 50 Fax: 22 53 658 00 editora@edicoes.salesianos.pt www.edisal.salesianos.pt


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