não se separa de sua contínua dedicação a atividades didático-educativas e docentes – no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-Rio), no Instituto Superior de Belas-Artes (Hisk) de Ghent, na Bélgica, na Escola de Artes Visuais (EAV)
O triângulo “arte, trabalho e ideal”
do Parque Lage e em seu ateliê –, tendo orientado inúmeros ar-
abrange o gesto artístico. O pensamento crítico o acompanha, e as
tistas hoje reconhecidos. Junto a isso, a frequente participação
técnicas o tornam possível. Esse
em exposições nacionais e internacionais, somada à presença
gesto define a fabulosa complexi-
de suas obras em diversas coleções e museus – como a Tate
dade da relação com o mundo e a
Modern e o Victoria & Albert Museum, em Londres, o Museum
insaciável necessidade que o artis-
of Modern Art (MoMA) de Nova York, o Centre Pompidou, em
ta tem de questioná-la, mensurá-la e inventá-la. Investigar esse univer-
Paris, e o Getty Museum, em Los Angeles, entre outros –, marcam sua fértil contribuição ao debate cultural brasileiro e seus
Anna Bella Geiger é uma das expoentes da primeira geração de artistas con-
desdobramentos futuros.
ceituais latino-americanos e pioneira da Fernando Cocchiarale curador, professor e crítico de arte
videoarte no Brasil. Professora e artista intermídia, está presente no acervo de instituições prestigiosas, como o Centre
so é o intuito desta coleção.
arte trabalho e ideal anna bella geiger
coleção arte trabalho e ideal
É fundamental, ainda, destacar que a atuação de Geiger
anna bella geigerarte,
org. fabiana de barros michel favre marcia zoladz
trabalho e ideal
Da lista dos integrantes da I Exposição Nacional de Arte Abstrata, realizada em 1953 no Hotel Quitandinha, em Petrópolis (RJ), constava o nome de uma jovem artista de 19 anos então desconhecida, Anna Bella Waldman. Entretanto, conforme os critérios então vigentes, o fato de ser uma pioneira do abstracionismo no país virtualmente a credenciava para uma longa e profícua carreira. Hoje, décadas depois dessa participação histórica, Anna Bella Geiger tornou-se uma das mais importantes artistas brasileiras da segunda metade do século XX e do início do século XXI. Logo após a Segunda Grande Guerra, quando floresceu o trabalho de Geiger, o reconhecimento da importância de um artista não era atributo do mercado, mas resultado de sua inserção em movimentos artísticos engajados em questões renovadoras da produção moderna do país e da reverberação de sua obra junto ao público e à mídia impressa. A obra abstracionista de Anna Bella em desenho e gravura
Pompidou, em Paris, e o Museu de Arte
começa a ser conhecida a partir dos anos 1950. Na década se-
Moderna de Nova York (MoMA). Sua
guinte seu trabalho torna-se figurativo (fase visceral) e assume
produção situa-se na fronteira entre a pintura, o desenho, o objeto e a gravura. Diversificados materiais, suportes e a
uma configuração próxima àquela das obras da nova figuração brasileira. Nos idos de 1970, produz sob a ressonância da arte
mescla de linguagens e técnicas incidem
conceitual, sobretudo no que se refere à experimentação de
em fases criativas distintas, que sempre
mídias técnicas – fotografia, xerox, vídeos, intervenções, entre
trazem a marca de um olhar crítico e
outras. Ultimamente, seu trabalho tem aprofundado o impulso
engajado sobre a realidade.
inquieto e crítico que desde o início caracteriza a poética de sua produção.
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DETALHE DE UM CARTÃO-POSTAL DA SÉRIE BRASIL NATIVO/BRASIL ALIENÍGENA, 1976-7, SÉRIE COM 18 CARTÕES-POSTAIS.
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SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO Administração Regional no Estado de São Paulo Presidente do Conselho Regional Abram Szajman Diretor Regional Danilo Santos de Miranda Conselho Editorial Ivan Giannini Joel Naimayer Padula Luiz Deoclécio Massaro Galina Sérgio José Battistelli Edições Sesc São Paulo Gerente Iã Paulo Ribeiro Gerente adjunta Isabel M. M. Alexandre Coordenação editorial Clívia Ramiro, Francis Manzoni, Cristianne Lameirinha Produção editorial Antonio Carlos Vilela, Bruno Salerno Rodrigues, Thiago Lins Coordenação gráfica Katia Verissimo Produção gráfica Fabio Pinotti, Ricardo Kawazu Coordenação de comunicação Bruna Zarnoviec Daniel
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DETALHE DE BU-RO-CRA-CIA, DA SÉRIE SOBRE A ARTE, PINTURA, COR, 69 X 81 CM, 1975.
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© Fabiana de Barros, Michel Favre e Marcia Zoladz, 2021 © Edições Sesc São Paulo, 2021 Todos os direitos reservados Preparação Elen de Amorin Durando Revisão Sílvia Balderama Nara, Rosane Albert Versão para o inglês Anthony Cleaver Projeto gráfico, capa e diagramação Rico Lins +Studio, Julieta Sobral Imagem da capa detalhe de Cais e Oceano. Quarta capa Órgão ocidental Fotos Acervo do Centro de Pesquisa do Masp/Foto: Eduardo Ortega, 2019 (p. 77), Acervo Anna Bella Geiger (pp. 10-1, 14-5, 25, 26, 30, 35, 36-7, 38, 46, 47, 48, 49, 51, 52, 53, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 63, 65, 69, 70, 72, 75, 78-9, 80, 81, 82, 83, 84, 85, 86-7, 88b, 88c, 89, 92, 93, 100, 102, 103, 104, 105, 116-7, 119, 154-5, 156), Davi Geiger (VT; pp. 66, 90-1), Diana Tamane (p. 112), Fernando Ferro (p. 53), Guy Brett (p. 38), Januário Garcia (p. 19), Luiz Velho (pp. 2-3, 54, 96, 97, 98, 99), Nina Geiger Cole (p. 101), Acervo Instituto Fayga Ostrower (p. 88a), Renato Mangolin (pp. 106, 107), Thomas Lewinsohn (pp. 39, 65, 67, 92, 93), Tom Job Azulay (VT; pp. 94, 95) Dados internacionais de catalogação na publicação (CIP) An71 Anna Bella Geiger / Organização de Fabiana de Barros; Michel Favre; Marcia Zoladz. – São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2021. (Arte, trabalho e ideal, 2). 156 p. il.: fotografias. Bilingue (inglês/português). ISBN
978-85-9493-220-4
1. Arte brasileira. 2. Fazer artístico. 3. Atelier de artista. 4. Anna Bella Geiger. I. Título. II. Geiger, Anna Bella. III. Barros, Fabiana de. IV. Favre, Michel. V. Zoladz, Marcia. VI. Arte, trabalho e ideal. CDD
708.981
Edições Sesc São Paulo Rua Serra da Bocaina, 570 – 11º andar 03174-000 – São Paulo SP Brasil Tel. 55 11 2607-9400 edicoes@sescsp.org.br sescsp.org.br/edicoes /edicoessescsp
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sumário apresentação . 12
Danilo Santos de Miranda
introdução . 17 Fabiana de Barros Michel Favre Marcia Zoladz
o arquivo dissidente de anna bella geiger . 20 Estrella de Diego
entrevista . 36
por Pablo León de la Barra
obras . 78 verbetes . 108 biografias . 112 english version . 116
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EW18 COM MAPA DA ÁFRICA, BORDADO, ALFINETES E FOLHAS DE METAL COLADOS SOBRE TELA, 59 X 98 CM, 2014. 11
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apresentação Nas mãos do artista, as possibilidades experimentais se desenham como potências imensuráveis. O ato criador propicia conectar distintas linguagens, bem como adotar o uso de tecnologias contemporâneas ou advindas de tempos remotos, que ora se amalgamam, ora se permutam para esfacelar ou perpetuar anseios, costumes e visões sobre o mundo. É na urgência de verter ideias que o artista traça o extraordinário e lança-se em busca do desconhecido, arriscando inovações estéticas ou recriando perspectivas. Numa métrica imprecisa, a decantação de vivências decorrentes do fazer artístico e sua fruição colaboram na construção de acepções e prováveis sentidos que, por vezes, passam a pertencer ao âmbito histórico das ações humanas. Passado que se faz presente nas atividades inventivas, pois carregam tradições milenares, consolidando um lastro narrativo inerente à arte. Segundo Mário Pedrosa, “a arte é o exercício experimental da liberdade”, ideia que sugere indagações acerca da complexidade a que pertence esse ofício e nos convoca a refletir sobre as camadas visíveis e invisíveis do campo artístico, que por vezes esgarçam as fronteiras de outras áreas do conhecimento. Tal maleabilidade insinua frestas para potentes transformações, já que se configura como um território fértil para perscrutar as questões humanas e os dilemas existenciais, acessando esferas sensíveis e simbólicas. Assim, consoante às noções de liberdade e autonomia, caras em significado e propósito ao Sesc – que se traduzem em ações depositárias de um legado de reflexão e produção coletiva –, realiza-se o envolvimento de distintos agentes da área educativa, social e cultural. Nesse contexto, a iniciativa de publicar uma coleção voltada para as artes visuais almeja colaborar para a difusão de saberes, propiciando o
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acesso e a aproximação com distintas poéticas, por meio de variados olhares e práticas a respeito desse universo. Assim, ao se defrontar com a espessura do presente, a coleção Arte, Trabalho e Ideal, organizada por Fabiana de Barros, Michel Favre e Marcia Zoladz, apresenta recortes de histórias de vida dedicadas às dimensões do fazer artístico, contextualizando o artista e sua obra por meio da escrita e das imagens, revelando os plurais modos de reinventar o mundo para si e para o outro. Nessa perspectiva, o entendimento da publicação de livros como patrimônio cultural reúne subjetividades e ancora ações para viabilizar a democratização e variação de recursos no acesso à arte. Em certa medida, a noção de memória é sugerida tanto pelo próprio formato colecionável – podendo caracterizar um pequeno acervo sobre o assunto – quanto pelo acesso às lembranças dos artistas, por meio das entrevistas, aprofundando a construção de uma biografia atrelada às questões artísticas que passam a compor o repertório de cada leitor. O segundo volume da coleção contempla a obra da artista intermídia e professora Anna Bella Geiger. Presente no acervo de significativas instituições, como o Centre Pompidou, em Paris, e o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), sua produção situa-se na fronteira com a pintura, o desenho, o objeto e a gravura. Os diversificados materiais, suportes e a mescla de linguagens e técnicas incidem em suas distintas fases criativas. É considerada uma das pioneiras no campo da videoarte no Brasil e uma das expoentes da primeira geração de artistas conceituais latino-americanos. Valorizar o legado da artista e seu percurso, que se mantém perenemente forjado por uma visão crítica, política e social, bem como por inquietações dos campos subjetivos, enseja o entrelaçamento das faces manifestas do que somos, ou do que podemos vir a ser.
DANILO SANTOS DE MIRANDA Diretor do Sesc São Paulo
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HISTÓRIA DO BRASIL: LITTLE BOYS & GIRLS, FOTO-COLAGEM, AMBAS, 23 X 22 CM, 1975.
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Precisamos deste solo em que todos se vejam e se reconheçam como seres criativos, que agem no mundo. A frase "Todo ser humano é um artista", que despertou muita raiva e que continuamos a entender mal, refere-se à transformação do corpo social. Qualquer um pode, e até deve, participar dessa transformação para que possamos realizá-la o mais rápido possível. JOSEPH BEUYS
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introdução Investigar “arte, trabalho e ideal” é como colocar em uma perspectiva triangular as relações entre o artista, os meios que ele emprega e a coletividade. É uma geografia tão variável e mutável quanto existem práticas, pensamentos e indivíduos. Um triângulo sempre em movimento, como um protótipo que escapa a modelizações. O trabalho do artista é abordado como um ato de transformação feito de tensões e resistências entre uma intenção e um gesto, uma ideia e um ideal, em contextos incessantemente redefinidos. A coleção Arte, trabalho e ideal é um convite para caminhar pelo ateliê do artista e questionar os três polos desse triângulo. Um texto crítico original, escrito por um profissional notório escolhido pelo artista, apresentará o seu trabalho e o situará em seu contexto de produção. A segunda parte é constituída de uma entrevista com o artista. A arte é abordada aí em função de uma prática e de meios orquestrados segundo um ideal. Às vezes, o essencial se desdobra em função do percurso do artista, de suas referências ou daquilo que o motiva. Às vezes, trataremos as escolhas técnicas como extensões do pensamento ou mesmo ferramentas, consideradas próteses para aumentar certas capacidades em diálogo com o ideal perseguido. São esses meios, técnicas e objetivos que estão no centro da coleção. Quando o pensamento se torna forma, impulsionado por um processo coletivo, ele carrega consigo as condições de sua urgência. Urgência que, por sua vez, é renovada pela prática e inscrita em sua época, o tempo necessário para sua realização.
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Gravitando ao redor de artistas de diferentes horizontes, formações e gerações, cujas escolhas técnicas são tão diversas quanto a gravura ou o cinema, a colagem ou a organização de arquivos, nossa coleção dá ênfase, sem hierarquia, às técnicas empregadas pelo artista, seja sua subjetividade, sua cultura, seus rituais, sua metodologia ou seus ensaios. “A minha postura com relação à arte é conceitual ou ideológica. E aí a gravura marca algumas coisas. Eu não fujo disso.” Assim se inicia a entrevista da artista carioca Anna Bella Geiger ao curador mexicano Pablo León de la Barra para a coleção Arte, trabalho e ideal. Com essa frase, ela ratifica a sua busca incessante por caminhos de expressão, sempre dentro de um processo contemporâneo que a levou, e ainda leva, a refletir em cada uma de suas obras a sua percepção da realidade como forma de expressão individual e como meio de contestar situações adversas. Ao mesmo tempo, durante a conversa, Anna generosamente nos mostra qual o significado da arte para ela e o que é ser artista. E ainda descreve a intimidade de seu processo de trabalho e de onde vem a motivação para cada obra. De uma forma didática, uma vez que o trabalho da artista e o da professora caminham juntos em sua carreira, ela explica como desenvolve cada obra e, para muitas delas, quais foram as fontes iniciais. O triângulo “arte, trabalho e ideal” circunscreve o gesto artístico. O pensamento crítico o acompanha e as técnicas o tornam possível. Esse gesto define a fabulosa complexidade da relação com o mundo e a insaciável necessidade que o artista tem de questioná-la, mensurá-la e inventá-la.
FABIANA DE BARROS MICHEL FAVRE MARCIA ZOLADZ
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O PÃO NOSSO DE CADA DIA, SACO DE PÃO E SEIS CARTÕES-POSTAIS, 17 X 12 CM, 1978. FIZERAM PARTE DO PROJETO “O PÃO NOSSO DE CADA DIA”, APRESENTADO NA 39a BIENAL DE VENEZA DE 1980.
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O arquivo dissidente de Anna Bella Geiger ESTRELLA DE DIEGO
A primeira visita a Nova York: o mundo sem Duchamp Anna Bella Geiger poderia ter conhecido Marcel Duchamp em suas viagens a Nova York. Mas não foi o que aconteceu. Na primeira visita da artista à cidade – em 1954, para assistir a alguns cursos na New School e no Museu Metropolitano de Arte –, o legado do velho vanguardista passava bastante despercebido numa cena artística dominada pelo expressionismo abstrato. Durante aqueles anos, a própria Geiger estava envolvida com trabalhos que, à primeira vista, pareciam abstratos, mas que, sob muitos aspectos, iam definir duas das preocupações recorrentes ao longo de sua carreira: subversões espaciais muito mais profundas que o mero colocar em xeque a perspectiva imposta – proposta do expressionismo abstrato – e a produção de certas serialidades que poderiam ser chamadas de dissidentes. De fato, já as colagens e os delicados guaches não figurativos, que a artista realiza nos primeiros anos da década de 1950, refletem – em seu próprio jogo de gosto serial e em que pese ser uma obra única na maior parte das vezes – a lúcida contaminação do ensino de Fayga Ostrower, a mestra polonesa, também de origem judaica, que vive no Rio de Janeiro e
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com quem Geiger aprende a gravar. Juntamente com a técnica da gravura, a artista experimenta a liberdade de criar sem a pressão da obra única – parte indiscutível do discurso hegemônico, masculino por antonomásia – e tem a oportunidade de explorar uma estratégia de repetições que, com o tempo, vão se transformar em território privilegiado para a subversão desse discurso de autoridade e camuflagem prodigiosa, da qual ela se vangloria durante toda sua carreira, até os dias de hoje. O esmero, a reflexão inteligente e o profundo decoro, que impregnam os trabalhos de Geiger já na década de 1950, vão delineando-a como a criadora que virá a ser: uma das mais sólidas de sua geração, não obstante, às vezes, toda sua força ser reconhecida apenas em parte pelo simples fato de ser mulher, tal como ocorreu com outras artistas ao longo das épocas. Geiger não demora em abandonar seu particular concretismo preciosista dos anos 1950 – com umas texturas de ourives que sobrevoam o trabalho posterior – para entrar em cheio nas propostas conceitualistas, principalmente após as reiteradas visitas a Nova York desde o ano de 1969, momento no qual ela se muda para essa cidade com seu marido, o geógrafo Pedro Geiger, que fora convidado para lecionar na Universidade Columbia. Ao chegar a Nova York nessa segunda visita, Anna Bella Geiger encontra uma cidade muito diferente da que havia conhecido na primeira viagem. Em 1969, o expressionismo abstrato, que havia governado a cena dos anos 1950 e 1960, perdeu completamente o pé, e o mundo da arte começou a girar em torno de propostas conceituais, que representavam a geração mais jovem com a qual ela se relacionou em meados da década de 1970 – as fotos da artista com Vito Acconci ou Joseph Beuys, dentre outros, testemunham isso. Seja como for, antes desses encontros com o conceitualismo europeu e norte-americano, Geiger começou a experimentar com meios que estavam mais de acordo com suas novas indagações e com o momento que se vivia. A fotografia e o vídeo anunciam o fim dos velhos pontos de vista, e ela mergulha de cabeça muito cedo nos novos meios – é uma das primeiras artistas a trabalhar com o vídeo no Brasil. Sua formação
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na multiplicidade por meio da gravura lhe propicia talvez um caminho privilegiado para certos questionamentos abertos, bem mais distantes para tantos artistas da geração abstratizante, incapazes de dar o salto para novas propostas afastadas do limite da moldura. Nas experimentações com esses novos meios, também continua presente o problema do espaço subvertido exposto pelas primeiras e belas colagens de Geiger – rajadas de cor como nuvens que passam diante dos olhos – ou a série das “vísceras” de fins dos anos 1960, um trabalho que só em aparência se separa do resto da produção. Fígados que dialogam, cérebros que se expandem, gargantas que se impõem... conformam um inesperado e bizarro tratado de anatomia renascentista, uma espécie de estranho arquivo em que os órgãos seriados tomam a espacialidade como território para suas próprias subversões; estendem-se, explodem, fraturam-no… Depois, a partir da década de 1970, pode-se dizer que até o conceito de espaço fica mais complexo na artista, ao se associar pelo geográfico – o mapa – com as políticas coloniais, os estereótipos culturais, as exclusões, os discursos impostos pelas hegemonias e, principalmente, os modos de questioná-los com essas formas refinadas e frágeis que transformam os objetos políticos de Geiger em objetos poéticos. Se a arte internacional, a partir dos anos 1970, torna-se cada vez mais política, no caso de Anna Bella Geiger, essa politização se manifesta tanto por meio das propostas abertamente subversivas como pelas camuflagens sutis. É o caso dos numerosos – e aparentes – autorretratos, por meio dos quais Geiger reafirma sua identidade e, ao mesmo tempo, se desapropria de si para falar pela boca do coletivo, inclusive daqueles que não têm voz. Sua imagem se transforma em veículo de denúncia política – ocorre no Declaração em retrato I, de 1974 – e submerge numa espécie de baile de máscaras, entendido à maneira de Joan Riviere: nunca há uma identidade essencial e para sempre. As identidades multiplicadas e líquidas se suspendem e se ocultam; completam um inesperado malabarismo de serialidades, que reenviam ao mítico canal entre Marcel Duchamp e
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Rrose Sélavy, a personagem por meio da qual Duchamp volta a nomear o mundo completo pela boca de seu alter ego feminino, aquele que torna público o que ele não se atreve a dizer. São as imagens da própria Geiger na série Passagens, de 1975. Nelas, cria-se uma inquietante noção de arquivo particular que sobrevoa toda sua produção, quando a imagem da artista é multiplicada e alterada, travestindo-se de diversidade. Embora talvez seja até certo ponto apenas um projeto autobiográfico: como ocorre com tantas outras mulheres, talvez Geiger use sua imagem, porque é a que ela tem à mão – outra vez, a economia dos meios. De qualquer maneira, mapas e autobiografia de repente se reúnem e constroem uma imprevista continuidade no vídeo Mapas elementares 1, 2 e 3 – o idêntico outro. A artista desenha concentrada: sobre a mesa se distingue com clareza um de seus desenhos de mapas. Tudo parece idêntico nessas imagens repetidas, exceto a música de fundo – sempre latina –, que muda completamente de ritmo e, com ele, a visualidade de cada um dos trabalhos. Num dos três Mapas, escutamos Chico Buarque cantando "Meu caro amigo" – outra forma camuflada de fazer política no Brasil de meados dos anos 1970, falando do momento conturbado em todo o país; protesto encoberto e centelha de insurreição. Também aqui, como em outras obras, as técnicas se entrelaçam para aproximarem-se de temas similares: um vídeo rubrica um desenho; um desenho rubrica um vídeo. Geiger é capaz de criar uma curiosa continuidade em sua produção, que propõe um fio condutor visível para aqueles que estão empenhados em encontrá-lo. Mais ainda, a incorporação precoce do vídeo ou da fotografia não implica, na artista, o abandono de outros meios mais tradicionais: ao longo de sua carreira, ela combinou todos com extraordinária naturalidade, sem nunca abandonar uma técnica por outra, mesclando-as e superpondo-as em sua pesquisa sobre essas formulações da representação que cultiva ao longo dos anos. Essa é, sem dúvida, uma das mais sugestivas qualidades na produção de Anna Bella Geiger: mover-se confortavelmente entre técnicas, embaralhá-las, intercambiá-las ao infinito, questioná-las, revisitá-las…
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obras
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ORBIS DESCRIPTIO COM MAPA-MÚNDI E AS 3 GRAÇAS, SÉRIE FRONTEIRIÇOS, CAIXA DE ARQUIVO DE FERRO, ENCÁUSTICA E METAL, 24 X 45 X 18 CM, 2018. 79
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SEM TÍTULO, GRAVURA EM METAL, ÁGUA-TINTA, RELEVO E CORTE, 44,5 X 24,5 CM, 1965.
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SEM TÍTULO, DESENHO A CARVÃO, 70 X 50 CM, 1950.
SITUAÇÕES LIMITE 1 E 4, FOTOMONTAGENS P&B, PARTE DE SÉRIE COM 4, 86 X 51 CM CADA, 1974.
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LUNAR I, FOTOGRAVURA EM METAL E SERIGRAFIA, 78 X 58,2 CM, 1973. IMAGEM DA LUA CEDIDA PELA NASA, 1969.
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PERIFERIA-CENTRO, DA SÉRIE POLARIDADES, 1976, FOTOGRAVURA EM METAL E SERIGRAFIA, 45 X 43 CM.
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biografias ANNA BELLA GEIGER
É gravadora, pintora e artista multimídia, com trabalhos em vídeo e instalações in situ, e objetos tridimensionais. Desenvolveu uma carreira internacional, participando de exposições individuais e coletivas em museus e galerias. No Brasil, participou de diversas edições da Bienal Internacional de São Paulo, da Bienal do Mercosul (Porto Alegre, 2011), e da Pinacoteca de São Paulo (2018). No exterior, expôs nas bienais internacionais de Veneza (1980), Tóquio (1979), Liverpool (2002) e Istambul (2019), no Centro de Arte Reina Sofía, em Madri (2000), na Fundação Cartier (2014) e no Centro George Pompidou (2012), ambos em Paris. Realizou exposições individuais no Museum of Modern Art (MoMA), em Nova York (1978), e a retrospectiva Brasil nativo/Brasil alienígena no Museu de Arte de São Paulo (Masp) e no Sesc Avenida Paulista (São Paulo, 2019), que irá para o Stedelijk Museum voor Actuele Kunst (SMAK), em Ghent, na Bélgica. Seus trabalhos estão nas coleções do MoMA, do Centro Georges Pompidou, da Tate Modern e do Victoria and Albert Museum, em Londres, do Museu de Arte Moderna de Varsóvia e do Getty Institute, em Los Angeles. Atualmente leciona no Instituto Superior de Belas-Artes (Hisk), em Ghent, e na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV), no Rio de Janeiro. ESTRELLA DE DIEGO
Professora de história da arte moderna e contemporânea na Universidade Complutense de Madri e membro da Academia Real de Belas Artes de Madri. Foi nomeada para a cátedra Ida Cordelia Beam em 2017-8 e também
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ocupou a cátedra Rei Juan Carlos I de Cultura e Civilização Espanhola. Membro do conselho consultivo do Museu de Arte Contemporânea em Barcelona (Macba), da Fundação Norman Foster em Madri e do Real Colegio Complutense de Harvard; também é patrona da Real Academia da Espanha em Roma, do Instituto Cervantes e do Museu Reina Sofía, em Madri. Estrella é colunista do jornal El País. PABLO LEÓN DE LA BARRA
Curador-geral da América Latina no Museu Solomon R. Guggenheim, em Nova York, e curador-chefe no MAC Niterói (RJ). Nasceu na cidade do México, em 1972. Tem Ph.D. em histórias e teorias pela Architectural Association, em Londres. Foi curador de América Latina na iniciativa Guggenheim UBS MAP (2013-6) e diretor da Casa França-Brasil, no Rio de Janeiro (2015-6). Organizou ou coorganizou exposições em instituições no México, nos Estados Unidos, no Reino Unido, na Suíça, em Costa Rica e no Brasil (MAM-Rio e Masp). Foi fundador e cocurador da primeira e da segunda Bienal Tropical, em San Juan, Porto Rico (2011 e 2016), cocurador da Bienal do Site Santa Fe, nos Estados Unidos (2016), e curador do pavilhão mexicano na Bienal de Veneza (2017). FABIANA DE BARROS
É artista plástica formada pela Fundação Armando Álvares Penteado de São Paulo (Faap). Possui pós-graduação em multimídia na École Supérieure d’Art Visuel de Genebra (Head), Suíça. Sua obra é principalmente voltada à arte pública e contextual desde 1987. O Fiteiro cultural destaca-se dentre suas performances, videoinstalações e trabalhos de web art no Brasil e no exterior. Principais exposições: Mais igual a menos – 18 anos do Fiteiro cultural, Sesc Pompeia, 2017; Biwako Biennal, Japão, 2010; Utopics.11th Swiss Sculpture Exhibition, Suíça, 2009; Mira como se mueven, Fundación Telefónica, Madri e Going Public’05, New Contemporary Art Centre, Larissa, Grécia, 2005; 8ª Bienal de La Havana, Cuba, 2003; além de três participações na Bienal Internacional de São Paulo e uma participação na Bienal do
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Mercosul, onde foi selecionada para participar da mostra Projetáveis, em 2009. Recebeu também o prêmio da oficina Interactivos?’10: Ciencia de barrio, no MediaLab Prado, Madri, 2010. Desde 1989, dirige o Arquivo Geraldo de Barros e organiza importantes exposições dedicadas ao artista, como a do Ludwig Museum, na Alemanha; nos Sescs Pompeia, Pinheiros e Belenzinho; no Instituto Moreira Salles (IMS); no Musée de l’Elysée, na Suíça; e no MoMA, em Nova York. Organizou os livros Sobras e fotoformas (Cosac Naify, 2006) e Geraldo de Barros: isso (Edições Sesc, 2013) e é autora do livro Aberto [Open]: fiteiro cultural (Edições Sesc, 2017). MARCIA ZOLADZ
É jornalista, escritora, designer gráfica, editora de imagens especializada. Trabalhou em diversas áreas no portal de internet UOL e como diretora de arte na antiga Editora Abril. Graduada na Escola Superior de Desenho Industrial (Esdi), no Rio de Janeiro, estudou projeto gráfico no California College of Arts, em Oakland, nos Estados Unidos, e fez estudos de pós-graduação em comunicação na Ruhr Universität Bochum, Alemanha. No momento, trabalha como autora e editora de livros e publica regularmente artigos sobre design e história na Europa e nos Estados Unidos. MICHEL FAVRE
Cineasta suíço trabalhando entre Genebra e São Paulo. Formado na École des Beaux-Arts, em Genebra, dirigiu vários documentários de longa-metragem. Desde 1996, Michel Favre desenvolve uma atividade artística conjunta com Fabiana de Barros sob o nome FABMIC. Juntos, eles realizam instalações de vídeo, performances multimídia e séries fotográficas. Atuou por mais de dez anos na televisão suíça como diretor de reportagem. De 2006 a 2014, lecionou cinema na Universidade de Arte e Design de Genebra (Head). Em sua filmografia constam os premiados longas-metragens Geraldo de Barros – sobras em obras, 1999; Ouvindo imagens, 2006; e Tão perto, tão longe, 2012. Sua última realização, Viagem ao vazio, narra a obra Fiteiro cultural, de Fabiana de Barros, e estreou no CineSesc em 2018. 115
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DETALHE DE CAIS E OCEANO COM M. E SARSA ARDENTE Nº 2 TINTA ACRÍLICA, VERNIZ, PÓ DE FERRO E DE GRAFITE SOBRE TELA, 80 X 120 CM, 1995.
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não se separa de sua contínua dedicação a atividades didático-educativas e docentes – no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-Rio), no Instituto Superior de Belas-Artes (Hisk) de Ghent, na Bélgica, na Escola de Artes Visuais (EAV)
O triângulo “arte, trabalho e ideal”
do Parque Lage e em seu ateliê –, tendo orientado inúmeros ar-
abrange o gesto artístico. O pensamento crítico o acompanha, e as
tistas hoje reconhecidos. Junto a isso, a frequente participação
técnicas o tornam possível. Esse
em exposições nacionais e internacionais, somada à presença
gesto define a fabulosa complexi-
de suas obras em diversas coleções e museus – como a Tate
dade da relação com o mundo e a
Modern e o Victoria & Albert Museum, em Londres, o Museum
insaciável necessidade que o artis-
of Modern Art (MoMA) de Nova York, o Centre Pompidou, em
ta tem de questioná-la, mensurá-la e inventá-la. Investigar esse univer-
Paris, e o Getty Museum, em Los Angeles, entre outros –, marcam sua fértil contribuição ao debate cultural brasileiro e seus
Anna Bella Geiger é uma das expoentes da primeira geração de artistas con-
desdobramentos futuros.
ceituais latino-americanos e pioneira da Fernando Cocchiarale curador, professor e crítico de arte
videoarte no Brasil. Professora e artista intermídia, está presente no acervo de instituições prestigiosas, como o Centre
so é o intuito desta coleção.
arte trabalho e ideal anna bella geiger
coleção arte trabalho e ideal
É fundamental, ainda, destacar que a atuação de Geiger
anna bella geigerarte,
org. fabiana de barros michel favre marcia zoladz
trabalho e ideal
Da lista dos integrantes da I Exposição Nacional de Arte Abstrata, realizada em 1953 no Hotel Quitandinha, em Petrópolis (RJ), constava o nome de uma jovem artista de 19 anos então desconhecida, Anna Bella Waldman. Entretanto, conforme os critérios então vigentes, o fato de ser uma pioneira do abstracionismo no país virtualmente a credenciava para uma longa e profícua carreira. Hoje, décadas depois dessa participação histórica, Anna Bella Geiger tornou-se uma das mais importantes artistas brasileiras da segunda metade do século XX e do início do século XXI. Logo após a Segunda Grande Guerra, quando floresceu o trabalho de Geiger, o reconhecimento da importância de um artista não era atributo do mercado, mas resultado de sua inserção em movimentos artísticos engajados em questões renovadoras da produção moderna do país e da reverberação de sua obra junto ao público e à mídia impressa. A obra abstracionista de Anna Bella em desenho e gravura
Pompidou, em Paris, e o Museu de Arte
começa a ser conhecida a partir dos anos 1950. Na década se-
Moderna de Nova York (MoMA). Sua
guinte seu trabalho torna-se figurativo (fase visceral) e assume
produção situa-se na fronteira entre a pintura, o desenho, o objeto e a gravura. Diversificados materiais, suportes e a
uma configuração próxima àquela das obras da nova figuração brasileira. Nos idos de 1970, produz sob a ressonância da arte
mescla de linguagens e técnicas incidem
conceitual, sobretudo no que se refere à experimentação de
em fases criativas distintas, que sempre
mídias técnicas – fotografia, xerox, vídeos, intervenções, entre
trazem a marca de um olhar crítico e
outras. Ultimamente, seu trabalho tem aprofundado o impulso
engajado sobre a realidade.
inquieto e crítico que desde o início caracteriza a poética de sua produção.
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