Diogo Bercito Jornalista e mestre em estudos árabes e islâmicos
Chase F. Robinson
O historiador Chase F. Robinson é doutor pela Universidade de Harvard e presidente do centro de pós-graduação da Universidade da Cidade de Nova York. De 1993 a 2008, foi professor de história islâmica no colégio Wolfson, em Oxford, Inglaterra. É autor de diversos livros sobre o islã, dentre eles Empire and Elites after the Muslim Conquest (2000), Islamic Historiography (2002) e o primeiro volume de The New Cambridge History of Islam (2010).
Civilização islâmica em trinta biografias
Mamede Mustafa Jarouche Professor de língua e literatura árabe na Universidade de São Paulo (USP) e tradutor. Traduziu o Livro das mil e uma noites para o português e o romance Um copo de cólera, de Raduan Nassar, para o árabe.
Esta extensa obra traz a biografia de trinta personagens fundamentais do que o autor Chase F. Robinson descreve como a “civilização islâmica”. A seleção tem como objetivo apresentar a variedade dessas culturas, que se estenderam por longos séculos e por um grande território, outrora abrangendo desde a península Ibérica até a Ásia Central. Assim, o autor apresenta os personagens óbvios da história islâmica – como o profeta Muhammad e o califa ‘Ali – e também conta sobre o pensador medieval al-Ghazali e até mesmo sobre figuras menos emblemáticas, como o médico Abu Bakr al-Razi e o mercador Abu al-Qasim Ramisht. Estão contemplados ainda o herói clássico Saladino e o poeta sufista Rumi. Quando descrito por sociedades distintas, o islã costuma evocar a imagem de véus cobrindo o rosto de suas mulheres e turbantes adornando a cabeça de seus homens. Dificilmente, no entanto, essa religião remete o espectador aos retratos nítidos de seus personagens para além dos estereótipos. Aqui, temos em mãos a oportunidade de conhecer os grandes nomes que moldaram um sofisticado e variado pensamento desde o século VII, determinando, inclusive, o que seria a cultura e a ciência na Europa, que se beneficiou largamente das obras e dos saberes de diversos intelectuais e pensadores muçulmanos.
Os primeiros mil anos
Este livro tem como mérito, além da erudição que não fatiga, o esforço honesto, isento da condescendência tão comum em trabalhos orientalistas, de compreender essa grande alteridade que é o mundo do islã.
Civilização islâmica em trinta biografias Os primeiros mil anos Chase F. Robinson
Neste trabalho admirável, o historiador norte-americano Chase F. Robinson traça a história do Oriente Médio entre os séculos VII e XVI da era cristã, tendo como ponto de partida trinta biografias. Por meio da sucessão de eventos que caracteriza e determina cada uma delas, delineia o panorama do período em que essas personalidades viveram. Sua escolha recaiu sobre aqueles cuja vida foi plena de história por motivos de primazia política, intelectual, religiosa e cultural e que tiveram um trajeto ímpar cuja exemplaridade ajuda a sintetizar a história do islã em seu primeiro milênio. O livro é dividido em quatro partes: a primeira, englobando o período de 600 a 850 d.C., corresponde à fase de constituição e formação; a segunda, de 850 a 1050 d.C., à fase de consolidação de uma autêntica comunidade islâmica, durante a qual se forjaram os laços que, em sua maioria, duram até hoje; a terceira, de 1050 a 1250 d.C., à fase que o autor denomina “síntese provisória”, e que é contemporânea, grosso modo, não somente das Cruzadas como também do declínio dos árabes como etnia dominante no mundo do islã; e a quarta, de 1250 a 1525 d.C., à fase que em mais de um sentido consolida o gradual enfraquecimento do mundo do islã face à Europa, prenunciando uma série de conflitos nos séculos seguintes. Foram biografados vinte e seis homens e quatro mulheres. Num rol de evidente prevalência masculina, três das personalidades femininas ganham destaque: ‘A’isha, a esposa preferida do profeta Muhammad e que também foi líder política e militar; Rabi‘a al-‘Adawiyya, poeta mística adepta do amor divino e cujo nome de difícil pronúncia não impede que seja muito festejada em círculos sufis ocidentais; e Karima al-Marwaziyya, especialista nos hadiths (tradições) do profeta.
Civilização islâmica em trinta biografias
Descrição do zodíaco em um manuscrito sobre autômatos e relógios d’água de al-Jaziri, século XIV.
Chase F. Robinson
Civilização islâmica em trinta biografias Os primeiros mil anos
Sumário Prefácio....................................................................................................................................... 6 Convenções, abreviações e equívocos................................................................................... 8 Introdução.. .................................................................................................................................... 10
Parte 1
Islã e império 600–850........................................................................................... 13 1. Muhammad, o Profeta (632)...................................................................................... 20 2. ‘Ali, primo, califa e precursor do xiismo (661).......................................................... 31 3. ‘Ā’isha, esposa do Profeta (678)................................................................................... 37 4. ‘Abd al-Malik, construtor do califado (705)........................................................... 42 5. Ibn al-Muqaffa‘, tradutor e ensaísta (759)............................................................. 48 6. Rabi‘a al-‘Adawiyya, asceta e santa (801).. .......................................................... 54 7. al-Ma’mun, califa-patrono (833)................................................................................ 60
Parte 2
A comunidade islâmica 850–1050............................................................. 69 8. ‘Arib, cortesã de califas (890)....................................................................................... 74 9. al-Hallaj, “a Verdade” (922).. ......................................................................................... 79 10. al-Tabari, racionalista tradicionalista (923).. ........................................................... 85 11. Abu Bakr al-Razi, médico e pensador livre (925 ou 935)................................... 90 12. Ibn Fadlan, intrépido emissário (fl. século X)......................................................... 96 13. Ibn Muqla, vizir, escriba e calígrafo? (940).. .......................................................... 100 14. Mahmud de Ghazna, conquistador e patrono (1030)....................................... 107 15. al-Biruni, catalogador da natureza e da cultura (c. 1050)................................... 112
Parte 3
Uma síntese transitória 1050–1250.......................................................... 119 16. Ibn Hazm, polímata, polemista (1064). . .................................................................. 128 17. Karima al-Marwaziyya, especialista em hadiths (1070)............................... 134 18. al-Ghazali, “renovador” do islã (1111)..................................................................... 139 19. Abu al-Qasim Ramisht, mercador milionário (c. 1150). . ............................... 148 20. al-Idrisi, cartógrafo cosmopolita (1165).................................................................... 153 21. Saladino, herói anticruzados (1193)......................................................................... 160 22. Ibn Rushd (Averróis), monoteísta aristotélico (1198)....................................... 169
Parte 4
Ruptura e integração 1250–1525................................................................. 178 23. Rumi, “poeta” sufi (1273)............................................................................................. 188 24. Rashid al-Din, médico, cortesão e historiador do globo (1318). . ....................... 194 25. al-Hilli, patrono na ascensão xiita (1325)................................................................ 200 26. Ibn Taymiyya stubborn reactionary (1328)......................................................... 205 27. Timur, ladrão de ovelhas, conquistador do mundo (1405).................................... 212 28. Ibn Khaldun, sociólogo e historiador (1406). . ...................................................... 220 29. Mehmed II, conquistador e homem renascentista (1481)................................... 229 30. Xá Isma‘il, carismático esotérico (1524)................................................................. 238
Glossário. . ............................................................................................................................... 247 Notas......................................................................................................................................... 252 Referências. . ............................................................................................................................ 259 Lista de ilustrações............................................................................................................. 266 Índice remissivo................................................................................................................... 267
Pintura otomana em miniatura do século XVI mostrando os primeiros quatro califas que governaram após a morte de Muhammad.
Prefácio Os sarracenos são os otomanos? Não, os sarracenos são os mouros. Os otomanos são os turcos. Assim se lê, em sua totalidade, a micro-história Learning Medieval History (Aprendendo História Medieval), de Lydia Davis. De acordo com o uso convencional (e agora obsoleto), os “sarracenos” são “mouros” e os otomanos são turcos. No entanto, estudar a história é mais do que distribuir rótulos, como nos mostra a sátira de Davis. Ao menos para mim, a história é um exercício de imaginação crítica e, no caso do Oriente Médio, esse exercício se tornou ainda mais importante. Isso porque o passado islâmico nunca foi tão importante como agora, quando guerras civis dividem sociedades em linhas sunitas e xiitas, militantes revivem tradições do jihad e vestem o manto de califas, e aqueles dentro e fora do poder fazem diversas alegações (frequentemente descabidas) sobre o que constitui o “verdadeiro islã”. Qualquer pessoa atenta aos eventos ocorridos no Oriente Médio contemporâneo talvez saiba intuitivamente que a história – tanto a real como a imaginária – exerce uma duradoura e (talvez) indevida influência sobre a política e a cultura da região; mal-entendidos sobre essa história também condicionam as percepções do Ocidente em relação ao Islã e aos muçulmanos. O presente não é meramente moldado pelo passado: ele é constituído por alegações conflituosas sobre o passado. Tal como Salman Rushdie coloca, somos todos “irradiados” por ele1. Como devemos julgar as alegações feitas sobre o passado islâmico? Mais especificamente, como se faz para distinguir a fantasia e o mito, por um lado, da história genuína (ou ao menos reconstruída de acordo com os padrões modernos da crítica acadêmica), por outro? Escrevendo este livro, minha esperança é disponibilizar um conhecimento que costuma ser especializado e inacessível, oferecendo assim algumas respostas, e isso em conformidade com a seguinte tradição profética transmitida com certa frequência: “quando Deus deseja o bem de alguém, dá a ele entendimento religioso”. Nas próximas linhas, espero abordar alguns dos mitos e mal-entendidos relacionados àquelas categorias dignas de aluno do primário às quais Davis se refere. Sou grato a Anna Akasoy, Jere Bacharach, Paul Cobb, Matthew Gordon, David Morgan e John Robinson por terem lido e aperfeiçoado este livro. Ian VanderMeulen fez um trabalho preparatório no início que foi imprescindível. Estou em débito com Colin Ridler, da Thames & Hudson, que lançou esse barco
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encalhado ao mar, e a Jen Moore, que o conduziu ao porto em segurança. Julia MacKenzie melhorou o texto de inúmeras maneiras e Sally Nicholls fez um trabalho exemplar pesquisando as gravuras. Por fim, dois leitores anônimos fizeram comentários pertinentes, e um deles notou algumas gafes. Eu lhes agradeço. Dedico o livro ao meu próprio Jovem Turco2.
Convenções, abreviações e equívocos Trabalhos acadêmicos sobre o Islã e a história islâmica tipicamente seguem convenções linguísticas e cronologia que são obscuras para quem não é especialista. Por exemplo, o nome do renomado intelectual al-Ghazali, que nós conheceremos mais à frente, geralmente é reproduzido como al-Ghazālī, e suas datas de nascimento e morte assinaladas como 450-505 AH/1058-1111 AD. As letras transliteradas indicam as vogais longas na escrita original em árabe (o persa e o turco, as duas outras línguas relevantes aqui, têm seus próprios sistemas de transliteração). “AH” é a abreviação de anno hegirae, “o ano da Hijra”, convenção do latim que ajuda a compor a obscuridade de um calendário lunar árabe-islâmico diferente do modelo solar com o qual a maioria dos leitores deste livro está familiarizada. Em nome da clareza e da brevidade – e talvez até como ato de misericórdia –, dispensarei essas e muitas outras convenções acadêmicas. Entretanto, eu não as abandonarei completamente. Alguns simplificariam Ibn Sa῾ad para a forma Ibn Saad, e ‘Ā’isha para Ayisha. Isso seria ir longe demais do meu ponto de vista; portanto, mais à frente se encontrará Ibn Sa῾ad e ‘Ā’isha. Alguns leitores gostam de saber como são os sons das letras que eles estão lendo, tais como “kh” (o “ch” das palavras inglesas loch e chutzpah), “gh” (próximo de um gargarejo), ‘ (produzido por uma constrição da garganta) e ’ (uma pausa glotal, como na pronúncia cockney da palavra inglesa bottle, que seria bo’uhl). No caso de figuras que possuem uma versão latinizada ou anglicizada, como Maomé e Algazel, geralmente adoto formas simplificadas do árabe: Muhammad e al-Ghazali. Do mesmo modo, usarei Qur’ān em vez de Corão. Com relação aos nomes não árabes, eu os simplificarei: puristas transliterariam o nome do governante Ilkhanida, que reinou de 1304 a 1316, como Öljeitu, mas eu ficarei com Uljeitu. Um consolo para os puristas é que estou fazendo a minha parte para levar o mundo de Gêngis Khan para Chinnggis Khan. Há outras complicações e concessões. Nomes muçulmanos desse período tipicamente codificam relações genealógicas, tal como “filho de” (“ibn”, frequentemente abreviado “b.”) e “pai de” (“abu”). Em alguns casos, como o 8
de Ibn al-Muqaffa῾, literalmente “Filho de al-Muqaffa῾”, essas partículas se integraram ao nome. Na verdade, os nomes são frequentemente problemáticos: veremos que ‘Ali foi o filho de alguém chamado Abu Talib e o pai de um indivíduo chamado al-Hasan; ocorre que ele é conhecido como “Ali, filho (b.) de Abu Talib” e “Ali, pai (Abu) de Al-Hasan” (ele também é chamado “Pai do Solo” e ninguém sabe o porquê). Embora os muçulmanos naturalmente usem seus próprios termos geográficos, na maior parte das vezes eu usarei equivalentes modernos. Os leitores devem estar cientes de que a nomenclatura das nações modernas pode induzir ao erro: a República Árabe da Síria abrange apenas uma parte da “Síria” histórica, que também englobava áreas que agora pertencem ao Líbano, à Jordânia e à Turquia. Como ficará claro, muita coisa permanece desconhecida sobre várias personalidades aqui tratadas. Por exemplo, infâncias geralmente se perdem na história e, conquanto em regra as datas de falecimento sejam bastante precisas, as datas de nascimento raramente o são. O fato é que a maioria das pessoas não nascia famosa e, a não ser que sua família ou ao menos seus pais fossem notáveis de uma forma ou outra, suas datas de nascimento eram habitualmente esquecidas. Rumi (f. 1273), cujo pai era um erudito e místico bem conhecido, é a exceção que comprova a regra. Às vezes, o silêncio era até preenchido por lendas. Podemos ter certeza de que Timur morreu em 17 ou 18 de fevereiro de 1405, mas notaremos que a sua data de nascimento foi inventada. Portanto, vou dispensar as datas de nascimento. No entanto, os problemas não acabam no caso das datas. Os dados comprobatórios destas biografias – sobretudo relatos históricos, biográficos e literais – são muitas vezes tão inexatos quanto exíguos. Como memória e registro são frequentemente misturados a lendas, mitos e mal-entendidos, nós geralmente sabemos muito mais sobre a vida póstuma dos primeiros muçulmanos do que sabemos sobre suas vidas reais. Veremos que Rabi‘a al‘Adawiyya foi uma asceta do século oitavo, mas o retrato que a construiu foi póstumo e pertence sobretudo aos séculos XII e XIII. Quanto mais recente a figura, mais completos e mais precisos são os registros históricos, mas, mesmo nesses casos, fama e infâmia significam distorção, como ocorre atualmente. Uma consideração final: o que se segue é um trabalho de síntese e interpretação – com todos os riscos que isso implica. Como Eduard Sachau escreveu em sua tradução da incrivelmente erudita Cronologia das Antigas Nações, de al-Biruni (veja abaixo), “mesmo na mais simples narrativa histórica, o editor e o tradutor podem, lamentavelmente, desviar-se em suas interpretações, caso haja algo errado com o método utilizado em suas pesquisas”1. Em um trabalho com tamanha abrangência e escopo, seria pura soberba de minha parte imaginar que eu não tenha me desviado.
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Introdução Uma das mais marcantes características da “civilização” islâmica (nos debruçaremos sobre essa questão dentro em pouco) é a escala e variedade da aprendizagem. “Não há limites para fazer livros”: eis como o Eclesiastes (12:12) descreve o problema que muçulmanos cultos enfrentariam no decorrer de sua história; havia muito para aprender em bem pouco tempo, e por mais que os livros possam ser resumidos, compendiados e condensados, o conhecimento nunca para de crescer. Cada geração produzia autores ambiciosos com novas ideias ou formas originais de reciclar as velhas. Os livros eram de muitos, muitos tipos – abordando tópicos que iam da agricultura, álgebra e alquimia até o zodíaco, a zoologia e a heresia zoroastrista. Um dos mais distintos gêneros literários era o compêndio de verbetes biográficos ordenado cronológica ou alfabeticamente, cujo número podia chegar a centenas de milhares. Alguns desses eram restritos a profissões específicas ou escolas de pensamento, tal como recitadores do Qur’ān, juristas que pertenciam a uma determinada escola de pensamento jurídico, filósofos ou sufis, para mencionar apenas um punhado de exemplos. Um dos primeiros casos é o de um erudito iraquiano chamado Ibn Sa‘d (f. 845). Seu Livro das gerações começa com uma longa biografia de Muhammad; em seguida, num total de sete volumes, reúne informações sobre seus contemporâneos e seguidores, a maioria dos quais nós chamaríamos de escolásticos amadores ou profissionais, especialmente aqueles que transmitiram tradições proféticas – histórias, máximas e opiniões expressas por ou sobre Muhammad: foram eles que compuseram os blocos constitutivos da história, da ética e da lei islâmica. Outros livros eram genéricos, oferecendo aos leitores centenas ou milhares de observações sobre homens (e ocasionalmente mulheres) de uma variada gama de profissões, ocupações e carreiras – não apenas sobre estudiosos, mas também poetas, governantes, médicos e muito mais. O mais célebre exemplo é o de um nativo de Damasco chamado Ibn Khallikan (f. 1282), cuja obra Obituários dos notáveis reúne aproximadamente 5.500 verbetes biográficos – “notável” aqui significando simplesmente “famoso”. Nada diferente de um “Quem é quem”. Vindas de praticamente todos os cantos do mundo islâmico e de cada um dos séculos do islã, essas figuras tinham pouco em comum além do status de celebridade. Além de exibir suas inesgotáveis energias, o que tais autores-compiladores estavam tentando fazer? Nem sempre fica claro, mas ao menos um objetivo é constantemente explicitado: a vida de muçulmanos de sucesso devia ser preservada e narrada porque contava histórias, algumas inspirado10
ras, outras disciplinadoras e de humildade, mas todas edificantes. Em outras palavras, vidas exemplares ofereciam lições para todos os muçulmanos. Meu objetivo não é inteiramente diverso. Reuni trinta breves biografias que podem indicar a escala, diversidade e criatividade da civilização islâmica no decorrer de um milênio. Eu gostaria de enfatizar desde o início a diversidade e a criatividade, que foram geradas em grande medida por essa escala – não apenas pelo tamanho das instituições, cidades, riquezas, redes de aprendizado, até mesmo livrarias –, embora houvesse também ambições políticas e intelectuais. Veremos que, para alguns pensadores muçulmanos, o céu – e não Deus – era o limite. Ao usar os termos “diversidade” e “criatividade”, almejo capturar um amplo e inadequadamente reconhecido espectro de ideias e práticas sociais, além de estilos e compromissos pessoais. Havia legalismo e dogmatismo, claro, mas também havia hiper-racionalismo, ceticismo, inventividade, iconoclastia e individualidade excêntrica. Pois, para a civilização islâmica a ser aqui descrita, o dinamismo, a experimentação e os riscos eram a regra. Parei no início do século XVI não porque essa diversidade e criatividade tenham secado ou essa civilização tenha ficado apática, mas porque as estruturas econômicas e o panorama político do Oriente Médio pré-industrial começaram a sofrer grandes mudanças. Como resultado, as “sociedades modernas primordiais” ou simplesmente “sociedades modernas” que emergiram geraram formas culturais fundamentalmente diferentes. “Civilização” é um termo carregado de sentido, é claro. Algumas vezes, é utilizado de modo rigoroso ou polêmico pelos críticos de sociedades não ocidentais e suas culturas, os quais algumas vezes imaginam que as civilizações são monólitos, adjacentes e colidem como placas tectônicas, e que “o Ocidente” é distinto ou até mesmo único em suas tradições de liberdade, racionalismo e individualidade. Não é assim que eu uso o termo. O que indico aqui é a produtividade distinta, em experiências de vida e sobretudo alta cultura, dos projetos religiosos e políticos empreendidos pelos muçulmanos no decorrer de cerca de um milênio, que se estendeu do século VII ao XVI. As especificidades desse projeto foram de natureza política, militar e econômica – e muito será dito a seguir sobre aqueles que conquistaram e governaram, especialmente nas introduções de cada uma das quatro seções do livro. Ademais, tais condições explicam por que os muçulmanos descritos aqui provieram esmagadoramente de uma pequena minoria. Essa representatividade desigual é inevitável. Embora vivamos em uma era de grande e crescente desigualdade, note-se que em sociedades pré-industriais, com sua divisão entre oceanos de pobres produtores (especialmente camponeses, pastores, lavradores, servos e escravos) e pequenas ilhas de ricos consumidores, tal desigualdade era ainda mais extrema. Assim se constituía a
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elite capaz de produzir os homens exemplares, os notáveis, as estrelas, os poderosos e influentes. Claro que existem eventuais exceções, dotadas de singular genialidade, inteligência ou ambição que lhes permitem escapar da sua origem modesta. Mas não há como contornar a regra geral de que eram as famílias e os agregados com posses que reinvestiam e, portanto, reforçavam seu capital social, geração após geração, normalmente provendo sua prole com educação, vínculos sociais e riqueza. A elite muçulmana fez contribuições à civilização islâmica que foram desproporcionais ao seu número porque os seus membros podiam contar com tais recursos. Os leitores também devem ser lembrados de que categorias culturais usadas em dado momento pelos muçulmanos naturalmente divergem daquelas que são lugar-comum hoje em dia. Por exemplo, fazia pouco sentido falar de ficção há um milênio ou de “humanidades” (em oposição a “ciência”). Por essa mesma razão – a divisão entre o mundo pós-Iluminismo que conhecemos e a Eurásia impregnada de religião da era pré-industrial –, os leitores não familiarizados podem se surpreender com a força extraordinária que ideias e problemas religiosos exerciam sobre os homens (e uma pequena parcela de mulheres) com grande habilidade intelectual e ambição. Hoje em dia, tais homens seriam atraídos para um sem-número de áreas na academia, nos negócios ou nas artes criativas; naqueles tempos, eles eram atraídos pela teologia e legislação da mesma forma que o eram a outras disciplinas, como matemática, astronomia ou óptica, que hoje nós caracterizaríamos como ciência. Por fim, os leitores devem saber que as trinta biografias apresentadas aqui não gozam de consenso acadêmico nem são um “Quem é quem” no islã ou na história islâmica. Não existe esse consenso e não há nada de especial no número trinta. Embora a maioria dos nomes seja familiar aos especialistas, ao menos alguns serão novos. Em alguns poucos casos, rejeitei nomes óbvios em favor de nomes menos célebres. Também omiti alguns famosos para acentuar determinados temas, como a permeabilidade da civilização e o sopro da cultura: este livro não constitui um panteão de intelectuais muçulmanos. Seja como for, coletivamente estas trinta figuras podem oferecer o que eu espero que seja uma acessível introdução à civilização islâmica, a qual, com a sua diversidade extraordinária, permanece pouco entendida no mundo anglófono.
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Parte 1
Islã e Império 600-850
O islã nasceu no século VII no oeste da Arábia, quando alguns homens e mulheres aderiram à ideia de que Muhammad b. ‘Abd Allah era um profeta enviado por Deus. O islã está prosperando no século XXI: existem, no momento, cerca de 1,6 bilhão de muçulmanos, a grande maioria vivendo fora do Oriente Médio, especialmente no sul e sudeste da Ásia. Se medido pelo tamanho da população, o islã é atualmente a segunda maior religião global, atrás apenas do cristianismo, e, levando em conta o crescimento que teve no século XX e a projeção para o século XXI, pode-se dizer que é a mais bemsucedida das religiões do mundo. Quase 45 milhões de muçulmanos vivem atualmente na Europa, e algo em torno de 3,3 milhões nos Estados Unidos. Muito desse crescimento populacional ocorreu durante os últimos séculos, enquanto a civilização que irei descrever enraizou-se essencialmente no que hoje conhecemos como norte da África, Oriente Médio e Ásia Central. Através de conquistas, conversões e crescimento demográfico, os muçulmanos dominaram terras que se estendiam do Atlântico à Ásia Central, unidos de maneira mais ou menos firme dependendo das dinâmicas, em constante mutação, das trocas econômicas e da expansão e contração política. Como veremos, as conquistas dos séculos VII e VIII criaram impérios que unificaram a maior parte dessas terras em uma única comunidade política, mas essa união se desintegrou durante o século IX, em especial durante o X. Um império que se estendia pelo mundo foi eclipsado, dando 13
lugar a uma comunidade de estados islâmicos que compartilhavam, além da devoção ao islã como única religião de autoridade (ainda que diversificada), o uso de uma das línguas islâmicas no governo (especialmente o árabe, o persa e o turco), a alta cultura, as práticas ritualísticas e um histórico comum de poder exercido pelos califas, aqueles que governaram os grandes estados islâmicos no período inicial. Colocando de outra maneira, estados islâmicos entraram em ascensão e caíram, e as sociedades que eles dominavam estavam em constante mutação, porém, durante o período pré-industrial, os muçulmanos fizeram parte de um projeto comum de transmissão e desenvolvimento de uma cultura herdada do império. Seria útil começar entendendo como esse império surgiu.
Damasco como um modelo de mudança No ano 600, Damasco era uma cidade antiga e próspera. Auspiciosamente localizada nos limites do deserto sírio, a cerca de oitenta quilômetros do Mediterrâneo, há muito servia como ponto de encontro do comércio, ligando os mercados do Oriente Médio com as partes mais a norte e a oeste do Mediterrâneo. Os exércitos de Alexandre, o Grande, já a haviam conquistado uma vez, mas, durante os 250 anos anteriores, Damasco havia passado por uma mudança radical: tornara-se progressivamente mais monoteísta, a multiplicidade de deuses romanos e do Oriente Médio sendo eclipsada pela insistência do cristianismo na crença em um único deus encarnado em Cristo. O cristianismo havia nascido na Palestina e na Síria, e imperadores cristãos agora governavam a partir do estreito de Bósforo. O primeiro desses imperadores, Constantino (f. 337), chamou de “Nova Roma” a cidade que enfim receberia o seu nome: hoje em dia, os historiadores chamam-na de Constantinopla, e o estado romano tardio de Bizâncio nós conhecemos como Istambul. Damasco era, então, uma capital provinciana daquilo que se tornara um império radicalmente cristão, e cujo direito de governar era legitimado não apenas por causa da sua ligação com Roma, mas também por sua missão de conversão. Em algumas partes do Império Bizantino, a conversão ao cristianismo ainda era levada a cabo, e Constantinopla estava frequentemente em guerra com o Império Sassânida, localizado no Iraque e no Irã, e se aliava aos clérigos zoroastristas. Em 622, o imperador bizantino Heraclius (f. 641) lançou o que seria a última de uma longa série de campanhas contra os sassânidas, que haviam ocupado boa parte do Oriente Médio (incluindo Damasco e Jerusalém) por quase uma década. Sua guerra não foi nada menos do que uma cruzada que pretendia expulsar os sassânidas e restaurar o domínio cristão na Terra Santa. 14
Parte 1
Mesquita Omíada, em Damasco, na Síria, construída por al-Walid (governo 705-15), filho de ‘Abd al-Malik.
Ao mesmo tempo que Heraclius tomava o poder em Constantinopla, uma figura chamada Muhammad começava a pregar um monoteísmo alternativo, mais radical, no oeste da Arábia: o islã, literalmente “submissão à vontade de Deus”. Sua pregação inspiraria crenças e ações que remodelariam o mundo comum da Antiguidade tardia. Rumores de eventos longínquos podem ter chegado a Damasco no início da década de 620; devem ter circulado pela cidade do meio para o fim dessa década, quando exércitos pró-Muhammad chegaram ao sul da Síria e, em 636, seus habitantes testemunharam a entrada dos exércitos árabes na cidade. Soldados tribais muçulmanos a tinham cercado e, surpreendentemente, os exércitos bizantinos ofereceram pouca resistência. Invasores árabes não eram incomuns, e é provável que os bizantinos tenham subestimado a determinação e as ambições desses árabes muçulmanos. Por mais que os damascenos tenham desejado que o domínio muçulmano fosse temporário – havia boas razões para pensar que as tropas derrotadas de Heraclius voltariam de Constantinopla para restaurar a antiga Islã e Império 600-850
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ordem –, o domínio islâmico acabou se consolidando e se concentrando na Síria. Em 661, o governador muçulmano da Síria se tornou o califa (a autoridade suprema) e fez de Damasco, até então uma cidade provinciana moderadamente importante localizada nos limites do império Bizantino, a capital de um império islâmico. A essa altura, os exércitos muçulmanos haviam feito os exércitos sassânidas no Iraque e no Irã se dispersarem, colocando um fim a 400 anos de domínio sassânida. Eles também haviam derrotado exércitos bizantinos em outros lugares do Oriente Médio e em muitos do norte da África, reduzindo Bizâncio a cerca de um terço do seu tamanho anterior. A ordem política que durara por volta de dezesseis gerações de damascenos – do início do século III até o começo do VII – havia desmoronado no espaço de duas gerações. Até meados do século VIII, Damasco foi o mais próximo que os califas estiveram de ter uma capital, e antes naquele século já havia despontado o símbolo mais contundente da mudança na roda da fortuna: em torno de 706, a maior parte da catedral da cidade, originariamente construída no lugar onde ficava o templo a Júpiter, o deus romano, foi demolida e substituída por uma mesquita congregacional. Ela seria chamada de Mesquita Omíada, em referência à dinastia governante de mesmo nome (governo 661-750); os créditos por essa construção geralmente são atribuídos a um califa chamado al-Walid, filho de ‘Abd al-Malik. Como veremos, é a ‘Abd al-Malik que o Estado omíada deve muito de seu sucesso; de fato, esse Estado foi, em vários aspectos, o escudo político para um empreendimento familiar dirigido por ‘Abd al-Malik, seus filhos e seus descendentes. A dinastia teve fim em 749-50, derrubada por uma revolução que instaurou a dinastia abássida no poder e acabou demonstrando os limites da política patrimonial de estilo árabe dos omíadas. O islã tinha desencadeado forças poderosas de integração, criatividade e cosmopolitismo, como bem ilustra o caso de Ibn al-Muqaffa‘. Al-Ma’mun, o sétimo califa abássida, nos permite vislumbrar uma tentativa sistemática de incorporar o racionalismo no coração da instituição governante. Ainda em pé no meio da velha Damasco, a Mesquita Omíada é um símbolo, tão bom quanto qualquer outro, do caráter transformador da nova ordem: a mesquita havia eclipsado a catedral, assim como a catedral um dia havia eclipsado o templo pagão. A história da mesquita de Damasco nos mostra, de fato, um padrão mais abrangente: em geral, os primórdios da história islâmica traçaram uma série de encadeamentos. Os primeiros muçulmanos beberam de fontes profundas de pensamento religioso e político, algumas das quais remontam ao período da antiguidade do Oriente Médio e ao período helenístico, e outras são mais rasas, ligadas a correntes dos 16
Parte 1
séculos VI e VII. O profeta Muhammad é um desses casos: ele se via como o mais recente (e possivelmente o último) de uma sucessão de profetas que remontam aos dias da Criação, quando Deus criou Adão, o primeiro profeta. Ainda assim, Muhammad também era um produto do seu próprio tempo, alguém que acelerou a conversão da Arábia ao monoteísmo, especialmente ao tipo de monoteísmo militante que o próprio Heraclius havia exemplificado. Os xiitas, que eram partidários de Ali – primo e genro de Muhammad –, concordavam, mas divergiam de outros muçulmanos, ao sustentarem que Ali era singularmente qualificado para sucedê-lo. Essa não era apenas uma civilizada diferença de opinião, tendo gerado violência política e criado identidades sectárias. ‘Ā’isha, uma das esposas de Muhammad, teve um papel importante nesses desenvolvimentos. Talvez o exemplo mais marcante desse padrão – o quão cedo os muçulmanos se apropriaram das tradições religiosas que herdaram e o quanto as transformaram – desponte no pensamento político deles. No judaísmo rabínico, o exílio da Terra Santa havia separado a autoridade religiosa das aspirações políticas, e no Irã o colapso do estado sassânida havia desacreditado o absolutismo zoroastrista. O cristianismo militante de Heraclius era uma forte alternativa, mas desgastada por séculos de lutas internas sobre a natureza de Cristo. Vindos do ambiente esparsamente habitado do oeste da Arábia, onde a ordem política era tribal e a forma prevalente de religiosidade era o politeísmo, os primeiros muçulmanos ofereciam a radical reinvenção de uma roda que há muito se pensava estar obsoleta: eles revitalizaram as profecias e fundiram realeza com sacerdócio. Ao fazê-lo, completaram a tarefa lançada por Constantino três séculos antes, construindo uma ordem político-religiosa que uniria o mundo sob a autoridade do Deus Único. Rabi‘a al-‘Adawiyya, um exemplo piedoso do puro amor a Deus, é um salutar lembrete de que uma resposta a essa mudança política extraordinária era abandonar os vínculos com o mundo. Em suma, um império que reivindicou e exerceu domínio político e uma tradição religiosa que geraria rituais, uma teologia e uma lei, formaram os irmãos gêmeos da profecia do século VII. Não há provavelmente nada na história documentada que se compare à explosão de ação política e inovação religiosa que se passou no Oriente Médio nos séculos VII e VIII. De forma complementar, os nomes que aparecem na Parte 1 foram todos participantes do projeto de fundir política e profecia – e, portanto, da criação do próprio califado: eles o inspiraram, desenharam, vivenciaram e fundamentaram racionalmente.
Islã e Império 600-850
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Parte 1
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O mundo islâmico em 800
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Islã e Império 600-850
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Diogo Bercito Jornalista e mestre em estudos árabes e islâmicos
Chase F. Robinson
O historiador Chase F. Robinson é doutor pela Universidade de Harvard e presidente do centro de pós-graduação da Universidade da Cidade de Nova York. De 1993 a 2008, foi professor de história islâmica no colégio Wolfson, em Oxford, Inglaterra. É autor de diversos livros sobre o islã, dentre eles Empire and Elites after the Muslim Conquest (2000), Islamic Historiography (2002) e o primeiro volume de The New Cambridge History of Islam (2010).
Civilização islâmica em trinta biografias
Mamede Mustafa Jarouche Professor de língua e literatura árabe na Universidade de São Paulo (USP) e tradutor. Traduziu o Livro das mil e uma noites para o português e o romance Um copo de cólera, de Raduan Nassar, para o árabe.
Esta extensa obra traz a biografia de trinta personagens fundamentais do que o autor Chase F. Robinson descreve como a “civilização islâmica”. A seleção tem como objetivo apresentar a variedade dessas culturas, que se estenderam por longos séculos e por um grande território, outrora abrangendo desde a península Ibérica até a Ásia Central. Assim, o autor apresenta os personagens óbvios da história islâmica – como o profeta Muhammad e o califa ‘Ali – e também conta sobre o pensador medieval al-Ghazali e até mesmo sobre figuras menos emblemáticas, como o médico Abu Bakr al-Razi e o mercador Abu al-Qasim Ramisht. Estão contemplados ainda o herói clássico Saladino e o poeta sufista Rumi. Quando descrito por sociedades distintas, o islã costuma evocar a imagem de véus cobrindo o rosto de suas mulheres e turbantes adornando a cabeça de seus homens. Dificilmente, no entanto, essa religião remete o espectador aos retratos nítidos de seus personagens para além dos estereótipos. Aqui, temos em mãos a oportunidade de conhecer os grandes nomes que moldaram um sofisticado e variado pensamento desde o século VII, determinando, inclusive, o que seria a cultura e a ciência na Europa, que se beneficiou largamente das obras e dos saberes de diversos intelectuais e pensadores muçulmanos.
Os primeiros mil anos
Este livro tem como mérito, além da erudição que não fatiga, o esforço honesto, isento da condescendência tão comum em trabalhos orientalistas, de compreender essa grande alteridade que é o mundo do islã.
Civilização islâmica em trinta biografias Os primeiros mil anos Chase F. Robinson
Neste trabalho admirável, o historiador norte-americano Chase F. Robinson traça a história do Oriente Médio entre os séculos VII e XVI da era cristã, tendo como ponto de partida trinta biografias. Por meio da sucessão de eventos que caracteriza e determina cada uma delas, delineia o panorama do período em que essas personalidades viveram. Sua escolha recaiu sobre aqueles cuja vida foi plena de história por motivos de primazia política, intelectual, religiosa e cultural e que tiveram um trajeto ímpar cuja exemplaridade ajuda a sintetizar a história do islã em seu primeiro milênio. O livro é dividido em quatro partes: a primeira, englobando o período de 600 a 850 d.C., corresponde à fase de constituição e formação; a segunda, de 850 a 1050 d.C., à fase de consolidação de uma autêntica comunidade islâmica, durante a qual se forjaram os laços que, em sua maioria, duram até hoje; a terceira, de 1050 a 1250 d.C., à fase que o autor denomina “síntese provisória”, e que é contemporânea, grosso modo, não somente das Cruzadas como também do declínio dos árabes como etnia dominante no mundo do islã; e a quarta, de 1250 a 1525 d.C., à fase que em mais de um sentido consolida o gradual enfraquecimento do mundo do islã face à Europa, prenunciando uma série de conflitos nos séculos seguintes. Foram biografados vinte e seis homens e quatro mulheres. Num rol de evidente prevalência masculina, três das personalidades femininas ganham destaque: ‘A’isha, a esposa preferida do profeta Muhammad e que também foi líder política e militar; Rabi‘a al-‘Adawiyya, poeta mística adepta do amor divino e cujo nome de difícil pronúncia não impede que seja muito festejada em círculos sufis ocidentais; e Karima al-Marwaziyya, especialista nos hadiths (tradições) do profeta.