UM CIRCO DE RINS E FÍGADOS

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ISBN 978-85-9493-190-0

O TEATRO DE GERALD THOMAS ADRIANA MACIEL (ORG.)

GERALD THOMAS

O TEATRO DE

UM CIRCO DE RINS E FÍGADOS

O teatro de Gerald Thomas desnuda o sem sentido da condição humana, moldando o status quo em uma dramaturgia plástica e polifônica, que explora os limites dos corpos, redefine arcabouços linguísticos e leva a um nonsense que provoca e desnorteia o espectador. Suas criações manifestas no palco espelham um artista inquieto, autor cujas habilidades alcançam, além da dramaturgia, a cenografia, o figurino, a iluminação, o desenho e a música. Estabelecendo relações com nomes como Samuel Beckett, Thomas vale-se do riso e da violência, do escárnio e da brutalidade, do belo e do grotesco, para conceber em cena uma realidade deslocada, na qual figuramos perdidos e escamoteados pela própria estrutura absurda da vida em si. Neste livro, no qual temos acesso à amplitude de sua trajetória e de sua dramaturgia, os textos de suas peças surgem entremeados por imagens cênicas e críticas de época nacionais e internacionais, compondo uma obra de referência para a memória do teatro brasileiro.




SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO Administração Regional no Estado de São Paulo Presidente do Conselho Regional Abram Szajman Diretor Regional Danilo Santos de Miranda Conselho Editorial Ivan Giannini Joel Naimayer Padula Luiz Deoclécio Massaro Galina Sérgio José Battistelli Edições Sesc São Paulo Gerente Iã Paulo Ribeiro Gerente adjunta Isabel M. M. Alexandre Coordenação editorial Francis Manzoni, Clívia Ramiro, Cristianne Lameirinha Produção editorial Simone Oliveira Coordenação gráfica Katia Verissimo Produção gráfica Fabio Pinotti Coordenação de comunicação Bruna Zarnoviec Daniel


ADRIANA MACIEL (ORG.)

GERALD THOMAS

O TEATRO DE


© Adriana Maciel, 2019 © Gerald Thomas, 2019 © Edições Sesc São Paulo, 2019 Todos os direitos reservados Tradução do alemão Doris Buchmann Tradução do dinamarquês Flávio Soares de Barros Tradução do inglês Anthony Cleaver, Érico Assis Preparação Simone Oliveira, Viviane Zeppelini Revisão Elba Elisa Capa, projeto gráfico e diagramação TUUT Imagens de capa Ana Gabi (frente da capa); cenário (primeira orelha); e Ana Gabi, Beatrice Sayd e Isabella Lemos (segunda orelha), peça Dilúvio (2017), fotografias de Matheus José Maria Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Um1 Um circo de rins e fígados: o teatro de Gerald Thomas / Organização de Adriana Maciel. – São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2019. – 584 p. il.: fotografias. 978-85-9493-190-0 1. Teatro.  2. Teatro Brasileiro.  3. Gerald Thomas.  5. Peças de teatro.  6. Crítica de teatro.  7. Biografia.  I. Título.  II. Maciel, Adriana.  III. Sievers, Gerald Thomas.  IV.  Thomas, Gerald.

Edições Sesc São Paulo Rua Serra da Bocaina, 570 – 11º andar 03174-000 – São Paulo SP Brasil Tel. 55 11 2607-9400 edicoes@edicoes.sescsp.org.br sescsp.org.br/edicoes /edicoessescsp

CDD 792.981


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APRESENTAÇÃO IMPASSES DE UM TEATRO DE LUGAR NENHUM Danilo Santos de Miranda

12

PREFÁCIO AS ESCRITAS CÊNICAS DE GERALD THOMAS Adriana Maciel

18

INTRODUÇÃO UM ARTISTA EM PRIMEIRA PESSOA Dirceu Alves Jr.

28

NO LIMIAR DA NEGAÇÃO Nota sobre o método (contra)dramatúrgico de Gerald Thomas Flora Süssekind


56

DIÁRIO DE UMA PEÇA

60

HUNTING SEASON

66

CARMEM COM FILTRO 2

94

ELETRA COM CRETA

112

PRAGA

130

STURMSPIEL

154

MATTOGROSSO

168

THE FLASH AND CRASH DAYS

182

M.O.R.T.E.

212

O IMPÉRIO DAS MEIAS VERDADES

226

UNGLAUBER

256

CHIEF BUTTERKNIFE

292

NOWHERE MAN

314

VENTRILOQUIST

340

UM CIRCO DE RINS E FÍGADOS

376

BAIT MAN


388

ASFALTARAM A TERRA (TETRALOGIA)

392

ASFALTARAM O BEIJO

402

BRASAS NO CONGELADOR

426

UM BLOCO DE GELO EM CHAMAS

458

TERRA EM TRÂNSITO

472

KEPLER, THE DOG

488

GARGÓLIOS

520

ENTREDENTES E/OU JU-DEUS

556

DILÚVIO

582

CRÉDITOS DAS IMAGENS

583

SOBRE A ORGANIZADORA


IMPASSES DE UM TEATRO DE LUGAR NENHUM APRESENTAÇÃO

DANILO SANTOS DE MIRANDA Diretor Regional do Sesc São Paulo


apresentação – 8  |  9

Gerald Thomas escolheu o teatro. O diretor, como um acelerador de partículas, concentra sua energia no espaço cênico, organiza (e desorganiza) a materialização de suas ideias, não com a rigidez de um físico, mas com a persistência dos inquietos. As respostas são meticulosamente inacabadas, emergem e se transformam no palco. Qualquer tentativa de descrever um método ou dramaturgia seria já a impossibilidade de fazê-lo. Mas alguns adjetivos não podem ser refutados: Gerald é crítico por natureza, e suas obras derivam de movimentos incansáveis de criação cênica, forjados com intensidade nas relações com os atores e com o público. Por vezes incompreendido, o dramaturgo não poderia fazer concessões em favor de sua obra, uma vez que é indissociável dela. Neste Um circo de rins e fígados: o teatro de Gerald Thomas, estão compiladas suas peças mais emblemáticas, em um esforço de retrospectiva e difusão de sua obra. Para o autor, e também para dezenas de profissionais que vivenciaram sua dramaturgia, este livro é uma oportunidade de pensar uma trajetória possível e suas descontinuidades estratégicas. Thomas deseja que suas peças sejam reencenadas, que transcendam a si mesmas, não como desligamento, mas como ponte para conectá-lo com outros corpos e espaços. Nesta publicação, foi reunida ainda uma fortuna crítica de suas peças, dispersa em jornais, sites e materiais de divulgação


dos vários países em que Gerald Thomas se apresentou, compondo um panorama diversificado de interpretações que ajudam a compreender sua profícua produção. O Sesc São Paulo faz parte dessa trajetória, tendo recebido em seus palcos várias de suas peças, como Um circo de rins e fígados, que dá nome a este livro e que foi escrita para Marco Nanini. Nela, o diretor coloca em evidência circunstâncias que parecem sem solução, como a condição do ator ou os problemas brasileiros que se repetem de geração a geração. Valendo-se de sua experiência internacional, Gerald Thomas propõe, por meio do teatro, reflexões dinâmicas sobre problemas contemporâneos amiúde pensados em chaves circunscritas aos campos da economia e da política. Como afirmou em uma entrevista em Nova York: “Uma resposta anormal para uma situação anormal é apenas normal”, colocando em questão a suposta naturalidade dos acontecimentos e das decisões que afetam os indivíduos sem que eles próprios tomem conhecimento das origens desses eventos. Nesse sentido, respostas incomuns são mais do que necessárias, e poucos sabem, como esse diretor – brasileiro do mundo –, oferecê-las de modo imprevisível.


apresentação – 10  |  11


AS ESCRITAS CÊNICAS DE GERALD THOMAS PREFÁCIO

ADRIANA MACIEL


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A circus situation: era assim que John Cage se referia a processos nos quais diferentes linguagens artísticas estivessem envolvidas, simultaneamente, interferindo umas nas outras, atrapalhando umas às outras, ressignificando-se. Gerald Thomas, ao longo de toda a sua carreira, vem organizando espaços cênicos nos quais as linguagens se atravessam, interrompendo linearidades discursivas, quebrando sentidos, misturando-se na constituição de narrativas provocativas e instigantes. A vida é o caos da cena e se reafirma na potência das situações circenses. Um circo de rins e fígados: o teatro de Gerald Thomas é um livro sobre processos, e é, ele também, mais um processo – a reinscrição de performances múltiplas organizadas pelo registro e pelo apagamento da ação do tempo. Peças, textos críticos, observações técnicas, ideias, silêncios e imagens de diferentes tempos e lugares partilham o mesmo espaço como escrituração de obras encenadas e, também, como atualização de um modo de fazer teatral iconoclasta, que mantém a provocação e o paroxismo como forças motoras da interpretação. Quando Gerald me chamou para organizar o livro com suas peças, aceitei entre animada e assustada. Adoro trabalhar com ele, é intenso e extremamente estimulante. Já tínhamos trabalhado juntos em seu livro de desenhos, Gerald Thomas: arranhando a superfície (2012). Ali, tive contato com seu pensamento fortemente visual, com a deglutição de suas


influências nos traços que, muitas vezes, se transformam em cena, com a precisão e a vitalidade que os caracterizam. Provocadores, os desenhos esboçam, entre tantas outras coisas, o horror e o trágico, e os levam, muitas vezes, para bem perto do riso, estruturando um espaço cênico no papel. Essa é uma das marcas de Gerald em tudo o que faz, estabelece um espaço cênico – no palco e fora dele. A realidade está sempre a um palmo do chão, pronta para desabar, assim como sua ficcionalização. Um livro com as suas peças é, também ele, uma encenação. Juntar o material e organizá-lo não foi uma tarefa fácil. Foram mais de dois anos de trabalho, e agradeço aos parceiros André Bortolanza, Bete Coelho, Marcos Azevedo e Steve Berg, que foram fundamentais no processo de pesquisa. Gerald não é um arquivista da própria obra. Textos, fotos, áudios espalham-se entre casas, depósitos e computadores, ficam no tempo e, quando é possível retomá-los, reinscrevem-se no presente sob o olhar arguto do autor. Entre teatros, cidades e línguas, o encenador de si mesmo, como ele diz, é um homem do terreno baldio. Levanta o circo, sobe a lona, abre a cena e segue na ocupação de outros territórios, produzindo e desfazendo sentidos. Entre baldeações, muito fica pelo caminho. Para o autor, é o presente que importa. O teatro de Gerald Thomas é um teatro de gestos e fragmentos, cujo sentido se expande entre todos os elementos que compõem a cena. Um terreno no qual a desordem e a diluição de identidades se contaminam. O encenador coloca em movimento formas expressivas norteadoras do século XX, atualizando-as. Duchamp, Wagner, Kafka, Saul Steinberg, Beckett, Schoenberg, Oiticica, entre muitas outras referências, participam não como inventário da cultura, mas como vetores que, mesclados às suas próprias criações, organizam um repertório que age provocativamente na desestabilização de consensos. Gerald escreve e reescreve, sempre. Sua escrita – e chamo aqui de escrita a toda inscrição cênica (texto, iluminação, trilha sonora, corpo e movimentos, cenários e desenhos) – é um gesto contínuo de repetição e invenção. Cada uma das expressões artísticas dá sentido à cena; o texto é mola propulsora das montagens, mas dificilmente se poderia pensar que toda a estrutura vem dele. Os registros cênicos, sejam em textos ou imagens, valem como


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instantâneos, índices de uma realidade só possível no presente de cada apresentação. Este livro reúne grande parte dos textos teatrais do autor: são 24 peças entre as 87 encenadas em 45 anos. Na escolha do material, não entraram as adaptações e as óperas; decidimos que apenas as peças escritas por Gerald estariam no volume. Sua memória é impressionante: mesmo depois de muitos anos, ele sabe exatamente o que motivou cada cena e o sentido de cada linguagem trabalhada no palco, do cenário sempre rigoroso à trilha sonora, que muitas vezes conta com sua performance ao vivo. Na reconstituição de partes perdidas, isso foi fundamental. Nem todas as peças escritas e encenadas ao longo desses anos estão no livro, já que alguns poucos textos não puderam ser recuperados. Cada peça se apresenta de forma particular; há um modo de inscrição que difere a cada montagem. Como muita coisa ficou pelo caminho, os textos de Eletra com Creta, O império das meias verdades e Mattogrosso não estão completos, mas mesmo assim optamos por mantê-los no livro por sua importância. Eletra com Creta e Mattogrosso são tours de force no repertório de Gerald e, em o Império das meias verdades, ele se desfaz do véu que cobria as cenas, à frente do palco. Os trechos mantidos dão a medida desses trabalhos. Na encenação do livro, a situação de circo carrega, simultaneamente, todo o rigor e toda a perfeição técnica que seu teatro exige. Nos anos 1980, o diretor começou a trabalhar com Beckett, adaptando alguns de seus novos textos para o teatro. Entre eles, All Strange Away e That Time. Em That Time, há Julian Beck, do Living Theatre, como ator principal, em sua única atuação fora da companhia. A peça é sobre um homem que está morrendo e ouve, simultaneamente, seu passado em três vidas diferentes. Julian também estava morrendo. A vida se desdobrava na cena em um espelhamento geométrico. Essa situação marcou Gerald profundamente. Cinco anos mais tarde, em The Flash and Crash Days, ele colocou em cena Fernanda Montenegro e Fernanda Torres como mãe e filha. Mais uma vez, a vida invadiu a cena, num jogo especular que nada tem de realista. Desde então, de diferentes maneiras, o diretor trabalha esse espelhamento, com a vida se dobrando na cena, a realidade agindo no palco. Não se


trata da vida representada, mas de uma dobra que atua desde a concepção do espetáculo. Gerald trabalha não com a representação, mas com a interpretação, com a metáfora e com a metalinguagem. As peças são feitas no presente, para o presente. O autor dispõe da realidade que o cerca, transformando-a em elemento cênico. Ele e suas histórias pessoais inserem-se nas narrativas. O jogo que propõe não é o da dicotomia entre ficção e realidade, mas o da impossibilidade de distinção. De modo geral, com poucas exceções, os personagens levam os nomes das atrizes e dos atores. O conceito de personagem se suspende no entrelugar em que Gerald trabalha. Muito da situação real dos atores constrói, de modo ficcional, a narrativa. Os escombros do mundo envolvem o teatro de Gerald, num misto de escracho, humor e rigor. Diary of a play (Diário de uma peça) abre o livro. O texto escrito em inglês é de 1973. Gerald tinha 19 anos e já encenava textualmente questões que estendem-se até hoje. “É um território de inícios. Obrigações. Tentativa e erro.” As peças são aqui apresentadas em ordem cronológica e, junto a cada uma delas, há imagens e textos críticos. Dilúvio, espetáculo que estreou no palco do Teatro Sesc Anchieta, em São Paulo, em novembro de 2017, fecha o livro, com a inquietação e o vigor que o teatro de Gerald mantém. Um circo de rins e fígados: o teatro de Gerald Thomas é um importante documento para a história do teatro e é, também, a possibilidade de acompanhar, no desenrolar do tempo, o fio que amarra e identifica sua produção teatral em voltas circulares, sempre esgarçando a linguagem. O livro dá a dimensão da relevância de seu trabalho e afirma o que, diante do impacto das apresentações, talvez passe despercebido: a potência dos textos. Fora do palco, as escritas cênicas de Gerald concentram seu aspecto performático, e seguem em processo, movimentando dissonâncias – a circus situation, na mesa do médico legista, com todos os seus rins e fígados expostos.


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ISBN 978-85-9493-190-0

O TEATRO DE GERALD THOMAS ADRIANA MACIEL (ORG.)

GERALD THOMAS

O TEATRO DE

UM CIRCO DE RINS E FÍGADOS

O teatro de Gerald Thomas desnuda o sem sentido da condição humana, moldando o status quo em uma dramaturgia plástica e polifônica, que explora os limites dos corpos, redefine arcabouços linguísticos e leva a um nonsense que provoca e desnorteia o espectador. Suas criações manifestas no palco espelham um artista inquieto, autor cujas habilidades alcançam, além da dramaturgia, a cenografia, o figurino, a iluminação, o desenho e a música. Estabelecendo relações com nomes como Samuel Beckett, Thomas vale-se do riso e da violência, do escárnio e da brutalidade, do belo e do grotesco, para conceber em cena uma realidade deslocada, na qual figuramos perdidos e escamoteados pela própria estrutura absurda da vida em si. Neste livro, no qual temos acesso à amplitude de sua trajetória e de sua dramaturgia, os textos de suas peças surgem entremeados por imagens cênicas e críticas de época nacionais e internacionais, compondo uma obra de referência para a memória do teatro brasileiro.


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